quarta-feira, novembro 03, 2010

há uma cordilheira sob o asfalto (ou: pro dia nascer feliz)

Já nos queixamos muito dos rumos que a campanha presidencial de 2010 tomou ao longo do segundo turno, com a vinda à tona de vários instintos básicos e baixos de... todos nós. Foi misoginia, homofobia, racismo, xenofobia, um espetáculo dantesco proporcionado pelo monstro de mil cabeças que... somos nós.

Mas, quer saber? Cada vez mais eu acho que foi necessário, e francamente positivo. Tenho de admitir que falo isso amparado pelo resultado final, e que certamente estaria me sentindo muito deprimido se as unas tivessem dito outra coisa. Foi um pulo no vazio (mais um!), sem a menor garantia de que as asas iam conseguir se mover ou que o paraquedas se abriria na hora H. Parece que deu certo (de novo!).

Foi bom, foi muito bom, mesmo com as atitudes filme-de-terror adotados em pique "Tea Party dos Estados Unidos (e/ou do Vaticano)" pela campanha demotucana. Aprendemos a odiar apaixonadamente José Serra, que assumiu para si o papel de vilão e de bode expiatório da eleição - nos fez um mal danado, mas nos fazendo mal acabou por nos fazer um bem tremendo. Se Freud explicá-lo, quem sabe um dia ele saiba dar a volta por cima da própria pequenez.

Serra atiçamos preconceitos e fundamentalismos, na maior parte do tempo terceirizando o serviço sujo (não raro delegando-o a figuras femininas). Tudo isso foi peçonhento, arriscado, perigoso à beça para todos nós, e afinal de contas fez com que (nosso lado) Serra morrêssemos na praia.

O lado bom é que, acirramentos à parte, o Brasil escolhemos com tranquilidade, votamos serenamente, legitimamos com altivez o voto que -juravam - significava a ruína e o apocalipse do país.

O resultado? O Brasil dissemos não à TFP, à triade tradição-família-propriedade, filha do casal Casa-Grande & Senzala. O Brasil dissemos não à TFP, essa primogênita do colonialismo.

O Brasil desafiamos a tradição. Elegemos nossa primeira mulher presidente da República. De 35 presidentes, 35 foram homens. Não mais.

O Brasil desafiamos a família, ou melhor, aquela família falida, patriarcal, fundada num só vetor de regras e imposições. Dilma tem mãe, filha, genro, neto, ex-maridos, mas não é chefe ou cônjuge de uma família tradicional. Dilma-presidente desafiamos a família preconizada pela Igreja Católica mais fundamentalista e pelos nichos fundamentalistas encravados nas diversas religiões (ateísmos incluídos). Com muito custo, muita hesitação e muito receio, Dilma dissemos não à misoginia (e à criminalização do aborto), não à homofobia (e à satanização do casamento gay e da constituição não-tradicional de famílias), não ao racismo (e à xenofobia, que só foi emergir explicitada depois da eleição).

O Brasil desafiamos a propriedade. Não aceitamos a demonização do MST (Movimento dos Sem-Terra). Afirmamos (muito tenuemente) que sabemos da existência da Cufa (a Central Única das Favelas) e dissemos não ao recurso medroso da da favela cenográfica (pois, ora, há favelas de verdade no Brasil). Rejeitamos o monolito da religião que pretende se sobrepor sobre o Estado laico (assim, nos posicionamos indiretamente contra a pedofilia, ainda que representada na figura para lá de ambígua de Magno Malta). Repudiamos a satanização de bolivianos e iranianos (ou seja, a xenofobia). Acima de tudo, vencemos a propriedade (paternalista, autoritária) transfigurada em coronelismo eletrônico-e-impresso encastelada na chamada "grande" mídia, ou velha mídia. Derrotamos os ímpetos egocêntricos e infantilizados do conglomerado Globo-Abril-Folha-Estado que queria-porque-queria nos impor seu ungido.

Enfim, o Brasil declaramos, solene e alegremente: não queremos mais ser TFP!

O Brasil, hoje, nos chamamos Dilma Rousseff. Com muito orgulho, muita FELICIDADE e muita gratidão pelo pau-de-arara/retirante/iletrado/operário/metalúrgico/sindicalista que nos abrimos este caminho (não devemos nos iludir, a xenofobia que o Brasil resolveram - ou resolvemos? - externar no pós-eleição é ressentimento dirigido sobretudo contra ele, ou seja, contra nós mesmos). O Brasil, além de tudo, temos direito à FELICIDADE, quiçá como cláusula pétrea de uma Carta Magna ainda por vir.

[O texto já acabou, mas eu ainda tenho mais a dizer, êita, cotovelos falantes! Faz de conta que daqui em diante é um P.S.]

Nos dias que se seguiram à sua eleição, Dilma deu sucessivas demonstrações de habilidade, inteligência e serenidade - as mesmas que o Brasil ofereceu nas urnas. Entre todas, quero destacar uma que me causou firme e forte boa impressão (como diriam os jornalistas que até a semana passada criam que essa mulher era a pior pessoa do mundo e, de repente, descobriram a pólvora - a pólvora, eu disse - e se puseram a elogiar os primeiros discursos da primeira-mulher do país).

Eu, que fugi deste tema propositalmente durante os últimos muitos meses, me rendo: não aguento mais, agora quero falar do cabelo e da roupa da presidente!

Após uma longa campanha durante a qual José Serra usou sistematicamente gravatas vermelhas, qual um travesti de petista, no "day after" do apocalipse, digo, da eleição Dilma Rousseff apareceu na TV Record (primeiro) e na TV Globo (depois) vestida de... azul.

Dilma vestiu azul (papapapapapá!), a cor dos (demo)tucanos, como a dizer: "Agora eu sou de vocês também", "agora vocês também somos Dilma". Depois de os adversários tentarem anulá-la e excluí-la sem tréguas nem apego à verdade, ela agiu como quem já foi torturado barbaramente e como quem sabe peitar os preconceitos que sofre: estendeu a mão para incluir aqueles que queriam excluí-la e (principalmente) os sortudos 44 milhões de eleitores deles.

(P.S. do P.S.: Sobre o cabelo já andei falando no Twitter, e até aqui mesmo, quem sabe qualquer hora dessas a gente volta ao tema...)