quarta-feira, agosto 26, 2009

o silêncio dos súditos

Este meu texto que vai copiado abaixo foi publicado na edição do sábado 22 de agosto de 2009 no "Correio Braziliense", lá do Distrito Federal (e viva a descentralização!). Escrevi sob encomenda do Carlos Marcelo, que, além de editor do suplemento "Pensar", do "CB", é autor da bela biografia "Renato Russo - O Filho da Revolução" (ed. Agir, 2009).

O texto foi publicado com uma ilustração linda, que não sei descrever em palavras. E talvez diga mais ou menos o contrário do tópico anterior, "aquela casa simples", mas... Ora, por que uma determinada afirmação haveria de ser anulada pela afirmação contrária a ela, não é mesmo? Se não fôssemos - ou formos - maniqueístas...


O silêncio dos súditos

De Roberto Carlos, que completou 50 anos de reinado, a Luiz Gonzaga (eterno rei do baião), a música popular é regida pela monarquia. E um país que necessita de reis é, forçosamente, um país cujos filhos não se acostumam a ser reis deles próprios

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ESPECIAL PARA O CORREIO

“Roberto Carlos é o rei do iê-iê-iê”, cantarolava Chico Science em 1994 na abertura da versão de sua Nação Zumbi para o hino soul Todos Estão Surdos, gravada originalmente em 1971. Naquele sotaque pernambucano e naquelas sonoridades manguebit, a homenagem quase parecia mais devotada a Luiz Gonzaga, o “rei do baião”, ou a Lampião, o “rei do cangaço”, do que propriamente ao “rei do iê-iê-iê”, a quem o tributo se dirigia.

O caso é que nós, nascidos no século 20, gostávamos à beça de nos decretar governados por “reis”. E nem cabe aqui aquele papo surrado de que “só mesmo no Brasil...”, pois outro dia mesmo morreu lá na autoproclamada democracia dos Estados Unidos da América um “rei do pop”, Michael Jackson, anos após ter passado um período casado com a filha de um falecido “rei do rock”, Elvis Presley.

De modo geral, somos doidos por entronizar um reizinho, mesmo que não vivamos em monarquias nem estejamos falando propriamente sobre sistemas políticos. Pelé é “rei” honorário no futebol, e não temos uma correspondência em termos de “rainhas”. Carmen Miranda foi “rainha”, mas era chamada de Pequena Notável (“pequena”, perceba), e não de “rainha”. OK, por anos Xuxa foi “rainha dos baixinhos”, mas o tempo mostrou que não era vitalícia, certo?

“Reis” júniors tivemos alguns esporádicos, como Ronnie Von, “pequeno príncipe” dos tempos da jovem guarda do “rei” Roberto (Wanderléa não era “rainha” nem “princesa”, apenas “ternurinha”). Mesmo lá fora, em contraponto ao “rei” Michael Jackson havia sua majestade, o Prince, tão talentoso quanto, mas de fôlego menos duradouro. Tampouco foi consagrada realeza à sempre espertíssima Madonna, um dos poucos “reis” ainda em atividade em 2009 (pelo menos no pop) – antes mesmo da coroação do sucesso, ela preferira ser mãe profana de Jesus a ser imperatriz.

O xis da questão mora mesmo no trono do “rei”, e fiquemos por ora só no caso brasileiro. Se muitos contestam a realeza de Lampião e poucos recordam a de Gonzagão, Roberto Carlos indubitavelmente conserva seu título por décadas suficientes para ser não só “rei”, mas “rei” de permanência e durabilidade. Note, como prova, a avalanche de marketing apelidada de “50 anos de carreira” destinada a conservar o poder de nosso, bem, “rei”.

Ele desfruta do recorde aparentemente vitalício qual um papa em seu manto sagrado. (Por sinal, a bossa nova não era movimento religioso e teve seus “papas”, mas não nomeou “reis”.) Nos anos 70, RC cantava que “eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar”, mas talvez o que estivesse querendo intimamente dizer – e conseguiu de fato, diga-se – era “eu quero ter vários milhões de súditos e bem mais forte poder reinar”. Foi feita a vontade de sua majestade.

A cara do Brasil

Roberto era o homem certo na hora certa de um país num período certo como dois e dois são cinco. Ajustou-se precisamente a um modelo de ditadura, com sua panca de brasileiro bom moço, cordial, humilde, obediente e submisso. Criou-se uma simbiose, a ponto de Roberto Carlos ter virado um sinônimo perfeito de Brasil, ou pelo menos de uma determinada cara de Brasil - sincera, sofrida, tristonha.

No entanto, veja bem, a perpetuação no poder monocrático não é primazia do ex-menino capixaba de Cachoeiro do Itapemirim. As primeiras décadas de “governo” de Roberto Carlos foram tempos pródigos em providenciar o advento de “reis” de longevidade impressionante, mesmo que não andem por aí alardeando o titulo.

Exemplos? Presidente da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) desde o início do regime militar, o recém-deposto Wilson Sandoli jamais se disse “rei” – mas foi de fato, munido de poderes despóticos autoconcedidos (e às vezes até de armas de fogo), e bovinamente legitimados pela plebe musical brasileira. Enquanto o show tinha que continuar, Roberto era “rei” no palco e Sandoli fazia as vezes na coxia. E exercia poderes ilimitados, a ponto de, segundo sustentam seus opositores, comprar sedes para a OMB sem dar satisfação para ninguém.

Quer outro “rei” incontestável, um que pela designação talvez chamássemos de “rainha”? Eis a mui masculina Rede Globo, hegemônica em audiência há 44 anos e influente a ponto de quase ser compreendida como sinônimo de Brasil. Não à toa, é a rede que cooptou já nos anos 70 o “rei” musical do qual é até hoje “patroa”. Alguém conseguiria pensar em Globo, Natal e Roberto Carlos sem pensar em Brasil?

Nos calcanhares de dona Globo sempre esteve um tal Silvio Santos, que não chegou a arranhar a liderança do canal ao lado, mas impera ininterruptamente no imaginário popular desde que a TV brasileira amarrava linguiça com cachorro. Outro dos domínios televisivos: seu titulo máximo pode ser o de “trapalhão” (o “bobo da corte”?), mas alguém duvida que Renato Aragão é “rei do humor” brasileiro desde que Roberto Carlos era mocinho?

Mãos de ferro

Para muito além da música e da TV, parece interminável o rol de poderes, instituições, empresas, associações e congêneres dirigidos há tempo equivalente pelas mesmas mãos de ferro, muitas vezes em regime familiar, tradicional e proprietário.

Estamos falando de um país que se acostumou não a uma monarquia, mas a uma ditadura (ou várias), instalada quando o menino Roberto Carlos cantava Splish Splash e É Proibido Fumar. Esse regime foi convencionalmente extinto em 1984, de início pelas mãos de José Sarney (outro “rei”?). Mas o que talvez a permanência de tantos “reis” indique é que ainda continuamos nos libertando, pouco a pouco, dia após dia, dos hábitos e costumes que nos fizeram uma ditadura.

Não deve ser à toa que não se encontram novos aspirantes a “reis” no horizonte. A popularidade não tem sido suficiente para coroar as cabeças de, digamos, Padre Marcelo Rossi, Joelma & Chimbinha, Ronaldo ou Mano Brown. O desmonte da monarquia prossegue com a vagareza das tartarugas.

Mas, quem diria, lá se vão 15 anos desde que Chico Science abrasileirou o iê-iê-iê e tratou com fina ironia o título de nobreza do ídolo RC. Pois sabe como terminava sua Todos Estão Surdos? Com a repetição persistente dos seguintes dizeres: “Ói. Escute. Você que está aí sentado. Levante-se. Há um líder dentro de você. Governe-o. Faça-o falar”. Um país que necessita de reis é, forçosamente, um país cujos filhos não se acostumaram a ser reis deles próprios. E Chico Science, morto precocemente em 1997, já atentava contra essa tal monarquia que desde então não para mais de cair.

Pedro Alexandre Sanches é jornalista e autor dos livros Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba (Boitempo, 2000) e Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004)