terça-feira, fevereiro 23, 2010

caminhando e cantando e carregando caixa

Esta foi a estreia da minha coluna "Paçoca" na "Caros Amigos", na edição 154, de janeiro de 2010. A segunda já está nas bancas, a terceira já está escrita. E eu confesso que estou adorando essa história!!!


PAÇOCA
Pedro Alexandre Sanches

"Caminhando e cantando e carregando caixa"


O palco está montado sob uma lona de circo, e a estrutura de picadeiro borra a distinção entre palco e plateia. O palco ainda fica um nível acima (seriam semideuses os astros pop?), mas a plateia a todo momento parece que vai subir, tomar de assalto a ribalta, raptar a esposa do palhaço, roubar o show.

Uma moça de pele escura, aspecto hippie e graciosos gestos de bailarina oriental dança concentrada diante do palco, um degrau abaixo, não importa que estilo musical esteja passando ali por cima. Tece evoluções com o auxílio de uma canga, e na canga que dança mais que a moça está inscrita em letras garrafais a palavra Brasil.

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O circo está armado na cidade de Vitória, e o que evolui no palco é um festival de rock, integrado à programação do II Fórum de Mídia Livre. No picadeiro e nos auditórios da Universidade Federal do Espírito Santo, onde acontece o encontro, alternam-se músicos sem-gravadora, jornalistas sem-jornalão, fazedores de mídia sem Globo. Um globo da morte faria as vezes de cabine para os DJs, mas, que pena, os circenses donos da lona precisaram dele para outro evento.

Jards Macalé sobe ao palco para se apresentar com um jovem grupo capixaba, Sol na Garganta do Futuro. Macalé gosta da molecada, é daqueles artistas que preferem atravessar fronteiras geracionais a morar isolados em globos blindados no centésimo andar. Põe seu clássico “Vapor Barato” na garganta do futuro e retribui com uma versão bem peculiar de “Diz Que Fui por Aí”, sucesso antigo na voz da carioca nascida no Espírito Santo Nara Leão. Para espanto de meus ouvidos e olhos acostumados com São Paulo, a plateia, formada majoritariamente por jovens, canta em coro os versos do samba de 1964.

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“Anti-arte” é o negócio da banda Vitrola de 3, segundo um de seus integrantes, Felipe Costa.

“Sempre ouvi música árabe na casa do meu pai e da minha avó, porque eles são libaneses. A percussão é quebrada, é uma música nômade, de cigano, essa coisa toda de circo”, afirma o músico, esmiuçando o número circense-musical de sua trupe.

A Vitrola de 3 vem do interior do Espírito Santo, mais precisamente de Cachoeiro do Itapemirim. É a cidade onde nasceu um tal de Roberto Carlos – que, a propósito, cantava em circos no início de sua mais tarde platinada carreira. Também capixaba, de Alegre, era o ex-alfaiate Paulo Sérgio, que se tornou ídolo seguindo os passos bregapop de Roberto e morreu precocemente em 1980, aos 36 anos, após um derrame sofrido durante um show num... circo.

Ao final da apresentaçao da Vitrola de 3, pergunto a Felipe sobre o fantasma de Roberto Carlos. "Eu esculacho ele um pouquinho... Mas é bom saber que ele é de Cachoeiro." "Esculacha por que, em quê?", "não sei, isso mesmo de o cara... se acovardar talvez... de repente começa a achar que está bom, que vai pro céu, o cansaço que deve dar... Mas acho o som dele gostoso, quando ouço".

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Rock e homofobia costumam ser primos em primeiro grau, mas cá em Vitória uma travesti subirá ao palco e conquistará no muque um público rock’n’roll. Angela Jackson canta no duro, em geral paródias do tipo transformar o refrão de “A Lua Me Traiu”, da excelente Banda Calypso, em “a peruca caiiiiiiu”. “Eu nunca vi ainda uma travesti médica”, dispara a loirísisma cantora, ensaiando breve atitude de protesto em meio a um show de gargalhadas e aplausos.

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No auditório, o debate é sobre “a morte do pop star”. À mesa (da qual eu também participo), o produtor Pablo Capilé elabora belas imagens sobre os artistas “midialivristas” espalhados em rizomas horizontais, contra a árvore centenária e decadente chamada indústria musical. E eu penso nas Torres Gêmeas quando o vejo desenhar com as mãos a estrutura vertical caduca, demolida, pisoteada pelo presente efervescente que vivemos. Pablo, tez de índio mato-grossense, celebra o “artista-pedreiro” (“o artista-pedreiro entende que sucesso é pagar as contas”) e rega sua fala com uma frase genial: "Hoje o engajamento não é mais 'caminhando e cantando e seguindo a canção'. É 'caminhando e cantando e carregando caixa'”.

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Paranaense radicado em São Paulo há 18 anos, me assombro com a constatação recorrente de que lugares que tenho visitado, como Vitória e Belém, respiram um vigor cultural esquecido pelo eixão Rio-São Paulo. Quando um roqueiro do Sol na Garganta do Futuro empunha de repente um violão, entendo que o pop e o rock, em Vitória, são moldados em MPB. Romperam diques e preconceitos que certas capitais tentam atravessar ainda constrangidas.

Entendo em Vitória e em Belém que a adversidade é a grande riqueza brasileira. E torço para que, por isso, a cultura paulista volte em breve a ficar interessante. Afinal, São Paulo se isola cada vez mais e é vista de fora com desprezo e pena, e essas são as condições adversas de que terá de se safar, se não quiser submergir de vez no leito imundo do pobre rico rio Tietê.

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Um garoto de 18 anos de idade quebra o barraco no picadeiro dos DJs. André Paste é um mestre precoce na arte do mashup – justaposição caótica de estilos, batidas e músicas que, em meia hora de som, se desenvolvem como se tudo fosse uma música só, feita de um milhão de deliciosos farelos. André recombina referências tão diversas quanto Djavu, Michael Jackson, funk carioca, kuduro africano, tecnobrega paraense, Cansei de Ser Sexy, Daniela Mercury, Novos Baianos, Fábio Jr. (a melô “Só Você”, dentro da qual se ouve o grito funkeiro “pau no cu do mundo!”), o hoje cult Luiz Caldas (“Haja Amor”), Wando, Olodum misturado com Guns n’Roses... Nenhuma toca do modo ortodoxo, começo-meio-fim; todas deixam gosto de quero-mais, no refrão que não chega ou passa rápido demais. O espetáculo não pode parar: depois do palhaço virão a trapezista, o domador, a cabra ciclista, a girafa seresteira.

Converso com André ao final de sua sensacional aparição. Seu sorriso se estende de orelha a orelha quando explica que, sem exagero, gosta de tudo, de todo tipo de música. Mas ele acha que, não, não tem futuro na música, não. Eu duvido, mas deixo-o partir na velocidade da luz – afinal é madrugada e amanhã André tem de acordar cedo para as provas do Enem.

O mais surpreendente é que a música para esse menino já não se divide em brasileira e estrangeira, “brega” e “chique”, binômios assim. André desliza numa explosão simultânea de excesso de liberdade e completa ausência de preconceitos. E esta, acredite, é a receita infalível para a grande música brasileira que virá nestes promissores anos 2010.