segunda-feira, maio 18, 2009

o bandido da luz (re)encarnada

um dos filmes que eu mais amo vai gerar um filhote rebelde depois de 40 anos (minha idade!). vai daí uma reportagem ("carta capital" 545, 13 de maio de 2009) sobre ele, sobre eles, sobre elas, sobre ela.


LUZ VERMELHA REENCARNADO

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Em 1968, foi lançado o filme O Bandido da Luz Vermelha, e, com ele, o chamado cinema marginal brasileiro. João Acácio Pereira da Costa, o personagem real no qual o marginal da ficção foi livremente inspirado, ganhou liberdade em 1997, após uma temporada de 30 anos na prisão. Morreu assassinado em janeiro de 1998 (o ator Paulo Villaça, que o interpretou no cinema, morrera em 1992). O cineasta Rogério Sganzerla, autor e diretor d'O Bandido, morreu de câncer cerebral em 2004, aos 57 anos. Ainda assim, o Bandido da Luz Vermelha está vivíssimo em 2009.

O personagem voltará às telas em nova encarnação, desta vez no corpo do cantor Ney Matogrosso. Ele é o protagonista de Luz nas Trevas – A Revolta de Luz Vermelha, atualmente em produção. O roteiro original foi escrito por Sganzerla ao longo de vários anos, até poucos dias antes de morrer. Chegou a ter duas mil páginas. Apanha o bandido na cadeia, condenado a uma espécie de pena perpétua, "prisioneiro de mim mesmo".

Na vida como na ficção, Luz Vermelha usava roupas exóticas, assaltava casas burguesas com uma lanterna em punho, jantava com as vítimas, estuprava, matava. Na nova versão tem um filho não-reconhecido, Tudo ou Nada (interpretado por André Guerreiro), nascido, crescido e marginalizado na Favela do Lixão. Um ex-menino de rua, como também foi João Acácio, mais tarde descrito como portador de esquizofrenia paranóide. Com locações na favela de Heliópolis, a nova fábula avança em direção à escalada contínua de violência e favelização no Brasil.

Matogrosso foi ator antes de se firmar como cantor, e em 1976 lançou um inspirado disco chamado Bandido. Sisudo e barbado em algumas cenas, trabalha agora para se despir de sua forte persona musical e dar substância ao personagem brutalizado. "É um exercício de contenção, de introspecção", diz, em meio a uma filmagem no Parque da Luz, no centro de São Paulo.

A cidade, por sinal, é outra personagem central do filme de 1968 como do atual. E deixa à vontade o artista hoje radicado no Rio. "Surgi em São Paulo, com cabeça paulista, atitude paulista. Muito tempo depois descobri que fui gerado numa pensão na praça da Sé", diz, um dia antes de filmar ao ar livre na caótica rua 25 de Março.

O esforço de se dissociar da imagem musical andrógina não o impede de encerrar o filme no topo de um prédio, reinterpretando Sangue Latino (jurei mentiras e sigo sozinho...), uma das canções que o alçaram à fama em 1973, com o grupo paulistano Secos & Molhados. "Mas procurei fazer o bandido cantando, e não eu mesmo. Fiz grave, uma oitava abaixo."

A direção de Luz nas Trevas cabe à ex-esposa de Sganzerla, Helena Ignez, em dupla com o cineasta paulista Ícaro Martins (de O Olho Mágico do Amor, 1981). "Sou da turma que resolveu fazer cinema vendo O Bandido da Luz Vermelha", afirma o codiretor.

Como atriz, Helena estreou com o cinema novo, em Pátio (1959), do então marido Glauber Rocha, baiano como ela. Poucos anos depois, juntou-se aos "filhos" rebeldes de Glauber, formuladores da anarquia e do niilismo pós-AI-5 do cinema marginal. Namorou o carioca Júlio Bressane, que a dirigiu em Cara a Cara (1967), e se casou com o catarinense Sganzerla, futuro sócio dele na produtora Belair Filmes. Hoje às vésperas de completar 70 anos, teve três filhas, Paloma, com Glauber, e Djin (atriz no novo filme) e Sinai, com Sganzerla.

"Como a maioria das mulheres dominadoras, caso com pessoas mais jovens. Só Glauber tinha a mesma idade que eu", brinca. O cineasta baiano tinha 20 anos quando lançou Pátio. Sganzerla estreou O Bandido aos 22. "Essas relações amorosas e também cinematográficas me agradam muito. No começo achava estranho, porque com o machismo reinante nessa geração a que pertenço, durante muito tempo fui a mulher do Glauber, a ex-mulher do Glauber", diz.

À distância desses cineastas tão aguerridos, teria ela se transformado tardiamente em cineasta? "Mas eu sempre dirigi o meu trabalho. O que eu não quero é essa valorização da palavra 'cineasta'. Não valorizo", responde na diagonal. Ela dirigira em 2007 o independente Canção de Baal ("um filme sobre o comportamento machista, algo que eu conheço profundamente"). E admite o estranhamento diante do ambiente industrial de Luz nas Trevas, um filme patrocinado e orçado em 2,7 milhões de reais.

"Fazer um filme dentro do mercado é muito mais difícil que criar fora dele", constata. "Em Canção de Baal, não tinha que prestar contas a ninguém. Desta vez tem. A equipe de profissionais de luz e maquinaria é a melhor de São Paulo, mas tem o ritmo de mercado, com funcionamento muito diferente do cinema de invenção e poesia que fiz até hoje. É inédito para mim". E arremata com uma confissão incomum entre seus pares: "Às vezes me sinto amarrada".

Lembra que O Bandido da Luz Vermelha, embora arrojado, foi um filme comercial em seu tempo (foi vendido por Sganzerla como "um western sobre o Terceiro Mundo"). Mesmo apostando que Luz nas Trevas também será bem-sucedido, diz que a ligação com o cinema de mercado é passageira. "Não me preocupo (com o mercado), em nenhuma circunstância. E me afastei. Saí do mundo mesmo. Mas não da arte, do pensamento, da criatividade, do espírito. Me sinto muito viva e livre. E não quero me integrar em mercado nenhum. Essa homenagem a Rogério está feita".

Tampouco a relação de Sganzerla com o mercado não foi harmônica. Após o levante do cinema marginal, seguiu trajetória errática, sempre com grandes dificuldades de concretização de projetos. Fez Nem Tudo É Verdade entre 1980 e 1986, em referência direta ao inacabado It's All True (1942), que o norte-americano Orson Welles filmava no Brasil dentro da chamada política da boa vizinhança. Welles foi influência escancarada em seu cinema, especialmente n'O Bandido.

Sganzerla nunca pareceu se desvencilhar do impacto do primeiro filme, possível prisioneiro de si mesmo, como seu personagem. De fato, não são poucas as semelhanças simbólicas entre criador e criatura, a começar pela marginalidade artística de um e a concreta de outro.

Em Luz nas Trevas, o bandido se diz recuperado e convertido, e se auto-rebatiza Luz Divina. Foi como se denominou João Acácio, catarinense como Sganzerla, ao ser solto em 1997. Sganzerla visitara Acácio na prisão em 1994, com o pretexto de uma reportagem da revista Manchete. Levou-lhe de presente uma Bíblia.

Acácio foi morto com um tiro na têmpora quatro meses depois de libertado, por um amigo que o hospedava no bairro periférico de Cubatão, em Joinville (SC). Teria assediado as mulheres da casa e ameaçado matar a família. "Meus dias aqui são de um morto-vivo", proclama o personagem de Luz nas Trevas, antes de fugir da prisão com a cumplicidade involuntária da mídia, vestido com colete de repórter, dentro do furgão de uma emissora de tevê. "Eu não sei viver", lamenta-se.

"Não vamos esquecer que a Ordem do Mérito só é dada para quem demonstrar que não o tem", diz um policial no roteiro, como a simbolizar o sentimento de inadequação do autor em relação ao mundo a seu redor.

Sua ex-esposa trabalha 12 horas por dia na homenagem ao autor-personagem, e de início minimiza o esforço de conduzi-la: "Esse é um filme que já vem dirigido". Mas em seguida corrige a afirmação: "Rogério não está me dando nenhum tipo de dica. Eu que me vire".