sexta-feira, maio 07, 2010

"O tinhorão está nos livros, não está no tinhorão"

A entrevista com o sempre loquaz José Ramos Tinhorão saiu grandona no iG cultura, aqui, aqui e aqui, mas na real era muito mais grandona ainda - apesar de não ter durado mais que 1 hora. Vai aí, portanto, a versão "tala larga", sem edições e condensações.

(Ah, e uma curiosidade. Quando eu estava lendo a biografia do Tinhorão e me preparando para entrevistá-lo, fui procurado pelo Jaime Filho, jornalista do Rio de Janeiro, que também estava escrevendo sobre o velho crítico e queria me entrevistar a respeito. O material dele saiu algumas semanas antes em seu blog Café Escuro, e, como eu disse agora ao Jaime, ajudou a guiar e inspirar minha perguntas e meu texto. O trabalho do Jaime está aqui, aqui e aqui - nessa terceira parte, eu solto minha língua comprida diante das perguntas dele sobre Tinhorão. E, depois da publicação da minha entrevista pelo iG, o Jaime ainda fez mais esta, extremamente generosa - e que baita jogo de espelhos isso tudo, hein?)

Mas... O Tinhorão estaria então fora do Tinhorão?...


José Ramos Tinhorão - Foi você que me entrevistou uma vez, anos atrás, para a
Folha de São Paulo, aquela célebre entrevista em que eu falava da morte da canção, não foi?

Pedro Alexandre Sanches - Pois é (Tinhorão havia dito a frase de que “a canção acabou” em entrevista ao caderno Mais! de 29 de agosto de 2004, disponível aqui). Teve uma antes também. Fui uma vez na sua casa na Maria Antônia, e essa que você está falando foi na Barão de Limeira.

JRT - E agora tá todo mundo... Tem os profiteurs da canção, Luiz Tatit (o compositor lançou uma música chamada Quando a Canção Acabar no disco recém-lançado Sem Destino)... Hoje mesmo eu estava falando com a minha mulher, ela estava cantando Nel Blu Dipinto di Blu, do Domenico Modugno, eu disse “isso deve ser década de 70”, ela falou “não, é fins de 60”. Você vê, a tal canção italiana, que era a chamada canção napolitana, depois veio uma mais internacionalizante, que é essa do período dos festivais da canção italiana, que revelaram Modugno... acabou tudo, rapaz! Não tem. No ano passado eu estava em Lisboa e estava aquele negócio de festival internacional europeu. Por exemplo, a mulher cantando na Grécia, cortava, dava para outro número em outro país, rapaz, era tudo igual! Tudo igual! Eu fiquei olhando aquilo e vi o seguinte: a chamada criação não interessa mais, porque a indústria cultural é feita para vender produtos. E a canção o que é? Um som. Mas a indústria não vende um som, ela vende a base em que o som se assenta, seja fita, disco, hoje em dia pela moderna tecnologia você tem imagem no seu telefone, em todo lugar. Isso é gerado por alguma coisa... O que vende não é a coisinha do telefone que toca (cantarola Pour Elise, de Beethoven), não. O que vende é o telefone.

PAS - Acho que eu nem ia lhe perguntar isso, mas já que você tocou no assunto: como encarou a controvérsia sobre a morte da canção por causa daquela entrevista?

JRT - É normal, rapaz, porque as pessoas tentam se agarrar àquilo que pertencem, ao seu tempo. E a minha visão é de historiador. Como sou um cara que vejo a história do ponto de vista do materialismo histórico dialético, eu vejo a história como um processo que se desenvolve no tempo, com todas as suas contradições internas. Ora, o que a gente vê é que no processo histórico a história está sempre mudando. E, claro, no que ela muda, ela tem uma parte da coisa vivida, uma parte do que está acontecendo naquele momento e, para o futuro, apenas uma perspectiva. São o hoje e o antes projetados num futuro que você não conhece.

PAS - Na época o Chico Buarque se apropriou dessa ideia sem citar seu nome, ou então foi o jornalista que o entrevistou (Fernando de Barros e Silva) que não citou.

JRT - É aquilo que eu falo, o Tinhorão só é citado apud. Sabe o que é apud? É quando você cita um cara que citou alguém. Por que eu só sou citado apud? Porque certos documentos em que eu me baseio, se os caras forem sacar e falar, vão dizer assim: “Bem, mas cadê esse documento?”. “Não, não tem, isso aí foi o Tinhorão que falou, citou e deu a página.” Então, para eles não serem apanhados de saia justa, citam o que eu citei e eles não podem deixar de lembrar, porque senão eles não têm como comprovar. O resto, não, o que o Tinhorão diz não tem importância, rapaz.

PAS - Mas o Chico Buarque parecia concordar com você, embora não citasse seu nome.

JRT - Claro, ele nunca ia dizer “eu li isso na Folha, o Tinhorão tem razão, numa entrevista para fulano de tal ele disse isso”. Nunca que ele vai dizer isso.

PAS - Também não tenho muita certeza se ele concordou mesmo com você. Qual foi sua impressão?

JRT - É, falou da morte da canção, e tal... Na verdade, não é que a canção acabou. Nada acaba inteiramente, rapaz. Quando o cinema apareceu, no fim do século XIX, disseram que ele ia acabar com o teatro. Não acabou com o teatro. Aí o cinema era mudo, de repente apareceu o cinema sonoro, disseram que ia acabar com o rádio. Nada acaba. O que acontece é que cada momento histórico tem a sua mídia. A mídia do momento hoje é a internacionalização, a globalização de um ritmo da década de 50 nos Estados Unidos, que é o rock. Então, qualquer lugar que você vá aqui no Brasil, na Argentina, no Chile, na Europa, Espanha, França, no mundo ocidental, onde você ligar são os mesmos caras, rapaz. São as mesmas bandas de rock que tocam no mundo todo. Então a verdade do século XXI em termos de música de massa é o rock e seus derivados, com uma vertente mais ou menos autônoma que é o rap, né? Pronto, isso quer dizer que as outras formas desapareceram? Não. Mas elas vivem em nichos. Se você gosta de ópera, haverá uma vez no ano em que vem uma companhia de ópera ao Teatro Municipal, você vai lá, vai ver uma ária famosa da ópera tal cantada por um cara grande que estiver em moda na época, como esteve o Pavarotti. Morreu a ária de ópera, que é uma forma de canção? Morreu? Não. Mas liga o rádio para ver se você ouve. O que é que você ouve quando liga o rádio? Ouve o que está estabelecido para ser ouvido naquele momento pela indústria cultural. Nesse sentido, já houve um tempo em que você ligava uma rádio e tinha programa de tango, de tango. Ora, é sinal de que havia na época dentro da mídia um espaço para o tango argentino. Como a colônia de portugueses era muito grande no Brasil, tinha programa de fado, rapaz! Eu, quando era garoto, ouvi programa de fado no Rio de Janeiro! Tinha patrocinador, aqueles portugueses donos de padaria. Você ligava na rádio tal no horário tal, tinha fado. Hoje você não ouve fado nem em Portugal, rapaz.

PAS - Mas essa morte virou um produto industrial também, porque é tão em voga, “a morte da canção”, “a morte do CD”, “a morte dos jornais”, “a morte da indústria fonográfica”...

JRT - Pois é, e hoje, por exemplo, você tem matéria falando que já tem uns caras querendo reviver o disco de vinil, porque o DJ não deixou morrer o disco, pelo interesse de fazer aquele negócio quando ele mexe para fazer sons pro negócio do baile. Mas não vai voltar, rapaz. É assim, num momento há um revival. Houve o revival do jazz nos Estados Unidos na década de 40, foram buscar para gravar uns velhinhos que andavam pelos Estados Unidos, que não tinham voltado a ser engraxates. Significou apenas um momento de revival, mas o próprio nome está dizendo, se é revival é reviver uma coisa que já viveu.

PAS - Me pergunto se a esta altura o próprio rock já não morreu e está lá estagnado, fazendo sempre a mesma coisa.

JRT - Sim, exatamente. Alguma coisa deve vir por aí, a realidade mostra que não existe uma coisa permanente para todo o sempre. Então claro que vem coisa por aí, a gente não sabe o quê.

PAS - Vou voltar à pergunta com que eu ia começar a entrevista...

JRT - Claro, desculpa se eu me intrometi.

PAS - Imagina, foi ótimo. Eu queria perguntar sobre o livro biográfico (Tinhorão – O Legendário, de Elizabeth Lorenzotti, editado pela Imprensa Oficial de São Paulo), como você se sente virando objeto de uma biografia?

JRT - Eu me sinto objeto (ri). Você usou a palavra certa. Agora mesmo a menina vai me pegar (é dia do lançamento em São Paulo), o que é que eu vou fazer lá com ela vendendo o livro? A dona do livro é ela, eu sou o objeto em torno do qual gira a história de que ela é autora.

PAS - Se você vai lá junto é sinal de que aprovou o resultado...

JRT - Sim, senão haveria aquele negócio do cara que faz uma biografia e o biografado fica bravo. Hoje em dia, com o modelo americano de advogado tomar dinheiro das famílias, a biografia tem que ser autorizada. No meu caso nem foi preciso, “vou fazer, tudo bem?”, “tudo, como eu devo fazer?”, “eu entrevisto você todo sábado durante uma hora”, “tudo bem”.

PAS - Mas é bom se sentir objeto, ser exposto dessa maneira?

JRT - Olha, como ela fez direitinho o que eu falei, tudo bem. É a mesma coisa, junto com a minha sai a do Paulo Francis, que está morto, tudo bem. Vai falar o quê? Vai falar coisas que o Paulo Francis fez na imprensa, como ele era, qual era a repercussão que ele tinha, se era controvertido. É a mesma coisa eu. Como eu vivi o suficiente para ser objeto de curiosidade de alguém, pronto.

PAS - Digo exposição porque, por exemplo, tem umas fotos muito doces, você criança, muito contrastantes com a imagem de crítico que você adquiriu depois...

JRT - Pois é, se isso pretendia ser uma biografia, se subentende que vai contar a história do cara desde quando era pequenininho, que estudou na escola tal, foi aluno de colégio de freira, “tem uma foto de quando você era de colégio de freira?”, “tem”, publica a foto. Agora, para mim, eu acho que, quando o personagem é um cara que escreve livros, o personagem só tem importância para essas coisas de atender à curiosidade. Porque, na verdade ele não tem interesse nenhum. O interesse é quem ele produz. O Tinhorão está nos livros, não está no Tinhorão.

PAS - Mas parece que o livro está sendo bem aceito, o que indica que existe uma curiosidade pelo Tinhorão que está dentro do Tinhorão.

JRT - Existe, mas pela velha razão que você como jornalista conhece muito bem: “Entrevista aí o Tinhorão, que ele esculhamba todo mundo e isso ajuda a vender”. Nunca houve um cara que dissesse assim: “Tinhorão, eu vou ler os seus livros e vou te entrevistar para dizer ‘em tal livro você diz isso assim, assim, isso me parece original’”. Nunca ninguém falou isso, rapaz!

PAS - Então espera aí, deixa eu tentar fazer isso um pouco, na medida que eu consiga. Aí tem o outro livro (Crítica Cheia de Graça, editado pelo Empório do Livro, com uma seleção de críticas, ensaios e entrevistas publicadas por Tinhorão na imprensa nas décadas de 60, 70 e 80)...

JRT - (Ele interrompe.) Mas não tem só esse, também tem o da editora 34, A Música Popular Que Surge na Era da Revolução (livro inédito, lançado pelo Tinhorão de hoje, aos 82 anos). Nesse livro, por exemplo, há uma parte em que examino o século XVIII francês e digo que foi marcado pela influência da música militar, e portanto não poderia ter herdado uma música popular no sentido de produto para ser gostado por pessoas que cantam e tocam e ouvem alguém tocar um instrumento, conversas românticas, não existia. Aí venho para Portugal. Há dois gêneros que aparecem em Portugal, mas não são portugueses: a modinha e o lundu, que foram levados por um mulato brasileiro chamado Domingos Caldas Barbosa (tema de seu livro O Poeta da Viola, da Modinha e do Lundu, publicado pela Editorial Caminho de Lisboa em 2004).

PAS - São dois ritmos brasileiros na origem, segundo você.

JRT - Isso, e eu faço uma coisa absolutamente original nesse livro. Os principais países da Europa eram França e Inglaterra, naturalmente, e Alemanha. Então por que é que logo dois gêneros de uma colônia de um país europeu, Portugal, que era um dos países não mais importantes da Europa, vão surgir dois gêneros que vão persistir no tempo e chegarão a ser gravados depois na colônia do Brasil, de onde eles foram para lá, no século XX? Veja que o primeiro disco gravado na Casa Edison foi Isto É Bom, que é um lundu. Ora, o mesmo lundu que foi lançado no século XVIII em Portugal por um mulato brasileiro chamado Domingos Caldas Barbosa. Eu te pergunto: por que se deu esse fato?, o que explica esse fato? Aí o Tinhorão, na segunda parte do seu livro que está aí na sua mão, explica: Portugal tinha se fechado para a Europa, com medo da Revolução Francesa, que estava pondo abaixo as cabeças coroadas e trazia a república, transformava o cara em cidadão, e isso acabava com os privilégios da nobreza. Como Portugal tinha um regime absolutista que preservava exatamente as garantias que eram conferidas à nobreza, ele tinha horror às chamadas ideias sediciosas, ou seja, revolucionárias. Então Portugal se fecha para a Europa. Mas como um país não pode viver culturalmente fechado, ele tinha que se abrir para algum lugar. Se se fechava para a Europa, se abria para a sua colônia americana. E por que se abria para a sua colônia americana? Porque era da sua colônia americana no século XVII que estava chegando o ouro das Minas Gerais que salvava aquele país das suas dificuldades econômicas. Essa relação nunca ninguém fez, e está aí.

PAS - Você está dizendo que a música brasileira, num longo espaço de tempo, nasceu de ideias contrarrevolucionárias, conservadoras?

JRT - Não, aí você está tirando uma conclusão. Não nasceu de ideias contrarrevolucioárias, mas sim surgiu num período explicável pelo fato de Portugal ter se fechado para a Europa, que vivia um momento revolucionário, e acabou se tornando acessível a formas que chegavam da sua colônia distante da América. Não há essa correlação que você estabeleceu, modinha e lundu não têm nada que ver com o que Portugal pensava na época. Mas teve que ver por que é que chegou lá. Vamos supor que a França estivesse tão bem com Portugal que estivesse exportando para Portugal um monte de gêneros de música. Nunca que modinha e lundu iam poder chegar, porque o espaço da cultura portuguesa estaria ocupado pela música dos mais desenvolvidos.

PAS - E aí a história da música brasileira seria completamente outra também?

JRT - Também, porque talvez tivesse começado mais cedo a dominação do mercado musical pelos gêneros vindos de fora. Os gêneros vindos de fora sempre foram muito fortes no Brasil? Foram. No século XIX, com o aparecimento do teatro musicado, vieram para o Brasil a valsa, o schottische, a polca, a mazurca. Mas elas conviveram com os gêneros nacionais. O modinheiro, o mulato que ia cantar uma modinha debaixo da janela da namorada, não cantava nenhum gênero europeu. Ele cantava uma modinha. Quando apareceu o disco, no início do século XX, você pega os discos da Casa Edison – estão lá para você ouvir no Acervo Tinhorão (no Instituto Moreira Salles) –, tem valsa, schottische, quadrilha, mazurca... Mas tem também a modinha, o lundu, gêneros aqui do mundo rural que eventualmente eram lançados em disco. Porque a indústria cultural ainda não existia como uma indústria impositiva. Ela produzia difusamente gêneros que coexistiam no mercado. Esse é que é o grande problema. Quando a indústria cultural ganha, do ponto de vista capitalista, um peso em termos de dólares, um peso econômico tão grande, ela exclui o mais. Por que, como estávamos falando, quando você liga a televisão e o rádio em qualquer parte do mundo ocidental hoje está tocando rock? Porque a evolução da tecnologia ligada ao processo capitalista da produção de sons se tornou tão forte que escolhe um produto para globalizar. Por que ela globaliza um gênero só? Porque é mais econômico. Você já pensou se uma multinacional ficasse tocando na Argentina os vários gêneros argentinos, no Chile os vários gêneros chilenos, no Brasil os vários gêneros brasileiros? Não haveria rendimento, do ponto de vista capitalista. Mas se ela criar uma média de som que serve, que ela impõe para todo o mundo e depois não precisa mais impor porque todo mundo aceita, ótimo.

PAS - No Brasil, então, a imposição vai se dar na época da bossa nova e nos anos 60?

JRT - Antes da bossa nova, porque antes você já tinha o bolerão. Depois você tem o iê-iê-iê do Roberto Carlos, não é?

PAS - E aí não para nunca mais.

JRT - Não para nunca mais. O que para é a existência no mercado de alguma coisa que não seja aquilo ditado pela indústria cultural.

PAS - Então, mas antes eu ia perguntar sobre o livro das críticas reunidas (ele começa a interromper), deixa só eu orientar uma pergunta específica que eu queria fazer: queria que você falasse um pouco sobre a origem do que você escreveu quando escrevia na imprensa, sobre sua metodologia a partir da luta de classes, do marxismo, do materialismo dialético.

JRT - Pois é, quando você lê um artigo do Tinhorão na década de 70 no Jornal do Brasil, o que você nota? O disco que saía era um pretexto para uma análise que não era apenas crítica, ele canta bem, não canta bem, fulano é melhor, gostei, não gostei, este é bom, este é não. Não era. Eu pegava o fenômeno e procurava interpretar do ponto de vista histórico e sociológico. Por exemplo, “ah, o Tinhorão não gosta de nada que é novo”, não é que eu não gosto do que é novo. É que o que é que é novo? Num país subdesenvolvido, não há o novo. O novo é do país desenvolvido, rapaz. Eu te pergunto: existe automóvel brasileiro? Não. Existe automóvel ou da Fiat, italiana, ou da Wolksvagen, alemão, ou da Ford e Chevrolet, americanos. Não existe, não existe. Aqui se montam automóveis. Existe avião brasileiro? Não, a Embraer faz a casca.

PAS - Ciro Gomes outro dia na televisão estava dizendo o mesmo que você, que tudo isso que você fala existe na China e foi criado nos últimos 20 anos, e no Brasil ainda não.

JRT - Através do desenvolvimento de tecnologia. O Japão fez isso depois da Segunda Guerra, imitando. Evidentemente que imitava até o desenho industrial dos artigos. Quer dizer, não há um desenho de aparelho japonês de televisão que não pareça americano. Mas usou isso como boa política, eu não vou tentar fazer uma cara de televisão em estilo oriental, se quero vender no Ocidente faço com cara de Ocidente. Mas o miolo dela é japonês, ele detém os royalties do que ele faz. O Brasil paga royalties pelo que faz.

PAS - Tanto que quase toda a música brasileira é de propriedade das gravadoras multinacionais.

JRT - É claro, rapaz, como você quer ter uma música brasileira num país em que nada que se produz culturalmente é brasileiro?

PAS - Voltando àquele ponto, qual é a importância da questão luta de classes no que você escrevia?

JRT - O conceito de luta de classes fica muito restrito, você restringe muito a um período, de partido comunista, luta de classes... Existe é uma coisa, isto sim é materialismo histórico e eu sustento: o mundo ocidental é um mundo que vive sob o modo de produção capitalista. Não é verdade? No modo de produção capitalista, o que se chama de cultura com “C” maiúsculo é a soma das culturas com “c” minúsculo. Essa cultura com “c” minúsculo é uma cultura de classes. Toda cultura com “C” maiúsculo é uma cultura de classes. Vou te dar um exemplo. Os caras simplificam as coisas porque interessa ao sistema e dizem assim: “Vamos discutir o problema da mulher”. Não há um problema da mulher. Porque a mulher é apenas um ser, um ser do gênero feminino. Mas de que mulher você está falando? Te dou um exemplo. O problema da mulher pobre é saber como vai almoçar. O problema da mulher rica é saber como vai ter um orgasmo. Então, quando você fala do problema da mulher, você está falando de quem? Daquela cujo problema é ter um orgasmo ou daquela cujo problema é saber como vai almoçar?

PAS - Da segunda.

JRT - Ahá, então pronto. Não existe o problema. Existem os problemas da mulher, que dependem de que mulher você está falando. Essa mulher pertence a que classe? Essa vai ter os seus problemas conforme a sua posição dentro da sua classe. Não há problema do jovem. Quando houve aquele negócio em 68 na França, o “poder jovem”... Não há poder jovem. Todos aqueles jovens envelheceram. O que eu denunciei na época? Você estava substituindo o problema de geração por problema de classe. Não eram os nossos pais, o problema não são os nossos pais. O problema é o seguinte: o jovem envelhece, de que jovem você está falando? O jovem universitário que ia para a rua dizer “é proibido proibir”, ou o jovem sem emprego, sem educação, sem escola? Aaaah... É por isso que o Tinhorão não foi assimilado. E é mais fácil esculhambar do que procurar entender na verdade o que ele está dizendo.

PAS - Eu perguntei isso pela hipótese de que, sim, foi o fato de você defender esses pontos de vista que foi o afastando do dia-a-dia dessa profissão, que não queria discutir luta de classes de modo algum.

JRT - É, por quê? Eu, quando assumo a posição, a soma dos meus escritos ganha o status de coisa a ser discutida. Mas no Brasil se convencionou que problema que envolva história, ciência social, cultura, só pode ser discutido dentro da universidade, e eu não pertenço à universidade. Então como em meus livros todos que você conhece você vai lá no pé de página e está citada direitinho a fonte, os caras pegam os meus livros e não podem dizer: “Não, isso é besteira, ele falou besteira”. Como eu dou a fonte, o cara, para dizer que não tem razão o que eu estou dizendo, tem que dizer de outra maneira, baseado em outras citações que não as minhas, citações que digam o contrário do que eu estava afirmando. Como não conseguem isso, preferem me ignorar, o que me levou a dizer uma vez: a academia lê Tinhorão e arrota Mário de Andrade.

PAS - E há um fenômeno equivalente a esse na imprensa, nos artigos de 1981, quando você saiu do Jornal do Brasil, você estava falando sobre cantadores nordestinos, duplas caipiras, coisas que imagino que não interessavam à imprensa da época, talvez nem hoje.

JRT - Claro, quando eles tinham o Tárik de Souza falando de Rita Lee, por que ia ter o Tinhorão falando de Zé Coco do Riachão? Então, qual foi o motivo que me deram quando acabaram com a coluna? Mandaram a informação, “Tinhorão, a tua coluna vai acabar”, “qual o motivo?”, “motivos econômicos”.

PAS - E eram mesmo, não?

JRT - (Ele gargalha.) Quer dizer, não vende. Ou melhor, até vendia, porque eu vejo agora, pelo lançamento dos meus livros, aparece cara querendo autógrafo em livro editado pela Vozes em 1972. Mas só que não era, o jornal não foi feito para vender boas ideias de minorias. Ele foi para vender qualquer coisa das maiorias.

PAS - Mas, Tinhorão, não tinha uma contradição em você também? Você falava dos cantadores, mas quando as multinacionais lançavam discos deles.

JRT - Porque eu era pago para escrever sobre o que saía em disco. Se eu fosse falar do cantador não gravado em disco, eu não estaria escrevendo a seção de discos do Jornal do Brasil, eu seria um folclorista.

PAS - Mas era uma contradição que você tinha que vivenciar...

JRT - Não era uma contradição, não, porque eu partia do fato da indústria. O disco é um produto da indústria cultural. Me pagavam para escrever sobre o disco, portanto eu colocava em discussão tudo que aparecia em termos de cultura envolvendo música na esfera da indústria cultural. Eu não fui fazer pesquisa de cantador na Paraíba, isso quem fazia eram os folcloristas da época, Câmara Cascudo, Edson Carneiro, não eu.

PAS - Mas você ficou num meio termo entre as duas coisas...

JRT - Aí de repente o Zé Coco do Riachão aparecia sendo gravado pela multinacional, aí pronto. Se a indústria ia buscar no campo da criação rural um artista para transformá-lo, para vendê-lo na cidade em forma de disco, aí eu ia analisar, aí é que entrava o Tinhorão com a sua formação. Eu ia analisar isso do ponto de vista dessa realidade. Olha aí, a indústria acaba de gastar dinheiro para produzir um disco de um cara que normalmente lá na terra dele só é conhecido na cidadezinha dele. Isso é um fenômeno cultural ligado à indústria cultural, então eu examinava esse fenômeno, e então aí, sim, cabia a mim dizer: foi interessante a gravadora descobrir o Zé Coco do Riachão?, por que é importante? Aí eu ouvia esse cara do ponto de vista histórico. Me lembro bem que disse que ele era uma surpresa porque de repente você revelava um artista que parecia saído do século XVI, da Renascença. Zé Coco do Riachão cantava, compunha, dançava a música que fazia e principalmente, rapaz, ele era luthier. Ele fazia com as mãos dele a viola em que ele cantava, tocava o que compunha ao som do que ele dançava. No momento em que eu ligava essa figura a uma figura só comparável a um artista da classe média, eu estava dando no Jornal do Brasil uma dimensão cultural àquele artista que a própria gravadora não tinha dado. Eu tinha um background cultural que me permitia apreciar o fenômeno de um ponto de vista tal.

PAS - Não ficava como se esse fosse um dado da realidade que você aceitava, que era um pedacinho muito pequeno da indústria cultural, e a imagem geral era que você rejeitava todo o resto? Mas não deixava de ser um pedacinho da indústria cultural também.

JRT - Mas sim, claro, eu só conheci o Zé Coco do Riachão porque a gravadora produziu um disco do Zé Coco do Riachão, porque eu não era pesquisador de folclore. Você só sabe que o teu país é sujeito a terremoto ou não depois que vem o terremoto. Não é?

PAS - O que fico sentindo ao ler suas críticas tantos anos depois é que consigo concordar com muitos argumentos seus, com as bases do que afirma sobre a bossa nova ou sobre a música como produto de mercado. Mas não concordo que eu precise rejeitar toda a música que se faz por conta dessas restrições – até porque eu não conseguiria.

JRT - Mas eu não rejeito! Eu não rejeito, rapaz, eu não rejeito. Aquilo que eu falava eu dava uma explicação para dizer. A minha implicância com a bossa nova, por exemplo, era por quê? Porque a bossa nova é música americana montada no Brasil. Eu sempre sustentei, você pode ver meus primeiros textos. A única coisa original do que se chama de bossa nova é a batida de violão do João Gilberto. Não é nem o que ele canta, é a ba-ti-da. Se você comparar o que existe gravado até o aparecimento de João Gilberto, ouça o som dos violões, como era tocado o violão? Aí de repente aparece a batida do João Gilberto. Use o seu ouvido, não precisa saber música. Tinha alguma coisa antes tocada desse jeito? Não. Ora, se não tinha o cara inventou. Se inventou, para mim, o cara criou uma coisa. Agora, o que se montou em cima do que se convencionou chamar de bossa nova? Se montou harmonia e até melodia de música americana, rapaz! Se você quiser um exemplo, vá ao seu computador quando você largar o telefone e procure no YouTube a Judy Garland cantando Mr. Monotony, anota aí.

PAS - Antes de ouvir o que você vai falar: você gosta dela cantando?

JRT - Mas o problema não é...

PAS - Você indivíduo, não o crítico.

JRT - Não, o universo da coisa musical é tão grande que gostar ou não gostar é bobagem. Essa pergunta remonta ao seguinte: na sua opinião quais são as dez músicas mais importantes? Não há dez músicas mais importantes, não há gostar. Para eu dizer se gosto ou não da Judy Garland, eu teria 10 mil cantoras na mesma época e teria de te dizer minha opinião sobre as 10 mil, e eu não tenho essa opinião.

PAS - Então desculpe, eu interrompi, você ia falar algo sobre a gravação da Judy Garland.

JRT - Muito bem. Eu te disse que bossa nova é música americana montada no Brasil, não falei? Pois bem, eu não vou dizer o que é. Surprise. Ligue a internet, procure no YouTube Judy Garland cantando Mr. Monotony, de 1942. Quando você ouvir você vai dizer: “Opa! Mas isso aqui é do fulano de tal!”. É de um grande compositor de bossa nova brasileiro, gravado em 1942 nos Estados Unidos pela Judy Garland.

PAS - Quando esse compositor nem era atuante ainda...

JRT - Era criança. Você quer uma outra? Já que você está na internet, pegue a Overture da Ópera dos Três Vinténs, de Kurt Weill. Os versos são de Bertolt Brecht, mas não interessa, é só a Overture, que não tem letra, evidentemente, é uma abertura musical. A abertura musical da Ópera dos Três Vinténs, do Kurt Weill, de 1928, ligue que você vai reconhecer um tema de um grande compositor de bossa nova brasileiro.

PAS - É o mesmo daquele outro?

JRT - É o mesmo.

PAS - Então, mas não haveria um meio termo? A gente sabe dessas coisas, está consciente delas, mas pode conviver com a bossa nova mesmo assim.

JRT - Mas é claro que pode! Você não vai matar a bossa nova, você tem que conviver.

PAS - Você ficou marcado como o cara que queria matar, que não aceitava nada disso.

JRT - Mas eu não queria matar nada. Eu nunca disse “isto tem que acabar”. Eu quereria matar se alguma vez tivesse escrito “isto não se admite”. Eu duvido que você veja alguma vez eu falando coisas nesses termos.

PAS - Sim, mas é que foi interpretado como se fosse.

JRT - Aaah, mas cada um interpreta como quer!

PAS - Talvez interpretassem assim por que também não gostavam daquela sua metodologia de marxismo, luta de classes...?

JRT - Cada um interpreta como quer. Agora, a minha interpretação levava uma vantagem desses que não gostam. Os que não gostam só dizem que não gostam. Eu defendo a minha interpretação, não estou te dando exemplos aqui? “Não, Tinhorão, você diz que era música americana montada no Brasil, mas eu não vejo isso, acho até muito brasileiro aquilo dele.” Ah, é? Vai lá e ouve. E eu te deixo de surpresa, não vou dizer porque você mesmo ouvindo vai saber.

PAS - Já desconfio de quem seja...

JRT - Não vai desconfiar, você vai comprovar.

PAS - Mas e aí, hoje, século XXI. Você trata isso como plágio, e o sampler é uma linguagem corrente...

JRT - Não, não, não. Não diga que eu chamei de plágio. Legalmente, nunca ninguém definiu o que é plágio. É uma anterioridade que demonstra o quê? Que aquelas pessoas que são consideradas os grandes da bossa nova eram ouvintes muito atentos de música americana. Quando eles começam a produzir uma coisa chamada de bossa nova, nela se revela o quê? A atenção que essas pessoas tinham por um tipo de música importada dos Estados Unidos, que às vezes não era nem americana, porque o Kurt Weill era alemão. Não é verdade?

PAS - Mas esse tempo em que você escrevia isso se preocupava muito com fronteiras. Isso não mudou?

JRT - Não, esse negócio de coisa, rapaz, ih, já vi que a tua cabeça... Você é um homem do sistema que fizeram coisa...

PAS - É, isso eu ia te explicar, eu sou um cara que vive dentro da indústria cultural, não tenho como negar isso.

JRT - Não tem esse negócio de fronteira, rapaz. Olha, foi bom você me falar isso. Não existe globalização nesse sentido em que você aceita, rapaz. A única globalização é porque hoje a tecnologia, a transmissão é instantânea, o mundo está globalizado (arremeda). Não está globalizado. Os Estados Unidos não são um país globalizado. Os Estados Unidos são os Estados Unidos. Se você for aos Estados Unidos, você vai ouvir o rock deles, vai ver os filmes deles, com a violência deles, compreendeu? Por quê? Os enlatados americanos não são enlatados brasileiros. Mas os enlatados brasileiros não enlatados americanos. Logo, o que se chama de globalização é a força do poder capitalista americano que coloca no mundo todo os seus produtos. E como tem força para colocar os seus produtos no mundo todo, você diz que o mundo está globalizado. Mas o mundo não está globalizado, o mundo está comprando produtos culturais como compra geladeira, automóvel, avião.

PAS - Concordo com você, mas qual é a solução? Fechar as fronteiras do Brasil para os Estados Unidos?

JRT - Mas eu não discuto soluções! Essa é outra coisa, rapaz. Não vou dizer que é o teu caso, mas na argumentação contra o Tinhorão chega a ser desonesto, porque aí você começa a pedir a ele coisas que ele não diz.

PAS - Você me percebe como alguém que não é contra o Tinhorão, eu espero.

JRT - Sim, sim, mas que está absolutamente imerso nisso. Quando você me cobra isso, como é que faz?, a minha análise não é feita para dizer como as coisas devem ser. É para dizer como elas me parecem que são, dentro do meu método.

PAS - Claro, mas tento discutir com você se o mundo não está mudando. Por exemplo, via YouTube o funk carioca é exportado para a Europa, será que o Brasil também não exporta cultura?

JRT - Mas exatamente, o que chega do Brasil é o funk carioca. O que é o funk carioca? É uma diluição da música de massa norte-americana imposta a partir do dancin’ days, sei lá.

PAS - Mas, Tinhorão, não há nem um grau de originalidade inserido pelos meninos da favela do Rio de Janeiro nesse processo?

JRT - O menino da favela, rapaz, é um menino submetido ao que ele ouve. Ele é exatamente como ele sai no terceiro ano primário para ir trabalhar. Ele é semi-analfabeto.

PAS - Mas isso não quer dizer que ele não tenha criatividade dentro dele.

JRT - Sim, ele tem criatividade, mas fica só dentro dele, rapaz. Como é que ele vai desenvolver a criatividade de uma forma original, se tudo que é dado a ele não tem originalidade – ou melhor, tem, uma originalidade importada. Isso é que é preciso conpreender, rapaz. Não vai caber na sua matéria, esses meninos são meninos brasileiros expostos ao que eles ouvem. E eu acabei de te dizer, o que se ouve é a mesma coisa hoje em todas as partes do mundo, porque a indústria cultural está de tal forma, representa um peso econômico, que ela dita o que vai ser ouvido no mundo, o que vai ser globalizado. Esse menino está sujeito a isso. Você quer que ele faça o quê? Que ele vá gostar de quê?

PAS - Concordo de novo, mas não consigo achar que esse menino não tenha uma originalidade dele e não esteja mostrando isso, através dos recursos dele.

JRT - Sim, ele tem. Mas ela está sujeita ao seu tempo histórico, à sua cultura no momento, que é a cultura de um país subdesenvolvido. O Brasil é um país subdesenvolvido.

PAS - O que você acha que ia achar se os meninos pobres do início do século passado tivessem feito alguma música que fosse parecida com o rap ou com o funk carioca, e não o samba?

JRT - Não tinha funk, não podia ser parecido. Podia ter um cara lá, um menino que tentasse fazer uma valsinha, que não era brasileira, mas era uma música da época, então ele ia fazer uma valsinha. Como haveria os jovens que tocavam choro, e sob forma de choro eles tocavam valsa, schottische, polca. Claro, claro.

PAS - O que estou tentando perguntar é se a passagem do tempo não faz a gente aceitar coisas que não aceitava na hora em que estavam acontecendo.

JRT - Mas não se trata de aceitar ou não aceitar, rapaz. Se eu acabo de te dizer que não existe isso de aceitar ou não aceitar. A realidade só pode ser aceita. Não há como não aceitar uma coisa que é do teu tempo, é a realidade do teu tempo. A única forma de controvérsia é a revolução.

PAS - O problema é que quando eu ouvir um funk carioca gostando, sentindo prazer, eu vou lembrar que o Tinhorão acha que eu sou um colonizado.

JRT - Não, não. Você é um colonizado, quando você gosta você é um colonizado.

PAS - Mas a alternativa é não gostar de nada?

JRT - Há uma explicação para você gostar: é o fato de ser colonizado.

PAS - E aceitar essa realidade não é um passo para superar ela?

JRT - Sim. Não. Você não vai superar. Porque o americano não supera nada, ele é americano, rapaz.

PAS - Mas mudando radicalmente de assunto então: você não acha que o Brasil está mudando, está melhorando nos últimos anos?

JRT - O que que está melhorando? Estão melhorando as condições, é claro que se você aumenta a capacidade econômica você começa a fazer coisas que antes a falta de dinheiro não permitia. Então o Brasil hoje exporta muito mais a soja, a grande propriedade no mundo rural faz com que haja commodities que rendem muito no mercado internacional. Então esse dinheiro entra, e com esse dinheiro o governo passa a fazer coisas que não fazia quando tinha o dinheirinho dele, dependia do café, 70% da renda do Brasil era que os Estados Unidos compravam café do Brasil. Hoje não compram só café. Então, se você tem mais dinheiro, qualquer um de nós, se triplicarem o seu salário você passará a comprar mais coisas porque você tem dinheiro para comprar mais coisas. Mas que coisas você vai comprar? Vai se tornar mais brasileiro porque tem mais dinheiro? Não, vai comprar mais coisas que o mercado de oferecer.

PAS - Mais produtos da Apple.

JRT - Claro.

PAS - Mas aí é um beco sem saída, não dá para acreditar que o Brasil melhore?

JRT - Então escreva isso: o Tinhorão é um cara que deixa as pessoas num beco sem saída.

PAS - Você é?

JRT - Você mesmo está dizendo, estou dizendo o que você disse, “eu, quando ouvir um funk, vou me sentir até um pouco coisa porque ouvi falar isso de você, eu vou me achar um pouco boboca”. Não, você não é boboca, você foi feito assim. A tua cabeça é essa.

PAS - Mas aí vou te falar uma outra coisa que também acho que é uma contradição: quando vou de vez em quando num show de rap, aqueles meninos falam coisas muito parecidas com o que o Tinhorão falava em 1960 e tantos. Não é legal isso? Eles têm essa consciência.

JRT - Eles usam uma linguagem musical de menino de Nova York da década de 70.

PAS - Com camisa verde-amerela com a bandeira do Brasil e fazendo sampler de Dorival Caymmi.

JRT - Isso, pronto, é isso.

PAS - Mas não é isso que quero dizer, eles falam abertamente de luta de classes, criticam a elite...

JRT - Sim, isso eles podem falar, mais isso os livros também falam.

PAS - Os sambistas dos anos 30 talvez não falassem...

JRT - Porque eles tinham suas razões, na década de 30, para sequer ventilar isso, porque a realidade do cara do povo na década de 30 estava sujeita às condições brasileiras da década de 30. Compreendeu? Casa com o que eu te falei no início da nossa conversa: tudo se prende a uma realidade do momento, a história se faz no presente. A história que se fez no passado se fez no passado. A história que se fará no futuro será feita pelo futuro. Mas a história que se faz no presente é a história do presente.

PAS - E você, que se afastou da indústria cultural, é até um cara ouvido e respeitado hoje, não? Tem todos esses livros e eventos acontecendo, tem gente que te cita sem falar seu nome. Às vezes acho que você ficou incompatível com a indústria jornalística, mas foi algo recíproco – estava rejeitando tudo que era da indústria, e a indústria devolveu rejeitando você também.

JRT - Não é, aí é que está, eu não rejeitava. Eu fazia uma análise que não era a que eles desejavam. Não estávamos acabando de contar que quando o Jornal do Brasil perdeu o interesse econômico em ter um cara que falava em Zé Coco do Riachão, demitiu o cara, pronto. Pronto, me demitiu.

PAS - E o cara está até hoje aí, vivíssimo, com a cabeça a mil.

JRT - A mil (ri). Tá bom, doutor?

PAS - Ó, não sei se esse papo foi estranho, eu adorei. Lamento que não tenha sido pessoalmente.

JRT - Como eu gostei muito do que você... do seu jeito de escrever daquela vez, eu acho que você vai fazer uma boa matéria, até contra muita coisa que você acha de bom em você mesmo. É para onde?

PAS - Para o iG. Agora é internet, não tem mais essa de jornal.

JRT - Ah, pensei que você estava na CartaCapital.

PAS - Estou, como colaborador, mas essa entrevista estou fazendo para o iG. Você frequenta internet, YouTube?

JRT - Via minha mulher. Ela é que brinca nas ondas. Mas vê se você faz uma pauta daí para a CartaCapital, tá bom?

PAS - Por falar nisso, aquele jornalista da Veja que não aceitou sua entrevista com (o radialista) Ademar Casé não era o Mino Carta, era?

JRT - Não, não.

PAS - Não pode falar quem era?

JRT - Não, é um imbecil que escreve até hoje artigos assinados n’O Globo.

PAS - Ai, meu Deus, como vou saber quem é?

JRT - Ele disse: “Ah, Tinhorão, não vou dar a entrevista”. “Mas por quê?” Eu fui ao Rio pago por eles, páginas amarelas da Veja, “ah, a entrevista ficou muito anedótica”. Anedótico é esse monte de coisas que nunca ninguém tinha dito e que torna essa entrevista do Ademar Casé atualíssima até hoje (a entrevista, inédita, está publicada no livro Crítica Cheia de Graça).