quarta-feira, novembro 18, 2009

desperta, américa do sul

Esta minha atual fase paraense segue rendendo frutos suculentos, inclusive uma reportagem na edição 2 da "Billboard", já nas bancas, e anterior a essa nova visita que fiz ao festival Se Rasgum, no fim-de-semana passado.

Teria tanta coisa a dizer que até me perco, então por ora quero reproduzir aqui, com consentimento do autor, o depoimento que (o jornalista e codiretor dos documentários "Brega S/A" e "As Filhas da Chiquita") Vladimir Cunha me concedeu para a reportagem da "Billboard".

O que o Vlad escreveu por e-mail me parece mais que um depoimento, um texto pronto - e excepcional -, com reflexões úteis e importantes muito além das fronteiras do Pará. Quando ele diz "elite paraense", por exemplo, acredito que a gente pode facilmente substituir o termo "paraense" por qualquer canto do Brasil onde vicejem gêneros musicais locais. Ou podemos trocar, de modo mais amplo e igualmente justo, "elite paraense" por "elite brasileira" e e "música paraense" por "música brasileira". Cê não acha?

(Esclarecendo para quem não viu a "Billboard": a reportagem versa sobre o perrengue entre os grupos paraenses de tecnomelody e a Banda Djavú, baiana, que andou abocanhando uma série de hits paraenses e os transformou em música "da Bahia" de alto potencial comercial. Assunto candente, muitíssimo pano pra manga.)

Fala, Vlad:

POR VLADIMIR CUNHA

Pedro,

Belém é ao mesmo tempo um lugar de passagem e um ponto onde várias culturas se encontram. Passagem porque é a entrada da Amazônia e a saída para o sul do país, e para a Europa, para quem está no norte do Brasil. Uma cidade portuária onde o tráfego de informações sempre foi muito intenso, onde desde os anos 50 se contrabandeavam discos de rock dos
Estados Unidos e discos de cumbia, soca e merengue do Caribe e das Guianas. Foi o que possibilitou, por exemplo, a criação da guitarrada e da lambada, ritmos nascidos do contato da periferia da cidade com ritmos criados em outros países.

E sempre se ouviu muita música na periferia de Belém. Eu nasci e me criei no bairro do Jurunas e na parte baixa da Cidade Velha, duas áreas bem pobres da cidade (para tu ter uma ideia, a rua onde nasci somente foi ter asfalto e saneamento básico há cerca de 15 anos, antes era chão batido, valas a céu aberto e mato). E nesses locais era comum a gente estar brincado na rua e ouvir música de todos os lados, brega, merengue, lambada, carimbó, guitarrada... Porque sempre foi um hábito
do belenense pobre colocar as caixas de som na janela, na calçada ou na porta da casa. Em parte para mostrar aos vizinhos que ele conseguiu ter um aparelho de som (naquela época um status absurdo), em parte porque em Belém faz muito calor e na periferia da cidade ir para a rua ouvir música nos finais de semana é uma forma de escapar do ambiente sufocante das casas de madeira e alvenaria sem ventilação dos bairros mais pobres.

Então, essa musicalidade, ela sempre esteve presente no cotidiano do paraense da periferia, que desde cedo aprendeu a conviver com esses diversos matizes musicais. Antes de criar a Banda Calypso, Chimbinha tocava em bailes de Creendece Clearwater Revival a Pink Floyd, de Odair José a disco music. Isso é comum. Então, como o sujeito cresce ouvindo todo tipo de música desde cedo, aprende, na hora de tocar e criar a, combinar esses diversos estilos musicais.

Por causa da batida, por exemplo, "Blue Monday", do New Order, e "This Is Not a Love Song", do Public Image Ltd., foram hits absurdos nas aparelhagens nos anos 80, junto com músicas de Mauro Cota, Teddy Max, Juca Medalha, Pinduca e outros músicos locais. Como ninguém entendia a letra, as pessoas cantavam o refrão de "This Is Not a Love Song" como "bife, coloral e sal". Mas cantavam e se divertiam. Sempre que me lembro disso fico pensando o que sentiria um pós-punk metido a sebo ao saber que em Cametá, no Baixo Tocantins, lavradores, estivadores e pescadores dançavam as mesmas músicas que ele dançava no Madame Satã ou no Crepúsculo de Cubatão.

Isso tudo é para tu entender que essa confusão sensorial e de inputs de informação sempre existiu aqui em Belém e se intensificou ainda mais com a pirataria e o acesso à internet, pois as referências passaram a ser não somente musicais, mas também referências de moda, de seriados de TV, de filmes (tipo "Velozes e Furiosos", "Transformers" e
animes) e dos videogames ("Street Fighter" é, até hoje, sampleado em diversos tecnobregas).

É isso que colabora para essa inventividade do paraense pobre que resolve fazer música, que resolve criar esses gêneros híbridos e, agora, eletrônicos. O problema é que, ao contrário do axé e do forró, por exemplo, nunca existiu em Belém uma tentativa de profissionalização e institucionalização do tecnobrega. Isso porque não existe boa vontade da elite local com o ritmo. A elite local prefere escondê-lo, ridicularizá-lo e abraçar ritmos e modismos importados.

Isso se deve ao fato de que a elite local tem como hábito escamotear certos aspectos que constituem a identidade do povo paraense. Ela não gosta de ser ligada ao índio, ao negro, ao povo ribeirinho, ao morador da periferia. Ela nega seus traços índios, pinta o cabelo de loiro, sonha em morar em condomínios fechados, passar frio, usar casaco. Sonha com o dia em que Belém sera igual aos Jardins em São Paulo. Para ela, o tecnobrega, a lambada, o melody... tudo isso lembra que ao redor das
ilhas de conforto que ela ergueu, e nas quais perpetua a sua ilusão de embranquecimento e de pertencimento a uma realidade que não pode ser replicada numa cidade pobre e caótica como Belém, existe uma gente "feia", de pele escura, "mal-educada", "mal-vestida" e que ouve essa música dura, sexual, rude e que fere os ouvidos: o tecnobrega.

Por conta disso, o paraense médio nunca viu o tecnobrega ou o melody como uma cultura genuinamente local, que poderia ser exportada e gerar benefícios para a cidade e para o estado. Por ter vergonha do tecnobrega, e por conseguinte de uma infinidade de aspectos ligados à identidade do povo paraense, a elite local ergueu uma série de barreiras definindo o que pode e o que não pode, criando um apartheid não só social, mas também cultural, segregando essas manifestações para os salões de terra batida da periferia, para os balneários classe C e para os portos que circundam a cidade, onde são realizadas festas
todos os finais de semana.

Por ter sido relegado à periferia, o tecnobrega acabou encontrando na informalidade e na pirataria o seu meio de sobrevivência. Se por um lado isso foi bom, já que a informalidade criou um sistema de distribuição eficaz, por outro largou o ritmo numa espécie de terra de ninguém, onde direitos de patrimônio e de autor não são respeitados, onde não se tem controle sobre os processos criativos.

Por exemplo: a Banda Djavú roubou músicas de autores paraenses. é um fato. Mas, ao mesmo tempo, uma série de músicas do tecnobrega são roubadas. "No More Lonely Nights", do Paul McCartney, virou "Galera GDK", "Das Model" virou "Bole Rebole", "Beat It" virou "O Rei do Pop", cujo refrão, no lugar de "beat it", diz "é firme, firme". Junto a isso, existe uma via de mão dupla, na qual as bandas de forró roubam músicas paraenses e as bandas paraenses roubam forrós que são transformados em tecnobrega.

Um caso exemplar é da musica "Amores", que estourou em Belém numa versão tecnobrega, mas foi gravada originalmente pela banda Forró do Muído, que, por outro lado, roubou a musica de um grupo espanhol e gravou uma versão nao-autorizada dela em português. Nesse cenário caótico, informal e confuso, sempre me pareceu só uma questão de tempo até alguém vir aqui, pegar o melody e as músicas locais e lançar para todo o Brasil.

Em parte porque, ao empurrar e confinar o tecnobrega e o melody para espaços bem delimitados, a elite local perdeu o bonde da história, já que, espertamente, foram os empresários nordestinos, muito mais bem resolvidos com suas questões de identidade, que enxergaram no ritmo excelentes possibilidades de negócios. E enquanto o empresariado local dançava Biquíni Cavadão nos bares "classe A" de Belém e definia que melody era "coisa de caboco", a Bahia criava a Banda Djavú e fatura
milhões em cima de algo criado a partir do talento e da inventividade do povo paraense.