quinta-feira, fevereiro 11, 2010

furaro os óio do assum preto

Ultimamente, não há nada que eu ouça mais e com maior prazer que Luiz Gonzaga. Graças à internet (e ao roubo, diria a Sony, que guarda e não reedita o baú do Gonzagão), sua obra completa voltou à ampla, geral e irrestrita circulação para quem se interesse por ela. E ouvir Gonzagão de fiá pavi só tem feito me maravilhar, espantar e deixar boquiaberto.

Mas o que me traz até aqui agora é que se abriu uma controvérsia lá no blog do Luis Nassif, sobre a relevância ou não do "Bim Bom" do João Gilberto, aquele tum-tum que diz assim que "é só isso meu baião/ e não tem mais nada, não..." Acabou que dei pitaco no "Bim Bom" do Nassif, e quero trazer a história aqui pra casa também.

O texto do Nassif me fez sedimentar algo que andava boiando meio perdido por aqui: eu apostaria, com razoável chance de errar, que a voz macia de João Gilberto em "Bim Bom" estava mais era espetando uma farpa bem pontuda no coração do Luiz Gonzaga, com esse negócio de "é só isso meu baião/ e não tem mais nada, não" batucado em seu discreto e depois mitológico violão.

Quase nunca se fala isto abertamente, mas a bossa nova ODIAVA o baião personificado à perfeição na figura de "rei" Gonzagão. Ruy Castro, na biografia da bossa "Chega de Saudade", vem em meu socorro para demonstrá-lo, como se não houvesse milhares de outros indícios.

Primeiro, Ruy afirma que o baião era "aquele ritmo que, para alguns, só servia como coreografia para se matar uma barata no canto da sala". Esse "para alguns", se você não sabe, é cacoete muito utilizado por jornalistas quando querem(os) defender uma posição, mas não podem(os) ou não tem(os) coragem de afirmar pela própria boca. Daí até Tom Jobim, João Gilberto, Bden Powell, Johnny Alf e João Donato concordarem, vai longa distância, mas não dá pra negar que o livro do Ruy Castro exprime bastante bem um conjunto de sensos comuns sobre a bossa nova.

Páginas depois, ele volta à carga e ataca, dessa vez frontalmente, o pobre baião. E começa por celebrar "Chega de Saudade" como o disco que, "de passagem, acabou também com aquela infernal mania nacional pelo acordeão".

(É verdade: se você viu "O Homem Que Engarrafava Nuvens", filme do Lírio Ferreira sobre Humberto Teixeira, certamente notou aquela cena impagável em que uma pequena multidão de senhoritas do café soçaite se apresenta em grupo, cada uma delas empunhando uma garbosa sanfoninha.)

E Ruy Castro dá a martelada final: "Hoje parece difícil de acreditar, mas vivia-se sob o império daquele instrumento. E o pior é que não era o acordeão de Chiquinho, Sivuca e muito menos o de Donato - mas as sanfonas cafonas de Luiz Gonzaga, Zé Gonzaga, Velho Januário, Mário Zan, Dilu Melo, Adelaide Chiozzo, Lurdinha Maia, Mário Gennari Filho e Pedro Raimundo, num festival de rancheiras e xaxados que parecia transformar o Brasil numa permanente festa junina".

Como comentei lá no Nassif, os "cafonas" citados por ele são gente do, er, povo, fazendo música do e para o povo. E, de fato, suas sanfonas foram erradicadas como baratas pelo detefon chamado bossa nova. Na mesma borrifada foram triângulos e zabumbas, e quase se foi também Gonzagão em pessoa. Ele, no entanto, perdurou mais três décadas, lançando um milhão de discos até morrer em 1989.

Taí, alguém ainda vai algum dia estudar a sério esse cisma de classes sociais que a bossa instalou (ou aprofundou?) na música brasileira, e que persistiu longas e cansativas décadas (ainda persiste?).

Era um movimento essencialmente carioca, de apartamento, como todo mundo sempre repete. Mas a bossa trazia em seu fulcro João Gilberto, um baiano (há quem diga - ops, olha eu usando o cacoete! - que o nome "baião" era uma corruptela de "baiano"), um baiano do sertão, de Juazeiro, quase Pernambuco. Lula Gonzaga, é notório, nasceu sertanejo pernambucano (quase no Ceará, mas ainda pernambucano).

E foi esse João, baiano do interior entrosado entre civilizados cariocas, quem intensificou a guerra de classes sociais naquilo que ainda viria a se chamar MPB - para designar a música "fina" e bem menos popular que o pop de baiões, sambas, rancheiras, guarânias, xaxados, cocos, bregas, cafonas etc. etc. etc.

Pois se um dia alguém ainda vai ou não vai estudar essa estranha história a fundo é questão de aguardar (ou quem sabe faz a hora?). Mas, hoje mesmo, no presente, tem gente enfrentando na prática essa pinimba. Temos aqui o Marcelo Jeneci se esbaldando com muita elegância na sanfona, mas, só pra variar, o grosso tem vindo de dentro pra fora, com David Byrne cantando "Asa Branca" em inglês, paramentado com chapéu gonzaguiano de cangaceiro.

É lá em Niuorque que se formou o grupo Forró in the Dark, de brasileiros exilados que se dedicam exclusivamente a reler o baião (mas sem sanfona, por razões que tento beliscar num texto escrito para a revista da "Gol"; em breve colo ele aqui) - é em companhia deles que Byrne desempenha o cangaceiro primeiro-mundista.

E, mais, Bebel Gilberto também participa do levante do Forró in the Dark, cantando uma versão meio bossa de "Juazeiro", em português e em inglês. "Juazeiro, meu destino tá ligado junto ao teu", diz a letra de Humberto Teixeira que se refere à árvore, e não à cidade natal do pai de Bebel.

E ainda por cima ela canta, em seu disco mais recente (o excelente "All in One"), o (não-)baião "Bim Bom" de pai João. Estaria a filha do enlace da bossa com a MPB tentando reconciliar o pai e vovô Gonzagão?

Eita, que tem assunto pra mode Freud se refestelar aí!

P.S. em 20 de fevereiro de 2010: para apimentar um pouco mais o debate, olha só o que chegou até aqui!, trazido pelo Airthon: