quinta-feira, maio 25, 2006

paz sem voz não é paz, é medo

o músico, compositor e poeta carioca marcelo yuka fez chegar à imprensa um comunicado, dando conta de um fato que havia acontecido com ele. como eu sou da imprensa e fiquei interessado no fato, fiz uma entrevista telefônica com yuka, na tarde de terça-feira, 23 de maio de 2006. é a transcrição dessa entrevista que vai abaixo, sem que eu precise explicar porquês - a seqüencia de perguntas e respostas será auto-explicativa.

melhor ainda é que, conversando com o músico sem falar de música, me encontrei cara a cara com o mesmo assunto que vinha fazendo palpitar este blog, e que agora faz volta triunfante, pela fala de yuka: a humilhação.

abaixo do "pingue-pongue", vem reproduzida a letra de "a minha alma (a paz que eu não quero)", só para demonstrar que yuka segue expressando em prosa de 2006 os mesmíssimos valores que já defendia em poesia de 1999, e de antes.

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pedro alexandre sanches - o que aconteceu com você no aeroporto?

marcelo yuka - o que aconteceu em são paulo comigo no final de semana? vou falar o fato que aconteceu e tudo que, para mim, é causa e conseqüência disso. é praxe das companhias aéreas pedirem para quem tem algum problema especial [yuka se locomove em cadeira de rodas, desde que, em 2001, foi interceptado por uma "salva" de tiros numa cena "cotidiana" de violência no rio de janeiro] que entre primeiro, mas se coloque ou antes de todo mundo ou depois de todo mundo no avião, para não atrapalhar a entrada dos passageiros. me pediram que esperasse um pouquinho, o que é praxe em todas as companhias. eu fiquei com minha cadeira na porta do avião, esperando. todo mundo entrou, se alojou, eu fui para o meu lugar, me alojei. sou muito alto, tenho 1m94, e a cadeira, que é minha, é adaptada ao meu tamanho, foi feita para mim. e a cadeira, em todos os vôos que pego, vai então para o porão, e eu fico só com minha almofada, que é uma almofada especial.

quando cheguei a são paulo, a gol me informou que tinha vindo toda a minha bagagem, mas a cadeira, não. por que é que eu acho que isso é uma coisa muito séria? porque não foi como se extraviasse uma bagagem. fui com ela sentado, levando a cadeira embaixo de mim, até entrar, até a porta do avião. então era só botar para baixo, e eles não fizeram isso. não é como se eu deixasse de usar algumas camisas ou uma escova de dentes que está na minha bolsa. isso é tirar minha única possibilidade de locomoção, que já é muito restrita e dificultosa.

outra coisa que aconteceu lá é que eles não tinham nem o corredor móvel nem o carro com elevador que fica disponível na ponte rio-são paulo. tentaram me tirar numa cadeira que não era minha, que estava em péssimas condições, sem freio, descendo pela escada, só com pessoas me levando pelo braço, eu em cima daquela cadeira. a partir do segundo ou terceiro degrau, a cadeira começou a se desmontar, e eu tive que voltar.

então foram duas faltas de respeito, desrespeito aos meus direitos e à conduta da aviação mundial: o fato de não levarem a minha cadeira e a maneira como fizeram com que eu descesse do avião. veja bem, não é a primeira vez que isso acontece com a gol. já tive uma primeira vez que aconteceu, e que foi documentada por passageiros que fotografaram a péssima conduta com que me tiraram do avião. virou matéria do jornal "o globo". então eles estão sendo reincidentes com relação a isso. uma outra companhia aérea, há dez dias, cometeu o mesmo erro comigo, mas estou concentrando na gol porque é reincidente.

pas - a outra companhia foi a tam, certo?

my - é. na gol é a segunda vez que acontece, e nas duas vezes escrevi para a companhia dizendo que aquilo estava acontecendo, e ninguém me deu nenhuma explicação, nenhuma consideração. dessa vez, fui até o dac [departamento de aviação civil, subordinado ao ministério da defesa] e fiz uma queixa formal [segundo o comunicado, ele se encaminhou à delegacia do aeroporto e foi informado que deveria prestar queixa contra as duas cias aéreas no DAC, que sugeriu que a maneira mais rápida seria enviar um email para o mesmo DAC já que, mesmo pessoalmente ou por telefone, ela demoraria mais tempo para ser encaminhada]. mas eu preciso de mais força para fazer isso, porque ainda são poucos os deficientes que voam corriqueiramente. o desrespeito às leis que nos garantem ainda é muito grande. não estou pedindo favor, eu estou pedindo só o que é de meu direito. é importante lembrar é que essa companhia aérea transporta vidas, transporta pessoas. e àqueles que precisam de mais cuidados ela falta com o respeito. imagine com as outras pessoas.

pas - a queixa formal, até agora, não resultou em nenhum retorno concreto?

my - não deu em nada. pelo contrário, quando procurados, eles alegaram que eu cheguei atrasado. olha, mesmo que eu tenha chegado um pouco depois do convencional - mas cheguei dentro do horário marcado -, eles embarcaram tudo, só não embarcaram minha cadeira de rodas. mostra que é desrespeito, desconsideração, falta de know-how para trabalhar com isso. se avisassem "não posso transportar sua cadeira porque você chegou um pouco depois", eu optaria por um outro vôo mais tarde, não por aquele, porque a cadeira é a minha perna, é minha forma de locomoção. eles me pressionaram para sair numa outra cadeira porque precisam da aeronave para continuar comercialmente, mas de maneira segura eu não tinha como descer dali.

pas - de um modo avesso, lembra a história recente do comandante do exército que fez um avião parar para que ele pudesse embarcar.

my - pois é. no meu caso, eles fizeram eu descer. é claro que eles precisam da aeronave, eu ia ficar ali empacando a aeronave? não. ainda por cima, além de não levarem minha cadeira de rodas, ainda me desceram de uma maneira impensada, porque precisavam da aeronave. então, veja bem, sinceramente, eu estou usando a mídia que tenho, que pode ser disponível a mim por uma certa notoriedade, para poder fazer algum tipo de pressão. com certeza, uma pessoa que não tem tanta voz quanto eu tenho vai passar por isso e tudo vai ficar impune. acho que hoje, eu, que já tinha outras bandeiras e lutas, não posso me negar dessa. talvez exista, infelizmente, uma quantidade enorme de pessoas com deficiência que, às vezes por me ver no palco e me ver continuando, me tem como referência. nessa hora isso me pesa. se eu simplesmente virasse as costas e fosse embora, eu não estaria virando as costas não só para o meu direito, mas para uma coisa que represento talvez para todo um grupo de pessoas que têm necessidades especiais. estou requerendo um direito não só meu, mas de todos que estão nessa situação e podem ser tratados dessa maneira, mas não têm a voz que eu tenho. eu tenho que usar isso. você, me ligando hoje e se sensibilizando pelo problema, não está só dando espaço para mim, mas acho que para todos que enfrentam esse tipo de dificuldade.

pas - como você se comporta na hora do incidente? como se sente por dentro, e como reage para fora?

my - eu ajo extremamente calmo, porque tenho que me concentrar ao máximo para tomar todas as medidas legais. eu não posso perder a razão. então fico o mais calmo possível. mas me sinto profundamente humilhado, profundamente humilhado, até porque tenho que requerer meu direito como se fosse um favor. isso é o que está errado em relação à acessibilidade, aos direitos dos deficientes. quando você vai falar nisso, é como se alguém estivesse te fazendo um favor. a humilhação está nisso. o cara não entende que aquilo é tua perna. "ah, passa para essa cadeira mesmo, vamos deixar de qualquer maneira, só para a gente descer, porque você não vai ficar aqui, né?" ele não entende a emergência da coisa. ele não entende que não está fazendo um favor em me descer.

pas - guardadas as proporções, é como se confiscassem o seu carro na porta do aeroporto.

my - pois é! tem a ver com o direito de ir e vir, que é um direito básico da constituição, um direito que em mim, com a questão violenta, me foi arrancado. eu já tenho uma debilidade enorme, ainda tenho que passar pela falta de respeito de uma companhia que transporta vidas? quer dizer, a minha vale menos? o meu poder de locomoção vale menos? quando as pessoas saem, tem sempre alguém que fica ali, "obrigado pela preferência", "obrigado por escolher a gente", "volte sempre". a mim, eu não tinha como sair, quanto mais passar por uma gentileza forçada dessas.

pas - pergunto sobre sua reação externa por causa dessa imagem freqüente do artista "rebelde", estourado, como aconteceu em outro avião, num incidente entre chorão [líder da banda charlie brown jr.], marcelo camelo e rodrigo amarante [do grupo los hermanos], que acabou em violência. se você brigar, agredir ou ficar violento, se arrisca a perder razão, não?

my - não, meu perfil não é esse. há tantos anos estou nesse meio e nunca me envolvi nisso, nem com minha saída d'o rappa. não usei aquilo de maneira chamativa, num momento em que poderia ter colocado na imprensa, até para me defender. eu preferi ser o mais... não digo tranqüilo..., mas eu não quis colocar uma coisa pessoal na imprensa. era relacionamento pessoal, não poderia virar chacota de imprensa. então, mesmo quando aconteceu uma coisa gravíssima igual àquilo, eu quis ter o direito de me reservar. sou uma pessoa reservada. já tive relacionamento com pessoas famosas, nunca espalhei isso. já tive meus problemas de perder a cabeça, mas sempre me controlei. tenho um nome aí que não é associado à violência, a escândalos na imprensa, nada. meu nome é associado a uma outra coisa, a uma certa busca por direitos, que não posso me negar agora.

se você perguntar a todos os funcionários da gol, ninguém tem o mínimo a falar de mim. pelo contrário, eu chegava e falava "olha, não é nada pessoal, mas eu tenho que fazer algmua coisa, tenho que me colocar contra a companhia". eles me pediam desculpa, me acompanhavam, eram gentis comigo, e eu sempre falando "você me desculpa, não é pessoal". todos falaram "claro, você tem mais é que fazer isso mesmo".

pas - é preciso um forte autocontrole para manter essa calma, se lá por dentro está queimando a humilhação, não?

my - é, mas eu sei que o procedimento certo é esse. eles não tem nada de que reclamar de mim nesse contexto, de maneira nenhuma.

pas - tomar essa posição, de protesto sereno, custa o que para você? é difícil? a impressão é de que ninguém está ouvindo, de que ninguém está nem aí?

my - as pessoas só identificam que possa ser uma coisa séria quando chega à imprensa. eu acho que também a maneira de eu falar, calma, pausada e prolixa, na hora de fazer a minha denúncia, emite algum tipo de respeito. porque esse é o procedimento que aprendi quando comecei a ler e vi que as palavras que eu usava, até mesmo numa dura policial, podiam mudar a reação do policial contra mim.

pas - quer dizer que você aprendeu isso na relação com o policial?

my - é.

pas - e tem de aplicar hoje em dia no comissário de bordo...

my - é, exatamente, uma tática que aprendi lá tenho que usar hoje. mas acho que a companhia só entende que é mais sério quando chega à imprensa, quando vê que a minha denúncia não vai virar um papel no lixo, ou arquivado, que pode ter um eco maior. mas é ruim para mim, porque não quero me passar como chato, como aquele que está sempre gritando por direitos. mas, pô, a vida vai me colocando nesse sentido. não sei, parece que é meu destino, é uma coisa que não sei como controlar. na hora falei, "pô, vou ficar calado, não quero chamar mais atenção", mas depois pensei que, não, bicho, se ficar calado não estou me calando só, estou calando uma causa que é emergencial hoje em dia.

o governo brasileiro escolheu este ano para ser um ano de batalha na questão da inclusão dos deficientes, a igreja católica também escolheu isso como diretriz para 2006, um ano de batalha pessoal da igreja em relação aos deficientes. eu até falei recentemente sobre isso, quando estive com o arcebispo de brasília. falei "olha, acho muito legal a igreja finalmente abraçar essa causa, mas quando você fala que está abraçando a causa dos deficientes eu acho que a gente podia estender isso, de uma maneira mais ampla, aos deficientes imunológicos também". a igreja ainda não tomou uma atitude pelo menos responsável quanto a isso.

pas - você disse isso a ele [espantado]? e que reação ele teve?

my - [ri] disse. ele ficou meio assim encabulado. mas pedi até uma salva de palmas ao público à igreja, pela campanha.

pas - ah, isso aconteceu em público [mais espantado]?

my - é, foi na semana passada, quando fui a brasília fazer uma palestra sobre a inclusão dos deficientes. aliás, foi na volta que tive o problema com a tam, é incrível. mas falei isso, se vamos falar de apoio aos deficientes, que a igreja estenda isso até os deficientes imunológicos.

pas - o arcebispo fugiu do assunto?

my - é, não comentou isso. mas eu fiz a minha parte. está vendo como as coisas são mais profundas do que parecem?, como a gente tem que ter sempre um posicionamento? às vezes tem que ter uma certa contundência. e às vezes só requerer um direito justo para a sociedade, num país onde não é dado, já faz parecer que você é mais contundente ou polêmico.

pas - talvez por ter a percepção aguçada para isso é que você vai encontrando essas coisas por onde andar, também sob o risco de passar facilmente a imagem de um cara incômodo.

my - é. mas se for para ser incômodo desse jeito não tem problema, eu assumo essa imagem. de alguma maneira, tendo essa postura, em minha vida venho colhendo várias coisas positivas para mim e para as pessoas ao redor. imagina agora que, se eu depender de um vôo da gol, talvez o preconceito que vão ter comigo vá ser maior, ou não sei nem se vão vender um bilhete para mim. não sei, só sei que são poucas as companhias, que essa é uma companhia que tem passagens com preço em conta, justo, o que é uma virtude dessa companhia. mas, em contraproposta, me sinto totalmente constrangido, acuado em poder voltar a usar o serviço da gol, por exemplo.

pas - no campo da sua vida privada, uma atitude oposta sua poderia corresponder a você desanimar e nem ter vontade mais de viajar, se aceitasse passivamente o constrangimento?

my - é. e também, por exemplo, quando viajo vou com enfermeira e ajudante, porque sou muito pesado, tenho o braço esquerdo comprometido. minhas viagens são caras, porque uma vale por três, são quase três bilhetes. então companhias com bilhetes mais baratos para mim são mais adequadas.

pas - isso me leva a pensar que você é um passageiro lucrativo para as companhias, já que tem que levar duas pessoas junto, pagar três passagens. e em troca recebe um serviço com a qualidade que descreveu.

my - é, e por direito o deficiente tem um desconto para seus acompanhantes.

pas - é?

my - isso só fiquei sabendo há pouco tempo, porque nenhuma delas divulga. como têm banners de promoções, deveriam ter por lei um banner listando os direitos. até então eu comprava minha passagem como deficiente e a do meu enfermeiro pagando o mesmo preço que a minha. e ninguém falava nada, ninguém dizia para mim "olha, você tem direito a desconto". nada. fiquei sabendo disso através das associações de direitos dos deficientes. requeri lá, e aí consegui. quer dizer, quantos deficientes ainda estão pagando sem saber?

pas - você diria que as campanhas do governo e da igreja nessa questão colaboraram para que você, especificamente, ficasse mais atento, descobrindo direitos e reivindicando?

my - não, não. só quero colocar que, se isso passa a ser prioridade para duas instituições tão fortes, por que é que não existe pressão em cima de companhias que transportam vidas? o olho tem que estar mais aberto agora.

pas - esse incidente e o seu protesto aconteceram nestes dias que estão muito tensos, acirrados e violentos no brasil - ou, mais precisamente, em são paulo. você faria algum nexo entre essas coisas todas?

my - olha, não...

pas - de um modo muito mais drástico, o grito do pcc também é de exigência de direitos, não?

my - você fala de quê, do pcc exigindo tvs para ver a copa do mundo?

pas - não, não disso, mas de um embate social, de um grito de revolta simbólico por tudo que passam todos os dias.

my - ah, claro, nesse sentido, sim. no caso da população carcerária, com essa idéia que existe na sociadade, de castigo e não de recuperação, vão explodir manifestos como esse. acho que o meu manifesto ser pacífico encontra afinidade com esses quando meia população carcerária, independente de pcc ou de casos em são paulo, faz referência a reivindicações justas, e de maneira justa. o que houve em são paulo não foi uma reivindiação justa, foram atos de violência mesmo, mas que também vêm decorrentes de falta de direitos que até os presidiários possuem.

pas - que dão alarme para uma situação grave que na maior parte do tempo a sociedade não vê, ou finge que não vê.

my - exatamente. a maneira como foi feita eu acho totalmente errônea. até mesmo a liderança que o pcc se obriga em certas instâncias é super-errada. mas é uma conseqüência, uma conseqüencia de um mau tratamento também. não só isso, tem outras coisas em jogo na questão do pcc, mas também vem de um ponto de vista totalmente errôneo com que se encara a população carcerária em todo o brasil.

pas - fiz esse nexo, nada imediato nem evidente, lembrando do que luiz eduardo soares fala de você, que você é um cara que se manifesta sempre de modo pacífico e acaba sendo um contraponto, ainda que pequeno, à violência que o rodeia.

my - sim, e outra coisa é que as coisas no brasil não são separadas. esse desdém que existe com os deficientes existe com os pobres, com as pessoas em geral que estão em posições digamos mais frágeis na sociedade. a grande parte dos deficientes do brasil se encontra nas camadas mais pobres da sociedade, e por isso existe pouca pressão social, porque este país ainda se curva a quem tem mais grana para ter mais direitos, ou mais grana para corromper direitos. por esse ponto de vista, posso ver que as coisas estão relacionadas, além de que o preconceito que existe com deficientes é o maior de todos. nós ainda somos vistos como doentes. eu não sou doente. nós ainda somos vistos como assexuados. eu não sou assexuado. e ainda somos vistos como pessoas que precisam de favor, num país que tem uma legislação das mais completas em relação aos deficientes. o que acontece é que ela não é usada, ela não é posta para valer. são poucos aqueles que punem quem não respeita os direitos do deficiente.

pas - ali na hora do incidente, a companhia aérea ainda está lhe subtraindo um direito a mais, que era seu e não era nada de que você precisasse obter dela.

my - exatamente, a cadeira era minha. eles não me deram, eles tiraram uma coisa que eu já tinha, mesmo que momentaneamente. para mim passa a ser uma associação bizarra, porque justamente afeta o meu direito de ir e vir.

pas - à luz de tudo que você já viveu, como você percebe a onda de violência em são paulo, que vem democratizar, entre aspas, o que se dizia acontecer só no rio?

my - acho que isso foi um soco no estômago de um poder de repressão da polícia, que se achava mais poderoso e capaz do que o resto do brasil todo. sempre se falava "não, isso não acontece em são paulo", com orgulho nos olhos, com uma certa prepotência. olha, isso acontece em são paulo também por culpa da polícia, mas não só. acontece no brasil todo porque é um problema social do brasil, e são paulo não está à margem do brasil. está contido, por mais que seja o estado mais rico. isso não deixa são paulo à margem dos problemas, nem também à margem das virtudes do brasil. está inserido, não dá para falar "aqui não acontece". acontece, essa é uma questão de tempo. ou já acontecia há muito tempo sem que fosse percebido. são paulo não iria ficar muito tempo isento disso.

pas - e, como se viu, a cidade reagiu com histeria talvez desmedida, não?

my - é lógico. por que não divulgar o nome e o número exato de mortos, por quê? isso mostra que é evidente a culpa por parte do poder repressor. a gente quer uma justiça de qualidade, uma justiça justa, olha só. aqui não tem pena de morte. tem que se ter uma lei em que se confie, não virar o que aqui no rio se chama polícia mineira, justiceira, que passa a ser outro tipo de crime organizado. se é oficial ou não, não importa, é um crime também. acho que em todo o brasil é preciso uma posição mais inteligente. até mesmo quanto à repressão ao crime organizado, precisa mais investigação, mais inteligência, criatividade, e não brutalidade, não vingança. porque, no dente por dente e olho por olho, todo mundo vai ficando banguela e cego.

pas - é um pouco o que acabou acontecendo na sua vida pessoal, de você se ver dentro de uma cena de violência, brutalidade ou vingança que não era sua, e pagar por ela?

my - pois é, eu sou talvez uma caricatura viva desse problema social brasileiro.

pas - ou um retrato mesmo, não uma caricatura.

my - é, um retrato...

pas - ...com poder sobre isso, pela relevância do seu papel como um todo.

my - é, apesar de tudo eu ainda insisto em acreditar que esta cultura é formada por pessoas supergentis, que a cultura brasileira favorece isso, com manifestações culturais que são sempre aglutinadoras, nunca excludentes. acho que a gente está pagando é por uma elite cada vez mais burra, preconceituosa e, ela, sim, agressora. o resto é conseqüência, é efeito colateral...

pas - você já leu "elite da tropa", do luiz eduardo soares, desta vez em parceria com dois policiais?

my - ainda não, ainda não. mas luiz eduardo é um grande amigo meu.

pas - não sei se você gostaria de falar sobre isso, mas há uma passagem lá sobre um "acidente" com um cantor popular, que me deu a impressão de contar a sua história, sob a capa da ficção.

my - querido, eu prefiro não falar. mas o meu silêncio indica o que eu acho. eu tenho que ficar calado.

pas - mas não está incomodado nem zangado com o livro?

my - não, de maneira nenhuma.

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a minha alma (a paz que eu não quero)
(letra marcelo yuka-música o rappa)

"a minha alma está armada e apontada para a cara
do sossego
pois paz sem voz
não é paz, é medo

às vezes eu falo com a vida
às vezes é ela quem diz
qual a paz que eu não quero conservar
para tentar ser feliz

as grades do condomínio
são pra trazer proteção
mas também trazem a dúvida
se é você que está nessa prisão
me abrace e me dê um beijo
faça um filho comigo
mas não me deixe sentar
na poltrona no dia de domingo

procurando novas drogas
de aluguel nesse vídeo
coagido pela paz
que eu não quero
seguir admitindo"

segunda-feira, maio 22, 2006

o universo & o nosso umbigo

sob o impacto do rugido de lembo, faço o contrário do que acredito que deveria estar fazendo e me dirijo ao decadentismo cafona-pseudo-chique do credicard hall, para assistir a mais um show de marisa monte.

é penoso se mover pelo mundo depois que uma inesperada autoridade decretou a chegada intempestiva da autocrítica, esse tipo de musculação da alma que o brasil havia revogado no dia em que o primeiro português cegou o primeiro índio com um espelhinho em que a imagem dele (do português) misteriosamente não se refletia.

[depois vieram os negros africanos. depois veio o pcc.]

na platéia e no palco do cartão de crédito que virou arte (virou?), o marketing cultural grita pelas mais estridentes cordas vocais. a autocrítica lateja, tateando qual seria seu lugar no espaço onde o ar está rarefeito, na cápsula do astronauta brasileiro que subiu ao éter "floating on a tin can" e voltou marciano, lunático, venusiano, alienista.

a área é vip: as primeiras fileiras de mesas (no brasil, a arte é servida em mesas, entre goles de auto-agressão anestesiada), bem longe-perto da cantora. como certamente a maioria dos que estão naquela "nobre" região "very important pípol" da platéia espe(a)cial, não paguei pelos meus ingressos. aqui somos a "nata" do convescote: os gravadores, os produtores, os publicitários, os vendedores, os assessores, os jornalistas em missão de ofício (ou nem tanto), a classe média mtv, os colegas artistas, os amigos verdadeiros da musa, os satélites, os cometas, os asteróides, os subservientes de várias procedências, todos (nós) ali da zona "privilegiada", daquela (minha, nossa) elite branca que gasta 99% do tempo se esmerando em transformar em elegância e chiquê as imensas vulgaridade e ignorância que a consomem por dentro.

porque quem pagou por seus ingressos ou está meio penetra ali no meio (entre os flashes dos fotógrafos das revistas de celebridades e os tilintares dos garçons "quase todos pretos ou quase pretos"), ou então está bem mais lá atrás, em módicas cadeirinhas ou chic-arquibancadas, na longínqua zona do "povo" (povo? na casa kitschic com nickname de c$$r$e$d$i$t$ $c$a$r$d$? hum...).

"vip", nas atuais circunstâncias brasileiras, é quem não paga pelo que consome. é quem penetra, explora, usurpa, esvoaça, deriva, disfarça. é o cordão dos puxa-sacos.

é possível passar(mos) por todo esse périplo anestesiados, enebriados, embriagados, entusiasmados, alucinados. é possível, mas é especialmente difícil, se estamos blindados do lado de dentro (dentro? fora?) de uma guerra civil de negros contra negros, "negros da vigilância" contra "negros do crime" (vigilância? crime?). é possível, mas é dramáticamente difícil, se estamos nocauteados pelo governador branco de direita que desafinou o (seu próprio) coro de contentes e saiu a se açoitar a si próprio com o chicotinho macio da autocrítica e do "chega, eu não agüento mais tanta lorota).

os salgadinhos alucinógenos já não descem bem pela garganta, ficam parados nalgum ponto entre o esôfago e o reto. a música irrita, o canto lindo da sereia (copyright gabriel) faz lembrar o silvo ácido das sirenes. é são paulo, é o mesmo credicard hall onde joão gilberto já denunciou a vulgaridade da "elite branca" bêbeda a rigor, "vaia de bêbedo não vale". marisa tem memória, marisa sabe e/ou intui e/ou expressa isso tudo.

alguma coisa parece estar fora da ordem dentro da (velha) nova ordem local, como já cansou de avisar o velho compositor branco-no-preto. se vivemos a náusea da convulsão de consciências até há pouco hibernantes, não há como o show não ser um porre, uma arrastada chatice, uma ressaca. tudo que não seja sangue e osso soa postiço no dia em que a terra parou, nos dias em que as siglas pararam de colar na testa dos homens-sanduíche, das mulheres-hambúrguer, da elite branca burraldinha.

a vista turva tenta se firmar. e lá, bem no centro de tudo ao seu redor, os olhos & ouvidos açoitados pela (auto)crítica encontram a cantora, pequenina dentro do show chato, parado, incômodo para quem se se mesmeriza no chacoalhado social lá de fora, das marginais.

o show continua chato, mas a cantora..., a cantora está encantadora. a cantora é encantadora. "terrivelmente feminina", diria o cantor preto-no-preto, mas, não, não, melhor dizer de modo mais macho & quente & gentil (já que gentileza gera gentileza): libertária, libertadora, maravilhosamente feminina - eis o melhor dela.

marisa monte, nessa noite de estréia, sobrevoa encantadora os escombros de tudo que está em ruína (& construção), simplesmente porque nesta noite ela se parece com quem nunca antes se pareceu - nós. ao longo de todo o tensíssimo show, ela se vende (ou melhor, se entrega) insegura, medrosa, assustada, nervosa, oscilante, ofegante, àquele público que é igualzinho a ela.

[e firme, precisa, concentrada, brilhante..., sim, tudo isso também, como sempre - mas não é aí que mora a novidade. o outro lado dela é que nesse dia está soando alto, altivo, enternecedor, surpreendente e tão novo como, por exemplo, o discurso neogarotinho de cláudio lembo.]

o pedestal parece ter sido aposentado, a pose está trocada por matéria viva (sangue & osso). finalmente ela se apresenta a nós, seus pares arredios, como uma garota igual a um por um de nós, simples & insegura, algo escravizada, ainda por cima vestida, hiper-realista, num frágil & forte figurino cigano.

por sobre toda a névoa, eis o melhor e o pior da menina-mulher. não é impossível, ela não é difícil de ler. o mundo é portátil (& cheio de portinholas) para quem não tem nada a esconder. [a guerra civil entre a sambista eletrônica e a tribalista orgânica a penaliza, mas é fiel e leal representação de um tempo, não só no finito particular da artista, como no mundão ao redor - ela nos abre seus braços medrosos, e a gente tenta fazer um país.]

cindida em duas, ela se perde inteirinha (e abre um formoso sorrisão) ao tentar entrar no samba gaúcho descomunal de adriana calcanhotto, a mais completa tradução (feita por mais alguém) da relação entre a (des)apaixonada marisa monte e seu (des)apaixonado público (não) pagão: "só porque disse que não me quer/ não quer dizer que não vai querer/ (...) vai saber..."

[a gente quer, marisa, se você quiser também. e vice-versa. cara, a gente se repara - se ninguém colocar espinho e proteção anticópia no caminho para bloquear a dor.]

"faça sua parte/ eu sou daqui, eu não sou de marte", façamos nossa parte: aplaudimos, bajulamos e vamos embora, todos nós, de volta à chata vidinha "normal", esta na qual seguiremos "escandalizados" com a audácia do pcc e "indignados" com a desfaçatez dos mensalões e mensalinhos na classe política. anestesiados, amanheceremos de pele lisa e hidratada, esquecidos de que formamos no time sadomasoquista de elite branca, pequena burguesia, primeiro-comando-do-chiquê, uma horda de jabazeiros subservientes mendigando nas bordas da "high society", da cultura do marketing, do marketing da cultura.

[que fique dito com todas as letras, porque autocrítica é uma delícia: esse tipo de auto-indulgência que praticamos para nos sentirmos ilusoriamente sabidos e potentes (malandros?) se chama, em quatro letrinhas, jabá. é prima em primeiro grau de caixa 2, mensalão, mesadão, propina, tráfico, pcc. se mais bem trabalhada, sem tanta culpa ou juízo moral, pode aos poucos ir se convertendo em mpb, afago, presente, mumunha, mimo, carinho, jujuba (frumelo, gominha, mariola), amor.]

range a dobradura.

ah, maldita autocrítica..., será mesmo que seguiremos nessa tamanha fantasmagoria antiga de zumbis de mármore, velha roupa descolorida? ou já estaria irremediavelmente quebrado (também pelo nervosismo da linda índia cigana branca e colorida no topo do palco) o espelhinho surrado de 506 anos de história canibal?

"vem, cara, me repara", ela pede. nós a reparamos? ela nos repara? será que o pacto perverso de invisibilidades já é beijo partido? será como diria-diz-dirá adriana calcanhotto (e como dirá-diz-disse cláudio lembo), que "tudo o que se sabe sobre o amor/ é que ele gosta muito de mudar/ e pode aparecer onde ninguém ousaria supor"? [eu acredito que sim.]

será que a moça fendida em duas metades está em processo de reunificação? ou segue o seco do "não" ao desarmamento?

segue o seco do "não" ao desarmamento? ou será que, provocados por ela & provocando-a, nós estamos (estarei eu?) buscando sanar a guerra civil-umbilical nossa de cada dia?

quinta-feira, maio 18, 2006

"subversivos", nós?

ãhn, como assim??? "subversivos"?, dentro da rede globo? subversivos?, na "folha", no "estado" e na editora abril? na warner, na sony e na universal? na universal do reino de deus, na católica e no candomblé? subversivos na fiesp, nos presídios de segurança máxima? no crime organizado, no crime desorganizado, no pcc, entre os daslumbrettes? na vila sésamo, no jardim de infância da sua filha, no sítio do picapau amarelo (subversiva, a emília do "reacionário" monteiro lobato)? no congresso nacional, no governo federal? no pfl, no pt, no psdb? em niuiorque, no mst, nos jardins de paris, no jardim filhos da terra? "subversivos" na sua própria família, dentro da sua casa, na frente do espelho, no gogó da ema?

quem aí, afinal, é "subversivo"?, quem aí advoga as causas de "reacionário"? tu és uma subversiva a serviço do "inimigo" convervador, ou és tu um reacionário a serviço da caixa 2 subversora?

qual é a origem de toda esta nossa brasileiríssima dubiedade (alô, sr. claudio lembo!), qual será o seu destino? que guerra civil é esta que mora dentro de nós, indivíduos que erigimos a superestrutura "corrupta" e "inepta" que gostamos tanto de ofender e vilipendiar? os agredidos SOMOS os agressores?

"carta capital" ainda quentinha nas ruas, nº 393, 17 de maio de 2006. vamos conversar sobre isso, à luz do 13 de maio?

[ah, antes que eu me esqueça do mais importante: a bênção, nelson rodrigues!!!]


SUBVERSIVOS GLOBAIS
Uma série de reedições de discos da Som Livre evoca as relações tensas entre a rede líder e seu elenco "progressista"

Por Pedro Alexandre Sanches

Os discos com as trilhas sonoras de Vila Sésamo (1974) e Sítio do Picapau Amarelo (1977) têm sido os mais procurados da série Som Livre Masters, que trouxe de volta à tona 25 títulos raros do acervo da gravadora da Rede Globo. Mas nem todos que as ouçam em 2006 se lembrarão de episódios contraditórios que se desenrolavam por trás delas. Se a Globo ainda enfrenta o estigma de ser vista como uma das sustentadoras centrais da ditadura militar então instalada no Brasil, o elenco de artistas, intelectuais, dramaturgos e outros profissionais que construíam o cotidiano da rede era formado em sua maioria por pessoas que diziam contestar fortemente a ditadura.

Eram, em sua maioria, indivíduos que se classificavam como progressistas, esquerdistas ou transgressores, quando não como propriamente comunistas ou subversivos. Acreditavam encarar o sufoco da repressão fazendo as ideologias que portavam vazarem pelas frestas da programação, até mesmo a infantil. Globo era o nome da contradição.

Na trilha sonora do Sítio do Picapau Amarelo, o diretor musical Dori Caymmi tirou do ostracismo, por exemplo, o engajado Sérgio Ricardo, que deixou vazar para o tema da boneca Emília o espírito de treva da época: Pobre de mim, Emília, me traga uma notícia boa (...) Por mais que o sol se esconda e cruzes se cravem no raiar do dia.

"Eu tinha tido uma necrose na perna, e Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, homem forte da Globo à época) salvou a sobrevivência da minha família, me botou de funcionário, comecei a receber um salário, tive toda a liberdade para chamar quem eu quis. Para a trilha do Sítio, chamei Sérgio Ricardo, Jards Macalé, Ivan Lins e Vitor Martins, João Bosco e Aldir Blanc, Geraldo Azevedo, um bando de subversivos", lembra Dori.

Era quase regra na Som Livre dos anos 70, como denota a série de CDs de agora, que reedita obras de "malucos" e/ou "subversivos" do porte de Alceu Valença (Molhado de Suor, 1974), Sidney Miller (Línguas de Fogo, idem), Novos Baianos (Vamos pro Mundo, idem) etc.

Outro exemplo é o da trilha de Vila Sésamo, criada pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Em pleno reinado de terror e repressão, eles produziam letras prosaicas que elogiavam, para um público de crianças, valores como tolerância, coragem, respeito à diferença (eu sou o Funga-Funga e sou um pouco diferente/ mas não entendo por que todo mundo me olha como se eu não fosse gente, cantava um dos "monstros" do seriado), independência e autonomia (use independência em tudo que escolher/ lute pelas coisas que você quiser/ mas para começar acredite em você) e assim por diante.

"É claro que fazíamos isso de modo proposital. Pensávamos no que gostaríamos de falar para nossos filhos", afirma Marcos Valle. À época, o programa adaptado do original norte-americano era tachado por segmentos da esquerda como "agente do imperialismo". "Hoje chega a ser engraçado isso. Se eu comparar a nossa intenção educacional com a de alguns trabalhos de hoje em dia, acho que as crianças da década de 70 saíram ganhando."

O uso da brecha foi constante na primeira fase das trilhas sonoras de novelas, várias das quais devem ser reeditadas ainda neste ano, numa próxima fornada da série Masters. A equipe criadora das trilhas, no início, abrigava músicos de espectro ideológico dos mais amplos, dos "malucos-beleza" Raul Seixas e Paulo Coelho (O Rebu) e Zé Rodrix (Corrida do Ouro) aos mais dóceis Roberto e Erasmo Carlos (O Bofe).

Para Boni, hoje afastado da rede, "a Globo era uma emissora tocada por profissionais de características liberais, todos eles, em todos os postos possíveis". Contando que era de esquerda "no tempo de estudante" e iniciara carreira como assistente do dramaturgo comunista Dias Gomes, futuro autor de novelas globais como O Bem-Amado (1973) e Saramandaia (1976), ele resume: "Éramos inimigos íntimos do regime".

Mas Boni admite que representantes da direita também trabalhavam ali. "Havia gente colocada dentro da Globo para fazer meio de campo. [O editorialista] Edgardo Ericksen era imposto lá dentro. A função dele seria teoricamente defender os interesses da Globo, mas na verdade defendia os interesses da ditadura", relata.

Dori Caymmi, que diz ser de esquerda até hoje, faz sua descrição do mesmo cenário: "O décimo andar da Globo era cheio de coronel, coronel isso, coronel aquilo. Era a direção-tabu, o departamento financeiro, pessoas ligadas ao governo militar, onde ficava também o dr. Roberto Marinho. Ali no olimpo, como o pessoal chamava, ficavam os deuses militares. Ali a gente nem chegava. O máximo a que nós, artistas, chegávamos era ao nono andar, onde estava o Boni".

"Todos os dirigentes do PCB integraram a Globo. A idéia era aparelhar, ocupar o espaço antes que os reacionários ocupassem", diz Zé Rodrix, "comunista, marxista e fundador do PT" que fez sucesso com o hino politizado Soy Latino-Americano (1976), de inspiração cubana, e apresentou o Globo de Ouro ao lado de Gretchen.

Parceiro de Rodrix, Gutemberg Guarabyra viveu experiência-limite ao dirigir o tumultuado VI Festival Internacional da Canção de 1971. Compositores como Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Marcos Valle e Paulinho da Viola retiraram em grupo suas músicas da competição, num protesto contra a censura a algumas das canções.

Por trás do levante estava também o próprio diretor. "Tratou-se de um movimento liderado por mim, de dentro, sem que a Globo soubesse. Era horrível a situação, pois eu tinha que continuar trabalhando na montagem do festival, enquanto, ao mesmo tempo, tratava de esvaziá-lo", lembra Guarabyra, "desmascarado" e demitido em seguida.

Outro caso drástico, também de 1971, foi o do programa musical Som Livre Exportação (que a seguir originaria o nome da nascente gravadora da Globo). Era comandado pelos Mutantes, por Elis Regina e por jovens músicos do MAU (Movimento Artístico Universitário), como Gonzaguinha, Ivan Lins, Aldir Blanc e Cesar Costa Filho, e roteirizado pelos notórios comunistas Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes.

Conta Ivan Lins, que se define "esquerdista entre aspas, sem visão partidária": "A idéia era levar um programa que, até o possível, usasse a tevê para manter acesa a chama da contestação estudantil. Havia uma conotação política por baixo, que esbarrou na censura logo imposta pelo governo, quando puseram um coronel lá dentro. Quando houve a gravação de um espetáculo ao vivo, reunimos 100 mil pessoas, e o governo abriu os olhos e orelhas de vez".

Ele prossegue: "Gonzaguinha tinha que cantar só as músicas de amor, estava totalmente amordaçado. A música O Amor É o Meu País me protegia, porque achavam que era patriótica. Fui obrigado a cantá-la numa gravação patrocinada pelo regime, as Olimpíadas do Exército. Elis, coitadinha, falou que não ia, 'não vai como?', não tinha por onde escapar, o presidente Médici babava sangue".

Combalida, a resistência seguiu pela fresta, como na música-tema de O Bem-Amado, em que Toquinho e Vinicius de Moraes escreviam que tamos trancados no paiol de pólvora/ paralisados no paiol de pólvora/ olhos vendados no paiol de pólvora/ (...) tevê a cores no paiol de pólvora.

Outro caso extremo aconteceu já no governo Geisel, em 1975, quando Roque Santeiro foi integralmente censurada, às vésperas de ir ao ar (só foi liberada e regravada em 1986). "Era adaptação de uma peça do Dias Gomes, O Berço do Herói, que era a história de um militar que fugiu de uma batalha, sumiu, foi dado como morto e transformado em herói. Na realidade, era um desertor, um covarde", lembra Boni. "Foi censurada porque eles grampearam o Dias, num telefonema em que dizia 'mudamos de nome, conseguimos passar, vamos fazer O Berço do Herói na tevê'."

Hoje um dissidente redigindo a novela Cidadão Brasileiro na Rede Record, o dramaturgo Lauro César Muniz, autor de Escalada (1975) e O Casarão (1976), defende a posição que ocupava: "Para aquele momento, éramos mais que progressistas e transgressores. Agíamos com plena consciência para minar e enfraquecer a ditadura. Apesar de censurados, tínhamos um público imenso, manipulado pela ditadura. Por que não tentar transmitir idéias libertárias, por mais tímidas e reduzidas?".

Muniz fala sobre a tática da fresta: "Conseguíamos burlar a vigilância com temas sutilmente libertários, como divórcio, feminismo, anti-racismo. Em Escalada, eu estava proibido de mencionar o nome de Juscelino Kubitschek, nem por apelido ou sigla. Encontrei um caminho fazendo um personagem assoviar Peixe Vivo, música-símbolo de JK".

Mensurar quanto das pequenas vitórias era assimilado pelo público consumidor é tarefa difícil, mas elas eram comemoradas e fundamentavam a crença interna dos "subversivos" em seus objetivos.

Boni repele que a atitude da Globo fosse de cooptação, e a dos artistas, de adesão. "Ninguém aderiu ao sistema. Nós sobrevivemos ao sistema. Dias Gomes nunca aderiu ao sistema, nem Otto Lara Resende, Vinicius de Moraes, Jorge Amado. O sr. Ferreira Gullar nem tinha onde cair morto, mas era um intelectual, foi para lá e jamais foi um adesista. O que íamos fazer? Entregar para a ditadura e ficar reclamando em casa? Preferimos a trincheira, sempre consideramos que éramos os libertadores, não os adesistas."

Os artistas também eram bombardeados por isso, como conta o bossa-novista Osmar Milito, compositor de trilhas e do primeiro disco de autor da Som Livre, ...E Deixa o Relógio Andar! (1971, também relançado agora): "Ruim era em relação a outros artistas. Pintava inveja, o cara era tachado de reacionário, 'burguesinho', 'globete'. Eu era 'o pianista da televisão', não era bem visto. Mas é um grande mercado, não se pode jogar para o alto".

O compositor, produtor e jornalista Nelson Motta foi um que atraiu a ira da colega global Dina Sfat, ao compor, com Marcos e Paulo Sérgio Valle, o tema triunfante do ano novo de 1972: Hoje é o novo dia/ de um novo tempo/ que começou nesses novos dias... Soava como adesão ao "novo tempo" da ditadura, o que Motta nega: "Me assustei, isso nem passava pela minha cabeça".

Ele lembra o trânsito que fazia entre os setores artístico e jornalístico das Organizações Globo: "Em 1973, fui trabalhar n'O Globo, que era um jornal velho, horroroso, escroto, domínio absoluto da ditadura. Evandro Carlos de Andrade virou diretor e deu uma limpada, chamou gente. Achei que era importante eu ser uma janela liberal dentro de um canhão conservador".

Em depoimento ao livro Eles Mudaram a Imprensa (FGV, 2003), Evandro Carlos de Andrade descreveu a relação entre Roberto Marinho e "seus comunistas": "O dr. Roberto me chamou e disse: 'Olha, estou recebendo muitas queixas de que a redação está cheia de comunistas'. Respondi: 'Dr. Roberto, está mesmo. Agora é o seguinte, prefiro trabalhar com comunista do que com udenista. (...) Porque comunista sabe o que pode fazer, não se mete a besta, é profissional, faz aquilo só e sabe que não pode ir além. Já udenista acha que está no poder e começa a querer fazer coisa que não pode'. Ele disse: 'Você tem toda a razão'".

Dori Caymmi vai além nessa linha: "Todo inimigo que tinha, o dr. Roberto contratava e marginalizava. Pegava caras que eram críticos no campo literário e jornalístico e os colocava para fazer roteiros em linha de show, comédia". Enquanto Dori ainda insistia na brecha com o Sítio, as tensões dos anos anteriores aos poucos se dissipavam no hedonismo da discothèque, da boate Frenetic Dancin' Days, de Nelson Motta (que em 1978 viraria novela homônima de Gilberto Braga).

"Vi muito comunista dançando na night, derretendo na pista do Dancin' Days. Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Glauber Rocha, Luiz Carlos Barreto, Bruno Barreto. Não sei se os mais esquerdistas nos tachavam de alienados. A mim, só pediam ingresso", afirma Motta.

A essa altura, a politização perdia terreno rapidamente para o escapismo, o que pode ser ouvido na coleção pelo álbum de discothèque de 1977, de um Tim Maia resgatado havia pouco da fase "viajandona" da Cultura Racional. Você quer viver legal? (...)/ pense menos", assim ele começava o LP, prefaciando um discurso que dali em diante prevaleceria por décadas.

quarta-feira, maio 17, 2006

ei, ema!!! tira o pescoço do buraco!, tá tudo calmo aqui fora!, parece que o pior já passou!

a demonstração de "emismo" dada pela população paulistana na segunda-feira pós-aniversário da abolição da escravatura foi um espetáculo dantesco, você não acha? eu enfiei meu pescoço no buraco (a bunda ficou à mostra, mas essa já é uma outra questão...) às 19h, e você? pegou o esconderijo das 16h?, o atalho das 17h?, o cano de escape das 18h?

sentiu segurança quando se viu dentro de casa, do lar-doce-lar? da minha janela dava para ver as luzes "ffflashhhhh" e ouvir os rotores "trrrrrrrrrrrr" dos helicópteros, que passavam rente que nem pão quente.

o calmante da ema aqui não poderia ser outro: desatei a ler sem parar, até acabar bem acabadinho, o "elite da tropa", o livro-ficção-reality-tragédia de luiz eduardo soares a seis mãos e três cérebros com dois (ex)policiais do bope (a tropa de elite da polícia militar carioca), andré batista e rodrigo pimental.

zeitgeist na veia, a ema aqui estava chegando justamente à segunda metade do livro, aquela da narrativa vertiginosa de um dia de "parada do orgulho marginal" lá no rio de janeiro, igualzinho a essa segunda-feira das emas paulistanas pós-pré-abolição. os helicópteros faziam "trrrrrrrrr" ao redor da leitura cá dentro que É a vida lá fora. os "trrrrrrrrrr" ainda se fazem ouvir de quando em quando, em casa ou na firma, na rua, na chuva ou no ministério da fazenda.

não há discursos coesos que eu queira construir agora (se ousasse, me atrevo a apostar que eu não ia dizer o que você gostaria de ouvir - prudência e canja de eminha não faz mal a ninguém, diria minha mãe a esta ema atarantada pelos "trrrrrrrrrrrrr" que ontem tornavam mais emocionante a leitura blade-runneriana nossa de cada anoitecer. adrenalina corre no sangue das emas, mesmo as da tradicional família paulistana que, quando está na rua, compõe a multidão de emas do formigueiro humano dos tamanduás andróides. a gente-ema tapa o olho e entope o bico de terra fresquinha, mas a parte que fica de fora - bunda, plumagem, patas chocas - é um tremelique só, te contei, não?).

bem hollywoodianos, os efeitos especiais que rajavam minha nossa janela na segunda-feira pré-pós-abolição. ou melhor, bem projac, bem jacarepaguá, bem william homer-bonner com o bico amarelo atolado no topo do edifício cinco estrelas do prédio da globo no brooklin novo, ou ido$o, ou decadente, ôrd trêid $ente. "tô ficando atoladinho, tô ficando atoladinho, tô ficando atoladinho", gemeu a ema homer-bonner do topo do plim-plim, e enquanto a ema geme eu fico caladinho, vou ficando caladinho, tô ficando atoladinho.

fico caladinho, mas, ema que sou, peço socorro à ficção de "elite da tropa", trechos que eu já vinha separando da leitura para uso posterior (a epopéia da intuição nos engrandeceu nos dias que antecediam o 13 de maio e o dia das nossas "santas" mãezinhas - o que assistimos de choros, vômitos, crises, faniquitos, calafrios & discussões sobre humilhação-submissão-escravidão não foi brincadeira, não, comunidade).

descubro agora que são trechos caem como luva aos pés-de-pato das emas que quisermos tentar entender um mínimo dos "trrrrrrrrrrrr" que nos passam pela cabeça - não, não é o super-homem, nem a mosca que pousou em sua sopa - é um helicóptero mesmo. não adianta chorar, lois lane, a srta. é o super(wo)man de si mesma(o).

eis então trechos da fala do policial de "ficção" do bope - qualquer semelhança com fatos & personagens reais terá sido mera semelhança-plágio-sampler com os gemidos da ema. [minhas intervenções virão nos negritos habituais e em comentários itálicos colcheteados, mas não tentarei contextualizar por demais - quem quiser que leia o livro, o livre. porque, como diria o urso baloo da selva indiana cerrada de mowgli, em momentos de ema(ergência) eu uso o necessário, somente o necessário. o extraordinário é demais.]
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[para começar, um fragmento da introdução, que já freqüentou a janela vermelha outro dia, mas merece ser repetido feito um mantra, pelo gogó da ema, no quentinho gostoso do buraco da ema.]
"Os três autores sonhamos com o dia em que poderemos celebrar, no Rio de Janeiro, a reconciliação entre a sociedade e as instituições policiais, entre os membros de cada comunidade e os policiais. Para que esse momento se realize, é preciso, no entanto, como ensinou Nelson Mandela, olhar nos olhos a verdade e reconhecê-la, sem meias palavras e subterfúgios, sem hipocrisia e retórica política. Nua e crua. Mesmo que ela seja dolorosa e disforme. Mesmo que a encontremos apenas pelas mediações da ficção. 'Verdade e reconciliação', ele dizia, quando derrotou o apartheid. Só se alcança a reconciliação, atravessando-se o duro momento da verdade. A psicanálise também demonstra que o luto é uma etapa necessária à superação do sofrimento. O luto supõe o reconhecimento das perdas." [engole o luto, ema. ele é amargo, mas como dizia a ema-mãe, o que arde cura. tá ardendo, mas nós tamo agüentando.]
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[no buraco da ema, no debaixo empoeirado da tua cama, dentro do armário naftalinado, você dorme o sono dos justos?, sob o "trrrrrrrrrr" que ribomba lá fora? poxa, mano(a) de cor, desconfio que não. o inferno é lá fora, mas acho que é aqui dentro também, tem helicóptero "trrrrrrrrr" zumbizando dentro do cérebro também, quer ver só?]
"Quando o subordinado chama o comandante pelo rádio e pergunta, 'chefe, posso trabalhar o meliante?', está pedindo autorização para fazê-lo cantar, ou seja, para fazê-lo contar o que sabe. Da mesma forma que o governador autoriza o secretário da segurança a autorizar o comandante da PM, a autorizar o policial, quando lhe diz: 'Faça o que for necessário para resolver o problema'. O governador dorme o sono dos justos; o secretário descansa em berço esplêndido; o comandante repousa como um cristão; e o soldado, lá na ponta, suja as mãos de sangue. [ponha-se no lugar do governador-secretário-comandante-policial-soldado-raso, vista o colete das otoridades, mire-se no exemplo daqueles homens (& mulheres) de atenas. o(a) governardor(a) de si mesmo(a) não é tu, tatu?] Se der merda, o bagulho estoura no elo mais fraco, é claro. Quem paga o pato é o soldado. Quem vai a juízo é o soldado. Quem freqüenta as listas das entidades internacionais de direitos humanos é o soldado. O governador é ambíguo para descansar em paz; o secretário é sutil para preservar a consciência; o comandante cultiva os eufemismos e opta pelo vocabulário enviesado para proteger a honra e o emprego. Sobra para o soldado, que bota pra foder por dever de ofício. É curioso: a ambigüidade só pode ser cultivada nos ambientes solenes do Palácio do Governo, onde a impostura e a violência são adocicadas pela coreografia elegante da política.

Quando a arena é a favela, os rituais são outros, menos sofisticados. Na praça de guerra não há espaço nem tempo para a solenidade e as ambivalências. O que era doce fica amargo, azeda e cai de podre. A gente, que atua lá na ponta da cadeia de decisões, colhe o fruto podre e faz o que pode para digerir [tudo cabe no gogó de jibóia da ema]. Por isso, talvez seja mentira dizer que só há ambivalências nos salões da corte. Elas estão por toda a parte. E estão aqui entre nós. E dentro de nós, em mim e em você."
[percebeu, ema thompson, que a ambivalência de início não cabia ao discurso defensivo do soldado raso, mas que isso durou a fração-fricção de uns poucos segundos? percebeu, ema thurman, que o soldado-ema logo se confessou tão ambíguo quanto o governador e eu e tu e o rabo do tatu? o buraco da ema É o buraco do tatu?]
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[com você agora, caro ouvinte da rádio tatu, uma descrição serena do cenário plácido da favela-cérebro presente em cada canto-escaninho-cachola do brasil-iraque-estados-desunidos-de-neworleans. caia nessa gandaia, entre nessa fera.]
"O beco desembocava em um pátio amplo, razoavelmente iluminado, cercado de casas de dois andares, a quadra da escola de samba, postes, fios enrodilhados pelos milhares de gatos [ei, caro ouvinte da rádio tatu, e você?, tem gato em casa? eu qero dizer gato da net, gato global, não gato que faz miau, você tem? ou tamborim de couro de gato é só coisa de favelado? o crime é lá fora, não mora aqui dentro da toca do tatu?, hein, ema? ema, ema, ema?, cada um com seus pobrema?] e algumas árvores isoladas, que o poder público plantara, provavelmente para que não se dissesse que não falou de flores. Filhos-da-puta. Eles todos, os traficantes de um lado, os políticos de outro [ei, seu polícia! e a polícia? e a imprensa? a esfera pública inteira, neste mundo que é uma bolinha? vai tudo pra conta dos bodes da casa civil?]. Nem sei se é mesmo assim, um lado e outro. Às vezes, é o mesmo lado, o bolo é um só. É o crime organizado, aquele que penetra as instituições públicas, como reza a cartilha."
[ah, ema, e as instituições privadas, vão ficar de fora também?, a gente-ema não vai nem sequer apertar a válvula da descarga? cê acredita mesmo na lisura das montadoras de automóveis, das lavanderias de lençóis, das fábricas branquinhas de celulose, do suco a mais que o restaurante cobrou "sem querer", da sampaulo féxon uíqui, dos tênis náique, da dasluluzinha (só as cachorra, au, au?)? foi só o evo que viu a uva?, e a folha-gol da(o) parreirinha?]
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[ema, você sente mais medódio dos "bandidos", ou dos "meganhas"? ou tanto faz?, cê quer mais que eles vão todos para o inferno, enquanto você se aquece neste inverno, à lareirinha, à lareirinha, à lareirinha? pois "veja" (ou melhor, leia) aqui o que eles, os policiais à margem do teu buraco quente, pensam sobre você-eu, ó, ema. engula agora esse despertador, mais tarde ele dirá "trrrrrrrrrrrr" dentro de seu estômago de avestruz.]
"O dia D aconteceu quando o comandante do 23º determinou que eu me deslocasse com urgência para a rua Marquês de São Vicente. 'Manifestação de estudantes da PUC bloqueando o trânsito e provocando engarrafamento monstro.' A tropa sob minha responsabilidade não era lá flor que se cheirasse [ah, sim, a polícia também, né, seu polícia?!, que bom que o sr. está se vendo no painel do (e-)leitor! @!], o que me preocupava, sobretudo porque, do outro lado, estavam as flores da burguesia carioca - aquelas maravilhosas patricinhas da PUC - e os mauricinhos que cheiram pó, no sábado, e fazem passeata pela paz, no domingo.

O comandante me alertou:

- Veja lá, tenente, o que vai me aprontar. Vai devagar. Se você descer o cacete nos herdeiros da elite carioca, sou eu que vou pagar a conta. Cuidado. Na PUC, só tem padre e sobrenome. Segura o seu pessoal. Abre a rua e não faz confusão."
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[eminha, emilinha, vamos espairecer um pouquinho, falar um tiquim de diversão? você já deglutiu boate, cabe no seu aparelho digestivo de come-come? boate hétero, boate gay? bebeu sauna? inalou clínica de aborto? cheirou boca de pó de pirlimpimpim? oficina mecânica? estacionamento? camelô de sóftuér, soutien & cd? engasgou dp? flanelinha, zona azul, capataz? fezinha no bicho? bingo? videopôquer? orelhão? boteco da esquina? fliperama? rêive, escólbits, fridjés féstivól? lan-house (já que agora a gente é ema pós-pós-moderna)? já molhou as mãos dalgum coronel santiago alguma vez, para se livrar de encrenquinha, encrenca ou encrencona? ema, tu É o tatu-bolinha, passa todo dia na cidade por essas coisas todas e não as vê a um palmo do seu nariz? cê vai rolando por aí sempre a procurar, quem sabe vir a achar razão para viver?]
"No 19º Batalhão, Santiago se converteu no personagem que nós, do BOPE, chamamos 'um convencional típico'. (...) Passou a representar o pior da polícia convencional. (...) Resultado: toda sexta-feira, lá estava o Santiago, supervisionando a coleta da propina do bicho e dos pontos especiais.

Os pontos especiais variam conforme as características do bairro. As saunas, boates e casas de massagem são os exemplos mais comuns, sobretudo aquelas que preferem não ser incomodadas com batidas policiais para verificar a idade das meninas de programa, ou dos rapazes que fazem michê. (...) As clínias de aborto e as oficinas mecânicas não autorizadas, que invadem as calçadas e atravancam as ruas, também são boas fontes. Estacionamentos irregulares e postos fixos de camelôs, agenciados por empresários do ramo, rendem uma boa grana. A polícia vive do que é ilegal. Quanto mais desordem houver, maior o lucro dos convencionais. (...)

Em pouco tempo, além desse pequeno varejo da corrupção, Santiago descobriu os filões mais promissores desse campo de negócios: as vans, a segurança privada ilegal, os grampos telefônicos, as maquininhas de videopôquer e caça-níqueis, o velho mas sempre rentável bicho (...) e os arregos, quer dizer, as transações com traficantes. (...) Virou um expert, um profissional, um mestre na arte de extorquir, chantagear, blefar e manipular. [já notou, tatu?, a presença diária dessas palavras sussurradas em texto e fala nas páginas, nos rádios e nas tvs?, ainda que não proferidas de modo assim tão assumido & bruto, murmuradas sob o silenciador por cima do "trrrrrrrrr" chocante dos termos nauseabundos "extorsão", "chantagem", "blefe", "manipulação"?]
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[papo de policial civil agora, ema(il). bate um grampo aí]
"O Lincoln vai com o Otacílio atrás do Anderson, aquele X-9 que o deputado Amarildo Horta meteu goela abaixo do Vitor, e que tá lotado na delegacia de Botafogo. Ele tá grampeando tudo que é artista, mulher de secretário, filho de autoridade, jogador de futebol, pra ver se garimpa alguma coisa que renda uma graninha pra ele e, principalmente, que renda ao Amarildo um movimento pesado no xadrez político. Quem diz Amarildo diz o governador, porque eles são unha e carne."
[iiiih! o governador??? as otoridades? jogador de futebol? (empresário?) artista? até tu, em(a)epebê?, tem treco a ocultar debaixo dos caracóis grampeados dos teus cabelos? êêita.]
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[só para reforçar, porque, como bem diz a globo, sempre vale a pena ver (ou melhor, ler) de novo, ó, pintassilgo:]
"Segurança privada ilegal, o grande negócio de delegados e coronéis; vans e ônibus clandestinos; bingos; grampos, legais e ilegais; as maquininhas dos ovos de ouro, que se multiplicam feito coelhos; o venerável bicho, gasto e antiquado, mas ainda na ativa; e as mil e uma transações com traficantes, em sua exuberante variedade, dos chamados arregos nas favelas - os pagamentos diários ou por turnos de policiais - aos acordos mais ambiciosos e arriscados, ou mais estratégicos, digamos assim. Às vezes, essas teias se embaralham e engatam na política, o que torna tudo mais saboroso - e muito mais explosivo. (...) É um tipo de trabalho duro e gratificante, que te enche de orgulho e vergonha, te sufoca com doses maciças de adrenalina e te leva ao céu numa espécie de viagem psicodélica, te mata de medo e te salva - pelo menos isso -, te salva da cadeira da sala, diante da TV, numa tarde de domingo, essa cova rasa que se cava a prazo. Tá certo, os policiais, sobretudo os do BOPE, são cadáveres adiados. Mas quem não é?"
[pomba rola!, rouxinol!, "cadáveres adiados"?, brrrrrrr, os helicópteros fizeram um minuto de silêncio agora. como é isso de orgulho & vergonha ao mesmo tempagora?! tudo ao mesmo tempo, é possível?! o orgulho É a vergonha? o pcc É você?...]
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[ah, tatu, teu filho tomou um sopapo, uma supimpa na cidade sitiada do pós-13 de maio? não, acho que não, nénão? foi o filho da outra que tomou, não foi? penas de pavão deixadas na sarjeta à parte, nas emas de cá ninguém encostou um dedinho, que as tocas das emonas têm insulfilm, e suas bundas são blindadas. mas que deu um medinho friorento no nosso avestruário, ah, isso deu, né?, dona daslu?]
"Esses meninos que vendem droga, de pé no chão, são uns miseráveis, uns pobres-diabos magricelas, que não têm onde cair mortos. Nem cabelo na cara eles têm. São uns moleques pés-de-chinelo, uns bagrinhos, hein? (...) Eles estão lá no morro deles, vendendo droga pra cambada aqui do asfalto. Mas a gente não desce a mão nos filhinhos de papai, ou mete? Hein, capitão? Mete? Não, é claro que não. A gente não é besta. A sociedade empurra esses bagrinhos da favela pra vala comum e nós somos os carrascos, nós somos os coveiros, capitão. Estou errado, capitão? Pode falar. Eles são puros, esses filhos-da-puta da elite e esses políticos. Eles é que cheiram, fumam, gozam, roubam, e a gente mata e morre pra manter as ruas limpas. Uma putaria, capitão. Uma tremenda putaria. A polícia é que faz o trabalho sujo, capitão." [eros & tanatos, hein? tanatos É eros, hein, ema emocore?]
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[o líder traficante narrado abaixo desistiu do tráfico, fugiu para a paraíba, foi recomeçar a vida longe de tudo, perto da própria origem. em plena tentativa de vôo livre, foi "resgatado" de volta por um conglomerado cuja rede de teias tangencia a nata da polícia, a nata da política, a nata do empresariado que produz os produtos que você mais gosta de consumir de manhã cedinho ou tardinho da noite. tentou ser ema sertaneja por um dia, olha só no que deu.]
"[o traficante] Atende o telefone. Vitor Graça, em pessoa. Era ele mesmo, o chefe da Polícia Civil. Conhece sua voz e seu jeito de falar. Quer 400 mil reais até o fim do dia e 10 mil reais por dia, a partir da semana seguinte. Dino teria de voltar à Rocinha e retomar seu posto no comando do tráfico. A galinha dos ovos de ouro não pode suspender a produção. A Polícia Civil precisa desta fertilidade, conta com ela."
[emas não voam. nem as mais medrosas, nem as mais corajosas. emas planam rente feito helicópteros, feito libélulas.]
@
[perfumes de oásis, só por uns momentos. fala agora uma assistente social de bangu i, com o olhar & o coração de quem aprendeu a ver de dentro o que aqui fora chamamos "barbárie", entupidos de medo ou pena ou nojo.]
"Aprendi a ver aquilo lá com outros olhos. Não é que aquilo não seja um inferno, mas quando a gente só vê esse lado, tende a colocar mais um tijolinho nessa imagem, sendo que essa imagem [& semelhança?] também é um tijolinho que ajuda a fazer daquilo um inferno. Não sei explicar muito bem. Pena e nojo não são os melhores sentimentos. Não ajudam a mudar coisa nenhuma. Só servem pra manter os críticos bem protegidos, bem longe daquela nojeira, daquele lixo, daquele inferno. Só servem para expiar as culpas da gente, Licinha. Na prática, nojo e piedade acabam empurrando aquela realidade pro fundo do poço, onde ela não possa ser vista. Assim, ela fica bem longe e o fedor que ela exala não contamina a nossa vida, Licinha, os nossos valores, a nossa superioridade."
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[mais um breve repeteco, o plantão grobo perguntinforma em edição extraordinária: divididas entre sentir raiva surda e nutrir piedade gritona pelos policiais, as emas tontas estão perdendo as penas. a piedade É o ódio? a peninha É o ressentimento? a agressividade passiva É a auto-indulgência?]
"Flores foi direto, educado, didático e profissional. Estive próximo de rever a imagem que tinha dele. O coronel, digamos, não gozava de boa reputação. Corriam muitos boatos. Diziam que ele era homem ligado a um famoso traficante, que liderava uma das facções criminosas do Rio de Janeiro. Você pode imaginar o que isso significa, mas, se não consegue, vou dar uma dica: partilha com os criminosos do lucro obtido pelo tráfico, em troca de certo direcionamento das incursões policiais, de acordo com os interesses da facção criminosa com a qual se negocia. Não é incomum esse tipo de aliança: a polícia é usada por uma facção contra a outra. Uma tática conhecida é a provocação de uma crise artificial numa favela dominada por determinada facção, para justificar operações que a enfraqueçam ou mesmo a expulsem do território, abrindo espaço para novos negócios, mantidos os antigos ideais... A facção beneficiada aproveita o momento para invadir a favela, dominá-la, apropriar-se da boca e da correspondente fatia do mercado de drogas. E assim caminha a humanidade. Se você está se sentindo revoltado, imagina o que eu e meus colegas sérios sentimos, quando descobrimos que estamos sendo manipulados e que nossas vidas não valem porra nenhuma. Infelizmente, nem todos os companheiros entendem o processo com clareza. Às vezes, culpam os políticos, sem compreender que, antes das manobras dos políticos, são os nossos camaradas e nossos superiores, muitos deles, alguns deles - vá lá -, os principais responsáveis. E a mídia bate palmas, fazendo papel de trouxa, enganando os otários que pagam impostos, inclusive os nossos miseráveis salários. Mas não se apresse a tirar conclusões simplistas: 'Coitados, eles se vendem por causa dos baixos salários'. Bullshit. Porra nenhuma. Fosse por isso a Polícia Federal seria imue a esses probleminhas. E não é, como você deve saber. A maioria da população brasileira é miserável e não se corrompe."
[o sr. diria o mesmo da população brasileira "rica", sr. ema flores? é questão de educação, etiqueta, isso é uma questão de classe? as emas que na segunda-feira corremos em meio ao trânsito engarrafado, engolindo garrafas na boquinha do biquinho, somos todas incorruptíveis, emas de reputação ilibada fugindo do crime em desabalada carreira, glu, glu, glu, abram alas pros perus? ora, mas se somos emas honestas, estamos fugindo de quê?, cacilda?]
@
de que estamos fugindo (ou fingindo fugir), ó, espelho, espelho nosso? aquele(a) de quem fugimos irá nos perseguir atrás do espelho? existe alguém mais ema do que nós?

[posso sair da toca, ema? acabou, já, o "trrrrrrrrr"? ufa, essa passou de raspão, hein?...]

segunda-feira, maio 15, 2006

guerra civil, coração civil

"não há guerras só no mundo externo, esse lugar objetivo em que as coisas ocupam espaço e cumprem as leis da natureza, independentemente da nossa vontade. há também os conflitos internos, que se travam dentro de nós, dividindo a nossa vontade ao meio. o campo de luta é o espírito, ou a mente, tanto faz."

o trecho acima foi extraído de "elite da tropa" (objetiva, 2006), escrito pelo antropólogo e cientista político luiz eduardo soares em parceria com os policiais militares andré batista e rodrigo pimentel. o personagem "de ficção", um policial de elite do bope (batalhão de operações policiais especiais), traça tais reflexões ao descrever o que sentiu, consigo próprio, quando de sua chegada à vida universitária, ao curso de direito na puc do rio de janeiro.

"foi uma guerra campal", "a praça de guerra era eu mesmo", ele conta. e vai enumerando as células em guerra civil que jogavam granadas uma nas outras, dentro de seu próprio organismo. "eu sabia que seria foda fazer o meu trabalho à noite, numa favela; pisar, de madrugada, no fio da navalha entre a vida e a morte; e passar a manhã na puc, ouvindo neguinho falar mal da polícia." "eu sabia que aquela não era a minha turma." "no fundo, pensando na puc, eu me sentia traindo meus companheiros de corporação."

enquanto são paulo vive uma "inesperada" guerra campal, talvez seja nutritivo dar ouvidos aos conflitos internos do policial "ficcional" do livro "inventado", conhecer o furor interior do cara que, sendo policial e sendo negro, não consegue se achar no direito de cursar direito na escola dos ricos brancos do outro lado da linha de fronteira da guerra que ele combate feito falcão da "legalidade".

esse policial que "quer", mas "não quer" estudar é como o rapper que luta para existir livre da pecha de bandido (não é nada à toa que luiz eduardo soares primeiro escreveu um livro com dois "meninos" do rap, mv bill e celso athayde, e agora repete o mesmo com seus duplos opostos - e idênticos -, dois policiais de elite que se auto-intitulam "feras profissionais", a seu serviço, cidadão, cidadã). ele é como o índio boliviano que cometeu a audácia de tentar ser presidente de república. é como o cara negro que ganhou sua cota social na faculdade e tem de encarar frente frente a comunidade branca e hostil que não o quer ali, em seus terreiros macumbeiros de pretensos "privilegiados" "hereditários". é como a mulher que guia no trânsito feroz de são paulo nervosa por não querer ouvir o grito "só podia ser mulher!". é como o cara gay que diz que já aprendeu a contornar os próprios preconceitos e homofobias, mas ainda assim se conserva enrustido dentro do armário. é como o cantor popular que move multidões no pulso de sua música, mas treme feito geléia diante de um "intelectual" o xinga de "brega", "cafona", "alienado". é como o cidadão pobre que recebe pela enésima vez (e de modo mais explícito que nunca) a cusparada na cara: a acusação de que seu voto é - sempre, sempre, sempre - errado, burro, ignorante, matéria orgânica destinada à lata de lixo.

nisso, o policial da puc é idêntico a esses & tantos outros de seus pares apartados uns dos outros, e por isso é tão bom ouvir a sua voz, enquanto a batalha campal se desenrola ali fora (ou melhor, cá dentro). o que ele está dizendo é o seguinte: a cidade sitiada que você está vendo lá fora é a mesma cidadela aprisionada que você está vivendo aqui dentro, dentro de você. se você estiver em guerra civil consigo, então automaticamente o mundo estará em guerra civil lá fora, e será sempre assim. e você olhará para o caos lá fora e culpará os "marginais", ou os "policiais" (a eleição é a gosto do freguês) - e continuará não entendendo nada, não conseguindo entender os porquês de tanta selvageria na política, na polícia, na cadeia e nos campos de futebol.

por quê? porque você não conversa com você, porque você não quer escutar a voz que vem de dentro e grita calada, agrupada a todas as (nossas) vozes, iguais à sua, resultando na guerra civil "lá fora" (ou "ali fora", já que o "lá" já está ficando ultrapassado).

você = eu = nós.

sexta-feira, maio 12, 2006

os menos vendidos

diz mais ou menos assim a canção que abre "homem-espuma", o novo (e segundo) disco do jovem grupo pernambucano mombojó, ó:

"o mais vendido"
(felipe s.-marcelo campello)

"não quero ser
o mais vendido
nem quero falar
só com seu ouvido
eu quero entrar
no seu coração
no seu coração

nem quero falar só de amor

eu vou tentar
só mais uma vez
quero estar
no seu coração
no seu coração

nem quero falar só de amor"


ah, que belo modo de dizer bom-dia a uma manhã chuvosa de sexta-feira... inda mais com um disco chamado "homem-espuma"..., você conhece título mais bonito do que esse? (você também é um homem-espuma, rapaz que freqüenta o blog do pas?).

pois então. distraindo e desfocando por um segundo a retórica da humilhação encaixotada que temos espinhosamente percorrido neste blog, eis que aparece de sopetão "o mais vendido", a jovem guarda que abre delicadamente o disco novo do mombojó.

graças a ela, a essa balada de 2min24seg, a esse iê-iê-iê romântico, pela primeira vez me ponho a pensar abertamente, em forma de música (im)popular, sobre o duplo sentido maroto (& maquiavélico) escondido atrás desse objeto de desejo que é a expressão-mote "o mais vendido".

nesta sociedade de outdoors, jabaculês e caixas 2 por todos os canteiros [alô, dona globo, a sra. tem conta nas bahamas, como acusou o travesso (anthony) garotinho? ou garotinho se chama pinóquio, é menino-espuma feito de pau?], nos acostumamos à idéia de que temos valor sempre de acordo com quantidade, nunca de acordo com qualidade.

ser "o mais vendido" é a nossa meta automática de vida, seja vendendo disco, jornal, informação, entretenimento, sonho, remédio, obturação dentária, aço, petróleo, vitória futebolística, competição, multa de trânsito, bala perdida.

mas aí vêm esses garotinhos pernambucanos e proferem assim, candidamente, "não quero ser o mais vendido/ nem quero falar em seu ouvido/ eu quero entrar/ no seu coração". ele quer entrar, assim, pedindo permissão, educadamente? ["então entre/ entre sem bater/ entre, entre sem bater em mim", alô, dona rita lee!, alô, ano 2000!, alô, "3001"!]


o homem-espuma é o homo emotivus do século xxi? no século que rói a placenta, atingir o coração será moeda corrente mais valiosa que o fetiche de ser o mais vendido?

"nem quero falar só de amor", vêm esses menininhos nordestinos declamar, encharcados-esponjosos de tanto amor [alô, bob esponja!]. é preciso parar de falar só de amor, para que se possa voltar a falar só de amor? [alô, del rey!, alô, china!, alô, tremendões!, alô, lafayette!, alô, roberto carlos (& erasmo & wanderléa)!]

pois sim, vêm de repente esses novos homens brasileiros e, enfim, desmascaram o duplo sentido perverso que sempre morou passivo-agressivo dentro do desejo-fetiche de todos nós que tanto sonhamos em ser "os mais vendidos". porque... quem é o mais vendido? o mais vendido é aquele que vende mais discos, livros, notícias de jornal, frascos de perfume, vidros de coca-cola, denúncias de corrupção, agressões físicas & psicológicas, humilhações? o mais vendido é o mais consumido? ["consumir é viver/ conviver é sumir"?, alô, paulinho da viola!, alô, marcus vinícius!, alô, 1971!]

ou o mais vendido é aquele que se vende mais?, aquele que se vende mais fácil e rapidamente?, aquele que se vende com maior sofreguidão? vender É ser vendido, sem nem ter tempo de parar para pensar em assunto tão quantitativamente desimportante? o verbo "vender" é reflexivo?, você se reflete nele?, você reflete sobre ele? você já foi um outdoor hoje pela manhã?

então. faço minhas as palavras do mombojó, obrigado, mombojó. bom-dia, mombojó.

quarta-feira, maio 10, 2006

a ema gemeu no tronco do juremá *

e eis que, sem que nem nos déssemos conta, nossas mais recentes discussões apontaram, aqui & alhures, para o rumo inesperado (será?) de tema espinhosíssimo: a humilhação, a voz rouca (alô, cássia eller!, a bênção!) dos humilhados (& de seus algozes).

acho que é hora, portanto, de beliscar com dedos mais enganchados esse veio que se apresentou a nós. começo por um prólogo duplo, recolhido de dois momentos da "carta capital" que são distintos no tempo e (em parte) no espaço, mas que, como se notará com facilidade, se interligam em conexões amplas e também (in)esperadas.

o primeiro, da edição 369, de 23 de novembro de 2005, chama-se "a rebeldia recuperada", e versa (ou melhor, proseia) sobre aquilo que conhecemos tradicionalmente como mpb.

o segundo, da edição 377, de 25 de janeiro de 2006, batiza-se "a outra vida de odair", e proseia (ou melhor, rima à moda do hip hop) sobre... aquilo que (não) conhecemos tradicionalmente como mpb.

daqui a pouco a gente chega mais além, mas, por enquanto, já há pano para mangas & mangueiras, não há?

[podemos até, pelo meio do caminho, falar, quem sabe?, sobre "carioca", o novo disco do sr. chico buarque, pois não? comecei a ouvi-lo hoje, e, em meio a uma profusão de canções denominadas "as atrizes", "ela faz cinema", "renata maria" etc., eu garrei a maginá, ó, cabocla maringá. fiquei imediatamente curioso, ansioso mesmo por saber opiniões femininas (alô, meninas!) sobre o disco, em conexão direta com aquele velho chavão que já cansamos de conhecer, que determina que chico buarque entende & traduz como ninguém mais a "alma feminina". será que as mulheres presentes no recinto avaliam que ele entende & traduz mesmo, e que ele continua a fazê-lo, neste novo disco povoadíssimo por figuras femininas? será que sentem suas almas representadas pelo velho francisco quando ouvem "as atrizes", "renata maria", "porque era ela, porque era eu" etc. e tal? e as "almas masculinas", o que diriam a respeito?]

[xiiii, será que a gente dá conta de tanto assunto ao mesmo tempo, quandonde tudo se mistura & ondequando a(o)s humilhado(a)s SÃO o(a)s humilhadora(e)s? emas vorazes que somos (alô, denise!), conseguiremos engolir tudo quanto é despertador & taco de golfe & ferro de passar que passar voando sobre nossos chifres, sem maiores indigestões? tô apostando que sim... de volta ao "percurso-vida ('percursubida'?) na terra-mãe concebida de vento, de fogo, de água e sal, ô, menina" *, portanto:]


1
A REBELDIA RECUPERADA
As imagens tensas da MPB sob censura, em 1973, saem do anonimato

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Elis Regina foi intensamente vaiada porque, supostamente, havia se transformado numa apoiadora da ditadura. "Censura filha da puta", gritou Chico Buarque de viva voz ao público do Anhembi, porque haviam desligado seu microfone. Outro vaiado foi Caetano Veloso, por trazer o "cafona" Odair José ao palco numa tentativa de, guerreando, pacificar facções "inimigas" da MPB. O grupo MPB 4 cantou um tema de oposição frontal ao regime ("você corta um verso e eu escrevo outro"), e a repressão nem se moveu. Gal Costa e Maria Bethânia beijaram-se na boca, também sem censura ou vaia.

Era 1973. Uma multiplicada pela outra, a tensão e a criatividade correram em pistas paralelas de mão dupla durante os quatro dias do festival Phono 73, que reuniu o volumoso e heterogêneo elenco da gravadora Philips numa hercúlea demonstração de força, união e resistência contra a asfixia imposta pelo regime militar. Sendo tudo isso, era também uma operação mercadológica orquestrada pelo presidente da companhia, André Midani, como caracteriza hoje, sem meias palavras, o diretor geral original do evento (e da gravadora), Armando Pittigliani.

"Era marketing, completamente. Sempre foi e nunca vai deixar de ser, tanto é que é reeditado até hoje", ele afirma, consciente de que o espírito daquele tempo e o passar dos anos converteram a investida publicitária em momento histórico e retrato de época, mais que "o canto de um povo" que o subtítulo da epopéia queria vender.

Pittigliani fala das reedições pensando no mais cuidadoso projeto de restauração do episódio, lançado agora pela Universal, gravadora herdeira daquela em que ele permaneceu 38 anos, até 1993. Ao preço médio de R$ 90, o Phono 2003 inclui dois CDs de áudio reconstruído digitalmente e um DVD que agrupa 35 minutos de imagens raríssimas.

Graças a esse bônus, fica disponível para o comércio pela primeira vez a mitológica cena da censura ao vivo de Cálice, uma parceria recém-criada por Chico Buarque e Gilberto Gil. Ao ousarem desrespeitar o veto militar ao "pai, afasta de mim esse cálice", improvisaram uma versão cantarolada em língua inventada, mas que não se furtava de repetir com insistência o mote "cálice", "cale-se", "cale-se"...

"Guilherme Araújo [então empresário do grupo tropicalista] disse para todo mundo que foi a companhia que desligou o som. Para ficar bem com os artistas, ele ia sempre contra a gravadora. Até hoje Chico pensa que fomos nós. Mas, não, o teatro estava cheio de agentes de terninho azul, que deram à mesa de som a ordem de desligar", relembra o diretor.

As cenas precárias, às vezes sem sincronia entre som e imagem, são de puro valor documental. O susto e o espanto são inevitáveis para quem não conheceu ou já esqueceu como se comportavam e se vestiam e se moviam, entre outros, Raul Seixas, Toquinho & Vinicius, Jorge Ben, Nara Leão, Sérgio Sampaio etc.

Elis aparece na semi-escuridão (a propósito, o show era iluminado pelo também mitológico diretor teatral Ziembinski), aguardando altiva e silenciosa a dissipação das vaias por ter cantado, pouco antes, nas oficialescas Olimpíadas do Exército. "Não sabiam que ela foi obrigada a participar, com ameaças mesmo, e não teve peito para recusar", protege Pittigliani, estendendo à gravadora e a si os dilemas e paradoxos resultantes da forte polarização política de então. "Financiávamos o Pasquim, mas éramos vistos como imperialistas. Fui preso várias vezes, fiquei seis horas sendo interrogado no Dops e ao final o cara reclamou que não gostava do que fazia, pediu emprego na gravadora."

O material filmado por Guga de Oliveira foi engavetado à época por desacordos financeiros, e também por razões econômicas não abrange tudo o que aconteceu num festival que envolveu, além dos já citados, artistas tão díspares quanto Wilson Simonal, Fagner, Jair Rodrigues, Ivan Lins, Wanderléa, Jards Macalé, Erasmo Carlos, Jorge Mautner, Ronnie Von...

Do beijo trocado por Gal e Bethânia após o dueto Oração de Mãe Menininha, por exemplo, só resta a imagem congelada de uma foto. Também não há a cena de quando o tema mundano da prostituição arrombou as portas da MPB, no dueto entre Odair e Caetano em Eu Vou Tirar Você Desse Lugar, composta pelo primeiro.

"Não entendemos nada quando Caetano pediu para cantar com ele. Depois, o difícil foi convencer o próprio Odair. Caetano fez um ato contra a discriminação social, levou a maior vaia, botou as mãos nas cadeiras e falou a famosa frase 'não existe nada mais Z que o público de classe A'. Acho que já estava prevendo e ensaiou a frase antes", reflete Pittigliani.

O DVD faz aparecer só agora a participação de Sérgio Sampaio, não incluída nos LPs originais de 1973 – as sugestões fortemente sexuais contidas no vídeo de Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua ajudam a explicar o porquê da exclusão.

Caso extremo é o da apresentação do núcleo roqueiro da Philips, com os Mutantes já sem Rita Lee e a dupla Cilibrinas do Éden, formada por Rita e Lúcia Turnbull, de que não ficaram registros. "Quando acabou, o gerente do Anhembi me levou ao banheiro e mostrou o lixo cheio de seringas e agulhas", lembra o diretor, vasculhando outra das barras pesadas em torno do Phono 73.

O painel pintado pela nova reconstituição indica a chegada da gravadora Universal a um território ainda desabitado pela indústria musical brasileira: o da recuperação também visual da história da MPB. "As imagens estavam arquivadas no Museu da Imagem e do Som, nós não as conhecíamos. Ficamos todos surpresos", admite Ricardo Moreira, gerente artístico da Universal.

Ele diz que planejou reconstruir na íntegra o áudio das apresentações no Anhembi, incluindo canções e artistas ausentes dos LPs, CDs e DVD lançados até agora, apesar de também terem integrado o projeto da gravadora que então se propagandeava com o slogan narcisista "só nos falta Roberto Carlos".

Mesmo afirmando que continua trabalhando em tal plano, Moreira diz que a Universal optou pelo formato de agora para não ter de postergar indefinidamente o projeto, devido às dificuldades de obter autorizações de cada um dos envolvidos no naco inédito das fitas de acervo.

"Nada pode ser lançado à revelia, a gravadora não pode ficar juridicamente desprotegida. É preciso negociar com um por um, torcendo para que um cara que tocou caxixi em uma música não esteja mal e queira pedir R$ 5.000 para autorizar o uso, inviabilizando tudo. É um inferno", justifica. "Tenho o sonho danado de colocar uma equipe alternativa para ficar só descascando abacaxi, Mas a gravadora tem que gerar lucro, não adianta eu ficar malhando em ferro frio."

Indiretamente, refere-se ao engessamento resultante de uma legislação autoral que se torna arcaica na mesma velocidade em que a tecnologia e a internet multiplicam as possibilidades de uso e circulação de produção cultural.

Moreira sabe que o imobilismo em que a indústria se aprisiona já é contornado na informalidade (ou no "crime", de acordo com o ponto de vista) por fãs que fazem circular em ambiente privado versões piratas de toda uma gama de gravações raras e comercialmente inéditas do panteão MPB.

A indústria tem oscilado entre fazer vista grossa e impor atuação repressiva, punindo "piratas" caseiros e endurecendo a aplicação de legislação autoral vencida ao admirável mundo novo da internet. Isolando-se mais e mais, gravadoras se distanciam progressivamente da realidade dos consumidores de música. Mais uma vez se criam dois exércitos polarizados e aparentemente opostos, como pareciam ser em 1973 os de Wilson Simonal e Chico Buarque, ou Odair José e Caetano Veloso.

Lá atrás, o Phono 73 rompeu essas fronteiras, assim como hoje a Universal também as contesta tornando viável a saída do armário das imagens do histórico festival. Embora ainda aconteçam uma vez a cada 76 anos, eram e são sinais de que a empreitada é difícil, mas perfeitamente possível.


2
A OUTRA VIDA DE ODAIR
O cantor é homenageado não como ídolo "cafona", mas como um rebelde que afrontou os costumes e a ditadura

Por Pedro Alexandre Sanches

Dentro do grande armário da música popular brasileira, a obra de Odair José quase sempre ficou guardada numa gaveta modesta, de cuja clausura só escapuliam rótulos como "brega", "cafona", "popularesco", "limitado"... A novidade é que cresce uma frente de oposição à compreensão corrente, que tem historicamente mantido em trincheiras inimigas as classes ditas intelectualizadas e o povo.

A denúncia de preconceito classista por trás desse cisma foi inaugurada pelo historiador, jornalista e professor Paulo Cesar de Araújo no "livro-guerrilha" Eu Não Sou Cachorro, Não (Record, 2002), que luta para demonstrar por A mais B que o "sapo" Odair foi tão perseguido e censurado pela ditadura militar quanto o "príncipe" Chico Buarque. Agora, esse grupo ganha um reforço importante: 18 dos roqueiros mais modernos do País uniram-se para gravar de modo independente e cooperativo o CD Vou Tirar Você Desse Lugar – Tributo a Odair José.

Aos 57 anos, do condomínio fechado onde mora com a mulher e dois filhos nas imediações de São Paulo, Odair José contempla a movimentação com olhar impassível, mas algo surpreso. "Tenho cantado em lugares ótimos, para pessoas até muito esclarecidas. Para lugares mais populares não me contratam mais. Ou então, quando vou, não é um arraso", descreve, antes de ensaiar uma explicação: "Hoje o povo prefere o que não o faça parar para pensar".

Eis aí um ponto que poderia frear logo de início a tentativa de entender o fenômeno: mas Odair José lá fazia música "para pensar"? Vejamos.

Ao migrar de Morrinhos (GO) para o Rio de Janeiro, em 1966, o adolescente fugido de casa dormiu em ruas, praias e banheiros de aeroporto, até encontrar abrigo entre estudantes que, como ele, comiam no restaurante Calabouço e lideravam passeatas contra a ditadura.

Após uma fase em que "à noite tocava em puteiros, de dia enchia o saco das gravadoras", materializou o sonho musical na CBS, onde estreou em 1970. "Um dia, (o produtor) Rossini Pinto me disse que a companhia estava insatisfeita com meus resultados, que iam me dar a chance de fazer mais um compacto e, se não desse certo, era tchau e bênção."

Foi para casa e voltou com Vou Tirar Você Desse Lugar, de um narrador que se declarava à namorada e prometia resgatá-la do prostíbulo em que ela trabalhava. Rossini odiou ("Disse 'pô, os caras lhe fazem um favor e você vem com essa merda?'"), mas deixou passar – e o compacto vendeu a bagatela de 800 mil cópias. O Brasil de 1972, em pleno reinado do terror, aprendia a pensar sobre o tema-tabu da prostituição.

A bordo do sucesso nacional, Odair se mandou da CBS: o executivo André Midani tirou o novo ídolo popular daquele lugar. Um ano após a estréia na Philips, bateu de frente com a ditadura pela primeira vez, e absolutamente sem querer. O governo patrocinava a entrada da pílula anticoncepcional no Brasil, e Odair foi instigado por um amigo a colaborar na difusão do tema.

O resultado: enquanto o governo alavancava a campanha "Tome a pílula com muito amor", Odair inverteu tudo e saiu gritando "pare de tomar a pílula/ ela não deixa o nosso filho nascer". A canção já estava na boca do povo quando a Censura percebeu o estrago e a interditou.

Hoje Odair se diverte com a comédia de erros que co-protagonizou: "Acho que o governo proibiu a música errada. Se eles queriam que todo mundo tomasse a pílula, era melhor deixar. Ninguém aqui sabia de pílula, eu estava contando que existia, mais gente podia usar por causa da música". E o Brasil de 1973, em pleno horror oficial à simples menção da palavra "sexo", aprendia a pensar em sexo, contracepção e tabus afins.

Desobediente, Odair seguiu cantando a música em shows pelo País. Atendia o clamor do público subalterno que o acompanhava e por isso foi repetidas vezes reprimido, intimidado e preso pelo regime.

Voltou a cair nas malhas da Censura em 1974, quando tentava lançar A Primeira Noite de um Homem, agora cutucando o tabu da virgindade masculina. Por conta dessa, esteve cara a cara em Brasília com o general Golbery do Couto e Silva, por intermediação de um censor amigo que, segundo ele, "gostava dos artistas".

"Ele me levou até o Golbery, que passou os olhos na letra, nem olhou na minha cara e disse: 'O que está proibido é a idéia'." O alto comando fardado do Brasil aprendia, nem que por um só instante, a pensar em música e em artistas populares como Odair José.

Ainda em 1973, Caetano Veloso tentou escalar os muros das classes sócio-político-musicais e convidou Odair a dividir com ele, no evento coletivo Phono 73 (CartaCapital nº 369), uma reinterpretação de Vou Tirar Você Desse Lugar. O galã suburbano foi recebido com vaias intensas pelo público universitário.

"Era um público de pessoas, entre aspas, conhecedoras dos problemas do País, que queriam ser líderes e comandar o País em benefício do povo, mas que na verdade tentavam fazer isso rejeitando o próprio povo", reavalia Odair. Se no mesmo evento a Censura tirava os microfones de Chico Buarque e Gilberto Gil para impedi-los de cantar Cálice, Odair resistiu sozinho à saída irritada de Caetano do palco e acabou cantando... a censuradíssima Pare de Tomar a Pílula.

Confusão menor causou Deixe Essa Vergonha de Lado (1973), em que o narrador rogava à namorada, em tom tristíssimo, que parasse de esconder dele o ofício de empregada doméstica em casa de "gente importante": "Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo/ e se você pudesse fugia desse mundo". O Brasil era forçado a repensar incômodos ocultos nos quartos de despejo; e, instigada pelo apoio do cantor popular, a classe das empregadas domésticas foi à luta e conquistou o direito à sindicalização.

A balada atraiu para o autor o apelido pejorativo de "terror das empregadas". "Foram Rita Lee e Paulo Coelho que começaram, naquela música Arrombou a Festa. Começou a surgir o negócio do 'cantor das empregadas', do 'cantor das putas'. Na época eu nem via o preconceito por trás disso."

Experiência "de corte" seria o projeto O Filho de José e Maria (1977), ópera-rock que atraiu a ira da Igreja Católica (um padre chegou a excomungar o cantor): além de investir contra o casamento e defender a instituição do divórcio, apresentava um Jesus Cristo pós-moderno, em conflito com a própria sexualidade. "As pessoas precisam saber da verdade/ (...) não sei por que você não se assume pra viver", protestava.

"Fui ao Vaticano e voltei apavorado. Cada castiçal daqueles mataria a fome de muita gente", reflete Odair, convicto do acerto do LP "fracassado".

É esse Odair José mais complexo e contraditório, e não mais a caricatura cafajeste do "terror das empregadas", que os revisionistas procuram agora tirar da gaveta. Descentralizado, o tributo une nesse propósito bandas que enviaram releituras fabricadas no Pará (Suzana Flag), Paraná (Poléxia, Terminal Guadalupe), Pernambuco (Mombojó, Volver), Brasília (Suíte Super Luxo) etc., e mesmo nomes mais conhecidos como Zeca Baleiro, Paulo Miklos, Mundo Livre S/A...

"Não houve cobrança de cachês, a maioria esmagadora das bandas bancou os próprios custos. Todos têm participação nas vendas do CD", explica Sandro Rogério Lima Belo, economista, professor universitário e dono do selo musical Allegro, que coordenou o projeto a partir de Goiânia.

O suporte teórico concentra-se no texto de Paulo Cesar de Araújo no encarte, que defende que artistas como Odair José enfrentaram duas ditaduras simultâneas – a político-militar e outra de tez cultural, que persiste até hoje. "A ditadura das elites culturais exclui, segrega e rotula, e isso é uma quase doença, uma patologia cultural-ideológica", revolta-se o pesquisador a CartaCapital.

Entre as bandas participantes, as motivações para embarcar na aventura mostram-se variáveis. Reinaldo Andreatta, do paulista Sufrågio, brinca de mesclar razões assumidamente comerciais com outras 100% emotivas: "Fui criado por dona Natalina, uma brilhante cantora do lar, já falecida, que tenho certeza que se orgulha da homenagem dos filhos Reinaldo e Ronaldo a ela. Para minha banda, que é ótima, mas não tem espaço na mídia, também foi uma oportunidade de aparecer um pouco".

Fernanda Takai, do Pato Fu, confessa que hesitou em topar por não ver ligação direta a princípio, mas logo mudou de idéia: "Achei que era um jeito bacana de se colocar um novo foco sobre parte da música brasileira que é esquecida como obra".

Já o gaúcho Arthur de Faria classifica Odair como "gênio" e se empolga pela "delicadeza e tolerância" que perpassam a obra. "São canções de carinho absoluto pelo gênero humano, de uma doçura comovente, de uma singeleza. A chave maior é esta: gentileza. Ele é encantador."

Tatá Aeroplano, do paulistano Jumbo Elektro, balança entre a superação de preconceitos e a mera diversão: "Na banda a gente quer mesmo é deixar a vergonha de lado e se divertir. Acho que hoje essa coisa de gostar escondido está acabando".

É nesse embalo de gente chegando de vários outros lugares que Odair José, entre sereno e incrédulo, vai botando seu bloco na rua outra vez.

[(*) citações ao álbum "expresso 2222" (philips, 1972), do sr. gilberto gil; a primeira sentença é de autoria de ayres viana, alventino cavalcante & joão do vale; a segunda, de punho próprio do autor do disco; todas são de tez negra, nordestina (alô, marcus martins!), o nordeste falando para o brasil & o brasil falando para o mundo.]