quarta-feira, maio 19, 2010

tudo que é de bom pro figueiredo e que se beba

Só para concluir esse assunto do Tinhorão, copio abaixo o diálogo que tive com o Jaime Filho por e-mail, dias antes de ir, eu próprio, entrevistar o famigerado crítico e historiador.

Já estava presente na matéria dele e, indiretamente, no meu tópico anterior, mas deu vontade de deixar registrado e armazenado também aqui neste meu acervo público-particular. Porque é mais ou menos fácil um entrevistador se proteger embaixo de uma capa de relativa neutralidade, mas acho importantes e ilustrativos esses momentos em que, entrevistado, um entrevistador é levado a sair do armário e expressar pontos de vista sem subterfúgios.

Porque, todo mundo sabe, NINGUÉM é neutro - nem entrevistado, nem leitor, nem entrevistador, nem quem acha que não tem nada a ver com isso.


Jaime Filho - Como crítico musical, como você analisa o trabalho de Tinhorão? Ele influenciou, de alguma forma, no teu trabalho?

Pedro Alexandre Sanches - Eu não era influenciado pelo Tinhorão nos meus primeiros anos de jornalista, simplesmente porque, ignorância total minha, eu não conhecia absolutamente nada do que ele escrevia. Ele ainda é marginalizado hoje, mas acredito que era bem mais nos anos 1990, quando era bastante raro sequer ouvir falar dele. Fui tomando consciência aos poucos, depois o entrevistei, hoje acompanho tudo que posso, porque é evidentemente uma referência central, daquelas de a gente usar como norte tanto para pegar as coisas legais como para fugir dos erros, preconceitos e enganos que cometia.

Ele fala muita coisa de que eu discordo, então é sempre um exercício de ler concordando e discordando ao mesmo tempo e aprendendo a separar umas partes das outras. Apesar de as críticas do Tinhorão parecerem às vezes maniqueístas, ler o que ele escreve hoje me parece por si só um exercício de não ser maniqueísta - se quiser levar a coisa a sério, você não pode aceitar tudo que ele fala, menos ainda rejeitar a priori toda e qualquer coisa que ele diga.

Por sinal, uma coisa de que eu gosto no Tinhorão é saber que ele tem uma metodologia muito definida de análise (coisa que eu, por exemplo, nunca tive, pelo menos conscientemente), entender que ele segue preceitos do marxismo para criticar a música popular, e pronto. A gente sempre pode discutir se são métodos datados ou se ainda podem ter validade, mas eu acredito que muito do preconceito que existe contra ele se deve menos aos folclores sempre citados (de ele se opor à bossa nova, acusar Tom Jobim de plágio etc.) do que à leitura que ele faz da música a partir da luta de classes. Ainda que eu discorde das conclusões a que ele chega num grande número de vezes, acho há uma parte desse método que é muito, muito atual. Por exemplo, acredito que a má vontade atual contra o rap se deve muito menos a razões propriamente musicais que a preconceitos de classe social e discriminação racial. Tinhorão já cutucava essa ferida 50 anos atrás, quando implicava com os almofadinhas e as "aventuras de apartamento" da bossa nova.

JF - Uma suposta ‘conivência’ entre os veículos de imprensa e a indústria fonográfica seria uma das razões para os críticos mais ‘agressivos’ terem deixado os veículos?

PAS - Acho bem provável que pudéssemos falar isso a respeito do Tinhorão, porque ele de fato parece ter ficado isolado, marginalizado, rejeitado pelos que criticou e pelos que não criticou. Mas eu tenderia a atribuir esse tipo de isolamento muito mais ao próprio crítico que a fatores externos (como a imprensa ou a indústria fonográfica) - acho que não teria sido assim se ele assim não quisesse ou não agisse, propositalmente ou não, no sentido de se isolar.

Agora, quanto ao presente, eu não acredito nessa razão que você cita para o afastamento de críticos dos veículos, não. No meu caso, tomei a decisão de sair da "Folha", entre outros motivos, porque eu não tinha mais qualquer interesse em continuar desempenhando aquele papel do palhaço "agressivo" da crítica musical. Acho que a Folha gostava e gosta muito dessa figura do crítico agressivo (hoje mesmo há toda uma série de profissionais dessa categoria lá, embora não na crítica musical), e acredito que é uma postura que o jornal sempre incentivou subliminarmente. Acho até que se eu não tivesse me desviado desse curso muito possivelmente poderia estar lá até hoje...

O que acredito hoje, sinceramente, é que a figura do "crítico agressivo" que sai ofendendo e desrespeitando todo mundo é algo absolutamente em crise, o que explica em grande medida o estado de decadência em que se encontram nossos maiores veículos, quase todos aprisionados até hoje nesse modelo opressivo da agressividade passiva.

JF - Em relação ao estilo, você enxerga ‘seguidores’ de José Ramos Tinhorão na imprensa cultural?

PAS - Em primeiro lugar, precisamos nos perguntar se a sociedade ainda precisa desse modelo de crítica que ele fazia (e que eu, por exemplo, imitei em grande parte dos meus dez anos de Folha, sem saber nem ter teoria por trás). Acredito que não precisamos, e nesse sentido me parece que perdeu muito sentido aquele estilo de escrita que o Tinhorão tinha e depois continuou com o Pepe Escobar, o Luís Antônio Giron, mesmo eu (aliás, se formos pensar, esse modelo nas últimas décadas ficou muito circunscrito ao núcleo "Folha"-"Veja", não é mesmo? Nunca foi muito a cara dos jornais cariocas, nem mesmo do "Estado", pelo menos no que se refere à crítica cultural).

Mas aí há um ponto importante: isso não quer dizer que morreu o modelo de crítico ácido, que fala pelo fígado e cospe bile verde quando se expressa. O que eu acho que acontece nos últimos anos é que a internet virou tudo de ponta-cabeça. Se antes uma parte do público leitor aplaudia secretamente e se identificava em silêncio com o crítico ranzinza, amargo, recalcado etc., enquanto outra parte adorava usar essa mesma figura como bonequinho de vodu, hoje toda e qualquer pessoa tem a oportunidade de ir pessoalmente para um blog, um Orkut, um Twitter ou o que seja destilar suas próprias doses de veneno e amargura. É só olhar nas caixas de comentários dos sites e blogs, os Tinhorões (ou melhor, as características mais amargas e folclóricas do modelo Tinhorão) estão todos lá, fazendo por eles próprios o que antes esperavam que um Tinhorão fizesse para representá-los. Afinal, quem não tem sua própria dose de agressividade e rancor? Tenho certeza absoluta que até a Sandy e o Padre Marcelo têm. E, se tem tanto crítico feroz por aí, quem ainda precisa de seguidores dessa linha na grande imprensa, não é mesmo? Ninguém, e de fato, pelo menos na crítica musical, eles me parecem felizmente em extinção (na crítica política ainda há um monte - Diogo Mainardi, Arnaldo Jabor, Clovis Rossi, Reinaldo Azevedo -, mas estão cada vez mais falando sozinhos).

Pessoalmente, confesso que da minha ida para a "CartaCapital" para cá, me sinto bastante aliviado e contente de ter desembarcado da fantasia de palhaço desse personagem de mal com o mundo, vociferante, supostamente sabedor de todos os defeitos da humanidade (menos dos dele próprio) e das receitas "certas" para corrigi-los. Acredito que o Tinhorão, ao modo dele e ao tempo dele, percebeu a armadilha e fez esse mesmo caminho de libertação - se despiu do personagem do lobo bobo e foi ser um historiador sério, consistente e sóbrio, que os chapeuzinhos vermelhos não têm qualquer razão para temer.