sexta-feira, setembro 11, 2009

o sertão que não existe mais

Na "CartaCapital" 562, na data redonda de 9 do 9 do 9.


O sertão que não existe mais

Por Pedro Alexandre Sanches

Manifestações populares espontâneas a Luiz Gonzaga brotaram em diversos pontos do Nordeste neste agosto de 2009. A evocação refere-se aos vinte anos da morte do músico pernambucano, mas possivelmente fazia referência indireta também à morte de um Nordeste que ele cortantemente transformou em canção e que hoje não existe mais.

Em retretas de sanfoneiros como aque la em torno de seu busto em Juazeiro do Norte (CE), no redondo 2 de agosto, cabiam menções ao sertão caatingueiro, às canções sobre seca e abandono político (como Asa Branca, de 1947), às vestes de couro inspiradas nos cangaceiros de Lampião. E cabiam loas à série fabulosa de invenções formuladas pelo “rei” do baião, do xaxado, do xote, do rojão, do coco, da quadrilha, do forró, da música pop tocada com sanfona, zabumba e triângulo (instrumentos antes pertencentes apenas ao folclore local).

Hoje um Nordeste voltado ao progresso se sobrepõe às imagens de “terra ardendo”, “braseiro”, “fornalha” (ou “fornaia”, como ele pronunciava) e “nem um pé de ‘prantação’” de Asa Branca. Há quem se incomode com o status de “hino do Nordeste” adquirido por essa canção, como Lirinha, do grupo Cordel do Fogo Encantado, nascido em cidade vizinha à Exu de Gonzaga e contrário à perpetuação da submissão inscrita em algumas de suas canções. Também costuma ser citado certo apego do patriarca musical a pendores autoritários e conservadores, típicos do coronelismo, como na biografia Vida do Viajante (34, 1996), da francesa Dominique Dreyfus.

São retratos do Nordeste percebido e difundido pelo cantor entre 1912 e 1989, de contraste vívido com o imaginário praiano do outro grande retratista musical daquela região no século passado, o baiano Dorival Caymmi (1914-2008). Aspectos que hoje pareçam anacrônicos em nada arranham o legado colossal da obra registrada por Luiz Gonzaga entre 1941 e 1989, em mais de 150 discos, entre compactos de 78 rpm e LPs (também nisso ele é duplo negativo de Caymmi e suas 101 canções).

A saga épica segue preservada, e o comprova o cineasta Breno Silveira, que prepara, possivelmente para o ano do centenário de Gonzaga, uma versão cinematográfica romanceada sobre a vida do viajante. Foram adquiridos os direitos de uso da biografia Gonzaguinha e Gonzagão – Uma história brasileira (Ediouro, 2006), de Regina Echeverria, centrada na tumultuada relação entre pai e filho adotivo (embora fértil em canções, o artista era biologicamente estéril). Seria sinal de que o diretor do também épico 2 Filhos de Francisco (2005) prepara novo filme fundado no tema da paternidade? “Não necessariamente”, diz a coprodutora Márcia Braga. “Compramos mais para nos precaver de a ideia ser vendida para outra produtora.”

Músico, Gonzaguinha (1945-1991) bateu de frente com Gonzagão ao aderir à chamada “canção de protesto” na virada dos anos 1960 para os 1970. Num mesmo disco (Canaã, de 1968), o pai, getulista e adepto da ditadura, compôs e gravou Canto sem Protesto e abrigou as primeiras composições de Gonzaguinha, entre elas Pobreza por Pobreza (a mão é sempre a mesma que vive a me explorar, diz a letra).

Não só em relação ao filho, submissão e insubordinação se confrontaram em Gonzaga. Segundo Dominique Dreyfus, quando moço ele tinha Lampião como herói, mas perseguiu cangaceiros por obediência. “Eu era empregado do Exército, era soldado. Tinha disciplina. E eu sempre gostei de disciplina”, afirmou à autora.

O mito do cangaceiro ressurgiria em 1947, no Rio, onde o imigrante desenvolveu a maior parte de suas obras-primas de “nordestinidade” (e esse é ponto em comum com Caymmi). Asa Branca iniciava uma rota de sucesso, e Gonzaga abandonou os ternos e gravatas para adotar o chapéu à moda de Lampião como símbolo de identidade nordestina. A Rádio Nacional, dona de seu passe, proibiu a referência ao cangaço, mas engoliu o sapo diante do sucesso do figurino. Em breve ele completaria a estilização de cangaceiro com gibão de couro, cartucheira e sandálias. E seguiria apregoando a imagem de pretenso fora da lei em territórios de suposta legalidade.

A tensão entre a clausura da disciplina e o espírito livre rendeu outras grandes canções sobre passarinhos, Acauã (de Zé Dantas, 1952) e Assum Preto (1950). Nessa, Gonzaga e o futuro deputado cearense Humberto Teixeira despistavam o dilema do pássaro que tem os olhos furados para “cantá mior”: Assum preto véve sorto/ mas num pode avoá/ mil vez a sina de uma gaiola/ desde que o céu, ai, pudesse oiá.

Gonzaga borrou limites entre lei e desordem musical de modo a não fazer feio no século de downloads e copylefts. Vários clássicos assinados por ele, inclusive Asa Branca, pertenciam ao folclore nordestino e ao repertório de seu pai sanfoneiro, Januário. Em depoimento à biógrafa francesa, o músico deu a entender que, em algumas das canções assinadas com Zé Dantas, era mais “sanfonizador” que coautor.

Com o apogeu da era do rádio, avolumava-se a cultura (ou melhor, a economia) dos direitos autorais, e o expropriador viveria dias de expropriado. Em 1949, os norte-americanos Harold Steves e Irving Taylor verteram ao inglês e a cantora Peggy Lee gravou Juazeiro, ou melhor, Wandering Willow, sem crédito a Gonzaga e Teixeira. Processados por plágio, argumentaram que, como os brasileiros, inspiraram-se no folclore. Mas a gravadora teve de recolher os discos das prateleiras.

Criador e mantenedor do site www.luizluagonzaga.mus.br, o bancário pernambucano Paulo Vanderley afirma que as homenagens nordestinas em 2009, em sua maioria, “vêm de baixo para cima”. Num evento oficial de Exu, em 2 de agosto, esteve o governador paulista José Serra. “As informações que circulam por aqui é que ele queria atingir o Nordeste por meio de Luiz Gonzaga”, diz Vanderley.

Para contrapor a noção do músico como retratista da submissão sertaneja, o fã cita Vozes da Seca, de 1953: “Ali ele diz que o nordestino não quer esmola. É muito atual”. A letra dessa parceria com Zé Dantas flagra ambiguidades entre nortistas e sulistas: Seu doutor, os nordestinos têm muita gratidão/ pelo auxílio dos sulistas/ nesta seca do sertão/ mas, doutor, uma esmola/ a um homem que é são/ ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem comer, arremata.

Inúmeras ambiguidades forjaram a obra e o sucesso maciço de um artista ímpar, e talvez tamanha identificação viesse do dado prosaico de que Gonzaga era tão ambíguo (e estéril) quanto a região e o país em que nascera. Mas e se houvesse férteis sementes de progresso e libertação plantadas na aridez de Asa Branca e nos baiões obedientes com que Luiz Gonzaga ajudou o Brasil a conhecer seu Nordeste?