quarta-feira, julho 27, 2005

com os olhos bem abertos

já que falávamos (de leve) em zezé & luciano - ou seja, na "voz do povo" -, só quero avisar que tem mais voz do povo lá no site da carta capital. estão lá trechos da entrevista que fiz com mv bill para a edição mais recente - é só clicar para escutar trechos inéditos, ooolha, que moderno!

no mais, ainda no berço do povo que abriga zezés, mvbills, eu & você, tomaí a reportagem da "carta capital" 348, de 29 de junho de 2005. é sobre maroca, poroca e indaiá, algumas das coisas mais lindas com que tive a felicidade de travar contato nestes movimentadíssimos anos lula. (as fotos não são as que constavam na reportagem, mas não resisti a fazer a intervenção.)


COM OS OLHOS BEM ABERTOS
Três cantadeiras cegas da Paraíba fazem a alegoria do Brasil de 2005

Por Pedro Alexandre Sanches

Três irmãs cegas que cantam coco e pedem esmolas nas ruas de Campina Grande, na Paraíba, reaprendem a "ver" o mundo ao se tornarem, como por encanto, estrelas do cinema nacional e da música popular brasileira. O enredo parece delírio ou conto de fadas, mas é real e vem compor uma alegoria perturbadora sobre um Brasil que, neste 2005, passa pela experiência dolorosa de enxergar, por baixo dos panos, dados incômodos sobre a substância de que é feito.

O filme se chama A Pessoa É para o Que Nasce e acompanha, num misto de documentário e narrativa romanceada, oito anos das vidas das irmãs Regina (ou Poroca), Maria (ou Maroca) e Conceição (ou Indaiá) Barbosa, nascidas, respectivamente, em 1943, 1944 e 1950. Desde pequenas, elas conhecem a experiência de cantar em feiras, praças e ruas em troca de moedas de esmola.


A constante de vidas furadas pela mendicância atravessa todo o filme com cores de fatalidade, mesmo que entre o início e o fim da história se documentem a passagem das protagonistas por festivais de world music, a transmutação em "estrelas de cinema", o contato com astros da MPB, a estréia em CD, visitas a Salvador, São Paulo e Brasília e até uma condecoração concedida pelo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva.

Conduzida de modo cru, mas extremamente afetivo pelo diretor Roberto Berliner, pelo co-diretor Leonardo Domingues e pela equipe da produtora carioca TV Zero (atuante na produção de documentários, videoclipes e comerciais), a vida das irmãs Barbosa pode provocar primeiras impressões que resvalem pelo melodrama e pela pieguice. Mas não se trata disso - há algo de novo no ar do céu fatalista de A Pessoa É para o Que Nasce, que aparece timidamente (foi visto, nas três últimas semanas, por parcos 7.770 espectadores) com cara de filme-marco dos anos Lula.

Até por conta de uma das cenas finais, em que as deficientes visuais conhecem o mar e se atiram nele completamente nuas, o longa de estréia de Berliner fixa pontes de contato com o cinema do inevitável Glauber Rocha (1938-1981) - que usara o mar como elo de ligação entre Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967).

Sem se eximir de responsabilidades, Berliner justifica uma das cenas mais polêmicas, do tipo "ame ou odeie": "Elas manifestaram várias vezes a vontade de conhecer o mar. Eu achava que a melhor maneira seria sem roupas, já que o contato físico é muito importante para elas. Ali estão três mulheres fora de qualquer padrão de beleza que se vende em publicidade, cinema e tevê. A cena mostra um pouco como estamos todos viciados numa maneira de ver as coisas. É também um pouco o símbolo de toda a invasão do documentário na vida delas".


Se tal cena coloca indefesas essas mulheres que não possuem o registro visual de sua auto-imagem e das imagens dos outros, o viés que prevalece não é o de sublinhar a cruel dependência a que estão condicionadas. Opõe-se, nisso, à impotência autocrítica elaborada por Glauber em Terra em Transe, quando o intelectual (e alter ego) vivido por Jardel Filho aparece tapando a boca de um personagem que diz ser "o povo".

Não. As três artistas do povo retiram delicadamente a mão do "intelectual" que tapava suas bocas. Invadem o filme com sua retórica e o levam à convulsão durante conturbada visita a São Paulo, para um show no festival Percpan, em 2000.

Perspicaz, Maroca, a mais articulada e dotada de liderança das três, preanuncia o temporal: "Agora vou pra São Paulo olhar os paulistas, que eu nunca vi... Quer dizer, não vejo para ver, mas... Presto atenção, né?". Após "ver" os barulhos da avenida Paulista, Maroca trata o anfitrião Gilberto Gil com aspereza diante do público: reclama que o microfone capta a voz do músico, mas não as delas.

O que acontece a seguir revoluciona o filme: no hotel, Maroca faz Berliner entender que está apaixonada por ele - o diretor sai de detrás das cortinas para virar personagem do drama. Berliner sabe que corresponde a seu modo àquele amor, evidência que transborda quando justifica sua dedicação, citando com fascínio "o bom humor, a maneira pela qual se organizam para se defender das hostilidades dos que as cercam, a inteligência, a música".

Mas ali, no calor da hora, rechaça Maroca, desconjuntado, e ouve Indaiá contar que também o ama, "mas é como amigo". É tarde: as "indefesas" já tomaram conta da narrativa, virando o leme de seus destinos e o do filme. O ritmo se precipita, e Maroca confessa que tem mágoa das irmãs, que teriam se relacionado sexualmente com seu primeiro marido, também cego. As relações se abalam - a equipe se distancia; quando volta, flagra Maroca só em casa e Poroca e Indaiá mendigando na rua, sem os ganzás e a cantoria de antes.

Em entrevista telefônica à reportagem, as três reelaboram o discurso com o qual hoje percorrem o país em shows de lançanento. Ácida e bem-humorada, Maroca reflete sobre destino, valor e instituições arraigadas: "Pelo fato de eu me ver com uma bacia na mão pedindo esmola, não sabia que podiam me dar valor. Mas estão dando. Acho que antes não sabiam, ninguém sabia, nem eu nunca pensava ser estrela do cinema. Eu era feliz e não sabia. Pensava que ia ficar assim toda a vida. No filme tem aquilo: a pessoa é para o que nasce. Mas eu não sabia que tinha nascido para ser estrela do cinema. Pensei que tinha nascido para uma coisa somente".


Isto ela não diz, mas é de sua autoria a frase pescada para título, "a pessoa é para o que nasce". Questionada pelo repórter, ela ri, envergonhada: "Foi, foi mesmo".

Há três semanas em cartaz em poucas salas de São Paulo, Rio, Brasília e Fortaleza, A Pessoa É para o Que Nasce tem recebido críticas ressabiadas, que em geral reprovam aspectos éticos da exposição crua das mulheres no documentário. Berliner rebate, entrelaçando questões caras aos extremos opostos da crítica e de suas personagens: "É muito difícil ver as ceguinhas em outro papel que não as de mendigas pedintes nas ruas. Quando ocupam um lugar diferente do que 'deveriam', choca. Mas poucos jornalistas se chocaram ao vê-las na rua pedindo esmolas de novo. O filme está sempre no limite".

A alegoria perpassa um país que não ousaria associar supostas "mesadas", subornos e chantagens (emocionais) entre políticos com atos de mendicância. Esses são sintetizados de modo cortante por Indaiá: "Através do documentário, estão convidando a gente para todo canto. Antes a gente só vivia em Campina Grande, no sol da rua, em troca de esmola. Tinha dia que a gente só faltava chorar no meio da rua, porque os gaiatos ficavam dando tapa na cabeça da gente, puxando o cabelo. A gente ficava sozinha, os gaiatos faziam palhaço da gente. Uma vida humilhada, massacrada".

Poroca fala de receios quanto ao futuro: "Se a gente voltar para a rua agora, o povo vai dizer 'ainda precisa pedir, não enricaram, não?'. Sempre dizem 'cadê o dinheiro do filme, cadê que deram a vocês?'. Sabe o que digo? 'Eles não têm capacidade de enrolar a gente, eles não são vagabundos que nem vocês. Eles são gente de capacidade, gente de categoria, gente de que o Brasil precisa. Não é vagabundo nem cafajeste que nem vocês'".

O limiar ético permeia as relações entre produtores e "atores". "Quando ganhamos um prêmio legal, compramos uma casa para elas, que depois foi parar nas mãos de familiares. Hoje elas estão morando de favor e aluguel. Não temos como interferir, não podemos tutelá-las", diz Berliner, descrevendo a relação das três com parentes não cegos, assim resumida no filme por Maroca: "Trabalha o feio para o bonito comer". A TV Zero diz que redistribuirá lucros de bilheteria e reverterá às três 50% dos direitos autorais do álbum com a trilha sonora do filme.

O CD duplo (R$ 33,90 no site www.submarino.com.br) é um espetáculo à parte. O primeiro volume contém falas do filme e temas populares interpretados pelo trio. O segundo é um surpreendente projeto coletivo de releituras produzidas por Lula Queiroga e interpretadas em pique de pop, rock, rap, samba etc. por Lenine, Teresa Cristina, Pato Fu, Silvério Pessoa, Lirinha, BNegão, Otto e grande elenco. O jovem grupo pernambucano Mombojó mistura universos e recombina coco, rock, jovem guarda e música brega em Abre a Janela, a mais sofisticada releitura do CD - e também a preferida de Maroca.

A canção mais contundente é Moço, Me Dê uma Esmola, em que as três suplicam:
"Ô, moço, me dê uma esmola/ não queira dizer que não/ favoreça a quem lhe pede/ está chegada a ocasião/ que você tem a luz dos olhos/ nós vive na escuridão". Do outro lado do espelho, Fausto Fawcett subverte esse tema, vestindo num rap o terno roto de um mendigo pós-glauberiano: "Aí, não tem essa de pobre coitado/ pobre coitado é o cacete, eu não sou pobre coitado/ eu como, eu bebo, eu trepo, eu leio, eu danço, eu amo, eu odeio/ eu tenho sentimento geral igual a você, 'rapá',/ só que no meio da rua".

Vai nessa trilha também a cena final do filme. Incluída às pressas depois de sua finalização, documenta uma cerimônia de concessão de medalhas de mérito cultural e reúne no palco de poder de Brasília uma turma heterogênea que inclui Gilberto Gil, índios, Pelé, Maurício de Souza, as "Ceguinhas de Campina Grande" e... Luiz Inácio Lula da Silva.

Assim Maroca descreve o encontro: "Ai, meu Deus! Foi a surpresa maior do mundo ter falado com o presidente. Tem gente que diz que nunca falou com o presidente. Nós já falamos. Já tem gente com inveja desse filme, não posso nem falar o nome que tenho raiva". E avalia Lula em si: "Eu acho bom. Ele nunca me deu nada, mas também não me fez mal".

Maroca, Poroca e Indaiá ressurgem, ali e na estréia do filme neste junho de 2005, como símbolos exuberantes de um país convulso, de um governo que se envolve em escândalos seculares enquanto reivindica autonomia a grupos sociais que até aqui têm sido historicamente tratados como inválidos e incapazes. Sem enxergar fisicamente, as três dão piparotes de lucidez nos espectadores que cogitem se deixar envolver por três mendigas cegas (segundo conta o co-diretor, seu pai disse que jamais veria um filme como esse, se não fosse de seu filho).

Tornam-se protagonistas simbólicas de um país que subitamente se vê vazado pelo diálogo entre cegueira e visão (aquele que vem, no mínimo, dos tempos gregos de Édipo): o mito reaparece hoje no cinema, na Globo (cuja novela América possui um núcleo de cegos - alguns deles reais - apoiado pelo "rei" Roberto Carlos, pai de um deficiente visual nascido na semana de decretação do AI-5), no Congresso Nacional (de onde o país vive o trauma de se ver frente a frente com o que talvez sempre enxergasse sem saber).

Enquanto pululam por todo o espectro político frases apocalípticas como "o governo acabou" e "o Brasil acabou", Maria "Maroca" Barbosa conta como se sente internamente, diante de tanta transformação: "A vida não pode mudar assim, de repente. Faz só oito anos que estão fazendo o filme, não é obrigado mudar assim de vez. Vai mudando aos poucos". E concede, generosa, sua receita para manter acesa a tarefa hercúlea da sobrevivência: "O filme é grande, mas a história da gente não está nem no começo ainda. Agora é o começo, é o começo agora".

terça-feira, julho 26, 2005

é o amor

hoje assisti a "2 filhos de francisco", o filme que encena as vidas de zezé di camargo & luciano, do nascimento até o sucesso.

e, sinto muito, vou ter que te dizer: se quiser conhecer um pouquinho melhor o país em que vive (ou seja, saber um pouquinho mais sobre você em pessoa, e não sobre "sin city" ou "a guerra dos mundos"), você vai ter que assistir também.

êêita! ô, meu deus!!!

domingo, julho 24, 2005

desperta, américa do sul!

hoje eu queria falar sozinho, mas como se estivesse conversando com as pessoas de quem mais gosto. hoje eu queria falar aos eleitores "decepcionados" de lula. hoje eu queria falar aos brasileiros que deram o voto mais maduro de suas vidas em nome da mudança, da construção de uma sociedade diferente, e hoje se sentem "órfãos". hoje eu queria falar aos meus amigos que, entre tristes e tristíssimos, entre defensivos e agressivos, se dizem putos com o pt, me dizem que tudo acabou e que o pt tem de tirar o t dos trabalhadores de seu nome, porque "rouba" - e "trabalhador não rouba".
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hoje eu queria soletrar a essas pessoas todas o t de traição, aquele de que não gosto, mas que, sim, me atormenta também. era a ele que eu me remetia no tópico elogios à "traição": pra quê?, lá dos primórdios deste blog, 10 de fevereiro de 2005. reli-o indagorinha e constatei que acredito ainda mais no que já acreditava ao escrevê-lo, antes de irromperem os escândalos atuais do governo petista. convido a comunidade a relê-lo, pausa.
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pois bem. ouço pessoas das mais entusiastas de pouco tempo atrás enchendo a boca para falar que "o pt traiu", que o pt trocou o t de trabalhador pelo t de traidor. uma ova, meus queridos companheiros, minhas caras amigas. o que possa haver de verdadeiro nessa proposição não passa da metade defensiva da história toda, que é muito maior e mais luminosa.
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ao que me conste, ninguém no brasil pegou em armas ou inverteu a ordem constitucional para conduzir lula ao poder. nenhum esquerdista ferrenho articulou-se junto dos seus para quebrar a ordem republicana e entronizar no poder o sapo barbudo, à força e às fuças da elite da nação. sua eleição se deu por um pacto nacional, em que pela primeira vez a horda popular concedeu se aproximar das opiniões dos autoproclamados "formadores de opinião" e "intelectuais" mais "esclarecidos" e "progressistas". o candidato fez campanha de acordo com as normas eleitorais (anti)constitucionais, e nós votamos, "iludidos" em parte por nossos próprios sonhos, em parte pelo discurso cor-de-rosa que os publicitários engendraram. o povão converteu-se ao candidato que professava convicções que nossa patota sempre pregou, sempre quis, sempre esperou - mas esperou, constitucionalmente, pacientemente, de acordo com as normas anormais.
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(aliás, até este momento não vejo muita contrapartida. não vejo os "intelectuais" brasileiros acreditando nos saberes do povão que, afinal, subiu um degrau nos valores de nossa suposta "escadaria da inteligência". não, na maior parte das vezes, nossos "inteligentes" se revelam a cada instante mais intransigentes, intolerantes e ignorantes que as gloriosas marocas, porocas e indaiás que vagam marginalizadas em todas as esquinas do brasil. ooops, esse já é outro assunto, ao qual voltaremos num próximo tópico.)
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como eu dizia, ninguém aqui pegou em armas para impor lula e romper com um ciclo escravocrata de 505 anos. votamos nele dentro dos princípios legais "democráticos" republicanos blablablá de nossa semi-escravocracia. votamos nele para que ele governasse dentro das regras políticas existentes - e foi o que ele fez, e deu no que está todo mundo vendo. é decepcionante, também acho, mas vai uma enorme distância daí até me declarar ludibriado, chocado, escandalizado e evocar a fúria santa de quem nem suspeitava que é desses modos que funciona há 500 anos a república dependente dos brasis e, de quebra, ainda exigia que as mazelas nacionais se dissolvessem num piscar dos olhinhos da lula. se é isso que queremos, nos resta esperar a fada sininho com seu condão, polvilhar pó de pirlimpimpim sobre a nação - ou afetar a indignação das virgens, ou, mais ainda, fundar a luta armada que vai apropriar o poder às mãos "revolucionárias" de stédile, heloísa helena, eduardo suplicy, edir macedo ou qualquer outro santo católico ou evangélico. sinto avisar aos meninos perdidos da terra do nunca que dará tudo na mesma, enquanto a pseudo-indignação moralista for a baioneta preferencial.
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mas, se queremos continuar falando na língua do pê da traição, que cada eleitor tome para si de volta sua cotinha de traição. eleger o atual estado de coisas dentro das regras postas e abandonar o barco que faz água à guisa da traição dos outros é, desculpem-me os mais queridos amigos, pura, líquida e cristalina traição.
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se não adotamos a perspectiva evasiva da traição, o que o atual governo vem fazendo, além dos "erros" que comete um atrás do outro, é reflexo diário da reclameira crítica ansiosa e intransigente e da sangria constante de militantes e eleitores, que foram desembarcando desde o primeiro minuto, de franciscos das oliveiras e heloísas helenas às novas levas de desertores que devem surgir mais e mais daqui por diante. quero dizer que todos nós, sejamos eleitores petistas ou locatários tucanos de mídia ou banqueiros de direita, somos co-autores do governo, no que ele tem de ruim e no que ele tem de bom. tirar o corpo fora não preserva ninguém, até porque não é o barco que pode destroçar nas pedras - o oceano inteiro está à deriva, se você, brasileirinho(a) indefesa(o) se portar como criança mimada que por falta de tinta não pôde pintar de ruivo o cabelo da boneca emília.
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é que traição com traição se paga, e eu não quero nem saber se quem nasceu primeiro foi o (p)ovo ou a galinha. a sanha acusatória é um espelho, todo espelho tem reflexo e o reflexo, embora invertido, é sempre "fiel" ao objeto que originou a imagem, nunca é "traidor". lula é reflexo de você, xingar o espelho de feio-burro-bobo não resolve nada. não faz diferença nenhuma se quem começou a vendetta foi a traída coitadinha ou o traidor trator. deu tudo na mesma. se estreparam os dois. a instituição (o casamento) faliu. se quer a instituição preservada, trate de zelar por ela, pessoalmente, sem procuração e sem fingir que o casamentinho não era com você.
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mas, no meio do pânico pelo desconhecido em que já estamos mergulhados há três anos, parece que o mais evidente ninguém quer ver. a mudança, a tão sonhada mudança, está se dando em todos os planos, do mais dramático dos níveis aos detalhes mais ínfimos de nossas vidinhas (compute tudo que já mudou em sua própria vida nos três últimos anos, experimente fazer esse brinquedo um minutinho só - talvez se espante com o resultado, entre uma lágrima e outra pela mudança que não veio). enquanto isso, as pretensas viúvas virgens dos sonhos não atendidos só fazem reclamar e reclamar e reclamar de... traição. só lhes servia a mudança do exato modo como sonhavam, sem sangue nem carnificina, mas também, de preferência, sem ter de mover um fio de sobrancelha na santa face "imaculada". por mais que pensemos que mudança nos olhos dos outros é veneno, o vendaval da mudança é, ele, sim, democrático. apanha a todas as crianças, não adianta fazer pirraça nem espernear os bracinhos para o ar.
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"nunca se vence uma guerra lutando sozinho, cê sabe que a gente precisa ficar em contato com toda essa força contida que vive guardada", ecoaria mr. raul seixas.
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tanto se compara lula a collor, na atual voga vaga de viúvas virgens. não ocorre a ninguém que, sim, as lavagens públicas de roupa imunda se dão nesses dois governos por razões que não tem nada a ver com coincidências - mas também não com semelhanças especulativas entre collor e lula. quem promoveu tais faxinas fedorentas, caros amigos, foram os cidadãos que elegeram collor e que elegeram lula - foi o povo brasileiro, eis ele aqui outra vez, essa tão temida fera fedida de que nós, "formadores de abobrinhas", só nos lembramos para sentir pena, dar (ou recusar) esmola no sinal, seduzir eleitoralmente, sentir medo-pânico-terror perante qualquer tentativa de aproximação. collor foi eleito, entre tantas razões, porque emergiu da obscuridade para falácia de "caçador de marajás". lula foi eleito, entre tantos motivos, porque seu núcleo de militância fez história corpulenta pregando ética, correção, moralidade. o desejo coletivo de transparência e correção, manifestado nas urnas nas duas ocasiões, culmina nas duas grandes saídas coletivas de armário das pilantragens nacionais. em outras palavras, foi a gente, essa gente de quem se diz que "não sabe votar", que solicitou, votando nesses caras, que as mamatas públicas fossem escancaradas. lula, assim como collor, cumpre o próprio mito. collor se afogou na própria imagem, porque era mero narciso. lula não é mero narciso, lula é a minha, a sua, a nossa imagem no espelho.
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pois então. sob esse prisma, lula está dando a vocezinho(a) que reclama tanto exatamente o que você pedia. é impossível que ele saia ileso dessa entrega e da cobrança que cada um de seus (não)eleitores lhe faz incessantemente, muitas vezes de forma cruel e auto-indulgente. a carne dele, que se sangra em público, é também a sua carne, a carne que depositou na carne dele suas esperanças e ilusões, a carne que faz suas trambicagens pequenininhas por aí e depois enche a boca de ovo para açoitar o land rover de silvio pereira. jabaculê é símbolo nacional, do mesmo quilate que pau brasil, saci pererê e roberto carlos, não adianta a gente se fazer de sonso imbecilizado, não adianta zurrar. o material humano de que são feitas esses miasmas todos, dos menores aos maiores, é o mesmo - é célula, tecido, órgão, cérebro, insegurança, medo, rejeição, erro, tolice, ignorância, intolerância, tolerância, nobreza, constrangimento, competitividade, impotência, potência, solidão.
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lula, eu tenho certeza, também se sente traído a cada vez que é apedrejado por um eleitor decepcionado, por um jornalista que não sabe direito o que quer o seu patrão, por camadas da população que projetam nele toda a carga de suas próprias frustrações cotidianas, pelos desamparados que querem vê-lo como super-herói (ou super-vilão), enquanto são iguaizinhos a ele, sem tirar nem pôr. nada de bom poderá sair desse tipo doentio de relação - se há um abismo à espreita, lula ainda está de mãos dadas com seus eleitores, na condução ao abismo. mas não é nisso que acredito, não é, não é.
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o que estou querendo dizer, se é que consigo agora condensar as idéias, é que o que interessa a uma nação que não tenha vergonha de si própria não é que o pt tenha sido eleito para mudar, mas tenha se atolado nas mesmas práticas pútridas de sempre. o que interessa a uma nação altiva é que, justamente no governo que se apregoou como o da mudança, os valores estão sendo todos revirados do avesso. estamos passando pelo frio na barriga da maior mudança de nossa história. me dirão (já me disseram) que lula não caiu porque quis nesse escândalo de saída geral do armário, que ele teria evitado isso se conseguisse. pode ser. mas estamos falando de simbologia, de espírito do tempo, de inconsciente coletivo, ou, melhor ainda e graças a deus, da emergência de um inédito "consciente coletivo". como nunca, sabemos onde estamos pisando, e é desse terreno aparentemente movediço que daqui a pouco iremos emergir, eclodir, germinar, florescer.
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nada disso aconteceria num governo de elite, num governo de cabresto, num governo ditatorial - porque os teóricos-práticos das dependências se sentem à vontade e confortáveis diante do status quo que suas próprias impotências armaram. é incrível que nunca se avalie psicologicamente o semblante de lula, que não perceba o imenso desconforto exibido diariamente no rosto do flagelado que virou presidente. não é porque ele se sentisse desencaixado da vida de flagelado que ele não se sinta igualmente desconfortável na máscara do poderoso. lula é um desconfortado por natureza, e essa é sua certidão de sobrevivência e é isso que permite que estejamos vivendo com cores tão fortes mais esse episódio de lavanderia generalizada.
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isso significa, meus queridos, que o brasil está mudando de forma célere, vivaz, abrupta, emocionante. estamos numa montanha russa - e, segundo diziam os publicitários, era isso mesmo que o povo brasileiro queria quando topou, após quatro tentativas, eleger luiz inácio lula da silva (ou seja, se auto-eleger). tentamos eleger lula quatro vezes seguidas, e tanto tentamos que afinal conseguimos. não jogamos nosso voto no lixo, já não é mais hora (lá vou de novo na velha palavra podre) de trairmos a nós mesmos. fugir do barco depois que conseguirmos atingir objetivo tão esperado e dar uma de "eu não tenho nada a ver com isso" não seria só a velha e corroída "traição". seria autismo, paralisação impotente fantasiada de indignação moral. elegemos lula para virar o brasil do avesso, eis aí todo dia o brasil virado do avesso. a mim, não importa que não seja do modo como eu sonhava nos meus idílios infanto-juvenis de que o super-lula viria para nos salvar e redimir a todos, rumo a um inquebrantável "felizes para sempre".
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volto a dizer, o brasil está sendo virado do avesso em todos os aspectos, e as viúvas virgens só conseguem ver o lado negativo da mudança - é assim que o medo vencerá a maltrapilha esperança, se quisermos dar meia-volta no sonho e reconduzir ao trono quem mais compactuou com a farsa empolada de ocultar 75% da realidade dos "pobres" cidadãos dependentes do patrimonialismo e do paternalismo.
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mas, não, o brasil está mudando vertiginosamente, e para melhor. já reivindicam seu direito à igualdade dezenas ou centenas de grupos marginalizados da sociedade - reporte-se, no minuto que quiser, aos avanços de grupos de negros, homossexuais, favelados, esquizofrênicos, ciganos, rappers, deficientes físicos, funkeiros, religiosos alternativos, crianças, idosos, pedintes de rua (marocas, porocas, indaiás), presidiários, até se quiser as dondocas da hiper-daslu e outros milionários falidos, entre tantos outros subgrupos que possamos lembrar. a sociedade brasileira já não é tão vertical, e essa nova realidade só vem em desespero de quem se sinta superior demais em seus complexos de inferioridade. se você não é capaz de se sentir feliz ao ver três mendigas paraibanas emergindo da mendicância e da marginalidade, você não é capaz de se sentir feliz por si mesmo(a).
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à fatia da sociedade que conserguir mirar que a chegada desses novos cidadãos é fato positivo sem precedentes, sua chegada é notícia sensacional, espetacular, inédita - é também aos próprios segmentos resistentes às mudanças, ouso palpitar. estamos melhorando todos juntos, ninguém ficará de fora desse elevador que sobe um andarzinho a mais na escala de nossas seculares misérias coletivas. a escravidão há de acabar, a cada dia erguemos um fiapo novo para desmoronar sua fortaleza.
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as "maracutaias" (não foi lula quem cunhou esse termo?) estão vindo à tona uma a uma, mesmo quando grupos de lá e de cá tentam calar, chantagear e neutralizar jeffersons, valérios, dirceus, quem quer que seja. o desejo de sinceridade e transparência é maior que o desejo de ocultação e manutenção da ordem velha - e esse desejo está sendo construído aos poucos, não vem de hoje nem vai acabar amanhã (só para dar um exemplo íntimo, meu livro "como dois e dois são cinco", escrito ao longo de três anos antes e depois da eleição de lula, é um confessionário maldisfarçado, diante do qual não posso me declarar "chocado", nem quando "descubro" que o brasil é uma república federativa cheia de malas voadoras). foi esse desejo de transparência que elegeu lula, e é ele, virgens viúvos, que está sendo cumprido nesse final vertiginoso do primeiro governo petista, do primeiro governo lula.
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mais coisas? como revelou no jornal minha amiga laura mattos, hoje o norte também fica no sul. o equacionamento conflituoso entre elites que vêm e elites que vão não é um fenômeno local nosso, é também o que ocorre entre estados unidos e o mundo oriental, ou entre estados unidos/europa e américa latina/ásia (ó, mãe áfrica, onde estará você?). a distensão, que já causava terremotos ocidente-oriente (alô, 11 de setembro), também causa maremotos norte-sul. falo, por exemplo, da telesur noticiada pela laura, uma rede pan-americana do sul elaborada sob as asas de hugo chávez - são movimentos para reequilibrar o mundo (um pouquinho que seja), não para desequilibrá-lo. há tsunamis que vêm para o "bem", há desejos de emergir da emergência por parte de todos os povos maltratados do mundo.
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também aí, no reposicionamento do brasil perante o mundo obtido por lula e alguns de seus mais valorosos colaboradores, está a realização de sonhos sonhados por dez entre cada dez "revolucionários" "progressisas" do passado. só na música popular posso citar uns 500, e nesta hora remeto ao segundo texto que existiu neste blog, o "che", em cujas entrelinhas eu insinuava que todos nós, na américa não-estadunidense, temos hoje em dia um quê de che guevara e queremos um pouco mais de igualdade neste mundão de nosso(a) deus.
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não devo ter chegado a nenhuma conclusão objetiva, mas esse é o sentimento que me move, na procura incessante da derrocada da retórica da traição (& da dependência), para que eu possa um dia ser a voz de mim mesmo - e não das de patrões-máquinas que se chamem "estados unidos", "elite", "ricos", "império de comunicações", "indústria fonográfica", "et - o extraterrestre" etc. porque de lula também já não quero que seja pai nem patrão - companheiro, prefiro companheiro. nem que seja de infortúnio (mas palpito que não será).
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para terminar, duas musiquetas velhas que espelham bem todos esses sentidos que, espero, me reúnam a meus amigos & não-amigos ("inimigo" é papo careta, sai dessa, neném - "o inimigo sou eu", confirmariam os titãs do iê-iê-yeah). primeiro, "américa do sul", de paulo machado, cantada por ney matogrosso em sua estréia solo (a solidão pode ser um tipo de independência, pois não?), "água do céu - pássaro" (continental, 1975). depois, "soy latino americano", de zé rodrix e livi, do terceiro disco solo pós-sá-rodrix-guarabyra do cigarra-formiga zé rodrix, "soy latino-americano" (emi-odeon, 1976).
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"deus salve a américa do sul/ desperta, ó, claro e amado sol/ deixa correr/ qualquer rio que alegre esse sertão/ essa terra morena, esse calor/ esse campo e essa força tropical. desperta, américa do sul/ deus salve essa américa central/ deixa viver/ esses campos molhados de suor/ esse orgulho latino em cada olhar/ esse canto, essa aurora tropical"
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"não acordo muito cedo/ mas não fico preocupado/ muita gente me censura/ e acha que eu estou errado/ deus ajuda quem madruga/ mas dormir não é pecado/ o apressado come cru/ e eu como mais descansado. soy latino americano/ e nunca me engano/ e nunca me engano. meu caminho pro trabalho/ é um pouco mais comprido/ eu vou sempre pela praia/ que é muito mais divertido/ chego sempre atrasado/ mas eu não corro perigo/ quem devia dar o exemplo/ chega atrasado comigo. soy latino americano/ e nunca me engano/ e nunca me engano. é legal voltar pra casa/ mas eu não volto correndo/ quem tem pressa de ir embora/ no transporte vai morrendo/ e eu que não me apresso nunca/ pro meu bar eu vou correndo/ encontro a minha turma toda/ sentada na mesa dizendo assim: soy latino americano/ e nunca me engano/ e nunca me engano. quando eu abro a minha porta/ muita gente está jantando/ quando eu ponho a minha mesa/ muita gente está deitando/ eu me arrumo e vou pra rua/ e na rua vou achando/ muita gente que trabalha/ se divertindo e cantando. soy latino americano/ e nunca me engano/ e nunca me engano"

quarta-feira, julho 20, 2005

adubando dá!

minha irmã mais velha, a myriam, hoje com 50 anos, é uma autêntica "outsider" (qual seria a palavra equivalente - mas positiva, veja bem - em português?). acho que por isso mesmo sempre acreditei piamente e sigo pela vida copiando várias dessas coisinhas que ela sempre "oculta" dentro das "maluquices" que fala.

por exemplo, olha só esse diálogo telefônico maringá-são paulo, que tivemos outro dia mesmo (e eu sei que cê tá entendendo que cada "e aí" que eu soltava personificava o pânico previamente sentido pela próxima resposta):

myriam: eu sou vidente.

pedro: é nada.

myriam: sou, sim.

pedro: então, se é vidente, me diz aí: o que é que vai acontecer com o lula?

myriam: ele vai ser corroído.

pedro: e aí?

myriam: vai esfarelar.

pedro: e aí?

myriam: a estátua vai cair.

pedro: e aí?

myriam: vai adubar o solo.

pedro: e aí?

myriam: vai brotar um monte de lulinha.

aaaaaaaaaaaaaaaaah. filosofia é poesia, bem dizia minha avó!!! dá um medão de ouvir essas profecias aparentemente macabras, mas me fala se não é lindo esse percurso (o próprio ciclo da vida) que começa na máquina corroída, passa pela areia esfarelada e termina no solo fofo adubado, germinando vida feito brotinho de feijão, broto de bambu e, ôôô, que broto legal?

lula é inevitável, já é fato consumado, queridos derrotistas e estimados mal-humorados. não há mais quem arranque as raízes que ele fincou na gente, e essa concretude já é o tronco forte e garboso da árvore grande, do pau-brasil.

podem gritar e espernear quanto quiserem, mas eu também quéli profetizar: sei por experiência e por investigação que já existem milhares de lulinhas incubados no quentinho por aí brasil afora, brasil adentro.

um dos mais inteligentes de todos eles que eu conheço estará falando livre, leve e solto nas páginas da "carta capital" desta semana (que vai sair no dia do meu aniversário, ê!), você não perde por esperar.

segunda-feira, julho 18, 2005

sobrevivendo no caos

carta capital 347, 22 de junho de 2005. ancorado nos mais novos lançamentos de pato fu e do f.ur.t.o. (a nova banda de marcelo yuka), conversamos um pouquinho sobre estratégias para sobreviver em meio às crises, aos desertos de idéias, à apatia geral dos acomodados. para quem já leu, tem umas "bonus tracks" lá ao final do texto, hehehe: várias frases do articuladíssimo e inteligentíssimo marcelo yuka, que ficaram de fora da reportagem por falta de espaço, por não encaixarem perfeitamente no texto ou por caprichos das leis aleatórias naturais de murphy & cia.

SOBREVIVENDO NO CAOS

Por Pedro Alexandre Sanches

Nos anos 90, Marcelo Yuka liderou O Rappa, uma das novas bandas brasileiras que mais souberam conciliar prestígio e rentabilidade. Em 2001, ele ficou paraplégico após ser baleado numa tentativa de assalto no Rio; o episódio o desestruturou, precipitou sua saída do grupo, tornou incerto o prosseguimento artístico do mais hábil e militante letrista da geração 90.

Em termos simbólicos, algo parecido acontecia com a própria indústria fonográfica, que na virada do século vivia uma colossal (e ainda não superada) crise, a bordo de pirataria, avanço da internet, inabilidade administrativa, mudança global de modelos tecnológicos e políticos.

Mesmo à beirada de ser sugado pelas crises, Yuka formou uma nova banda, o F.Ur.T.O. (ou Frente Urbana de Trabalhos Organizados), começou a trabalhar de modo independente num possível futuro disco e, algum tempo depois, foi chamado pelo executivo Alexandre Schiavo à diretoria da Sony Music, para discutir um possível novo contrato.

Yuka relembra a cena, usando o verbo no presente: "Chego lá e falo que não vamos fazer a maioria dos programas de tevê, que o disco não tem a priori apelação radiofônica, que o texto é meio atípico para o rádio, que a banda nem está pronta, que precisamos de um estúdio... Era como dizer 'não me contrata'. Mas o cara quis assim mesmo".

Schiavo, hoje presidente da Sony & BMG (resultante da fusão com a BMG, também em contexto de retração e crise da indústria), confirma os termos usados por Yuka: "Ele realmente falou isso tudo, mas aceitei o risco de fazer um trabalho diferente e paciente. Afinal, temos que ousar, experimentar novos canais e alternativas".

Pois o disco do F.Ur.T.O., Sangueaudiência, sai agora ostentando um afiado e fortíssimo discurso musical e ideológico, como demonstram a crítica direta à alta sociedade acuada de Ego City ou a reprodução de trechos de discurso de João Pedro Stédile, líder do Movimento dos Sem-Terra, que encerra o CD.

Mais até que a vontade de potência e a sobrevivência artística de Yuka, o conteúdo impactante de Sangueaudiência simboliza com justeza dramática um sistema fonográfico que está todo em xeque – e que tenta se mover dentro da crise, como atesta o ensaio de discurso ousado do presidente da multinacional e como pressionam as idéias de Yuka, mais indignadas (ou "panfletárias", de acordo com certos narizes torcidos) que nunca.

"É mais fácil me tachar de panfletário. Talvez esse posicionamento incomode até mesmo quem produz arte. Um artista é um ativista cultural, é um cidadão amplificado, ampliado. Por que não fazer? Quando falamos do MST, estamos deixando de fazer um nicho de shows que talvez seja o que hoje mais banque os músicos do Brasil, que é o das feiras agropecuárias", Yuka equaciona escolhas ideológicas e riscos.

O grau de autonomia de que ele desfruta na gravadora é, no entanto, fruto de um processo que passa pela crise musical. Seu grupo investiu dinheiro próprio na construção de um estúdio e na produção, a princípio independente, do CD.

Parecem se distanciar os tempos de contratos cheios de regalias entre gravadoras poderosas e artistas com potencial lucrativo, e Yuka descreve a travessia: "É um momento de passagem. Mudança dá medo no princípio, mas ela vai se alojando. E é favorável, muito democrática, a mudança que o mercado cultural está sofrendo".

O que ele relata remete a um contexto maior de transformações na indústria musical local – e que é vivido de forma especialmente intensa por sua geração, que despontou nos anos 90, num mercado ainda aparentemente pujante, e recebeu de frente a atual crise de modelos.

Caso curioso é o da inventiva banda Pato Fu, que também chega à praça com novo disco, Toda Cura para Todo Mal, afiliado à mesma gravadora do F.Ur.T.O. Em 2001, o Pato Fu se despedira da gravadora em que se firmou (BMG), e amargou um contrato abortado com a EMI, que então recebia em sua presidência Marcos Maynard, executivo notório por intervir nos trabalhos dos artistas que controla com idéias próprias – e, às vezes, alienígenas às obras dos artistas.

Após idas e vindas, o grupo acabou optando pela produção independente do que viria a ser o divertido Toda Cura para Todo Mal. Fundaram um selo próprio (Rotomusic) e acabaram negociando um contrato de licenciamento, distribuição e divulgação pela Sony & BMG.

Comemorando a liberdade artística que o novo modelo propicia, o líder e compositor John Ulhoa também expõe os percalços dos novos tempos: "Ficamos três anos bem fora das rádios e tevês, temos tido menos shows. A gente tem menos dinheiro, isso é evidente, mas ganhamos o suficiente, e temos o privilégio de ter construído uma estrutura".

A cantora de frente do grupo, Fernanda Takai, descreve o percurso e o que ajudou a permitir a sobrevivência do Pato Fu: "Se não tivéssemos construído nossos aparatos próprios ao longo dos anos, a gente hoje estaria meio perdido. Sabíamos que tínhamos que ter editora, montar estúdio e tal, só não sabíamos que estava tão próximo".

Caso parecido é o de Zélia Duncan, que mantém contrato com a Universal (pelo qual lançará em julho Pré-Pós-Tudo), mas fundou um selo próprio para veicular trabalhos que não se ajustassem aos propósitos comerciais da gravadora – como foi caso do corajoso Eu Me Transformo em Outras (2004), que vendeu cerca de 30 mil cópias.

"Na ocasião, queriam que eu fizesse um disco ao vivo, e eu queria fazer o projeto do meu coração. Propus fazer à parte, não queria um embate para impor meu contrato. Eles toparam. A obsessão de abrir novas frentes tem me dado frutos, já não me assusta tanto a idéia de ficar sem gravadora", diz Zélia.

Mesmo quem permanece exclusivamente sob as asas da indústria demonstra a necessidade de reinvenção em anos recentes. Nesse caso se encontra o grupo Skank, que se mantém na mesma Sony desde 1994, já atingiu vendagens superiores a 1 milhão de cópias e hoje comemora os 120 mil exemplares consumidos da coletânea Radiola.

Diz o líder Samuel Rosa: "A gente continua interessante para a gravadora, que nos dá o básico para gravar, lançar divulgar. Gozamos de certo conforto, de autonomia. Talvez ter dito certos 'nãos' tenha nos salvado, garantido certa sobrevivência ao Skank".

Diante de uma proposta de rever sua própria (e jovem) obra num Acústico MTV ("nas internas, a gente chama esses projetos de ponte de safena", afirma Samuel), a banda peitou o "não" – e iniciou um processo de reinvenção com os consistentes Maquinarama e Cosmotron (esse, com cerca de 200 mil cópias vendidas, foi um dos melhores resultados comerciais da Sony em 2003).

A transformação tem sido quase regra para a geração 90, com variações de caso para caso. A Nação Zumbi, por exemplo, se aninhou numa independente de porte, a Trama, como conta o músico Lúcio Maia: "A Sony tinha, não sei se ainda tem, um pensamento majestoso, com muito dinheiro para coisas que não eram tão importantes, como quartos de hotel. Rolavam alguns cabrestos, imposições. A Trama nasceu na antítese desse raciocínio, tem outro conceito de trabalho".

E há quem tenha partido para a independência total, como Chico César, que se renova com um projeto totalmente desvinculado de gravadoras. Pelo selo próprio Chita, lançou Compacto Simples, com apenas duas músicas e preço reduzido. A autonomia rendeu o discurso ácido e irônico de Odeio Rodeio, composta com Rita Lee: "Odeio rodeio/ e sinto um certo nojo/ quando um sertanejo/ começa a tocar/ eu sei que é preconceito/ mas ninguém é perfeito/ me deixem desabafar".

Cada um a seu modo, todos parecem atestar certa razão do discurso "panfletário" de Yuka, que assim encerra a questão: "Estamos requerendo nossos direitos, com um poder crítico que não tínhamos. Tenho 39 anos, não nasci com liberdade de expressão. Isso é feliz, é algo para comemorar".

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bônus: marcelo yuka fala

os pobres & os ricos
"o único colégio particular que tive foi o pré-vestibular. meu pai pagou, eu fui estudar em colégio de bacana. cheguei lá e entrei em completa depressão, todos tinham ido à disneylândia, todos pegavam a praia no mesmo lugar, todos se vestiam de uma maneira diferente de mim, tinham gírias diferentes. bessa época é que digo que aprendi a ler mesmo. aprendi a ler com raiva."

a favela & a mídia
"a sociedade gosta de violência. existem várias iniciativas populares positivas nessas comunidades estereotipadas como violentas, mas a mídia e sociedade em geral só querem ver e só estão aflitas com os absurdos. um vai calando o outro, em uma semana já se esqueceu da chacina de queimados, já tem outro massacre. só essas comunidades sentem o peso social disso. se uma pessoa branca, bem nascida, é vítima de um crime, isso tem mais repercussão que as mortes de centenas de milhares de pobres que são vítimas da violência há muito tempo. aí não tem pressão social. é moroso, fica como se fosse uma coisa da cultura popular brasileira, e não é. isso é uma coisa imposta."

a rocinha & a daslu
(obs.: a entrevista aconteceu pouco depois da inauguração prestigiada pelos alckmin)
"na rocinha há muito mais gente fazendo trabalho social que gente envolvida com crime. só que lá mora uma população de 250 mil pessoas estereotipadas como violentas. e o histórico de violência e criminalidade na daslu, se for fazer a relação per capita com a rocinha? uma pesquisa apontou a barra da tijuca como campeã nacional de inadimplência. quer dizer, todos aqueles ricos ali têm o hábito de não pagar o que devem. Vai ver se o povo pobre tem chance de não pagar. não deveu, já era."

o destino & a daslu & o destino da daslu
"eles estão levantando um totem de estupidez que acho que a história e até mesmo a opinião pública já está sabendo ver. é a elite da elite, a prepotência da prepotência, a burrice decadente da elite."

o preto & o branco
"não há estatística nem órgão regulatório de propaganda que mostre o lado negativo que essas propagandas de carro popular por 'apenas' R$ 22 mil podem causar. é como dizemos no disco, 'me ensinaram o que querer, mas não disseram como ter'. nos anos 70, as novelas narravam muito o pobre, pretinho, como aquele cara que era convicto disso. 'é, nós vivemos aqui, somos pobres, população da cozinha, entramos pela porta dos fundos.' agora, não, bicho. agora é o seguinte: 'por que você tem uma mulher loura e eu não tenho?', 'por que você está num carrão importado e eu não estou?'. agora é 'bicho, eu vou buscar isso de qualquer maneira', o que é até normal."

arte & mercado, o duradouro & o efêmero
"este é um momento de passagem. mudança dá medo no princípio, mas ela vai se alojando. e é favorável, muito democrática, a mudança que o mercado cultural está sofrendo. antes de mais nada sou cidadão, e para o cidadão tudo isso é muito bom. na passagem dá muita insegurança, mas eu sou otimista quanto ao resultado dessa passagem."

o respeito & o glamour
"não sou ávido pela indústria cultural, de business, por tudo que vem junto com o fato de ser músico e começar a ter respeito. nesse sentido não sou muito de convívio, não. para muitos músicos, a finalidade maior é cair nessa banalização da celebridade, do glamour, do que está em volta. acho que tem que sempre se confiar na honestidade: será que estou fazendo uma coisa honesta? isso tem que estar sempre em questão. minha carreira pessoal foi feita mais pelas vezes que eu disse não que pelas vezes que eu disse sim."

os peixinhos & os tubarões
"em determinada época, o rappa foi enamorado por uma certa companhia de discos. o cara aparece ali, oferece um monte de coisa e eu pergunto: 'o senhor está oferecendo tanto para nós, o que quer em troca?'. da maneira como ele respondeu eu já disse que esse dinheiro não me cabia, não. ele falou que gostava de participar do repertório, eu, 'opa, não é por aí'. graças a deus, na época, a banda foi coesa a essa minha decisão. eu não toparia, e acho que hoje trabalho com pessoas que têm o mesmo senso crítico. a gente faz honesto, se der deu. se não der, fazer o quê?"

doçura & amargura
"eu estou amargo, sim. não sou uma pessoa feliz na cadeira de rodas, não sou. mas a possibilidade de trabalhar me fez ter planos de novo. os médicos todos acreditam na perspectiva de eu voltar a andar, só quem não acredita sou eu. o trabalho psicológico disso já está durando..."

a mulher & o homem
"meu sonho é produzir um disco de elza soares. ela tem autoridade. mulher negra, favelada, vitoriosa, com uma história de vida que daria um filme hollywoodiano épico." (o vocalista maurício pacheco, colega de yuka no f.ur.t.o. e ex-colega de elza na gravador independente maianga, atalha para contar, sobre o disco que veio a se chamar "do cóccix até o pescoço": "ela queria que o título fosse 'foda-se'")

a artista & o artista
(obs.: marisa monte, em geral mais adocicada, canta com o f.ur.t.o. numa das faixas de seu disco - justamente a mais politizada e contundente delas todas)
"marisa monte é legal pra caralho. ela faz uma torta de banana que é musical, faz crochê. você ia imaginar ela em casa no sábado à noite fazendo crochê? meu sonho é desenvolver uma carreira tipo a dela."

domingo, julho 17, 2005

querer o meu não é roubar o seu

só para encerrar este rápido ciclo raulseixista aqui no blog, proponho que a gente cruze as linhas paralelas de dois (trechos de) textos que hoje estão rodeando a minha cabeça feito mosquitos. um é do filósofo político renato janine ribeiro, e foi publicado hoje (17 de julho de 2005) no "mais!", sob o título "o chão ensaboado do príncipe". outro é dos compositores e músicos populares raul seixas, cláudio roberto e marcelo motta, e veio a público em 1975, no disco "novo aeon" (é o texto da faixa-título do álbum).

repara só como o brega & o chique estavam/estão/estarão dizendo coisas parecidas e complementares umas às outras. fico feliz de, no meio de 2005, concordar tanto com um quanto com o outro, com entusiasmo idêntico-complementar. (ah, e agradeço ao walter garcia, que no debate de ontem no sesc ipiranga ajudou a esclarecer pontos que também são parentes dos que vêm aqui embaixo.) os grifos & itálicos são todos meus, os acertos & erros são todos nossos.

1
"(...) e no entanto, em nosso país, o discurso público, da mídia e das pessoas privadas, é o do moralismo - de um moralismo que nem mesmo seus porta-vozes praticam. ganharíamos com mais sinceridade. porque um traço fascinante e apavorante de nosso tempo é que estamos todos no mesmo barco. (...) costumo dizer que, no trânsito como na política, quando os brasileiros não sabem onde ir, viram à direita. a ética convencional é também uma forma nossa de reação automatizada. quando nos sentimos em risco, bradamos nossa dignidade ética. (...) mas é uma ética reativa, defensiva, não afirmativa - uma ética do medo, não da construção do futuro. (...) a ética não está pronta. está por se construir e talvez não se oponha mais tanto quanto antes à política."

2
"s sol da noite agora está nascendo. alguma coisa está acontecendo. não dá no rádio nem está nas bancas de jornais. em cada dia ou em qualquer lugar, um larga a fábrica, o outro sai do lar. e até as mulheres, dita escravas, já não querem servir mais. ao som da flauta da mãe serpente, no pára-inferno de adão na gente, dança um bebê, uma dança bem diferente. o vento voa e varre as velhas ruas. capim silvestre racha as pedras nuas. encobre asfaltos que guardavam histórias terríveis. já não há mais culpado nem inocente, cada pessoa ou coisa é diferente. já que assim, baseado em que você pune quem não é você?. querer o meu não é roubar o seu, pois o que eu quero é só função de eu. sociedade alternativa, sociedade novo aeon, é um sapato em cada pé, é direito de ser ateu ou de ter fé, ter prato entupido de comida que cê mais gosta, é ser carregado ou carregar gente nas costas, direito de ter riso de prazer e até direito de deixar jesus sofrer."

ié-yeah! o roqueiro cafona é o filósofo chiquérrimo... & vices... & versas...

sexta-feira, julho 15, 2005

eu prefiro ser

uia. quase nem consigo contar/convidar aqui, mas o sesc ipiranga promove amanhã (sábado 16), as 16h, um debate sobre raul seixas, do qual vou participar. (a ficha técnica: o sesc ipiranga fica à r. bom pastor, 822, do ladinho de onde dom pedro i parou para fazer cocô e para decretar a independência que continuamos lutando até hoje para conquistar; o debate é de grátis - a independência não é, evidentemente...)

sei que muita gente, quando ouve falar "raul seixas", pensa imediatamente em chatice, cafonice, messianismo etc. mas, malucos e malucas, eu me arrisco a dizer que no fundo do peito não é nada daquilo.

seguindo alguns ensinamentos (alô, paulo césar de araújo!) e algumas intuições, há uns três anos decidi dedicar um capítulo ao raul no meu livro "como dois e dois são cinco" (do qual roberto carlos, o anti-raul, é o protagonista). pois mergulhar de volta na obra do cara me trouxe uma série de descobertas sensacionais, surpreendentes, emocionantes.

eu odiei raul seixas, quando era criança. eu tomei afeto por raul seixas, quando era adolescente e o ademar, um amigo malucão de minha irmã mais velha também malucona, me induziu a ficar horas e horas e horas passando seus discos de velhos vinis para velhas fitas cassete (até hoje nem sei para quê - devia ser mesmo para que eu, molecote, ouvisse os roques & toques & foques de raul). desgostei de raul quando era pós-adolescente e me irritava com a "breguice" e o fanatismo que o rodeava. pois acho que hoje adoro raul seixas, para sempre. porque graças ao meu livro reaprendi, com ele, que desde quando era pequeno eu já aprendia, com ele, que havia gente estranha por debaixo do mundo, trabalhando "nos fundo", que não era peixe, mas não morria afogado. e era do caralho. o cara trabalhava duro para fazer esse brasilzão lindo que existe hoje - mesmo que isso lhe custasse sua própria carne.

hoje tenho o orgulho de dizer que sonho continuar sendo para sempre um discípulo de raul seixas, e que sinto, olhando o brasil, que ele é hoje mais vivo e atual do que jamais foi. tentei refletir um pouquinho sobre esse tema num texto que o sesc me pediu, para acompanhar a programação raulseixista de agora (quando ele completaria 60 anos, se não tivesse desistido da lida cedo demais). vai abaixo o tal texto, que, espero, seja equivalente a um convite para quem quiser passar uma tarde de sábado com raulzito & seus panteras (negras & brancas & multicores)...

O REDESCOBRIMENTO DO RAUL
Pedro Alexandre Sanches

É evidente que o Brasil jamais deixou de ouvir Raul Seixas (1945-89), e isso reverbera em cada esquina, em cada rua e em cada roda de violão pelo país afora. Mesmo assim, é preciso que se diga: está na hora de o Brasil aprender a reouvir Raul Seixas. Por muitos anos, a pecha de roqueiro acafonado e, de quebra, o suposto fanatismo de uma legião fidelíssima de fãs mantiveram Raul lamentavelmente afastado do reconhecimento da importância que poderia e deveria ser atribuída à sua obra.

Agora que o país anda redescobrindo, ainda temeroso, a força dos matizes ditos "cafonas" de sua música, as camadas ditas "cultas" e "intelectualizadas" de seu povo já demoram a se despir de seus preconceitos tolos e, abre-te sésamo!, compreender que o que Raul tinha a dizer era muito mais forte e profundo do que supunha nossa vã filosofia.

Por teimosia ou cegueira, são alguns dos brasileiros tidos como mais
"inteligentes" que até agora continuam desperdiçando todo um tesouro que o povão jamais deixou de louvar e reconhecer: aquele que se disfarçava atrás de tons ora messiânicos, ora românticos, ora de desbragado dramalhão era um dos mais subversivos artistas que já passaram por nossa música popular. Tentando (e conseguindo) furar o monolito da ditadura e flechar o coração da multidão (mais que das classes "esnobes"), um Raul 100% nordestino, 100% roqueiro dirigiu ao seu Brasil brasileiro um discurso de tons radicalmente rebeldes, libertários, provocativos, utópicos. Não consertou o mundo, mas deixou pavimentado um caminho que hoje um Brasil complexo e conturbado trilha com ares de surpresa e desassossego.

Pois aqueles a quem Raul dirigia o fervor de suas convicções vão devagarzinho fazendo ouvir suas vozes: são rappers, funkeiros e cantores "bregas"; moram na favela, no sertão nordestino e no pampa gaúcho; são Mano Brown, Deize Tigrona e as três cantadeiras cegas da Paraíba (Maroca, Poroca e Indaiá); integram o Planet Hemp, a Nação Zumbi e os acampamentos de sem-terra; somos você, eu e todos aqueles que intuímos, enfim, que "não dá no rádio nem nas bancas de jornais", mas "alguma coisa está acontecendo" – é a vontade popular ecoando espontaneamente, sem intermediários ou atravessadores, num novo e ainda desconhecido Brasil, onde tudo é perigoso, tudo é divino, tudo é maravilhoso, tudo é como Raul Seixas sempre sonhou.

(Este texto utiliza termos como "culto" e "cafona" entre aspas porque entende, como o Sesc Ipiranga já entendeu, que não há mais sentido em distinguir esses falsos pólos opostos – num Brasil complexo onde tudo se mistura, o "culto" é o "cafona", e vice-versa. E Raul Seixas já sabia disso, há dez mil anos atrás.)

quarta-feira, julho 13, 2005

estado de choque, gata!

dia importante, o de hoje, não?
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o primeiro choque, quase surreal de tão improvável, veio logo cedo: dona eliana tranchesi, da daslu, foi presa sob suspeita de envolvimento em crimes de sonegação fiscal, contrabando, formação de quadrilha, falsificação de documentos... se a excelentíssima cidadã for inocente e este for mais um episódio da voga denuncista que varre a república, péssimo para todos nós. se seu caso for à mídia com o furor com que todos os outros têm ido, dona tranchesi não será a primeira condenada por suspeição, e não por prova concreta - e isso é (mais) uma vergonha para as instituições brasileiras, como têm sido, de resto, os cheques em branco recentemente oferecidos a (e/ou roubados de) bob jeff, zé dirceu, genoino, gushiken, delúbio, marcos valério, os petistas da mala, os pefelistas da mala, a igreja universal do reino de deus...
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se a moralidade pífia da daslu vem à tona, precisamos começar a pensar também em alguns dos gerentes da daslu, como donata meirelles (mulher do publicitário nizan guanaes, orquestrador das campanhas eleitorais do psddb) ou sofia alckmin (filha do governador tucano de são paulo, o geraldo, que pessoalmente conferiu peso político à faustosa inauguração do novo castelo nababesco da daslu). os atuais incorporadores da moralidade imaculada em meio ao lodaçal começarão a entrar na dança dramática do denuncismo? é péssimo para todos nós se acontecer, mas ao menos é um pouquinho mais democrático do que vinha sendo até aqui.
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afinal, os ricos desde criancinha também roubam? ou não?
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e blefar? os ricos também blefam? elio gaspari parece achar que sim, como transparece seu artigo "há um fino golpe no ar", publicado hoje, n'"o globo" e na "folha". ele é o primeiro jornalista da "grande mídia" que vemos afirmar com todas as letras que há, sim, vieses golpistas no brasil de 2005 - golpistas por parte das famigeradas elites, sejamos claros. o gaspari começou escrevendo o seguinte, antes mesmo de acontecer a blitz da daslu (a menos que toda coincidência seja mera semelhança): "é golpista a articulação de uma renúncia de lula à reeleição. embrulhada numa sacola da daslu (a bolsa família dos tucanos), ela funcionaria assim" [etc. etc., lê tudo lá se não tiver preguiça]. este 13 de julho foi mesmo um dia chocante.
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mais pequenas importanciazinhas, em meio à balbúrdia (hoje se falou até em "bestas-feras", credo). temos dois novos ministros, e os dois são caras interessantíssimos. fernando haddad é o novo gestor da educação brasileira, por indicação de seu antecessor, tarso genro - o ministério da educação vinha sendo um centro de excelência deste governo atual (criando por exemplo bolsas para alunos pobres, o que arrepia muito sujeito que adora fazer pose de bonzinho por aí), tudo indica que continuará sendo. sei menos sobre o ministério da ciência e tecnologia, mas há fartas indicações de que o mesmo se pode dizer do físico sérgio rezende, novo titular da pasta. são, ambos, caras técnicos, especialistas, conhecedores, não-fisiológicos. os três nomes peemedebistas seguem sendo as ilhas incômodas de fisiologia e barganha política na reforma ministerial. mas, com cientista gerindo a ciência e educador gerindo a educação (às vezes é bom quando nada se mistura), acho que a aritmética não vai mal para quem quer o bem do brasil.
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sei lá o que significa e que peso tem a pesquisa eleitoral que indica que a popularidade de lula não só não caiu, como também subiu após a revoada das águias, das pombas de guerra e dos abutres. mas é impressionante como a "classe pensante", imprensa à frente, se desestrutura e se reestrutura diante de um treco desses. é incrível como o tom agressivo diminuiu repentinamente nos jornais. na "folha" de hoje, por exemplo, não havia nenhuma, nenhuma, nenhuminha carta de leitor xingando o lula, após uma série interminável de quase 100% de xingos e ofensas - o que houve, os (e)leitores se calaram subitamente, após o resultado da pesquisa?
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não, nada disso dá conta da gente entender o que governa tamanhos vaivéns. eu não consigo entender. será possível que o medo da soberania do povo "acalme" os ânimos exaltados da mídia?
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falando no "painel do leitor" me chamou atenção a carta da superleitora odete miranda (que também é médica cardiologista, professora e integrante do comitê de ética em experimentação animal da faculdade de medicina do abc), em reação a um editorial produzido pela "folha". olha só o que é que ela diz:
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"a natureza é cruel, e nós, humanos, damos continuidade e até estimulamos a perpetuação dessa crueldade. escreveu este jornal em editorial em 11/7: 'a natureza é cruel. essa é uma lei universal (....) reconhecer esse fato deveria ser um pré-requisito para os defensores de direitos dos animais'. essa posição demonstra que a folha compactua com as barbáries da sociedade em que vivemos e está inferindo que nada há a fazer. nega a educação, o conhecimento, a ciência e toda a evolução benéfica alcançada até o momento. algumas importantes informações: universidades como johns hopkins, mayo medical school, harvard e outras centenas (www.pcrm.org) não se utilizam de animais para ensinar fisiologia, farmacologia, bioquímica, técnica cirúrgica e psicologia. houve a substituição por manequins, simuladores, vídeos interativos, cadáveres de animais quimicamente preservados e outras técnicas. conforme pesquisa realizada por kottow relatada no livro 'a formação ética dos médicos - saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos', de sérgio rego, 'durante os estudos de medicina, se produz uma progressiva erosão da atitude humanista e espontaneamente crítica, sendo substituídas por um profissionalismo mais respeitoso de normas e códigos'. diz ainda o autor que o cinismo costuma ser identificado como um dos efeitos da educação médica, manifestando-se como uma 'preocupação desinteressada pelo paciente'. até quando vamos acreditar que, para ter evolução na medicina, é preciso matar e torturar seres diferentes de nós?".
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falando com serena sobriedade sobre ética, educação, humanismo e tolerância mútua entre "seres diferentes", odete miranda desnudou a fragilidade de uma defesa anacrônica e arcaica travestida de aparente autoridade e conhecimento de causa. denunciou uma ignorânica e um abuso, sem um pingo de agressividade.
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acreditando que é nos detalhes tão pequenos que a gente deixa escapar quais são nossas preocupações centrais (é só ver lula se embananando com palavras e conceitos com o suposto objetivo de defender democracia para o haiti), proponho uma brincadeira: e se transpusermos a preocupação com a vivissecção de animais para a carnificina política que hoje sangra o brasil? as mesmas palavras anti-intolerância da professora não continuariam válidas? a natureza dos homens (que são animais) é cruel e (auto)destrutiva? é preciso matar e torturar seres diferentes de nós (mas tão humanos quanto a gente) para que continuemos acreditando que estamos vivos?
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enquanto cada um cuida da própria pele, nos vêm de volta à imaginação as peles caríssimas da daslu, sonegadas, será?, das raposas, dos ursos e dos jacarés... é, hoje foi, mesmo, um dia importante. estado de choque, gata!

segunda-feira, julho 11, 2005

vida cigana: iguais e desiguais



minha mãe, que é uma mulher simples de 71 anos, já entendeu todo o riscado: "você está fazendo matérias muito diferentes desde que saiu da 'folha', seu trabalho mudou muito, não é?". é, mãe, isso mesmo, yeah, yeah! mas é que mãe é mesmo assim, mãe nunca estranha e sempre se adapta rapidamente a qualquer coisa (pai também, mas pai fica mais quietão, escutando, observando). às vezes noto uma perplexidade maior entre amigos, conhecidos, colegas, desconhecidos leitores de jornal. o susto mais comum é meio assim "ah, mas você não vai mais só escrever sobre música?" (alô, mariana!), "não vai mais escrever sobre música?". eu respondo: "vou, vou, vou".

mas não só, e é a intuição que anda dando todas as cartas (alô, cigana!) no meu tarô. mas, amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos, isso é mera ilusão, viver feliz (num "paraíso" comodista)... porque eu nunca escrevi só sobre música, né? aparentemente, dentro do meu armarinho só cabia música, mas sempre teve tanta coisa mais, né?... no mais, enquanto eu escrevia sobre música a música escrevia sobre mim, dentro de mim. e sinto que hoje em dia ela, a música (com lindas exceções), está assustadiça, medrosa, amedrontada, semi-silenciosa. diante da perplexidade, cala-se, parece não querer se arriscar...

para lá da música, quero aprender a escrever sobre as coisas, para que as coisas possam escrever sobre mim, dentro de mim... e, conforme isso for acontecendo, a música vai ficar, e vai voltar ainda mais forte, mais vibrante, mais colorida (alô, danny boyle!) do que nunca.

mas, enquanto dona loba não vem, a música continua bela e formosa, dentro das coisas, duvida? então pega a reportagem sobre os ciganos, da carta capital 350, que reproduzo abaixo (furando a fila), e repara só como ela é cheia de música, dá até para ouvir os violinos.

aumentando um ponto, conto o conto dos ciganos brasileiros, recém-descobertos por mim, e tão-tão-tão-tão fascinantes. dos mais vistosos (e maltratados) dos ciganos, sabemos que vivem sem eira nem beira, de parada em parada, de porto em porto, de palco em palco, de expulsão em expulsão, de tombo em queda. em turnê pelos campos da vida, eles sabem, como milton nascimento, que todo cigano tem de ir onde o povo está - porque o povo É cigano, o cigano É o povo.

é então que eu te proponho. você, que porventura esteja saudoso dos entreveros de pas com a mpb, deixa o rei congo no congado, abre as cortinas do passado-presente-futuro. pense bem, pense outra vez, tente outra vez, pensa em mim, pense menos, pense nas mulheres mudas, telepáticas. olha só que linda história de ciganagem, de nomadismo, de gitas, zíngaras e nuvens ciganas assoma sobre seus ombros, sob seus ouvidos.

pense, com aa lma cigana, na tez sofrida, nômade e maltratada de sidney magal, perla, roberto carlos. mas não só nas deles, pense também nas de ney matogrosso, raul seixas, elis regina, joão gilberto, caetano veloso, maria bethânia, gal costa, tom jobim, rita lee, alberto marsicano, sá & rodrix & guarabyra, milton, os borges, o clube da esquina todinho, bosco & blanc, arnaldo baptista, renato teixeira, rolando boldrin, inezita barroso, itamar assumpção, cássia eller, clara nunes, jorge mautner, fafá de belém, zeca baleiro, rita ribeiro, chico césar, lenine, maroca, poroca, indaiá, hermeto pascoal, elba ramalho, zé ramalho, egberto gismonti, marcos valle, jorge ben e sua mãe lenheira tuareg, wanderléa, erasmo carlos, pense em quem mais você puder. ou quiser hão de ser todos ciganos nômades brasileiros auto-exilados desapegados do cio da terra, de fato ou de direito, de cama (uma esteira) ou de fama. ciganos como juscelino kubitschek, ciganos como a política brasileira, ciganos como os jogadores de futebol, ciganos como a mpb, ciganos como o brasil.

quem aí não tiver a alma cigana atire a primeira gotícula de ilusão (e inicie a "guerra dos mundos").

VIDA CIGANA
Herdeiros de uma milenar cultura nômade, eles lutam contra o preconceito e pela cidadania

Por Pedro Alexandre Sanches
Fotos de Olga Vlahou

"Somos a minoria das minorias, o elo mais fraco da corrente", afirmava pelos corredores de uma conferência sobre igualdade racial, na semana passada, em Brasília, o cigano curitibano Cláudio Domingos Iovanovitchi, de 48 anos.

É fato: a delegação cigana só conseguiu levar a Brasília 25 representantes, que se diluíram numa população flutuante de cerca de 6 mil participantes. Dentro de uma forte maioria negra e mulata, distribuíam-se minorias de brasileiros descendentes de indígenas, caboclos, árabes, judeus, palestinos e... ciganos.

A 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, note-se, era ocasião especial. A diluição dos ciganos se agrava se for considerada a população brasileira como um todo. Você, por exemplo, já viu um cigano em sua cidade, em seu bairro, em sua rua? Pode não ter visto, mas, segundo estimativas variáveis e pouco precisas, a população cigana estaria hoje entre 600 mil e 1 milhão de pessoas dispersas por todo o território nacional.

Seja como for, algo de novo acontecia sob o céu azul de Brasília (e do Brasil). Pode ser fato a condição de minoria entre minorias ("aqui na conferência, somos nós os negros", cravou o espanhol abrasileirado Gagu Emanuel Moreno). Mas a presença da delegação cigana numa conferência promovida pelo governo Lula, via Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), já era um sinal de que a população cigana do Brasil pode estar vivendo um processo inédito de descoberta e auto-afirmação.

Outro sinal da saída incipiente do armário: principal porta-voz cigano na conferência, Cláudio Iovanovitchi é, além de integrante da Seppir, o presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci), que há pouco começou a se articular no Paraná e já tem sedes em São Paulo e no Rio Grande do Sul.

Politicamente, ele encara o apartheid cigano como uma modalidade de preconceito racial: "Discriminação racial não acaba por lei ou decreto, só por geração de conhecimento. É preciso entender o outro, se colocar no lugar do outro".

A epopéia dos ciganos costuma ser pouco abordada publicamente pela sociedade. Em termos históricos, é nebulosa e em geral mal documentada, em parte porque seus dialetos não têm registro escrito, o que para alguns ciganos significa, paradoxalmente, trunfo de preservação de uma identidade fechada e exclusiva. "O dialeto é nossa arma. Não existe a língua escrita", diz o delegado ambiental e estudante de direito Farde Estephano Vichil, 38 anos, cigano rom, de ascendência iugoslava, que preside a Apreci de São Paulo.

A natureza nômade dos ditos ciganos dataria de cerca de 4 mil anos atrás, a partir da expulsão e diáspora de um povo originário de territórios localizados onde hoje ficam a Índia e o Paquistão.

Estigmatizados desde então por alcunhas xomo "ladrões", "desonestos", "trapaceiros", "imorais" etc., disseminaram-se de expulsão em expulsão por Ásia, Europa e, afinal, o chamado Novo Mundo, pelo qual espalharam também o fascínio externo por valores como exotismo, musicalidade, dons artísticos, sensualidade etc.

No Brasil, as primeiras levas teriam aportado já em 1574, quando ciganos ibéricos ditos calons, expulsos de Portugal e Espanha, passaram a ser desterrados para a então colônia portuguesa. Iovanovitchi persegue as pistas de sua própria cultura: "Aqui, o cigano misturou-se com o índio e o negro. São as três etnias que têm mais dificuldades de inclusão social no País. Não fizeram quilombos porque não eram escravos, mas participaram fazendo escambo de quilombo em quilombo. Mais do que negros, os quilombos reuniam 'bruxas', hereges, ciganos, judeus. Nós girávamos, éramos as boas notícias que chegavam ao quilombo".

Ele não se furta a uma pitada de ironia: "Fazíamos o papel que hoje é dos Correios". Escândalos políticos do século XXI à parte, sublinha o orgulho: "Nós fizemos o Brasil, nossa contribuição é inegável".

Até hoje, a maioria dos calons brasileiros vive em acampamentos precários, numa versão menos visível de Movimento Sem Terra. "O sem-terra vive nômade embaixo de tendas, mas sonha conquistar a terra. O cigano, não, ele está feliz embaixo da tenda, sem querer terra", diz Iovanovitchi. Apesar de ter um ônibus-palco em que encena com negros e indígenas sua visão sobre a história do Brasil, ele é um cigano que estabeleceu residência fixa em Curitiba – em casa, não em barraca.

É que Iovanovitchi pertence a outro subgrupo, chamado rom, de ciganos que migraram de diversos países do Leste Europeu, sobretudo no período entreguerras. Em outro flagrante da presença semi-invisível dos ciganos no mundo ocidental, é pouco citado o fato de que o nazismo promoveu não só o holocausto judeu, mas também o extermínio de ciganos (teriam morrido de 250 mil a 500 mil, segundo estimativas também imprecisas).

Estigmatizados por sociedades que encaram com desconfiança sua personalidade nômade, os ciganos reproduzem internamente certos modelos de segregação e discriminação. Em geral, os calons seguem pobres e nômades, enquanto os rom tendem a fixar residência e progredir socialmente, quase sempre ocultos atrás da omissão da identidade de origem.

Ciganos rom como Iovanovitchi e Vichil têm sido os primeiros a quebrar o muro de invisibilidade, preconceito e segregação persistente no Brasil. "Estamos atuando em prol dos ciganos nômades, que vivem em miséria enorme. Os fixos estão aculturados, embora nunca deixem de ser ciganos", explica Iovanovitchi.

Há personalidades mais atípicas entre os mais militantes, como a jornalista formada em letras e pedagogia Márcia Yáskara Guelpa, 64 anos, que, apesar da origem calon, vive fixa num bairro de classe média alta de São Paulo. Indiana naturalizada brasileira, é também muçulmana e, por convicção, "feminista e ateísta".

Márcia resume três reivindicações em torno das quais a Apreci pretende a princípio se assentar, e que condensam alguns dos problemas mais profundos dos ciganos: cidadania, educação, endereço.

Devido a um misto explosivo entre marginalização por parte da sociedade e acomodação interna devida ao nomadismo e à vida precária, muitos ciganos nem sequer providenciam registro civil a suas crianças, que ficam sem acesso à educação básica, atendimento hospitalar etc.

Outro militante atípico é Carlos Kalon, nômade que correu o Brasil e a América Latina como acrobata de circo, obteve alguma ascensão social e hoje vive numa casa na periferia do município paulista de Franco da Rocha. "Sobrevivo só por ser cigano: canto, danço, vivo da música e da arte cigana", diz ele. "Parei aqui há dois anos, tenho de ficar porque tenho um filho na tevê (o menino Igor, que participa do programa de Raul Gil) e sou funcionário público (da prefeitura tucana da cidade). Aos 53 anos, pela primeira vez consegui um emprego sem preconceito."

Ele luta pela população calon de sua cidade, prestando cuidado e assistência a acampamentos como um de cinco barracas, localizado na divisa de Franco da Rocha com Francisco Morato, que foi visitado por CartaCapital. "Batalhamos para que os ciganos não percam sua origem", justifica-se. Márcia Yáskara tem atuação parecida, salvaguardando um acampamento no município de Roselândia.

"O que nós reivindicamos é essencialmente cidadania. Queremos que a sociedade saiba que somos diferentes, mas que nossas diferenças não sejam entendidas como desigualdades", diz Márcia, que faz uma ponte improvável ao refletir sobre o porquê do avanço de mobilização cigana nesses anos Lula: "Acho que as paradas GLBT estão ajudando muito a nossa sociedade. Quando eles dizem do orgulho gay, suscitam junto o orgulho de negros, latinos, ciganos, de todas as minorias que querem ser menos discriminadas".

Há também representantes de gerações mais jovens e de um novo modo de pensar a identidade cigana. É o caso de Vitsha Nicolas Romano de Almeida, 21 anos, colega de Farde na faculdade de direito e secretário-geral da Apreci. Filho do casamento-tabu entre uma cigana e um não-cigano, Nicolas diz que até há pouco não revelava a ninguém sua origem.

"Minha família dizia para eu não dizer. Todos pensam que cigano é ladrão de criança, apesar de que eram as mães que jogavam as crianças no rio e culpavam os ciganos", afirma, citando contrapartida cigana à má fama de "ladrões de crianças": a Corte portuguesa no Brasil teria verificado casos de mulheres ricas que escondiam gravidezes clandestinas por baixo dos vestidos e, ao parir, abandonavam os bebês em acampamentos ciganos.

Nicolas segue: "Fiquei dez anos na mesma escola e poucos souberam que eu era cigano. Na faculdade começaram a saber agora. Não vou chegar e contar para alguém que nunca vi na vida. O que mais existe é perguntarem se não sou brasileiro, se sou estrangeiro".

Seu caso não é incomum. "Quem é empresário rico não está nem aí, mas os que dependem de vida pública, como artistas e políticos, restringem a informação sobre serem ciganos", diz Farde Vichil. "Existem muitos ciganos que dizem que não são, mas quem é sabe reconhecer. Escondem para não ser alvos de discriminação. Se algo acontece no bairro, quem é o primeiro suspeito? O cigano, sempre."

Do hábito do armário emergem especulações sobre quem seriam os ciganos ocultos que desfrutam de boa posição social. Citam exemplos na sociedade brasileira (Cecília Meirelles, Fagner, Zé Rodrix, o trapalhão Dedé Santana, o palhaço Carequinha), poetas latinos (Federico García Lorca), até astros hollywoodianos (Charles Chaplin, Rita Hayworth).

Um de seus orgulhos clandestinos é o de que o Brasil teria tido um presidente cigano:

Juscelino Kubitschek. "JK teve de omitir que era, senão não seria presidente. Nunca fez nada por nós, também porque não fomos pedir", diz Iovanovitchi. Embora raramente mencionada na historiografia, a afirmação tem o apoio de estudiosos como o geógrafo e historiador da Uni-BH e da PUC mineira Rodrigo Corrêa Teixeira e o antropólogo holandês Frans Moonen, co-autores de textos sobre a história dos ciganos brasileiros.

"Os ciganos de Inconfidentes, em Contagem, preservam o relato oral de visitas de JK às comunidades. Ele tinha origem cigana, relacionava-se com eles. Quase nenhum homem cigano se auto-intitula. Num negócio financeiro com não-ciganos, é prejudicial se assumir", diz Teixeira. "Juscelino só falava disso na presença de outros ciganos. Nunca se assumiu, o que é comum e acontece em todos os países. No Brasil, ainda não é bom dizer que se é cigano", concorda Moonen.

Consultado por CartaCapital, Zé Rodrix (co-autor de Casa no Campo, sucesso na voz de Elis Regina em 1972) respondeu assim à pergunta sobre sua origem: "Não sou, quem é cigano é o Wagner Tiso (músico ligado ao Clube da Esquina mineiro). Mas conheço bastante sobre os ciganos brasileiros e falo um pouco das duas línguas ciganas (romanês e calé). Tenho tias que se casaram com ciganos. Uma delas, minha tia Miosótis, foi literalmente roubada por meu tio Manoel, que depois voltou com ela para a família e se tornou sedentário, cigano apenas no nome".

Aparentemente pitoresco, o arco amplo de possíveis ciganos, que vai de García Lorca a Carequinha e de Juscelino a Chaplin, é significativo para ilustrar o grau de disseminação e dispersão de uma estirpe nunca reconhecida por seus próprios feitos e sempre estigmatizada por crimes espalhados "democraticamente" pela humanidade, mas dos quais se tornou bode expiatório preferencial.

Não são só acampamentos precários nas periferias e ciganas cartomantes em praças centrais que são mal-entendidos e percebidos pela sociedade. Há comunidades de elite confinadas em mansões de bairros nobres como Alphaville, em São Paulo, e Taquaral, em Campinas.

"Muitos rom têm casa construída, mas não se acostumam e montam barracas no fundo do quintal. Andam de helicóptero, têm mansões e dormem em barracas luxuosas forradas com tapetes persas", testemunha Farde Vichil. "Há ciganos que montam mansões, mas continuam viajando para todo canto. Para o cigano, a casa não é o 'lar, doce lar', mas sim um investimento", complementa Iovanovitchi.

Zé Rodrix colabora com outra história: "Há ruas inteiras em bairros nobres onde só moram ciganos. A grande marca é o fato de as torneiras e maçanetas das casas serem de ouro maciço, para que possam ser levadas em caso de fuga emergencial".

A acumulação de riqueza em ouro é outro mito fortemente ligado à cultura cigana, perpetuado talvez pela aversão a valores capitalistas como contas bancárias.

Na visita ao acampamento de Franco da Rocha, CartaCapital encontrou o lado mais desfavorecido dessa moeda. Mesmo vivendo em situação precária, em terreno emprestado por um proprietário particular, os adultos da comunidade têm, sem exceção, seus dentes frontais forrados com placas de ouro, que ornam em exuberância com as roupas de cores fortes, saias longas, lenços na cabeça e outros componentes da identidade visual cigana.

O alto contraste entre precariedade e viço atravessa cada detalhe. Sem saneamento básico, o acampamento não tem água encanada nem banheiros. Vizinhos amigos emprestam tambores de água fria, com os quais se banham, e as necessidades fisiológicas são resolvidas no matagal atrás do camping de terra batida.

Fiações expostas puxadas de postes vizinhos trazem às barracas espaçosas energia que abastece lâmpadas, tevês, aparelhos de som e até um frigobar, numa das residências. Na ausência de telefones próprios, os amigos dispõem do número do orelhão do outro lado da rua; mas vários dos habitantes possuem celulares.

"Tenho fogareiro, mas não tenho dinheiro para comprar o bujão de gás", diz, enquanto cozinha arroz e feijão, ao entardecer, em fogueira e panelas imaculadamente areadas. Por perto, vivem agregados o cão vira-lata Popó (que posa para as fotos junto à família humana), algumas galinhas e gansos ("para matar cobra"). A tradição nômade afasta os ciganos dos hábitos de criação de animais e cultivo da terra.

Nas barracas maiores, convivem, num mesmo espaço sem divisórias, apetrechos de cozinha, equipamentos de dormitório e até, em alguns casos, automóveis (entre os quais um brasileiríssimo fusca amarelo) com que se transportam ao trabalho de pequenos comerciantes de feiras (os homens) e quiromantes (as mulheres).

"Este povo que está aqui trabalha mesmo", defende Santiago, 19 anos, filho do protetor do acampamento, Carlos Kalon. Músico que se prepara para cursar veterinária ou educação física, Santiago visita o camping uma vez por semana, a cavalo, para conferir se está tudo bem, se a polícia incomodou, se alguém está doente etc.

"Tive um problema de coluna, a ambulância não veio me buscar. Fui dirigindo para o hospital", conta o cigano Roberto do Amaral, 46 anos, ainda convalescente. O hospital a que se refere era particular. Evitados pela rede pública e sem qualquer convênio médico, não raro optam por custear seus tratamentos e consultas.

Algumas das crianças do acampamento já ostentam carteiras de identidade, carimbadas com a distinção "não alfabetizado". "A gente não pára aqui, não tem tempo de procurar vaga. Ou então procura, mas não acha. A gente pagava para um rapazinho dar aula particular, mas ele parou de vir", conta um dos pais, Xexéu Pereira, 35 anos.

Um documento que todos os adultos afirmam ter, e utilizar, é o título de eleitor. É o que diz o líder do acampamento, Euclides Pereira (o "Capitão"), 59 anos, sanfoneiro que nos anos 70 tocou com o Trio Parada Dura: "Votei no Lula". Votará de novo? "Não sei, tem de pensar. Ele prometeu muita coisa..."

Sua esposa, Elizete Moreira (a "Preta"), 45 anos, conta da lida de ler a sorte em público: "As pessoas têm medo, a gente fica envergonhada. Tem pessoa que maltrata, xinga, quer agredir até. A gente tem de sair de perto. A gente fica ouvindo que rouba criança, fica acanhada. Só ficam criticando, mas nós não somos aquilo".

Também nesse aspecto, o parentesco longínquo vai se colar às casas mais ricas, onde ciganas cultivam a quiromancia de modo mais estruturado, atendendo até artistas e políticos de expressão nacional. "Minha mãe lê mão, tem clientes que são empresários, pilotos de avião", conta o futuro advogado Nicolas Romano. Demonstra-se, mais uma vez, que os ciganos se espalham por todas as classes sociais e ideologias. E passam despercebidos, em todas elas.

Militante do movimento, a ministra da Seppir, Matilde Ribeiro, dá em Brasília testemunho surpreso nesse sentido: "Os ciganos vieram de várias partes do mundo, segundo eles, são pelo menos 600 mil no Brasil, e eu não os enxergo. Ou pelo menos não enxergava". A ministra, assim como você, via os ciganos sem saber que os estava vendo.

Iovanovitchi carimba o discurso de Matilde, avisando que a mobilização cigana vai crescer: "Vamos fazer ressuscitar a esperança, porque a esperança dos ciganos nasceu morta". Refere-se a seus pares de infortúnio e discriminação, mas usa palavras que, em tempos de balbúrdia política e midiática, se poderiam estender aos brasileiros como um todo.


IGUAIS E DESIGUAIS
Minorias étnicas e culturais brasileiras encontram-se em Brasília

Você não leu esta notícia em nenhum jornal, nem viu as imagens na tela da Rede Globo, mas a 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial terminou com uma cena rara: uma declaração conjunta pela paz e abraços calorosos trocados pelos representantes da Confederação Nacional Israelita (Sérgio Niskier) e da Confederação Árabe Palestina do Brasil (Farid Suwwan).

Até então, a conferência se desenrolara sob a espreita de eclosão de conflitos entre os grupos judeu e palestino. Uma mesa de debates no primeiro dia terminara em bate-boca, os palestinos criticando o Estado de Israel, os judeus protestando contra a impropriedade da abordagem do tema num evento que versava sobre igualdade racial entre brasileiros.

Após a leitura da declaração conjunta, Niskier colocou seu quipá na cabeça de Suwwan, que retribuiu o gesto repousando seu manto sagrado nos ombros do outro. Do palco do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, partiram gritos de "Brasil!", ao que a plenária reagiu se levantando e cantando o Hino Nacional Brasileiro.

Intermediadora da negociação, a ministra Matilde Ribeiro, da Seppir, foi até o púlpito e discursou aos prantos (em que era acompanhada por delegados, platéia, jornalistas, fotógrafos). "Minha maior aflição era saber se chegaríamos ao final com uma unidade de 100%. Esta é uma demonstração do Brasil para o mundo", disse, antes de ir se abraçar a Niskier e Suwwan.

Fecho privilegiado, o tríplice abraço judeu/árabe/afro-brasileiro coroava outros episódios inusitados, como o encontro, numa mesa de debates, entre uma norte-americana e um cubano.

"Não é todo dia que posso estar num lugar assim e dizer que Cuba é uma vergonha para os Estados Unidos. Como um país pobre pode ensinar todos os seus habitantes a escrever? Nos EUA, isso é impossível, lá é preciso ser rico para aprender a ler e escrever", afirmou Sheila Walker, da ONG norte-americana Afro-Diaspora.

"Vocês, brasileiros, têm um presidente que reconhece a dívida da América com a África e pede desculpas. É impossível isso acontecer nos EUA, onde não há como termos um presidente que ao menos ache um negro bonito", acrescentou Sheila.

Tais choques culturais pacíficos eram, também, reflexos da Babel protagonizada por participantes trazidos à conferência de todos os estados do Brasil. "Durante o processo, todos os discriminados foram se encontrando na Seppir", afirmou Matilde Ribeiro, não sem certa surpresa.

As delegações haviam chegado inicialmente ressabiadas, fragmentadas em subgrupos de quilombolas, indígenas, ciganos, mães e pais-de-santo, caboclos da Amazônia, muçulmanos, árabes, judeus, militantes negras lésbicas, Mano Brown (líder dos Racionais MC’s, em passagem-relâmpago) e outros tantos.

Inúmeros representantes vestiam-se de acordo com sua identidade primordial, ostentando garbosos turbantes africanos, roupas brancas de candomblé, cocares e tangas indígenas, túnicas muçulmanas, emblemas de Bob Marley etc. Aos poucos, minorias que pouco se comunicam umas com as outras descobriam semelhanças escondidas por trás de conhecidas diferenças. Dentro do espírito vigente da cultura fast-food de celebridades, causavam furor fotográfico e de autógrafos tanto astros pop como o cantor de pagode e apresentador de tevê Netinho de Paula como políticos como o secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e a senadora e militante negra Benedita da Silva.

No pólo dos "anônimos", também ciganos e indígenas eram disputados por afro-brasileiros e muçulmanos para fotos conjuntas, e vice-versa. No terceiro dia, já eram comuns rodinhas unindo, por exemplo, uma mãe-de-santo, um indígena e u4m descendente árabe.

A essa altura, um grupo musical lotava os corredores batucando músicas como O Canto das Três Raças (sucesso de 1976 com Clara Nunes). Eram muito mais que três raças presentes, e os ciganos o comprovavam ao mesmo tempo, causando correrias rumo às suas danças típicas.

Assim como descendentes brancos de europeus eram franca minoria, também o era a mídia nacional – CartaCapital encontrava-se quase só, entre jornalistas estrangeiros e integrantes da imprensa alternativa.

A sambista Leci Brandão abriu os discursos repreendendo Lula (na presença dele) pelos rumores de que a Seppir poderia ser extinta. No encerramento, puxou sob fortes aplausos o coro contrário à omissão da imprensa local, que chamou de "apartheid midiático".

Depois, completou: "No Brasil, infelizmente, a mídia é racista. Apesar de minha história, nunca tive uma capa de variedades nos jornais, nunca fui chamada ao programa de Jô Soares. É discriminação contra minha postura de mulher negra e politizada".

Mais tarde, ela integraria outro caldeirão de misturas, dividindo show de encerramento na Esplanada dos Ministérios com os pagodeiros do Fundo de Quintal, o grupo afro-baiano Olodum e os rappers Rappin’ Hood e Nega Gizza.

Assim se encerrou a conferência, após discussões e articulações para promocer a marcha Zumbi + 10, em novembro próximo, em Brasília, e aprovar o Estatuto da Igualdade Racial, proposto pelo deputado Paulo Paim (PT-RS).

Em tempo: um dos que do palco gritavam "Brasil!" para emoldurar a trégua entre judeus e palestinos era o cigano Cláudio Iovanovitchi. "Minoria entre minorias", ele fora no último dia um dos mediadores mais atuantes da negociação que culminou na declaração conjunta pela paz.

Marco da luta das minorias, a conferência, um apoteótico e promissor encontro de diferenças, evidencia as contradições brasileiras: como uma nação tão capaz de produzir tais eventos pode ser campeã de desigualdades?

sábado, julho 09, 2005

mini-mistério *


o brasil vai se radicalizando, você já percebeu, né?

é de esquerda, progressista, a nomeação do presidente da cut, central única dos trabalhadores, como ministro do trabalho do brasil.

repete o que aconteceu na nomeação da mulher e ex-guerrilheira progressista dilma roussef como ministra-chefe da casa civil, cargo poderosíssimo (dizem).

diverge das nomeações de direita, fisiológicas, dos três novos ministros peemedebistas. um deles recebeu o posto estratégico, de cunho social, da saúde. outro é hélio costa, que na infância me aparecia como repórter do bizarro programa global "fantástico" e na adolescência/início da fase adulta me reapareceu como soldado collorido. seu ministério, das comunicações, é mala cheia de dinheiro para a circulação de informações no país, para as altas esferas da mídia. só para lembrar, é um cargo que já foi de antonio carlos magalhães...

ou seja, o governo lula radicaliza para os dois extremos, nas duas bandas. talvez tivesse mesmo que fincar bandeiras assim "contraditórias", uma vez que no fim de todas as contas, esboroados os maniqueísmos, a esquerda É a direita e a direita É a esquerda, o progressista É o reacionário e o reacionário É o progressista.

pessoalmente, vibro com as nomeações de luiz marinho e dilma roussef. assim como vibro com a permanência do nipobrasileiro desafiador de poderosíssimos donos da grana luiz gushiken, outro egresso da máquina sindical que produziu marinhos (luizes, não robertos) e silvas (luizinácios, ainda assim luizes). assim como desgosto do avanço irresoluto do pmdb, um partido historicamente ambíguo que, segundo afirmou lula ontem, é tão fragmentário quanto o seu pt - "o meu pt", disse ele, terno e doce. no mesmo discurso, lula se fartou das conhecidíssimas metáforas - reinterpretadas com grosseria feroz e vulgar em reportagem não-assinada da "folha de são paulo", jornal que não costuma perceber claramente a grosseria das próprias metáforas (porque elas comumente se travestem de, er, "sofisticação").

para o meu gosto, um brasil de esquerda teria um gilberto gil no ministério da cultura, um luiz marinho no do trabalho, um mano brown no das comunicações, um dr. drauzio varella no da saúde, mil matilde-ribeiros e mil nilmário-mirandas nos da igualdade sócio-racial, 15 bilhões de dilmas na casa civil etc. etc.

mas os donos da grana não tardarão a gritar contra o ministério da cut. como gritariam feito gado indo para o matadouro se caísse a condução dos ministérios petistas das finanças. os donos esquizofrênicos da grana amam a economia tucana gerida por antonio palocci, com o mesmo fervor com que continuam detestando palocci e dirceu e gushiken e lula e o governo lula. seus mundos desabariam no mesmo instante em que fosse nomeado não um banqueiro de alcântara e andrada, mas um feirante da silva ou uma doméstica de souza no ministério da economia.

pois, nesse ponto, são os donos da grana os radicais extremistas. o brasil mais se radicalizaria se abdicasse da economia tucana, e não em favor de delfim netto, evidentemente. se bem que, êêita, seria um dado interessantíssimo um ministério que abrigasse, simultanteamente, dilma russef e delfim neto, não? será que o ditador É o terrorista, que o terrorista É o ditador, que o guerrilheiro É o dono da grana, que o dono da grana É o guerrilheiro?

o dono da grana É o radical extremista. o terrorista guerrilheiro forasteiro É o dono da banca, o dono do banco, orra, meu!

hoje mesmo, há um silva ascendendo ao noticiário. É petista e foi pego no aeroporto com uma mala cheia de dólares e reais. em tempos de lula, o dólar É o real, e o real É o dólar. a deflação É a inflação, e a inflação É a deflação. o "sucesso" externo É o "insucesso" interno, o "insucesso" no quintal de casa É o "sucesso" no quintal do mundo. londres É bagdá, o iraque É a inglaterra; a áfrica É o g8, o g8 É a áfrica-brasil, quando zumbi chegar eu quero ver o que vai acontecer, eu quero ver.

senti, diante do petista da mala, meu primeiro tremor de terremoto. suspeitei que um outro silva, bem zé povão, possa pagar o pato do bode - que o pt precise de um petista da mala para depositar nele todos os indícios e mazelas. antevi ali o pt ex-moralista que, depois de abusado pelos desmandos da mídia "poderosa" e pelos desmandos de seus próprios dirigentes exacerbados, transfere o abuso e vai abusar do petista da mala que deve ser primo do (não)publicitário, da (não)secretária, do (não)sobrinho do vice-presidente liberal. o abusado É o abusador, o abusador É o abusado.

aqui se abusa, aqui se será abusado. e vice-versa. basta.

alimentando e corroendo meu terremoto, logo os próprios jornais vêm reassociar, melífluos, a mala petista e a mala da roseana sarney (filha do homem que acaba de negociar três ministérios neo-petistas). até os pedregulhos de asfalto da sua rua chique ouviram falar, até os grãos de poeira do chão batido de seu acampamento já ouviram falar que, em meio à campanha eleitoral de 2002, aquela figura sinistra chamada josé serra teria armado para cima da mulher roseana sarney, visando (se é que o cego É aquele que vê) limpar o páreo para sua própria eleição.

ora, ora, então agora a mesma história se repete, com mais mala de dinheiro, é? e não foi josé serra do psdb quem livrou o páreo de roseana, mas acabou sucumbindo diante de lula (alô, "entreatos", alô, "peões"), sob o sorriso beneplácito de seu "correligionário" fernando henrique cardoso, o homem-sigla? e o que o sinistro está fazendo na prefeitura de são paulo? está governando? está prendendo silvas cobradores que fraudam o bilhete único mancomunados com silvas motoristas? ah, está, isso ele está, sim. e os ceus da periferia, como vão indo?

o país está radicalmente eivado de bodes expiatórios e seus "contra-bodes", já reparou? olhe para o petista da mala que disse que tinha vendido verdura. o fato É a falsificação grosseira, a encenação vulgar É o fato? marcos valério É delúbio soares É rogério buratti É ricardo sérgio É sérgio motta É pc farias É o bode? pt É psdb É ptb É pl É prn?

quem move as artimanhas de hoje, quem são as eminências pardas? quais são os testas-de-ferro? quem É o que É, quem é laranja de alguém enrustido atrás do laranja? como compreender deputados da bancada da bala (ei, você é a favor do desarmamamento no brasil? ou vai passar batido nessa?), deputados da bancada do bispo, laranjas petistas, repórteres amigos íntimos de josé serra, gestores de telefonia, senadores vestais da honra, do mérito e do celibato, jornalistas que remuneram secretárias entrevistadas, banqueiros multinacionais, ídolos multinacionais da canção popular brasileira?

o silva - o zé povão - é quem vai pagar o pato? no campo de batalha, onde se colocarão os ciganos silvas travestidos por trás de fortunas e sobrenomes exóticos (à la kubitschek)?

radicalismo, meu caro amigo, É luta de classes travestida. não está acontecendo nada, nadinha, nadica mais no brasil de hoje do que uma ferrenha e sangrenta luta de classes. quem tem fobia de silva está usando e abusando das ferramentas de pressão e poder para derrubar os silvas. mas eu vim avisar que quem tem fobia de silva É o próprio silva, que os próprios silvas SÃO os silvafóbicos.

a (in)desejada solução da crise se congelaria, aposto eu, no momento em que o espelho se quebrasse e o anti-silva percebesse que ele É o silva. um brasileiro infeliz, vira-lata, enrustido, travestido, acuado, escondido. um brasileiro feliz, nobre, livre, nu, solto, amplo.

aí se desarmariam as bombas do terror. aí desmoronariam, todos juntos, os radicalismos dos ignorantes que se fazem de espertos, os radicalismos dos inteligentes que se fingem de burros (porque, sorry, ademã, em terra onde maroca, poroca e indaiá têm seis olhos bem abertos, o inteligente É burro, o burro É inteligente)...

aí, quando/se o raciocínio binário bipartido se partir, vamos com orgulho poder afirmar: o povo É inteligente, o intelectual É o povo.

[alô, seu jorge. em 1998, seu jorge cantou assim com seu grupo farofa carioca: "moro no brasil/ não sei se moro muito bem ou muito mal/ só sei que agora faço parte do país/ a inteligência É fundamental". de lá para cá, o nômade seu jorge morou em "cidade de deus", na frança, no barco maluco de wes anderson/steve zissou, em hollywood, dentro das canções de david bowie. ele é brasileiro, um dia há de voltar, a inteligência nos É fundamental.]

basta de radicalismo, basta de ilusionismo, basta de obscurantismo, basta de bode expiatório. se o brasil se assume, então o brasil é.

(p.s.: minha reportagem sobre o brasil cigano já está no ar, a um clique de distância.)

[* título-sample de um antigo tropicalista, gilberto gil, mestre-sala de uma antiga porta-bandeira tropicalista, gal costa. diziam assim, em "mini-mistério" (do disco "legal", philips, 1970): "procure conhecer melhor/ seu mini-mistério interior/ procure conhecer melhor/ o cemitério do caju/ procure conhecer melhor/ sobre a santíssima trindade/ procure conhecer melhor/ becos da tristíssima cidade/ procure compreender melhor/ filmes de suspense e de terror". "não lhe custa nada/ só lhe custa a vida", antevia o músico então exilado do brasil, futuro ministro do brasil.]