sábado, fevereiro 27, 2010

zumbi é o senhor das demandas

Estava aqui lendo na (excelente) revista "Fórum" uma entrevista com o antropólogo Kabengele Munanga. Como o nome pode sugerir, ele é negro, nigérrimo, veio do antigo Zaire e milita na branquíssima USP desde 1975.

Muitos trechos da fala do Kabengele (que nome mais lindo, meu Zeus!) me fizeram remeteram à polêmica recente sobre o(s) homofóbico(s) do "Big Brother Brasil", que muito me agrediu e ofendeu.

Copio esses trechos abaixo, e proponho sua cumplicidade de lê-los não só sob a ótica crucial do racismo e da discriminação racial, mas também sob as óticas-irmãs-gêmeas da homofobia e da discriminação por orientação sexual, da misoginia e da discriminação por gênero. Quase sempre bate, é tudo muito semelhante.

Levando Kabengele ao BBB (onde ele já está, via USP ou o que for), "racismo" pode virar "homofobia". Onde se lê "negro" pode-se
ler "homossexual" ou "bissexual", onde se vê "branco (macho adulto sempre no comando)" pode-se ver "heterossexual (homem e mulher)". A insinuação de que racistas são os que se queixam de racismo você pode substituir por esse papo furado tétrico sobre "heterofobia".

Mas, onde o Kabengele fala "educação", pode ler "educação" mesmo, em qualquer caso.

1
"Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estavam no porta-luvas, senão podiam pensar que ele ia sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão... A geografia do seu corpo não indica isso. Então essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas."

2
"Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança, vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou aqui no Nrasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola públca mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. 'Ah, é só mudar a escola pública.' Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como autoridades, dar melhor exmplo e colocar os filhos deles em escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas a coisa fica só na retórica."

3 (e aqui entra o "BBB")
"O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. (...) Há negros que introjetaram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. (...) A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos. (...) O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda. Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-ló, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda em casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: 'Não vou alugar minha casa para um negro'. No Brasil, vai dizer: 'Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar'. Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita. (...) Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: 'Você que é complexado, o problema está na sua cabeça'."

4
"Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade. Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades para casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo. (...) São seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a essas pessoas foi negada sua humanidade. Pra poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do pocesso de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. (...) O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer."

5
"Em outros países, não teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro... Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino [por racismo] no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita e a violência física é punida?"

6
"A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do negro na escola. Houve (...) a II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio."