terça-feira, abril 07, 2009

a mãe (*)

colo aqui uma reflexão que escrevi para a revista "mag!", do são paulo fashion week, e que foi publicado em janeiro de 2009, na (bonita) edição especial dedicada a mãe carmen miranda.


O BRASIL EM FORMA DE MULHER

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Se o Brasil do século XX fosse uma mulher, seu nome seria Carmen Miranda. Seria uma mulher exótica, algo espalhafatosa, com a cabeça travestida em cacho de bananas, os olhos puxados de um modo assim meio cigano, uma intensa alegria corporal camuflando forte melancolia de fundo. Por fora, pareceria um país-mulher folgado, sorridente, hedonista, mas seria nas entranhas uma mulher-país nervosa, produtiva, obsessivamente trabalhadora. Entre o berço e a lápide, cantaria, cantaria e cantaria, feito um passarinho.

Metáforas à parte, Carmen Miranda foi possivelmente a mulher mais influente deste país durante o século passado, em termos de linguagem pop. O termo "pop" nem existia em seu tempo de vida, de 1909 em diante, mas era exatamente esse o modelo que ela forjava, quando entretinha a indústria (cultural) norte-americana cantando Chica-Chica-Boom-Chic ou fazendo micagens em Hollywood.

Perante o mundo de então, a imagem não só do Brasil, mas de toda a América Latina era ela em pessoa: confusa, enevoada, caracterizada ora como argentina, ora como brasileira, ora como cubana, quase sempre solitária e desacompanhada, algo assim como a empregada doméstica agregada à casa-grande dos patrões, solteira, sem filhos, sempre risonha por cima das cicatrizes interiores.

Pois bem, nem seria necessário dizer, mas esse retrato em três por quatro do Brasil em forma de mulher exerceu influência capital sobre tudo o que se fez da chamada música brasileira nas décadas e décadas seguintes à sua passagem. Mesmo hoje, quando sua memória chega esfumaçada a gerações mais jovens, Carmen conserva intacta a aura de mãe fundadora arquetípica, onipresente.

Primeiro houve a era de ouro dos Cantores do Rádio (nome de uma de suas inúmeras canções-emblema, esta em dupla com a irmã Aurora), de que foi a primeira protagonista feminina. Um dos primeiros codinomes que recebeu foi o de "ditadora risonha do samba", em consonância com a era Getúlio Vargas, que ela também representaria de ponta a ponta (morreu em 1955, no agosto seguinte ao agosto em que Getúlio apontou a morte para a própria testa).

Após um período competitivo em que Aracys, Dalvas, Lindas, Dircinhas e Angelas se empenharam em suplantar umas às outras - e a Carmen Miranda -, Emilinha Borba e Marlene irromperam centrando fogos e flores uma na outra, e assim se tornaram as primeiras a escancararem a influência descomunal que a antecessora passaria a exercer. Mas seria Ademilde Fonseca quem faria de Carmen um espelho simétrico, ao dedicar-lhe inteiramente o magnífico LP À La Miranda, em 1958, quando a bossa nova batia à porta.

Juntas e separadas, Carmen e Ademilde fizeram-se fundadoras de toda uma linhagem de cantoras surgidas entre os anos 1960 e 1970, que em comum entre elas talvez não tivessem muito mais que a idêntica referência-matriz. Foi um big bang, uma diáspora. Engendraram-se naquele ninho o samba ríspido de Elza Soares e o iê-iê-iê infanto-adulto-juvenil de Wanderléa. A introspecção de Nara Leão e o espalhafato das Frenéticas. A hard MPB de Maria Bethânia e a afronta pop sexual de Maria Alcina. O samba mineiro-falso-baiano de Clara Nunes e a exuberância paraense de Fafá de Belém. Baiana-nova nascida carioca, Baby Consuelo sintetizou a aglutinação, acolhendo o legado de Carmen por intermédio da adoração a Ademilde, num balaio bem samba-roqueiro, bem brasileirinho.

A partir de 1967, no ato de ruptura batizado tropicália, as citações à matriarca ficaram mais concentradas em Caetano Veloso. Mas os integrantes do movimento, sem exeção, seriam para sempre seus filhos bipolares bastardos e legítimos, macumbeiros e antissambistas, assumidos e recolhidos. Pense no Balancê de Gal Costa, no Banho de Espuma de Rita Lee, na Brigitte Bardot de Tom Zé.

Em certos casos em que não influenciou diretamente, Carmen influenciou por contraste - ou seja, influenciou, ponto. Nada Miranda existe nos humores sombrios de Maysa, Dolores Duran e Elis Regina, pois não? Não. Recusar o alegroso imaginário Tico-Tico no Fubá foi uma das razões de existir de artistas como aquelas três.

Caso híbrido foi o da complexa Elis, que em 1974 cavou de Tom Jobim (outro "mirandiano" compulsório) a mais profunda, soturna, emocionada e emocionante releitura que já se fez de la Miranda. Operária da canção, Elis mamou um litro e meio de cachaça em Na Batucada da Vida, de Ary Barroso, e abriu olhos cada vez maiores para a mãe (extra)musical. Chegou a se travestir de balangandãs manchados de lágrimas, num especial de TV. E morreu.

Ao mesmo tempo em que a narradora da tragicomédia de Ary ia cada vez mais se esmolambando, "desprezada como um cão", Carmen ganhava contornos masculinos para lá de Caetano, no advento seco & molhado & estilizado de Ney Matogrosso. Noutro extremo, havia algo de Miranda no manifesto proletário Eu Não Sou Cachorro, Não, de Waldick Soriano. Estava rompida a fronteira entre os sexos, que a precursora havia ensaiado, mas não levara a cabo.

Carmen pós-tudo, a transexual Claudia Wonder vem há duas décadas sacudindo corajosos penduricalhos underground, o mesmo operado desde o início dos anos 1970, do lado feminino, pela russa-mineira-poliglota-apátrida Elke Maravilha.

Da geração roqueira dos anos 1980 em diante, a influência se diluiu (em 1989 Marisa Monte já fazia meneios de braços, mas só em 1998 Paula Toller escancarou a paixão pelos sambas fenomenais de Assis Valente). O mito estilhaçou-se em mil partículas, mas não se atenuou, ao contrário. Preconceitos sociais e classistas podem bloquear tal percepção, mas é fato que nas últimas décadas Carmen sobreviveu num arco que vai dos volteios sensuais de mulheres-objeto como Gretchen e as meninas axé do É o Tchan à militância funk-feminista de Deize Tigrona e Tati Quebra-Barraco.

Mais: algo da intérprete de O Que É Que a Baiana Tem? (de sua maior eminência parda, o mui arraigado Dorival Caymmi) persiste em cada artista brasileiro exilado do Brasil, da música brasileira e/ou de si próprio. Ainda que as habilidades viajem por outras paragens, pense em aves migratórias, nômades, inadaptadas e/ou deslocadas como Astrud, João e Bebel Gilberto, ou Sergio Mendes, o duo Tetine, a cubano-mineira Marina de la Riva (esta de modo explícito e reverente). Pense nos tapas & beijos na ponte aérea Brasil-Carlinhos Brown-Espanha. Pense na ginga desengonçada de paulista das bravas moças do Samba de Rainha. Pense, enfim, na Carmen Miranda black power (re)materializada em Hollywood na figura de Seu Jorge, com Cidade de Deus (o filme) e Cidade de Deus (a favela) fazendo cenário ao fundo.

É célebre a historieta de que certa elite econômica brasileira hostilizou sua filha mais famosa internacionalmente, na única vez em que ela voltou a cantar em um palco destes chãos após a migração de 1939. A birra parecia injusta, e era, mas não se costuma muito registrar que a semente da discórdia foi implantada muito cedo no imaginário da portuguesa que era brasileira, em parte por iniciativa própria.

Na fase inicial de sua ascensão, ela se ocupava em criticar com humor o fascínio local provinciano pelas expressões em inglês (em Good-Bye, por exemplo0 e em cantar mimos nacionalistas como "eu gosto da minha terra/ e quero sempre viver aqui" (em Eu Gosto da Minha Terra, de 1930) e, mais chocante, "é aqui no meu Brasil/ que hei de meus dias findar" (na profética Foi Embora pra Europa, de 1938). A mulher-país atrás da máscara fez o contrário do que a personagem-Brasil mascaada, talvez juvenil e ingenuamente, prometera. Talvez não a tenhamos perdoado. Talvez ela não tenha se perdoado.

Mas é evidente que algo aconteceu e se quebrou durante a travessia entre a menina brejeira que não queria sair daqui e a mulher distribuidora de alegria e força de trabalho In South American Way aos estadunidenses. Nesse pontilhão de vivacidade, instabilidade e vitalidade, Carmen faz lembrar quem parece estar mais distante dela, no tempo e no ideário. Pense nos geniais pavões mysteriozos rock-electro-funk dos grupos Cansei de Ser Sexy e Bonde do Rolê, especialmente quando, lá de longe, entre uma pedreira e uma pauleira, esses nossos meninos desdenham ou falam mal da pobre pátria rica que os pariu. Também dentro deles Carmen-Brasil-Miranda está mais viva do que nunca, tão viva quanto sempre.


(*) percebo que, sem-querer-querendo, este texto remete de alguma maneira a alguns dos textos inaugurais deste blog - lá se vão quase cinco anos -, como o "che", o "rei", o carro mais colorido do mundo (alô, marcia w.), kombi: por que é que eu não pensei nisso antes? e a "mãe" (& a refavela), além de uma cambada de outros. daí o nome, ainda que quase-repetido, deste tópico. e bem quando me preparo para zarpar para os festejos dos 80 anos de meu pai, haja coração.

p.s.: para o caso de a priscila vencer o "big brother brasil 9" hoje à noite (eu faço parte da torcida), fica desde já este "o brasil em forma de mulher" como singela saudação à índia sul-mato-grossense, pra ver peri, beijar ceci, pararatibum-bum-bum.