sábado, janeiro 28, 2006

minimistério (das culturas)

lá no outro continente, em bruxelas, o ministro brasileiro gilberto gil se manifestou mais uma vez pela liberdade de acesso à web como ferramenta de fomento à cultura democrática dos povos. disse o seguinte, em discurso: "nosso governo está decidido a promover a inclusão social no brasil por meio da cultura. estamos trabalhando duro para realizar meu sonho de tornar cultura acessível às favelas e a outros setores excluídos". a internet, quem diria?, é tida por ele (quem discordaria?) como um dos instrumentos cruciais para que ao menos nos aproximemos dessa meta utópica (será utópica mesmo?).

e então vamos nós daqui, tentando colaborar, usar a web para algo que nenhum grande órgão de imprensa permitiria e/ou teria espaço suficiente para permitir: uma entrevista sem cortes, sem restrição de espaço, sem edição, sem limite de horário, para que um ministro de estado possa, (quase) sem papas na língua, responder às críticas que sofre, reivindicar seus feitos e os avanços de sua gestão, lamentar a incompreensão devotada ao trabalho ministerial por largos espectros da sociedade "organizada", demonstrar que a mídia não perde tempo (perde tempo?) relatando realizações positivas, e até mesmo, se quiser, cantar o seu chororô ["tenho pena de quem chora/ de quem chora tenho dó/ quando o choro de quem chora/ não é choro, é chororô (...) chororô, chororô, chororô/ é muita água, é magoa, é jeito bobo de chorar"].

o que vem abaixo é uma versão mais completa de uma entrevista realizada na segunda-feira 9 de janeiro de 2006 e publicada de modo mais enxuto na "carta capital" da sexta-feira seguinte (e brilhantemente complementado por texto & contexto da minha colega ana paula sousa, na reportagem "tudo pelos prêmios"). se lhe soar cansativo ler as longas descrições do ministro sobre a atuação prática e concreta e simbólica e abstrata do organismo orquestrado por ele, pare um minuto e pense se não é você mesmo que vive reclamando que "o governo não faz nada", que "o ministério está parado", que "na política só existe corrupção", que "o brasil é uma droga". será que é mesmo assim?, ou o outro lado da moeda não aparece escrito nas páginas de papel sedentas por chororô? ou, lá no fundo, é você mesmo que não tem nenhuma paciência para ler o que não seja crítica, resmungo, xingo, "indignação", conbrança sem autocrítica, morbidez?

a propósito, conversando nestes dias com um grande amigo e grande jornalista (ei, mano!, posso citar seu nome?!), ele me alertava para uma compreensão que me impressionou: comentou que, atualmente, nenhum "grande" colunista da "grande" imprensa tem coragem de destacar feitos positivos dentro da atuação geral do atual governo. sublinho a palavra coragem usada por ele, porque a mim jamais me ocorrera compreender por esse viés (da falta de coragem, da covardia) o coro afinado dos descontentes que passa 24 horas por dia empurrando a máquina sempre para baixo, sempre para trás, sempre ao avesso, sempre ao revés.

pois, então, já que nós jornalistas mal temos coragem de destacar gotículas de realizações num oceano tsunâmico de frustrações, que o administrador-músico-tropicalista-político-ministro gilberto gil seja o advogado de si próprio e fale à vontade e (quase) sem papas na língua de seu minimistério que virou ministério, e vice-versa ["procure conhecer melhor/ seu minimistério interior/ procure conhecer melhor/ o cemitério do caju/ procure conhecer melhor/ sobre a santíssima trindade/ procure conhecer melhor/ becos da tristíssima cidade/ procure compreender melhor/ filmes de suspense e de terror (...) não custa nada/ só lhe custa a vida"].

depois opine, critique, dialogue, elogie, mande mensagens à janelinha vermelha deste blogzinho de sapê (alô, hyldon!). mas falemos com carinho, feito gente adulta, porque além de tudo eu aposto que a turma do ministério vai estar curiosíssima para dar uma espiada (alô, bbb que não passa na globo!) nos nossos debates, sem pirâmide de conhecimento (alô, vítor lopes!), com todo o respeito e a admiração que o atual minimistério devota ao diálogo (é ele quem diz: "você me conhece, eu gosto de trabalhar pela manifestação do harmônico. eu não gosto de trabalhar com o dissenso como ferramenta. ele existe e precisa ser considerado, mas eu não gosto. eu gosto sempre de provocar a capacidade de harmonização, de sinergia, de articulação das partes") e a esta gigantesca artilharia pacifista denominada internet. gracias, sr. ministro!


pedro alexandre sanches – a crítica de ferreira gullar à atuação do ministério da cultura deu início a uma nova rajada de manifestações...

gilberto gil – [interrompendo.] não sei. tenho impressão que foi na história do ferreira gullar, não sei se a partir dela. o caso é focal, específico. não abrange as questões amplas da atuação do minc propriamente dito, nem mesmo o conjunto das críticas. tenho impressão que é uma coisa isolada.

pas – mas ela abriu uma série de acontecimentos cujos termos lembram muito o episódio da ancinav, mas sem a substância que havia por trás naquela ocasião. é o mesmo linguajar voltando de um modo vazio, fútil, ou existiria uma questão de fundo que não está visível ao olho público?

gg – depende muito do ângulo... a crítica do gullar tem a ver com um clima mais ou menos geral no meio cultural e intelectual mais ligado aos grandes centros, rio-são paulo em especial. o pessoal do teatro tem se manifestado. uma outra coisa é a crítica do caetano veloso, que foi específica com relação à atitude do [integrante do minc] sérgio sá leitão em resposta ao gullar. uma outra coisa é o que de substancial possa haver de críticas à atuação do ministério em si, às práticas, às escolhas políticas, à questão da distribuição dos recursos, esse embate nosso com a gestão geral do governo, no sentido de ter condições mais confortáveis de trabalhar a gestão cultural.

acho que são coisas diferentes. no caso específico do gullar, há uma semelhança com o que foi a questão da ancinav, porque volta o negócio do centralismo, da intervenção na liberdade de expressão... mas nas outras questões acho que não, são coisas distintas. a manifestação do caetano diz respeito a um aspecto, o manifesto dos intelectuais e artistas é parecido. já a manifestação do [cineasta] zelito vianna, o pedido da cabeça de sérgio sá leitão, tem a ver com outras questões.

pas – em declaração a "o globo", zelito vianna afirmou que está mesmo pensando em pedir sua cabeça ao presidente, como o sr. sugeriu. com esses termos a questão parece mais grave, não? o que aconteceu para que se peça a cabeça de um ministro?

gg – bem, ele é que vai ter que explicar [ri]. eu disse aquilo porque me parece que não se destinam à atuação do sérgio sá leitão as queixas do zelito, que podem se estender também às queixas do luiz carlos barreto, com quem tenho conversado e trocado correspondência. acredito que é uma queixa em relação ao atendimento geral que o ministério vem dando aos filmes. eu não diria nem do minc, acho que é uma queixa em relação à política de fomento das estatais – petrobras, bndes – ao cinema. já tinham essas políticas, e agora adotaram alguns princípios de políticas públicas um pouco mais abertos e democráticos, criaram um conselho de avaliação dos projetos... tenho impressão que a queixa é mais a isso aí.

pas – mas, então, haveria algo por trás das críticas?

gg – eu acho que é isso, e se soma às críticas que alguns setores do teatro vem fazendo... no caso do teatro do rio, por exemplo, há de se lembrar que a prefeitura da cidade [administrado pelo pefelista césar maia] destinava recursos consideráveis durante alguns anos ao teatro e deixou de destinar. portanto, esse déficit pesa na conta do teatro do rio, e as queixas acabam se destinando todas ao minc. não vejo queixas ao município. acho que o que há é um exercício normal do diálogo, da disputa, do conflito distributivo, tudo isso ao mesmo tempo. não vejo nada de muito especial ou alguma coisa por trás, a não ser questões políticas propriamente ditas, que se podem trazer para cá. há o setor tucano contra o pt, contra a gestão lula, a campanha política que vem aí e já está posta.

pas – existiria uma contaminação política? como?

gg – determinados setores, já desde antes dos escândalos e das cpis, estão insatisfeitos com o governo lula. no momento em que já se põe a questão da sucessão, esses descontentamentos se transformam em antagonismo político real. há setores da área cultural que participam desse conflito.

pas – se poderia especular sobre possíveis tentativas de desestabilização do minc, ou o ministro especificamente, nesse contexto?

gg – não sei se eu chegaria a tanto, porque não vejo tanta importância no ministério da cultura, nesse sentido. a desestabilização vem mais com relação ao que se poderia chamar de governo real – a economia, coisas que afetam o dia a dia das pessoas, as cpis. no caso do MinC, é uma contaminação no sentido de que já que há oposição a governo, opõe-se ao governo inteiro. mesmo que o minc e o ministério sejam do meio cultural, na medida em que está posta a luta político-eleitoral, não se poupa o minc.

pas - nos últimos meses, sua gestão foi criticada sucessivamente por paulo autran, marco nanini, gerald thomas, ferreira gullar, caetano veloso, todos representantes do que poderíamos chamar de elite da cultura brasileira. por que esses estão especialmente críticos ao minc?

gg – acho que tem a ver com a questão do atendimento, da discriminação positiva, digamos assim, que se tenta fazer, focando áreas que não eram focadas e, portanto, estabelecendo um conflito distributivo. é um conflito que não existia nessa intensidade antes, porque eles tinham acesso, digamos assim, a recursos que estão sendo redistribuídos, e não necessariamente pelo trabalho direto do minc, mas por essas instâncias complementares, como as estatais.

acho que é mais isso aí, porque a lei rouanet está funcionando, apesar de qualquer questionamento que possa ser feito. os recursos incentivados aumentaram muito, para todos os setores. nas políticas diretamente orçamentárias é que estamos tentando trabalhar com um pouco mais de atendimento periférico, a áreas que não eram atendidas antes, os pontos de cultura, as políticas dos museus que estamos descentralizando. o programa monumenta, em vez de se concentrar só em são paulo e rio, está fazendo trabalho em cidades do interior de minas gerais, sergipe, bahia, maranhão, rio grande do sul... é isso, a característica seletiva do governar.

pas – seletiva e descentralizadora?

gg – é. estamos procurando políticas que ampliem a área de atendimento em termos nacionais, que cubram outros setores até hoje basicamente não atendidos ou menos atendidos.

pas – a crítica de ferreira gullar vai justamente no sentido contrário, de que o minc seria centralizador.

gg – eu não vejo isso. eu gostaria que me mostrassem, eu queria uma demonstração desse caráter centralizador do ministério. eu mesmo preciso saber. não vejo assim, não acho que o ministério seja centralizador. o que nós estamos centralizando no minc? não vejo isso. aliás, no caso do ferreira gullar, ele diz que não acompanha nosso trabalho, que tem notícia por outras pessoas do que estamos fazendo. não sei se ele tem informação suficiente para um juízo mais correto do que a gente está fazendo. é uma pergunta a ser feita a ele.

acho que isso tem a ver também com uma coisa de que muita gente se queixa, que é a dificuldade de informação que nós temos, que, aliás, é uma dificuldade geral do governo lula. há uma dificuldade de mostrar o que está sendo feito. isso tem a ver com deficiências do próprio processo de comunicação social do governo, se for o caso, mas tem a ver também com uma dificuldade de encontrar espaço na mídia.

pas – que seria devida a quê?

gg – acho que é uma indisposição generalizada contra o governo.

pas – isso seria específico do governo lula, ou é assim com qualquer governo?

gg – em geral de governos, e em especial do governo lula, porque é um governo diferente dentro das diferenças que já existem, com que a sociedade e a mídia especialmente tratam os governos. há setores para os quais a pauta positiva não é uma preferência, as pautas negativas têm muito mais apelo e interesse jornalístico. em geral é assim com o jornalismo, em relação ao mundo político e governamental mais ainda. tem a ver com esse absolutismo consentido com que trabalha a mídia, que pode tudo, pode dizer, desdizer, manipular, fazer e desfazer e contra isso não há grandes insurreições, a não ser pontualmente aqui e ali. com relação ao governo, ao contrário, ele está o tempo todo sendo questionado sobre seu modo de agir. então essa falta de espaço tem a ver também com isso, com esse conforto sobre o qual se posta a mídia, no sentido de noticiar o que é basicamente importante na economia, mas outras coisas não.

vou dar um exemplo claro: as pautas que me têm sido solicitadas para falar do "ano do brasil na frança" vêm sempre com uma questão que não entendo, que é de que "quase" foi um fracasso, quando, na verdade, ele foi um sucesso. qual é a questão? o fato de que alguns projetos e programas tivessem tido dificuldade para ser realizados e quase não tenham sido realizados não prevalece sobre o fato de que foram realizados e tiveram êxito. a pauta é colocada como se a questão a ser noticiada ao público seja um quase fiasco, que não se deu por uma espécie de milagre que estaria fora da própria atuação do minc. Acho isso despropositado, me parece que é a insistência no mal do mundo de que arnaldo jabor uma vez num ensaio dizia, que "nós da imprensa vivemos do mal do mundo".

pas – no caso das críticas atuais ao minc, a imprensa está acompanhada por intelectuais do porte, como na acusação de ferreira gullar, de centralização, quando o ministério trabalha pelo oposto. não se esperaria que essas classes fossem as mais informadas e não exercessem a crítica de forma superficial?

gg – mas aí o que é que vai se fazer? é esse viés esquisito que a notícia tem. é o caso da declaração de caetano, quando é transformada em "estamos à beira do totalitarismo", como se ele estivesse falando do governo em geral ou do minc, quando estava se referindo especificamente à imputação de stalinismo ao ferreira gullar pelo sérgio sá leitão.

pas – mas caetano não é suficientemente tarimbado para saber que aquele ponto específico geraria esse tipo de distorção?

gg – [Ri.] ah, mas ao mesmo tempo ele é cuidadoso, exigente... busca fazer um acompanhamento mais rigoroso das coisas que acontecem e tem que se manifestar à altura dessa exigência. muitas vezes tem que deixar de lado a possível capacidade manipuladora das manchetes, e dizer o que tem de ser dito.

pas – quando caetano usa o termo "totalitarismo", esse termo vem se acrescer a uma série de outros, "intervencionismo", "dirigismo", "centralismo", ou "stalinismo", usado no próprio ministério...

gg – esse já havia sido usado contra mim na época da ancinav. foram dezenas de adjetivos desse tipo.

pas – o ministério é tudo isso?

gg – mas não sou eu que posso dizer isso. eu gostaria que fossem apontadas as questões que justificariam o levantamento dessas hipóteses. onde está a centralização, o intervencionismo, o totalitarismo? quero que seja apontado. é preciso qualificar a crítica. para nós é importantíssimo que ela seja qualificada, porque só isso pode qualificar a resposta, a posição. o que considero o deslize de sérgio sá leitão, de chamar gullar de stalinista, vem um pouco disso, da desqualificação da crítica do gullar. dá margem a que as coisas vão para a periferia da questão, e não especificamente daquilo que está sendo tratado, que é a gestão do minc.

pas – o deslocamento das críticas à periferia da questão foi o que causou a implosão do projeto da ancinav, por exemplo?

gg – eu acho um pouco, sim, porque quais eram as questões que estavam ali? regulação de uma atividade econômica ligada a manifestações culturais audiovisuais, uma regulação como a de quaisquer outros setores. e no entanto a questão do conteúdo e certos deslizes que também possam ter acontecido aqui e ali na confecção do texto não foram discutidos. foi apagada a possibilidade da discussão de uma agência reguladora para o audiovisual, sob a alegação de que haveria questões intoleráveis de intervencionismo e intervenção na liberdade de expressão na proposta que estava vindo do ministério. e o foco da questão se perdeu. era a regulação, a questão das novas mídias, dos novos modelos de negócios, das possíveis hegemonias setoriais em relação a setores emergentes. tudo isso se perdeu.

pas – e, na perda do foco, um grupo bastante poderoso conseguiu atingir o objetivo de interditar a discussão e a implantação de mudanças?

gg – é, isso é o que se fez.

pas – isso está acontecendo de novo? grupos poderosos estão sendo contrariados agora e reclamando de "totalitarismo"?

gg – não, não creio. não é o caso. o caso me parece ser aquele de alguns grupos que se vêem não ou menos atendidos pelas estatais. modificaram-se um pouco a políticas de atendimento, aplicou-se aqui e ali o princípio da discriminação positiva, do tipo atender setores periféricos que nunca foram atendidos.

pas – a reação desses grupos seria então uma luta pela sobrevivência, mesmo não sendo eles os que mais necessitam dessas verbas?

gg – eles precisam também. mas é também. não são os únicos que precisam. há toda uma exclusão aí, uma falta de acesso de setores enormes da sociedade brasileira, que as políticas públicas precisam atender minimamente. é isso que a gente está fazendo, com descentralização, com nacionalização no sentido de regionalização. deslocamento do eixo rio-são paulo, tentando o interior e as periferias das grandes capitais, como é o caso dos pontos de cultura. são tentativas normais, experiências, que não trazem a garantia de que serão eficazes ou resolverão em profundidade problemas históricos. mas são tentativas. de atender gente de teatro que não é o grande teatro consagrado, o pessoal que quer a implantação das rádios comunitárias e da tevê comunitária, as pequenas cidades que querem ter suas políticas de patrimônio, e assim por diante. é uma mudança de política. e há a questão do minc como interlocutor com a sociedade para grandes temas como o direito autoral, a propriedade intelectual, a diversidade cultural, os grandes temas globais.

tudo isso cria um certo incômodo, porque classicamente o minc, assim como as secretarias de cultura em geral, trabalhava com um atendimento convencional àquilo que se resolveu considerar setor cultural, quando na verdade esse setor é muito mais amplo. a gente está tentando tornar visível essa amplitude maior, e tudo isso causa certo incômodo, porque toda vez que você desloca o eixo de atuação de alguma coisa você cria problemas.

pas – sérgio sá leitão citou luiz carlos barreto como alguém que teria deixado de receber recursos. isso é factual, aconteceu?

gg – as informações que temos eu conheço pelas próprias queixas diretas que luiz carlos barreto tem feito, à secretaria do audiovisual, a mim diretamente, em audiências, em cartas, em e-mails que nos tem dirigido. o que nós sabemos é que, nos últimos três anos, muitos dos projetos dele não foram atendidos na petrobras, nas estatais.

pas – por que não foram atendidos? o minc está diretamente envolvido nisso?

gg – não diretamente. tem ligação com o fato de que o minc vem tentando ter um papel minimamente orientador das políticas culturais das estatais, tentando trabalhar em sintonia com o que entendemos como políticas públicas. mas não na determinação direta de quem será atendido. a petrobras e o bndes instituíram conselhos curadores para seus programas culturais. me parece que são sete ou oito membros, e o minc tem um representante nesses casos. e nós sabemos que no caso dos projetos de barreto, o representante do minc, que por acaso na petrobras é o próprio sá leitão, tem defendido os projetos dele.

a maioria dos 12 projetos de barreto, pelo menos uns seis ou sete, não entrou nem em julgamento de mérito, porque tinha irregularidades anteriores, inadimplências e coisas desse tipo, que as estatais podem informar melhor, que impediram os projetos de serem avaliados. dos que foram avaliados, a posição do minc em pelo menos três ou quatro eram favorável. isso é o que estamos sabendo, estou fazendo a revelação de processos internos para esclarecer um pouco.

pas – só o barreto tem 12 projetos tramitando?

gg – é, bastante. mas é um produtor muito ativo, com uma pauta muito grande de realizações. é isso mesmo. essa é uma das questões, qual é a alternativa que viemos tentado dar a isso? é a instituição de mecanismos de mercado que possam financiar o cinema, trazer a produção audiovisual brasileira para o patamar da sustentabilidade mercadológica. é a criação de funcines, de linhas de financiamento do bndes, tudo isso para dar finalmente uma direção de mercado ao cinema e livrá-lo dessa dependência excessiva que ele tem tido historicamente dos recursos de mecenato público.

pas – essa situação indicaria que os pleitos que barreto não está conseguindo estão indo para mais pessoas, para pessoas menos privilegiadas?

gg – no momento em que as estatais passam, nas suas políticas de atendimento, a incluir formação de platéias, novos talentos, primeiros filmes, documentários, jogos eletrônicos, novas formas de manifestações audiovisuais, retiram um pouco, minimamente que seja, recursos que estavam sendo quase totalmente canalizados para o grande filme de bilheteria.

pas – caetano intervém nesse ponto, referindo-se algo agressivamente a "um país em que o que mais se vê é filme de diretor estreante". ele citou, em entrevista a "o globo", que produtores como paula lavigne não devem "temer má vontade só porque já produziram três ou quatro sucessos". seria o mesmo caso de barreto, a reação dele teria esse pano de fundo?

gg – não, não, no caso de caetano seguramente não. ele é muito correto para isso, não faria isso. ele acha, e tenho impressão que ele tem razão, que a manifestação do minc ou das estatais não pode ou não deveria dar a impressão de que nós estamos criando "ex-privilegiados", ao realizar discriminação positiva, do tipo cotas para novos cineastas, novos dramaturgos, teatros de periferia, essas políticas de nova abrangência que os programas culturais da petrobras, do banco do brasil, do bndes e mesmo da funarte e da secretaria do audiovisual, no minc. falar de "ex-privilegiados" seria admitir que o que quer que tenha sido feito pelos "ex-privilegiados" deixou de ser feito, o que significa que há um setor que deixou de ser atendido. pode parecer isso, concordo que pode parecer que assim seja. a crítica que ele faz é especialmente a esse tipo de declaração por parte de assessores do minc. caetano acha que deveria ser evitado para evitar esse tipo de equívoco.

pas – o sr. usou o termo "cota", a cultura estaria instituindo algum sistema de cotas, a exemplo do que está acontecendo na educação?

gg – pode ser assimilável, pode haver uma semelhança, sim, no momento em que você diz que vamos destinar recursos a manifestações culturais de periferia, de cidades do interior, de setores sem espaço e sem voz. você está fazendo uma espécie de cota, uma política de chamada discriminação positiva. você está discriminando, dizendo que vai deixar de atender ou atender menos a tais setores para passar a atender ou atender mais a tais outros. é política governamental.

pas – e cumprimento de programa de governo?

gg – tentativa, pelo menos [ri].

pas – por que classes mais favorecidas, como também é o caso dos intelectuais citados, em geral reagem ferozmente a termos como "cotas" ou "discriminação positiva"?

gg – eu nem sei dizer, é engraçado. até brinco que esse tipo de política que estamos tentando fazer é uma coisa que foi sempre pedida. o cinema novo brasileiro todo, o teatro todo, a literatura mais engajada etc. passaram as últimas décadas dizendo isso, vamos lá, vamos atender os não atendidos, vamos incluir os excluídos, vamos atender os underdogs da história.

pas – na música também?

gg – também, e o que estamos fazendo em relação à música? estamos atendendo os novos produtores, os produtores independentes. estamos fomentando o trabalho deles, incentivando a organização e a articulação deles, interna e com o exterior, em detrimento de quê? de uma política clássica de atendimento às grandes gravadoras.

pas – o sr. poderia fazer uma descrição geral sobre de que forma o minc está atendendo e destinando recursos às periferias? O que está acontecendo na prática?

gg – os pontos de cultura estão indo lá atender esse pessoal. a política de editais, que por sua essência são mais democráticos, universais e abrangentes, está sendo adotada mais intensivamente de um ano e meio para cá, para várias manifestações – artes cênicas, artes plásticas, teatro, cinema, jogos eletrônicos. estamos tentando diminuir o déficit de atendimento ao setor da música de concerto, ao circo, à propriedade intelectual, ao direito autoral, ao livro e à leitura. fizemos a desoneração do setor do livro, como estamos fazendo para outros setores, já estendemos às salas de cinema, com uma linha de crédito especial. suprimimos alguns impostos que eram pagos pelo mundo editorial, para baratear o preço do livro. no setor da música, e das artes em geral, há o culturaprev, a previdência que estamos instituindo para aposentadoria dos trabalhadores em cultura. É uma reivindicação antiga do setor.

são essas coisas que nos levam a compreender, em relação ao nosso próprio trabalho, que ele está indo nessa direção. são fatos. é só ir lá ver. vamos lá, vamos checar as políticas do minc? vamos ver. é isso que precisa ser feito publicamente? eu gostaria que fosse, gostaria de ter esse espaço na mídia. estamos tentando fazer, é preciso vir ver, saber, tomar conhecimento, acompanhar. seria de bom tom a sociedade fazer isso, especialmente por intermédio daqueles que a representam mais diretamente, que são os intelectuais, os artistas, a própria imprensa. essas pessoas precisam vir, acompanhar.

foram 2.000 artistas brasileiros que se apresentaram na frança no ano passado. na copa da cultura da alemanha mais uma centena deles irá. domingo vou para miami lançar um programa de difusão cultural brasileira com 150 instituições norte-americanas, para levar programação brasileira para esses lugares. é um atendimento importante, a produção brasileira desembocando e tendo espaço no exterior. é iniciativa do minc, nos eua, um país muito refratário à entrada de coisas que não sejam do mundo anglofônico. precisa saber, precisa dar notícia disso.
é trabalho, a gente está trabalhando, e as críticas devem ser qualificadas, no sentido de serem resultado de um acompanhamento e um diálogo mais exigente com o que estamos fazendo. o caso de que os setores venham trabalhar nas câmaras setoriais é um apelo que viemos fazendo dramaticamente desde que estão sendo instaladas.

pas – é difícil convencê-los?

gg – as pessoas têm vindo, na câmara setorial de música temos gente de todos os estados, na de livro também. mas, em geral, quando essas convocações são feitas por esses mecanismos, os primeiros a atenderem são os menos conhecidos. não é o teatro consagrado que vem para a câmara setorial.

pas – esse prefere reclamar pelo jornal, ou vender jornal como o sr. costuma dizer.

gg – [Ri.] é um pouco isso, sim.

pas – por que o trabalho do minc em relação à música, que é sua área de origem, não é muito visível publicamente e, mesmo assim, com exceção do caetano, é uma área que tem criticado pouco o ministério?

gg – porque não é uma área que tenha vivido historicamente da dependência. sua sustentabilidade nunca foi determinada pelo mecenato público. a música é mais independente, tem uma autonomia de mercado mínima que seja, mas tem. o teatro já teve, hoje não tem mais. com a prevalência da telenovela e todas essas coisas, a linguagem teatral recuou muito, e ainda mais com o mecenato público. a lei rouanet e as leis estaduais e municipais de incentivos deram ao teatro uma possibilidade de sustentação fora da bilheteria que causou essa dependência. quando a secretaria do rio deixou de dar r$ 50 milhões que dava ao teatro, provocou um déficit brutal, porque é uma área que acabou criando uma dependência desses recursos públicos. a música não tem tanto esse problema.

pas – mas músicos consagrados, inclusive o sr. mesmo, também costumam gozar de patrocínios vultosos.

gg – mas isso foi a primeira coisa que eu disse, na primeira semana no ministério: eu sou um dos que têm sido privilegiados. nós somos. às vezes é complicado dizer isso, caetano fica muito aborrecido com essa coisa de destacar privilégios, porque é perigoso mesmo, pode fortalecer as vozes do ressentimento desses setores que vêm buscar recursos públicos agora, a partir de uma demanda ressentida, uma coisa tipo os sem-terra. eu sei disso, mas ainda assim é preciso ser dito: os artistas consagrados e bem-sucedidos não gostam de ser elencados na classe dominante, mas são [ri]. nós somos classe dominante. na verdade há um conflito de classes em tudo isso, também. o problema de classe não desapareceu e não desaparecerá assim tão simplesmente.

pas – nessa mesma medida, sua geração apareceu combatendo gerações anteriores que dominavam a gestão dos direitos autorais, como fernando lobo, david nasser etc.

gg – nós estabelecemos uma disputa, um conflito distributivo com eles, assim como hoje outros estabelecem conosco e assim por diante. é assim, até que nós tenhamos a abolição das classes [ri], se é que a teremos. é claro que, como diz caetano, isso tem que ser tratado com muito cuidado, mas é preciso também que as coisas sejam postas.

pas – nos anos 60 as figuras a que vocês se opunham eram mais visivelmente tidas como conservadoras do que são, hoje, ferreira gullar e caetano veloso. mas eles são ou não não conservadores?

gg – há muita nuance. não são necessariamente conservadores, mas naquilo que diz respeito à disputa que eles..., que nós fazemos no campo dos recursos etc., por questão mesmo de inércia, temos uma tendência de nos tornar conservadores nesse sentido. quer dizer, queremos manter a fatia do bolo que comemos.

pas – o sr. está usando o "nós", mas não é tanto o seu caso, se as políticas do minc são como o sr. descreve.

gg – estou falando "nós" porque é "nós" mesmo. como ministro, como eu disse na primeira semana, eu tenho que me distanciar desse status de consagração.

pas – a gestão anterior à sua, do [ex-petista] francisco weffort, privilegiava nomes como raul cortez, beatriz segall...

gg – eu disse na primeira semana, eu fui chamado para ser ministro da Cultura do governo lula para fazer um deslocamento , para repor a questão do conflito distributivo nesse setor. foi para isso que fui chamado, por isso me coloquei imediatamente nesse grupo, como pertencente a essa elite, exatamente para dizer que estou vindo de lá para fazer um trabalho que é outro, que não é mais demandar os recursos para o meu grupo e fazer uma tentativa de política pública de distribuição mais aberta, mais democrática.

pas – houve um momento, no caso ancinav, em que chegou a parecer que o minc se colocava uma missão grandiosa, épica, que afrontava a rede globo e tudo mais. perdida aquela batalha, o minc ainda teria algo de vulto para fazer no ano que resta de governo?

gg – acho que a questão de uma agência reguladora no audiovisual, com a questão das novas mídias, é uma coisa por fazer, uma demanda, uma exigência sentida, necessária, cada vez mais, por setores que têm até classicamente se oposto a isso, como é o caso das grandes televisões. mas mesmo elas sentem necessidade cada vez maior, porque as telecomunicações estão aí ocupando espaço, os celulares estão aí produzindo e negociando conteúdo. a hegemonia está sendo redistribuída por outras áreas. portanto, é preciso estabelecer regras para um convívio desses diferentes interesses negociais, para que haja mais sinergia entre os diversos elementos desses diversos setores. para que haja de fato um setor, num sentido grande, que trabalhe com a idéia de divergência, de diversidade na unidade. essa questão da agência está aí, posta, ela é necessária cada vez mais.

pas – seria possível fazer já um balanço da gestão gilberto gil?

gg – eu preferia que esse balanço fosse feito pela sociedade. é mais legítimo, natural e eficaz que seja assim, para evitar inclusive a tendência da autocelebração. mas nós temos feito algumas coisas, temos marcado uma certa diferença.

pas – "algumas" é muito menos do que o esperado ou necessário?

gg – sempre é menos. mas nós dobramos o nosso orçamento em relação ao que encontramos do governo anterior. hoje temos um orçamento de r$ 420, r$ 430 milhões para 2006, que é duas vezes o de 2002. a lei de incentivo fiscal vem trabalhando com patamares recorde. estamos falando de r$ 550 a r$ 600 milhões. o programa monumenta, com o bid, está tendo desempenho cinco ou seis vezes maior do que teve no governo anterior. o atendimento aos museus é 40% acima do que era no governo anterior, em termos de orçamento. e isso sem falar de coisas que não são mensuráveis em cifras, como é o caso da atuação brasileira para a diversidade cultural, o papel de importância crescente do brasil junto à unesco e a organismos culturais, a participação do brasil em fóruns sul-americanos, pan-americanos etc. para a discussão variada da presença do mercosul cultural, o papel cultural que o brasil vem exercendo no mercosul. toda essa dimensão imaterial da atuação do minc cresceu muito nessa nossa gestão. acho que é uma coisa a ser considerada, além de outros tantos números mesmo, que estão lá à disposição, para falar dessa requalificação, dessa melhor atuação mesmo do ministério hoje, em relação àquele tempo do passado.

agora, não acho que sejamos nós os melhores e mais adequados a fazer essa avaliação. ela tem que ser feita, aí sim, na aproximação das representações da sociedade para virem fazer essa avaliação, dizer "olhe aqui, cadê?, o ministério fez e deixou de fazer isso e aquilo". isso é o que eu gostaria, porque, inclusive, traria mesmo, de fato, a sociedade para mais perto do ministério.

pas – qual é sua opinião sobre o projeto de lei contra o jabaculê, que circula no congresso nacional?

gg – eu acho que tudo que puder ser feito para evitar e inibir o jabá deveria ser feito. eu tenho levantado sempre a questão da dificuldade de estabelecer isso por lei, porque há sempre formas disfarçadas possíveis a partir do momento em que a lei estabeleça "está proibido isso, isso, aquilo e aquilo outro". o jabá pode aparecer dessa, daquela e daquel'outra maneira.

pas – ele seria inerente?

gg – tenho impressão que ele faz parte do modelo de negócios que se estabeleceu até hoje no brasil. nem acredito que seja só no brasil, ele existe no mundo e cada lugar tem sua forma de ataque. os estados unidos, por exemplo, como são sempre mais incisivos no "law-inforcement", na lei, vão por esse viés. recentemente multaram duas ou três grandes empresas fonográficas por prática de jabá, ou payola, como eles chamam lá. por outro lado, há a questão da intervenção dos conteúdos que se faz nos eua. também regulam sexo e política na televisão, não pode isso e não pode aquilo. eles são mais assim.

pas – não caberia ao ministério tomar a dianteira de atitudes nesse sentido?

gg – não, não. o ministério até pode, até pode tomar atitude, mas acho que é mais adequado, correto e natural que a gente venha a fazer parte de um conjunto de manifestações da sociedade, até para saber em que pé estamos, qual é a consciência social real que temos disso, quais as alternativas factíveis, viáveis, que possam ser concebidas para atacar essa questão, como a questão da pirataria também. hoje, por exemplo, o jabá é chamado de verba de promoção. como é que você vai proibir uma verba promocional? ou impedir que ela se disfarce, ainda que, digamos, ela venha a ser proibida? se há consenso social no sentido de que essa prática não é legítima, ela pode vir a se disfarçar de uma outra maneira. o jabá pode passar por debaixo da mesa. ele está tentando se legitimar sobre a mesa, mas, no momento em que ele seja banido da mesa, pode vir de novo por debaixo.

estou falando em termos realistas, não ideológicos. ideologicamente é evidente que nós somos contra o jabá. é uma prática com algum grau de perversidade, mínimo que seja, para não dizer com alto grau de perversidade. essa gradação aí pode variar. outro dia o [ex-presidente das gravadoras philips e warner] andré midani declarou que pagou, sim, jabá para gilberto gil, e que achava muito bom ter feito isso, porque ajudou a desenvolver um grande artista que está aí até hoje. então é complicado. andré midani disse isso, ele se manifestou favorável a que tenha havido jabá, não sei se necessariamente ele é favorável a que continue havendo. então você vê como é a complexidade da história.

pas – as ações do ministério são indiretamente antijabá, na medida em que não privilegiam a classe estabelecida que usa esse modelo?

gg – sim, a classe que tem um modelo de negócio. nós estamos tentando incentivar e fomentar novos modelos de negócio, que desloquem essas ações viciadas, digamos assim, para outros planos e patamares. tudo isso é difícil? é difícil. pode ser que não sejam exitosas as iniciativas? pode ser que não sejam exitosas as iniciativas. mas ainda assim é preciso continuar tentando sempre.

pas – os modelos de negócios com jabá na indústria cultural são parecidos com tudo que foi sendo revelado a partir da crise política?

gg – com mensalão, caixa 2 etc. [ri], é tudo igual, é claro que é a mesma coisa. é por isso que digo que não temos tanta novidade assim no mundo político. corrupção e essas formas todas de comprar espaços ou privilégios são da prática do mundo. está aí.

pas – ao se deter em discussões sobre "totalitarismo" e "stalinismo", o meio cultural, incluído aí o minc, não perde a oportunidade de se valer da crise política para levar a discussão também à cultura?

gg – sim. o ministério, por exemplo, está propondo nas câmaras setoriais uma discussão de seminários e mesas de debate para atacar esses problemas de direitos autorais, jabá, pirataria e eventuais propostas que venham desembocar em novos arranjos regulatórios, legais etc. este é um dos temas preferenciais para intensificação este ano, com eventuais desdobramentos práticos que não posso garantir que venham a existir, mas que nós queremos que existam.

pas – como o ministério da cultura está passando à margem de quase um ano em que o governo como um todo está imerso em escândalos? é porque é mais correto, ou porque é menos visado?

gg – não, até foi bastante visado. tivemos alguns ataques diretos, do ex-deputado roberto jefferson e do fernando gabeira, que chegaram a fazer acusações diretas, "tem que ir lá investigar o ministério da cultura".

pas – teria que ir mesmo?

gg – pelo que me toca, pelo que eu sei, não precisa. nós estamos lá, simplesmente fazendo nosso trabalho.

pas – outra crítica recorrente é à suposta paralisia do minc – muitos afirmam que o ministério não funciona, que o ministro viaja muito e trabalha pouco...

gg – eu viajo demais, a trabalho. só viajo de férias um mês por ano, só. o resto viajo para trabalhar. terça-feira (17) estarei em miami, quarta, quinta, sexta e sábado estarei em nova york, domingo chego a bruxelas para uma série de reuniões com comissários da união européia para questões ligadas às políticas de inclusão digital do nosso ministério, a questão do fórum internacional cultural do ano que vem. eles têm lá um programa especial de us$ 6 bilhões para a área digital, nós queremos alguma parte desses recursos para nossas políticas aqui. de lá vou para davos, para participar também desses grandes debates e fóruns internacionais de discussão, a que o brasil, como global player que é, precisa cada vez estar mais presente. de lá vou para dakar, para uma reunião, pois sou membro da diretoria do festival internacional de artes negras que vai ser realizado em 2007 na áfrica, em dakar. de lá eu volto. é trabalho na área cultural. vou para as reuniões dos ministros de cultura, seja do mercosul, do âmbito pan-americano, da organização ibero-americana, do cplp, dos países de língua portuguesa, dos fóruns internacionais mais amplos. viajo para trabalhar, essa visão de que o trabalho pode ser restrito aos escritórios das sedes das instituições é uma visão meio anacrônica. hoje em dia, se você não se desloca não recebe [ri].

pas – a crítica às viagens e à paralisia é injusta, em sua visão?

gg – ah, eu acho, eu acho. eu trabalho muito. o ministério não está nada paralisado. é só ir lá. quero que as críticas sejam qualificadas, que sejam feitas sobre fatos reais. nós atendemos em 2005 pela lei rouanet quase 15 mil projetos, foi um recorde de trabalhos avaliados. como dizem que os projetos não são avaliados, não são vistos?

pas – em que pé estão as promessas de modificações da lei rouanet?

gg – ela está na casa civil, para que o decreto presidencial seja feito e aquilo que precisa ser remetido ao congresso, que seria objeto de modificação legislativa, também seja feito. aí vêm uma série de modificações, aquelas todas que foram objetos de 16 audiências públicas em 16 cidades brasileiras, com mais de 20 mil pessoas participando, com todas as questões sobre se os institutos devem financiar suas operações ou não a partir de recursos de renúncia, se as promoções de marketing empresarial podem ou não se beneficiar da renúncia, ou até que ponto podem se beneficiar.

há um caso exemplar na nossa gestão, que foi a árvore de natal do bradesco no rio. ela era totalmente incentivada, toda, na sua construção física etc., pela lei rouanet. nós determinamos que só a parte cultural propriamente dita, de concertos e atividades musicais e teatrais relativas à árvore, continuassem sendo financiadas por renúncia fiscal, e a outra parte fosse remetida aos recursos próprios do próprio banco.

pas – alguém chiou?

gg – um pouco, sempre, né? [Ri.] eu achei uma política justa, de que a parte cultural fosse financiada e a parte não-cultural não fosse financiada. a lei é para tratar de questões desse tipo, de como corrigir eventualmente distorções desse tipo. isso tudo está pronto, está na casa civil.

pas – no início do governo lula, as leis de incentivo financiavam cerca de 80% de projetos do eixo rio-são paulo. há novas quantificações a respeito disso?

gg – isso melhorou muito. é pena que eu não tenha os números aqui, mas houve descentralização, houve regionalização. a região norte, que era zero antes da nossa gestão, aumentou muito. evidentemente, como era zero, tem agora 500% [ri] a mais do que tinha antes. as regiões de minas gerais, espírito santo, mato grosso, goiás, os territórios também têm crescimento significativo, o nordeste e o sul também. e ainda assim rio e são paulo continuam crescendo. têm mais recursos do que tinham, mas percentualmente estão dividindo melhor. não diminuíram, o que vem um pouco atender à questão que caetano põe. quer dizer, não é preciso que os privilegiados deixem de ser atendidos.

pas – voltando à palavra "cota", aqui há algo que caracterize pontualmente a adoção de uma política de cotas, ou ela está acontecendo espontaneamente?

gg – não, está adotando políticas similares às cotas, que eu chamaria de discriminação positiva, ou seja, privilegiando e tentando dar melhores condições a quem não tinha nenhuma. ainda é espontâneo, não chegamos a ter essa necessidade de estabelecer exatamente as cotas. São cotas em tese.

pas – na sua opinião, qual é sua grande realização como ministro até hoje?

gg – eu gosto de tudo que a gente tem feito. acho que os pontos de cultura são uma coisa muito interessante. e essa atuação política internacional também, gosto muito disso, até porque é uma coisa que cabe muito no meu próprio perfil. sou um agente internacional da cultura brasileira, e poder ser isso também institucionalmente é muito interessante.

pas – ferreira gullar se referia aos pontos de cultura quando disse que, "ainda bem", não emplacaram?

gg – não, ele falava das casas de culturas, talvez se referindo ao projeto que a gente pensou em fazer, que era construir centros culturais. ele diz que ainda bem, e nós também, de uma certa forma, porque eu prefiro o modelo de identificação de atendimento e fortalecimento de manifestações já existentes, oriundas das próprias comunidades. é exatamente o modelo dos pontos de cultura, que acho, para a situação atual, mais adequado. você fortalece o protagonismo e o empreendedorismo das localidades, das comunidades, dos atores culturais locais propriamente ditos, em vez de vir com uma prótese, digamos assim. usamos os dentes, os dentinhos cariados deles.

pas – o sr. acha que ferreira gullar tem conhecimento desses pontos de cultura?

gg – não parece ter, pelo menos não menciona.

pas – se tivesse, acharia ruins?

gg – não sei, creio que não, espero que não. creio que ele acharia bons.

pas – o que o sr. faria se fosse convocado para mais quatro anos como ministro da cultura?

gg – eu não sei, não. já houve momentos em que manifestei minha disposição para isso. prefiro manter em aberto. eu gosto, e o fato de eu gostar pode me autorizar a pensar em um gesto desse tipo, em ficar mais tempo. mas ao mesmo tempo também estou retomando meu gosto pela música. voltei a compor, eu não havia composto nenhuma canção em três anos e agora já compus três nesse último mês. já estou voltando, pensando mais objetivamente em fazer meu disco de samba este ano. então pode ser que ficar mais quatro anos lá seja uma perspectiva talvez um pouquinho exagerada. mas, enfim, não descartei, não.

pas – e sair do posto antes para concorrer a algum cargo eletivo?

gg – não, não, não, nem pensar. nem mesmo fazer campanha política para o pv, não quero, não contem comigo nas eleições.

pas – nem na campanha presidencial?

gg – não, não, nem o próprio presidente vai permitir que seus ministros façam campanha presidencial.

pas – anteriormente o sr. já concorreu em eleições na bahia. a experiência no governo não reacendeu aquela vontade?

gg – não, ao contrário.

pas – vai ser um dique dentro da trajetória?

gg – vai, vai. espero que sim. não tenho nenhuma vontade, nenhum estímulo para a vida política propriamente eleitoral, ocupação de cargos eletivos, nada disso. não tenho vontade nenhuma.

pas – uma pergunta a gilberto gil, tratado como "você" e não "o sr.": como você se defronta pessoalmente com toda a crise política do ano passado, que sacudiu o brasil inteiro? é desgastante para você, como seu ânimo reage a ela?

gg - olha, é sempre incômodo e desconfortável, doloroso mesmo, para o cidadão, para todo mundo. mas ao mesmo tempo sou muito realista, não tem muito... a raça humana é uma semana do trabalho de deus, para mim é uma ferida acesa, uma beleza, uma podridão. eu não faço muita..., não tenho muitas expectativas extraordinárias com relação à raça humana, não. acho que é isso mesmo, ela vai aos trambolhões.

pas – o que se tem ouvido muito, sobre "pior crise da história"...

gg – não vejo nada de excepcional, nada disso. isso, para mim, não. pior crise da história é se você vai do ponto de vista midiático, num governo que exerce exemplarmente a dimensão democrática de suas obrigações. três cpis foram instaladas. o presidente permite que ele seja mesmo ofendido publicamente, sem reações, sem nada. é um governo exemplarmente democrático nesse sentido. e, do ponto de vista das acusações de corrupção, é uma ninharia em relação ao que a gente conhece da história do Brasil [ri].

pas – este governo tem sido melhor, pior ou como você e o sr. esperava(m)?

gg – razoável. razoável.

pas – "razoável" é um adjetivo que não admite comparação...

gg – não, por isso mesmo. ele é em si. é um governo que trazia em si mesmo grandes dificuldades históricas, por não ter passagem anterior pela gestão federal. se colocavam expectativas desastrosas em relação à economia, me lembro de que fui um dos poucos a defender que pedro malan fosse mantido ministro durante um período pelo menos, para fazer exatamente o que o governo acabou fazendo, no meu modo de ver acertadamente, que foi manter austeridade fiscal, ataque à dívida pública internacional, construção de superávit, todas essas coisas que eu achava que eram interessantes e que antonio palocci manteve, fez e ampliou a outras questões. o desempenho das contas brasileiras nos últimos três anos é extraordinariamente acima do que foi no governo anterior. nós temos, pela primeira vez em quase 50 anos, redução de pobreza, ainda que mínima, mas significativa porque é uma reversão de tendência. acho que o governo é razoável por isso, porque vai muito bem em muitas áreas e tem cometido erros e equívocos aqui e ali. houve reciclagens que acabaram sendo importantes, o fome zero acabou sendo reciclado para um programa mais amplo e abrangente, que está indo bem e atendendo mais de 10 milhões de famílias. a agricultura vai bem, o comércio exterior vai bem, a diplomacia brasileira vai bem. o alinhamento com os estados unidos no sentido de se consolidar como um algodão entre cristais na américa do sul, para atenuar toda essa coisa, é interessante. eu acho que o presidente lula, nesse sentido, vai muito bem, é um belo presidente. é uma avaliação que estou fazendo mesmo de fora do governo. se estivesse fora e estivesse prestando atenção, como posso prestar estando dentro, eu diria isso.

na última reunião ministerial, por exemplo, os números todos foram apresentados, para todas essas áreas, sociais, de comércio, de produção, a macroeconomia, e a microeconomia também, com a lei de falências, os processos de desoneração em vários setores. outro dia ouvi o presidente na televisão dizendo exatamente isso: deixa a gente poder fazer a comparação dos números. se ela for feita rigorosamente, um a zero para o governo lula.

pas – seria exagero perguntar em relação ao governo todo, mas quanto à sua gestão especificamente o sr. se sentiria injustiçado em algum aspecto, na forma como o ministério da cultura é compreendido?

gg – não é injustiçado, mas o que acho é que a avaliação não é qualificada. ela precisa ser mais qualificada, ser baseada nos fatos, nos números, nos programas, nos processos, nos projetos, na atuação propriamente dita. é essa questão mínima que falei, por exemplo, da avaliação do ministro que trabalha pouco e viaja muito. mas viaja para trabalhar, então como é que viajar não é computado como parte do trabalho? é injusto. respondendo se me sinto injustiçado, nesse sentido é injusto. vou ficar agora 15 dias fora num périplo intensivo, miami, nova york, bruxelas, davos, dakar, acordando cedo, atendendo, fazendo audiências o dia inteiro com gente de todo tipo, tendo que falar francês, inglês, espanhol, me desdobrando, e não estou trabalhando? que história é essa de "não está trabalhando"?

pas – mas ao mesmo tempo está se divertindo, também?

gg – porque eu gosto de fazer isso. estou fazendo com gosto. poderia ser um horror, para quem não gostasse. não está sendo. pelo menos no que tange a esse aspecto, é um ministro adequado ao cargo, um ministro que gosta de fazer o que ele tem que fazer. gosto, amanhã (11) estou indo para o interior do ceará inaugurar teatros, monumentos públicos, conjuntos arquitetônicos restaurados pelo monumenta em quixeramobim, icó e iguatu, com o governador do estado, a secretária de cultura de lá. gosto, estou indo, vou ficar o dia inteiro, um dia e meio fazendo inaugurações, trabalhando, sentando em mesas, discutindo, fazendo discursos. gosto [ri].

pas – uma outra frase de mídia a respeito do governo é que prometeu mudança e a mudança não veio. o minc seria um foco de mudanças pequenas, pontuais, que acontecem constantemente, não são visíveis e não aparecem na avaliação geral de que "não mudou nada"?

gg – é assim no governo todo. fica uma retórica vazia do "não mudou".

pas – esse é o problema de um povo inteiro, se essa avaliação se generaliza do modo como vem ocorrendo.

gg – é, das comunicações sociais do país também, e das lideranças dos setores que deveriam em tese ter a obrigação de fazer esse garimpo, essa ponte, essa avaliação qualificada do governo o tempo todo, com informação precisa, fatos, dados, levantamentos. é o brasil que precisa se qualificar todo. para que o governo seja melhor, é preciso que o país seja melhor [ri]. até para haver atuações melhores de seus governos, ou para estar à altura de atuações que já são boas e não são vistas como tal.

pas – em geral, os governos oscilam entre reclamar de atuações que não são entendidas e divulgá-las por marketing, que também é fortemente criticado. não haveria uma terceira via?

gg – precisamos achar uma. nós não tivemos condições ainda de criar uma equipe de comunicação à altura, estamos vendo neste último ano se complementamos isso. a demanda por cargos e funções gratificadas junto ao ministério do planejamento e à casa civil é muito grande, uma luta muito denodada o tempo todo, até para manter recursos que já temos. às vezes nos defrontamos com retirada de funcionários que temos. agora, por exemplo, estamos em negociação com o planejamento para que não percamos 80 ou 100 dos funcionários que já temos. é tudo muito difícil, gestão pública não é fácil. ao mesmo tempo, é preciso remodelar os modos de comunicação, criar novas formas. as câmaras setoriais são meio para isso, também a requalificação da nossa comunicação social, a sintonia maior entre as secretarias para divulgar seus trabalhos.

pas – o papel da grande mídia nisso é hoje menor do que já foi?

gg – é. ao mesmo tempo, você tem as novas vias eletrônicas, mas esbarra no problema da abrangência. o número de computadores no brasil ainda é muito pequeno, a capacidade de cobrir o país inteiro via internet também. nós temos um site, temos links importantes com outras áreas de governo e áreas fora de governo cujas ações faça sentido divulgar. mas ainda é pequeno, o brasil não tem ainda nem 30% da população coberta por computador.

os pontos de cultura, neles mesmos, têm sido uma forma de divulgação das políticas do minc. as informações sobre elas acabam chegando a esses pontos culturas que estão disseminados, já são quase 400 agora e devem chegar a 500 ou 600 até o final do mandato. também são uma forma. aqui no rio há 20 deles na área urbana e baixada fluminense, e muitos deles vieram falar disso, de como têm recebido as informações sobre a atuação do ministério. é uma forma direta de chegar à ponta, sem passar pela mídia. aí você não é notícia, mas noticia a quem precisa, vai diretamente sem ser notícia.

terça-feira, janeiro 24, 2006

tremoço, tremoça


então os tremoços vieram à superfície do planeta parado. uma legião todinha deles. uma coletividade. uma população.

os tremoços inauguraram sua existência na terra em alta estica, fazendo bonito. chegaram arredondados e discóides, algo assim como discos voadores brotado das profundezas da terra fofa. eram amarelados e rosados, algo assim como moluscos dentro da casca, ou cascas sem molusco dentro. eram macios por dentro e plastificados por fora, algo assim como um danoninho com o valor nutricional de um bifinho, protegido por uma cápsula de pílula, ou de vírus.

eram uma graça os tais tremoços. formavam a mais nobre de todas as colônias.

vistos macroscopicamente eram, no entanto, todos idênticos uns aos outros, os tremoços. uma planície de tremoços. uma monotonia amarelada e molhadinha. um samba de um nota só de casquinhas ploct, suquinhos salgadinhos, polpas crock crock.

logo a uniformidade se pôs a gerar controvérsias, pois, como se sabe, a igualdade é o fermento e o fomento de toda desigualdade.

e os tremoços, rebeldes, deram de se modernizar. avante!, empenharam-se por fugir à mesmice, à pasmaceira, à bruta desdiferenciação que os massacrava e os tornava, cada um deles, invisíveis no exército-multidão de tremoços anônimos.

a diversidade das espécies brotou em todo o viço, não sem o auxílio loquaz de cada um dos tremocinhos em fogo. surgiram tremoços e tremoças de todos os sexos. o planeta tarado entrou em movimento de frenetic dancin' days.

do ímpeto violento pela diversidade, surgiram tremoços arredondados sem as bordas discóides, e esverdeados da cor da grama. disseram-se ervilhas, esses tremoços, pobres tremoços redondinhos.

outros empalideceram, ganharam hastes, adquiriram firmeza nipônica, encorparam consistência sexual. em fuga resfolegante da antiga identidade sem-gracinha, autobatizaram-se champignons.

corados de vergonha do vexame orgiástico que vira-lateava a patuléia tremoçéia, outros estufaram-se, ficaram túrgidos, encheram-se de sementinhas por dentro: tomatinhos-cereja, que até nomes compostos os tremoços em fúria já copulavam.

subprodutos da fase vermelha-tomate, outors se encheram de rugosidades e, espremidos de tontura mareada, voltaram a esverdear: repolhinhos.

mais excêntricas, repolhinhos enrugadinhos optaram pelo botox e pelas formas mais obtusas, rombudas, daquelas de causar escândalo aos tremocinhos que resistiam impávidos-moralistas ao espetáculo da diversificação dos seres viventes: azeitonas.

adeptas do exercício físico e detratoras de pitanguy, tremoças coradinhas de sol malharam os corpos em formas moduladas, maleáveis, ardidas feito pimenta: pitangas, pitangos, azeitonos intumescidos daquilo roxo.

e de repente eram tantos, tantos, tantos. acerolas. lentilhas. uvas verdes & roxas, sedentas por virarem vinhos. casulos ocos lotados de bichos-da-seda, futuras borboletas. ovinhos-de-codorna. ameixas pálidas & ameixas ressequidas de sol. feijões brancos, pardos e pretos. gergelins. grãos-de-bico. grãos estouradinhos de milho maduro, já saudosos da espiga-mãe. cabeças de alfinete. bolas de gude. olhinhos saltados de pequineses, shitzus & lhasas. porcas à caça de parafusos. tantos, tantos, tantos.

milícias mais redicais já partiam rapidamente para a gana de afrontar as cores & os gostos & às padronagens a que mesmo tremoços mais moderninhos ainda se apegavam.

foi daí que, bronzeando-se até o marrom e adoçando-se até o açúcar mascavo, um grupo ainda discóide de tremoços fundou a dinastia dos confetes.

foi de lá que, carnavalescos e apaixonados por cores as mais berrantes, confeitos-confetes tingiram-se de todas as cores do arco-íris, & outras mais: m&m's. gomas de mascar. chicletinhos adams (quadrados!!!). camisinhas-de-vênus ainda não desenroladas. suspiros de gema e de clara de ovos.

pronto, estava definitivamente descaracterizada a existência do tremocismo enquanto pedigree. o que ia acontecer daqui por diante ninguém se atrevia a prever. mas é sabido que, em pleno vigor e governo da diversidade, sementes de igualdade já pulsavam fermentando, fomentando no caldo nutriente viscoso da desigualdade. sem saber que dançavam no ritmo dos séculos, os tremoços eram sístole, eram diástole, e assim seriam assim até a contração definitiva do tremoção chamado universo, da tremoçona ovalada-espiralada dita via láctea.

se outrora seus pais se indignavam com o claustro eterno da uniformidade, os pós-tremoços de agora adquiriam o vício de se coçarem de aflição a cada vez que se deparavam na rua com um tremoço ou tremoça pertencente a outra tribo, muito diferente-divergente deles próprios. mal-estar, raiva, rivalidade, competição, agressividade, violência. os discóides xingavam os verdes, que espezinhavam os vermelhos, que maltratavam os rombudos, que tremiam de medo das metamorfoses mutantes chamadas melancias, que esmagavam indefesas bundinhas de formigas içá.

o caos. os muitos gêneros e subgêneros de tremoço guerreavam uns com os outros, substituindo lascivia por violência, muitas vezes esquecidos de que eram, antes de tudo, tremoços.

até que, em pleno reinado da discórdia, num belo e cinzento dia apareceu na superfície do planeta pirado a menina que tinha fobia de bolinhas.

sim, você há de rir do ridículo da situação. mas tente se colocar no difícil lugar da menina. apaixonada por alfaces, iogurtes, bifes de bisteca, aipos e picanhas, a menina com fobia de bolinhas não podia entretanto ver pela frente uma bolinha. como é óbvio e ululante, sofria intensamente com a hiperpopulação de bolinhas por sobre o planeta redondo.

descobrira a fobia comendo, é claro, comendo um mero tremoço mortiço qualquer, ou quem sabe uma colherada gulosa de ervilhas. mesmo redondas, as ervilhas desceram quadradas, raspando a garganta, causando uma revolução interna que nem a menina nem ninguém mais conseguia entender o que era. nunca mais a menina colocou uma bolinha na boca, prometeu resistir bravamente à avalanche de bolinhas, feito cascão recusando teimosamente o banho de chuveiro.

mas era um martírio. era ver qualquer comida em forma de bolinhas e a menina já se punha a suar frio, a decidir num piscar d'olhos redondos se vomitava as bolinhas que nem comera ou se saía correndo do exército de bolinhas deletérias que pululava o planeta lotado. mesmo sem comer, perdia minutos e horas e dias imaginando a invasão rolante, goela abaixo, de tomatinhos, limões cascudos, mussarelas de búfala, bolas de pêlo que o gato engoliu e depois desengoliu, amoras, morangos, cerejas, framboesas.

após inúmeros enjôos, náuseas, vômitos, olhos tapados, pesadelos e fugas, entendeu que não era mais possível continuar assim. as bolinhas atormentavam dia e noite, mesmo as não comidas. era enfrentar a fobia ou viver para sempre numa matemática maluca de evitar a bolinha que indevitavelmente vai aparecer fazendo careta na próxima esquina.

o único modo de a menina com fobia de bolinhas deixar de ter fobia de bolinhas era, (com o perdão da redondeza do termo) bingo!, enfrentar as bolinhas de bocão aberto, bem redondão.

e a menina enfrentou. e foi o maior extermínio de tremoços a que o planeta pálido jamais assistiu. a menina saiu desabalada devorando azeitonas, bulbos de alho, sementes de girassol, cebolas, cebolitos, pingos d'ouro, antepastos de manteiga, laranjas, limas, carambolas (pois até a bola dita dentro da palavra embolava o estômago), tatus-bolinha, besouros rola-bosta, coquinhos, bagos de fruta e de bicho, coquinhos. e, naturalmente, indo com fome ao pote-origem de todas as espécies, os nobilíssimos vovôs tremoços aos montões.

nunca houve tamanho alvoroço entre os tremoços do meu brasil. aqueles que não eram engolidos para depois voltar à terra na forma de tremoços digeridos perceberam que era tempo de guerra, tempo de agir. os que escapavam à sanha tremocicida da menina com fobia de bolinhas se desprendiam às centenas dos galhos d'árvore onde haviam se trepado para escapar de quem mais tinha medo deles. e começaram a chover, chover, chover. mór temporal.

choveram tremoços, ervilhas, azeitonas, mamonas assassina(da)s, gotas d'água, flocos de neve, grãos de gelo, nozes, castanhas, avelãs, cágados, tartarugas, jabutis, m&m's, tudo quanto é tipo de bolinha choveu do céu naquele dia de clímax.

era a salvação da lavoura. aconchegados no adubo fofo, tremoços destroncados de todas as espécies e tamanhos e cores e sabores debulharam-se, germinaram, fizeram-se lulinhas brotados do chão. germinados, deixaram escapar de dentro de si próprios a fibra. fizeram-se árvores. reproduziram aos milhares novos caquizinhos, abobrinhas, amendoinzinhos, aspirinas, melõezinhos, pontos, vírgulas, reticências etc. etc. etc.

reagrupados provisoriamente em torno da ameaça comum e maciça que lhes parecera a atitude feliz da menina, de reinventar sua própria vida, os tremoços pós-modernizados esqueceram por ora de guerrear uns com os outros. da chuva de bolinhas, um novo ciclo de paz se ergueu, franco período manso e produtivo de entre-guerras. e os tremoços e as tremoças foram viver despreocupados das diferenças que pareciam agora até bobalhonas, felizes para sempre, até o próximo soluço. enquanto isso, foram aprender espírito democrático, coexistência pacífica, irmandade, tolerância. tolerância. tolerância.

a menina? a menina seguiu sem entender por que tivera fobia de bolinhas, mas nunca mais teve fobia de bolinhas.

já septuagenária, num belo dia azul, a menina-moça-senhorinha-senhora quis se certificar dos avanços tecnológicos que habitavam o planeta hipertrofiado e providenciou um exame de dna. queria saber de onde viera, quem era, para onde iria - não custava tentar. e, toda assim sem querer, acabou por descobrir de chofre a razão misteriosa da fobia de bolinhas que tantos anos atrás a levara ao quase-desespero: segundo desvendou o dna, a menina com fobia de bolinhas era tremoço também.


[p.s. 1: o exercício acima atende ao desafio lançado por marcia e por madamada (e já abraçado por vange), de que se instale por aí uma corrente de tremoços e de que quem conte um conto aumente um ponto, quero dizer, uma bola, quero dizer, um tremoço. repasso adiante o desafio a todos os blogueiros amigos do nosso blogsil, sonhando com uma torrente de contos tontos & delírios-colírios de tremoços remoçando a blogosfera. avante!]

[p.s. 2: defini a personagem principal como "menina" porque sou "menino" medroso, fugidio, e porque assim, na forma de "menina", me foi contada a história da menina com fobia de bolinhas. mas, evidentemente, a "menina" com fobia de bolinhas É o "menino" com fobia de bolinhas - porque, afinal, os tremoços e as tremoças foram, são e serão, sempre, todos iguais em sua infinita diversidade.]

sábado, janeiro 14, 2006

HYLDON: guitarras, violinos e instrumentos de samba

quando, há mais de três meses, a gravadora universal editou uma versão caprichada do clássico "na rua, na chuva, na fazenda..." (polydor, 1975), logo pensei em propor a seu autor, o singularíssimo hyldon, uma entrevista por e-mail, aqui para o blog. ele topou a empreitada. eu me empolguei, e enviei uma lista de perguntas gigante, viajandona. ele avisou que ia demorar, por razões óbvias, e foi mandar o questionado respondido já em dezembro. mas a espera valeu - as respostas vieram detalhadas, caudalosas, amplas, generosas. foi minha vez de demorar na edição, mas eis enfim aqui finalmente o diálogo aberto com hyldon, na rua, na chuva, na fazenda, ou num blogzinho de sapê.


já que, onde tudo se mistura, o pequeno É o grande e vice-versa, aqui no telhadinho de palha virtual temos o privilégio de ler a manifestação integral do cara, sem edições, sem os cortes inerentes ao ofício jornalístico. é trabalho em progresso, com compassos e descompassos e percalços. porque, por exemplo, a metodologia "lista de perguntas" proposta pelo entrevistador desfavorece as réplicas e tréplicas, torna o diálogo soluçado, deixa perguntas adicionais fora do traçado. mas, por outro lado, arrisco dizer que pela primeira vez o pensamento (ou melhor, o pensamento escrito) de hyldon aparecerá mostrado na íntegra, sem censuras (ou, ao menos, sem censuras exteriores, se ainda houver as internas). uma experiência, enfim.

várias razões justificam a relevância do experimento, que, arrisco novamente dizer, resulta num documento histórico de alta consistência sobre música brasileira. tal contundência mora em motivações que procuro expor no teor das perguntas, e que nasceram da leitura dos textos do próprio autor no encarte do cd reeditado. ali, hyldon cita artistas de iê-iê-iê, black music e mpb, mas também escritores como machado de assis e filósofos como schopenhauer. ele re-revela os muxoxos dos músicos eruditos que tocaram em seu disco pop - sim, músicos eruditos tocaram no disco pop de hyldon. e é daí para diante, como procuro evidenciar negritando nomes, pessoas, movimentos, gêneros, referências e circunstâncias que ajudam a perceber o mapa diversificado, abrangente, aberto, contraditório, riquíssimo enfim, que constrói o imaginário de um artista como hyldon, pertencente ao rol dos geralmente confinados a rótulos tipo "popular", "comercial", "cafona", "brega"..., impostos de fora para dentro (de dentro para fora também, será, hyldon?).

bem-vindos à aventura, para a qual me arrisco (de novo!) a resgatar recomendação já atribuída-criada-transformada-papagaiada por arquitetos (mies van der rohe, frank lloyd wright), físicos (einstein), escritores (flaubert, guimarães rosa), filósofos (nietzsche) & outros malucos: "deus (o diabo) está nos detalhes". tintim.
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pedro alexandre sanches - você poderia fazer um resumo de suas andanças musicais antes do lp "na rua, na chuva, na fazenda..."?

hyldon - do violão em casa, que aprendi a tocar com sete anos, à minha primeira guitarra, que ganhei aos 14, pouca coisa aconteceu. mas a partir daí, influenciado por beatles e "com uma pequena ajuda" do meu primo pedrinho, dos fevers, formei meu primeiro conjunto de baile, os abelhas. fazíamos de tudo: tocávamos na rádio federal de niterói acompanhando calouros, em festinhas de colégio, em aniversários, e chegamos a fazer um programa de televisão, "a festa do bolinha", do jair de taumaturgo.

morávamos em niterói, e, com a volta da minha família para a bahia, minha mãe só deixou eu ficar no rio de janeiro com a condição de morar com meu primo. e foi o que aconteceu. então acompanhei de perto todo o processo da jovem guarda. ia com ele a todos os lugares, bailes e gravações de programas de televisão. a mão do destino então deu seu toque mágico. certo dia, o outro guitarrista dos fevers, almir, faltou a uma gravação, e alguém sugeriu que eu o substituísse. eu estava com 16 anos. apesar de nervoso e suando muito na mão, me saí muito bem . a partir daquele dia, passei a ser o reserva oficial da banda. essa oportunidade me propiciou o contato com estúdios, maestros, músicos e produtores, e me interessou em fazer músicas e mostrá-las, até que, em 1968, gravei a primeira. como era menor de idade, pedrinho assinou o contrato por mim. em 1970, alguns fatos contribuíram muito pra minha dissidência da turma do iê-iê-iê. o produtor e versionista rossini pinto resolveu formar um conjunto em cima dos fevers, e me chamaram pra tocar guitarra solo. nessa época eu tinha acabado com os abelhas, porque era a maior mão de obra conciliar minha nova vida no rio com os ensaios e bailes em niterói.

comecei a acompanhar cantores nas caravanas pelo interior, geralmente em circos, capitaneadas por animadores de programas de rádio. me lembro, por exemplo, do paulo sérgio cantando e eu atrás, com violão sem amplificação. o cara ia rodando o picadeiro e eu atrás com meu violão, acho que só ele ouvia. mas voltando ao tal conjunto, o nome era os selvagens, foi aí que conheci o michael sullivan. a primeira música que ele fez foi comigo, fui eu que o iniciei no ramo. gravamos a dita cuja com um cantor chamado zé roberto, espécie de genérico do roberto carlos. porquinho ou ivanilton, que mais tarde seria conhecido como michael sullivan, era o crooner, e o tinho saxofone, que depois viria a tocar com tim maia na banda vitória régia, e eu fomos os únicos dessa banda que continuamos com a música. eu estava mais a fim de sair na capa do disco, minha passagem pela banda durou menos de três meses. foram alguns bailes e um festival de música acompanhando rossini pinto. tomamos a maior vaia. a música era tipo sentada à beira do caminho, chata e monocórdica, e ele cantava com uma voz pequena, meio desafinado, mandava muito mal no palco. era um cara de bastidor. as outras músicas eram muito loucas, muito rock - para se ter uma noção da praia que rolava por lá, a música que ganhou tinha o nome de "agite antes de usar".

o que começou a me incomodar era ter que copiar as gravações originais para tocar nos bailes. como solista, eu tinha que fazer igualzinho os solos. a outra coisa que mexeu comigo foi um livro que ganhei de presente do maestro ian guest, chamado "cartas para um jovem poeta", do rainer maria rilke. a última, mas não menos importante, foi aceitar um convite para tocar no quarteto que acompanharia toni tornado, que acabara de ganhar o festival internacional da canção. na banda, chamada br-4, tinha um pianista chamado hélio celso que era jazz puro, admirador confesso de bill evans. ele me apresentou musicalmente a joão gilberto e me ensinou aquelas harmonias cheias de "aranhas", acordes imperfeitos, nonas aumentadas, quintas menores, e por aí ia.

pas - você tinha uma trajetória nos bastidores de gravadoras antes de conseguir gravar aquele que seria seu maior sucesso popular, certo? como foi essa experiência? por dentro, as gravadoras são tão ruins quanto a gente imagina?

h - foi muito importante minha experiência como músico de estúdio, porque quando eu pensava na música já "via" ela pronta. naquele tempo a banda gravava junto com cordas e metais, eram poucos canais nos estúdios, então eu sabia como soava uma orquestra e, apesar de nunca ter lido uma partitura, sabia o que acontecia na grade do maestro. aliás, eu sei ler muito bem cifra. às vezes, quando tinha notas para mim, eu pegava a partitura, ia nos pianistas, que sempre sabiam música. eu pedia para dizer ou passar as notas, e quando o maestro atacava aquele trecho eu já sabia que notas eram. meu bom ouvido me ajudava.

só tive problema uma vez, e logo com a cantora de quem eu era o maior fã: elis regina. cesar camargo mariano, com quem eu havia trabalhado num lp do wilson simonal, e o produtor mazzola, que gostava do meu jeito de tocar, me chamaram para gravar no disco da elis. só que eles estavam ensaiadaços, cesar no piano, luisão maia no contrabaixo e paulinho braga na batera, eles tinham passado meses ensaiando. a primeira música era um samba do gilberto gil chamado "prezado amigo afonsinho" (depois de alguns anos desse fato, afonsinho ficou meu amigo e está sempre nos meus shows no rio de janeiro). sem brincadeira, a música, além de ser um samba rápido, tinha uns 300 acordes por minuto, exageros à parte... era foda, quando eu tentava acertar os caras já estavam longe. botei minha viola no saco e recomendei que chamassem o hélio delmiro, que, além de ser um excelente músico, lia até cocô de mosca. e deu certo a minha recomendação, pois helinho ficou um tempão tocando com a minha ídola. e eu carrego essa frustração de não ter participado daquela "guigue".

agora, voltando ao assunto das gravadoras e comparando antigamente com agora, se isso é possível, um lance que havia naquela época é que a gravadora mantinha no cast artistas que eram muito bons, que não vendiam muitos discos, mas davam prestígio. e as gravadoras tinham dezenas de artistas. um exemplo: milton nascimento gravou seus discos sem vender na odeon. outro exemplo é johnny alf. com a entrada do marketing e o jabá ostensivo, a partir dos anos 80, isso acabou. e o talento musical não está sendo preservado, isso é péssimo para nossa cultura. pena que o gilberto gil não se liga nessa, talvez porque ele, caetano veloso, maria bethânia e gal costa tenham se beneficiado desse esquema. então não pode nem falar mal, que dirá fazer alguma coisa, mexer nesse vespeiro.

pas - como se deu a história da gravação de "na rua, na chuva, na fazenda (casinha de sapê)"? ela demorou um tempo para ser lançada, não foi?

h - foi uma escrotidão do [presidente da philips] andré midani, que já tinha feito a mesma coisa com o compacto do tim maia, "primavera". tim havia gravado em são paulo, quando o disco chegou na mão do midani ele ficou segurando, não acreditava que fosse acontecer alguma coisa. até que um dia tim, num ato de desespero (estava duro e faminto, e gordo faminto não é mole), invadiu a sala dele e deu um soco na mesa. não sei se por medo ou pelos "argumentos" gritados do tim, logo depois do incidente o disco saiu e deu no que deu: "primavera" estourou.

comigo foi o seguinte: eu saquei que a melhor maneira de fazer o disco sem ser "descoberto" por um produtor ou empresário era estar dentro de uma gravadora. então comecei a produzir, primeiro como assistente do mazzola na philips e depois já como produtor na polydor [selo mais "popular" da philips]. eu tinha um feeling para produzir, e talvez um pouco de sorte também. tudo que eu fiz deu certo, até projetos da casa, discos de bandas fictícias como banda do canecão, som bateau e samba é uma parada. aumentei as vendas em mais de 100%. eu havia feito um trato com o [diretor da polydor] jairo pires, de que quando eu estivesse pronto iria gravar o meu disco. e foi o que rolou, quando um dia faltou um cantor eu, que já tinha puxado o grupo azymuth para tocar comigo em quase todos os trabalhos, aproveitei e gravei três músicas. descartamos uma, "palavras de amor ao vento", e montamos um compacto com "na rua, na chuva, na fazenda" e "meu patuá". o andré, quando ouviu, falou na reunião de produção que era um dos trabalhos mais legais que ele tinha escutado no brasil nos últimos dez anos. eu dei gritos de alegrias quando soube.

uma semana depois o jairo me chama na sala para me dar a boa notícia: a companhia achava que eu poderia ser o cara que faria um trabalho fifty-fifty, ou seja gravaria metade das minhas próprias músicas e metade de versões, e eles iriam investir muito em mim. a primeira música seria "angie", dos rolling stones. eu fiquei pasmo, a vontade que me deu foi ir lá tomar satisfação com o midani. o pessoal da polydor me segurou. me levaram para um restaurante e lá me acalmaram, me deram um compacto da música para eu ouvir e pensar. cheguei em casa e coloquei a música pra tocar, até gostei. era uma bela música, mas totalmente longe da minha realidade. pensei que poderia regravá-la do meu jeito, se quisesse, mas tudo o que eu queria era gravar as minhas músicas. se eu não fosse compositor nem pensaria em cantar músicas de outras pessoas, nem do papa.

então começou uma guerra surda. a minha estratégia era produzir cada vez mais e dar mais lucro, assim uma hora eles teriam que ceder. só sei que, em dez discos da companhia, no final do ano de 1973 eu tinha quatro que havia produzido sozinho e mais uns dois de que participara da produção, preparando as bases: odair josé e erasmo carlos. meu compacto foi três vezes para a fábrica e voltou, por ordem do andré. isso durou oito meses, até que, para não me perder como produtor que estava gerando muito lucro para a empresa, resolveram soltar o disco, mas meio que escondido, sem nenhuma divulgação. mas o disco foi sozinho, com ajuda de pessoas honestas que trabalhavam no rádio fui sendo descoberto pelas rádios mundial e tamoio, no rio, e a bandeirantes de são paulo. em pouco tempo fui a primeiro lugar em todo o brasil.

pas - de onde e como partiu a idéia de mistura de samba, iê-iê-iê, música erudita, soul, rock'n'roll, música norte-americana etc. de "guitarras, violinos e instrumentos de samba"? era uma experiência malvista em 1975, mesmo entre músicos populares do brasil?

h - essas misturas sempre aconteceram na minha música naturalmente. deixo a música sair de mim sem bloqueio ou sem querer direcionar ritmo, levada ou melodia. simplesmente elas nascem assim, é uma mistura de tudo que ouvi nessa e em outras vidas (risos). em 1989, quando estava terminando um disco para a gravadora esfinge, apareceu por aqui o ex-trombonista de uma banda americana que eu adorava, chamada the crusaders. ele era também produtor da janet jackson e dos brothers johnson, e depois que ouviu meu disco me botou o apelido de "change man". wayne gostou tanto do trabalho que levou para mixar nos estúdios dele em los angeles, cobrando só o custo do técnico. tenho os direitos desse disco, pois a gravadora faliu e ficou me devendo dinheiro. qualquer dia desses vou relançá-lo. mas minha música tem esse lance de mistura, dentro da própria música o clima muda de repente.

pas - do episódio que você conta sobre a rixa entre músicos eruditos e os "psicodélicos", que impressão você guarda hoje? os eruditos se acreditavam superiores aos populares? como os populares reagiam a isso?

h - os eruditos daquela época eram coroas que não estavam acostumados com essa "profanação". estudavam anos e mais anos para tocar numa grande orquestra. de repente apareciam aqueles cabeludos tocando acordes perfeitos, alguns ruins, e eles tinha que aturar. então tinha essa parada de estereótipos. para complicar, todo cabeludo roqueiro tocava mal, não existia afinador de guitarra. imagina você estudar anos para conseguir entrar para uma orquestra do teatro municipal e de repente ter que gravar umas musiquinhas chinfrins com uns caras tocando desafinados. na cbs, tinha um presidente chamado evandro [ribeiro], que produzia também alguns discos [toda a produção iê-iê-iê de roberto carlos, por exemplo]. a máxima dele era "vamos gravar, gente! se afinar, não vende!".

pas - mudando um pouco o registro da pergunta anterior, você sente que os músicos populares da geração dos festivais, da dita "mpb", se acreditavam superiores a artistas de extração mais popular, como eram os da jovem guarda, da black music, da canção "cafona" etc.? como você reagia a isso?

h - sempre existirá esse lance de turma, os iguais procuram se juntar. naquela época tinha a turma da jovem guarda, a turma do chacundum, a turma do soul, a turma da velha guarda (os da tradicional mpb, aliás no meu gosto os melhores, como nelson gonçalves, angela maria etc.), a turma do brega (que só estourava no norte - waldick soriano, por exemplo, era o rei dos puteiros do interior do país e aqui ninguém sabia quem era)... e existiam os "dandarandês", a galera dos festivais que adorava um "dandarendê" [uma pequena pausa, para não engasgar: hahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaahahaha]. era um tipo de música em que sempre cabia um barato desse. a nossa turma, também chamada de esquadrilha da fumaça, sempre circulou bem entre todas, até porque neguinho respeitava, porque éramos músicos e nosso trabalho, apesar de simples, sempre teve um rebuscamento nas entrelinhas.

pas - nos textos que incluiu na nova reedição do lp em cd, você cita suas visitas a filósofos, pensadores e escritores tão diversos como schopenhauer (violinos?), machado de assis, aldous huxley (guitarras?), jorge amado, arthur clarke, isaac asimov (instrumentos de samba?). você é um bom leitor?

h - agora estou sendo de novo. em 1977, depois do meu segundo disco, eu tive um problema muito sério. passei a desdenhar da força da palavra, adotei um bordão de um personagem do chico anysio: "palavras são palavras, nada mais que palavras". coincidência ou não, aconteceu um episódio comigo, uma experiência muito louca, e eu não estava drogado. eu morava em são conrado, estava na janela e saí do meu corpo e comecei a me observar. cada vez eu ia me afastando mais, até que cheguei à distância de uma estrela e me vi ínfimo, pequeno. a partir desse dia perdi a minha , a auto-estima. a palavra escrita era passado, o futuro era o nada, para mim só importava o presente. ali começava o meu inferno astral, e passei a pior fase da minha vida. apesar de ter feito muitas músicas nesse período, que durou mais de dez anos, me perdi totalmente, só comecei a voltar a ser como era por volta de 1989. mas mesmo assim tinha altos e baixos, acho que só me encontrei de novo por volta de 1997, quando fui morar em teresópolis. foram 20 anos de eclipse. hoje recuperei a fé religiosa e na palavra. acho que uma coisa está ligada a outra, pelo menos para mim.

pas - a associação comum que se faz entre quem faz música mais popular e alta cultura, mesmo em termos extramusicais, é fruto de um preconceito? quando você falava, em "na sombra de uma árvore", do que "não se aprende em nenhum livro", estava de certa forma aceitando esse preconceito?

h - inteligência pode ser treino, alimentação, estímulo na infância ou quem sabe fator genético, mas tem um lance de sensibilidade que só as grandes almas têm, somado aquele lance de que a teoria na prática é outra. fiz questão de colocar e falar "na sombra" e não "à sombra", como para chamar à atenção sobre a língua praticada, coloquial e a erudita do intelectual, o verbo e a ação.

pas - o imaginário musical e visual do lp remetia à vida na natureza, você colocaria seu disco dentro daquela vertente que, nos anos 70, ficou conhecida como "rock rural"? você vê pontos de contato entre o que fazia e as obras de outros artistas que também visitaram essa praia, como sá, rodrix & guarabyra, elis regina, erasmo carlos, milton nascimento & clube da esquina, ney matogrosso & secos & molhados?

h - eu sou daqueles que param para apreciar tudo da natureza: a cor do céu, as nuvens, o mar, o arco–íris, as plantas, os passarinhos, as borboletas. quando eu morava em teresópolis, acordava cedo para curtir a neblina e achava aquilo maravilhoso. pensava "como é que pode?", se eu tivesse condições trazia o povo lá do sertão para ver aquilo, é um espetáculo. acho que "na rua, na chuva, na fazenda..." é um disco urbano, mas que valoriza muito o contato com a natureza.

quanto às pessoas citadas, todas me influenciaram um pouco. eu tinha os dois primeiros discos de sá, rodrix & guarabyra, certa vez fui gravar um jingle com os três num estúdio em ipanema, e quando terminamos eles me chamaram para tocar com eles, que iam lançar um disco e estavam formando uma banda. acho que isso foi em 1972. acabei declinando do convite, e fiquei muito honrado por sinal. secos & molhados foi um impacto muito grande quando apareceu. eu gostava das levadas e das bases do primeiro disco. zé rodrix estava nas bases desse disco. um grupo de que eu gostei muito foi o som imaginário, que tinha zé rodrix também, wagner tiso, tavito, paulinho braga, frederico, que tocava guitarra solo pra cacete. assisti a um show deles com milton nascimento no teatro do copacabana palace que foi um dos grandes shows que já vi na vida. o "clube da esquina" é um disco maravilhoso. deve ter me influenciado, com certeza. acho que tudo o que você ouve acaba fazendo parte de você, principalmente quando se é jovem, com a cabeça mais fresquinha.

pas - a celebração à natureza que você faz em suas letras tem a ver com algum tipo de nomadismo, de viver sem teto, como faz lembrar a citação à "nuvem cigana" do pessoal do clube da esquina, na faixa "eleonora"?

h - não, tem a ver com olhar em volta com olhar de criança. moro no rio e quando saio fico maravilhado com o visual, tenho sempre aquele olhar de turista, de pintor. quanto ao papo de nômade, eu tenho uma fixação por ciganos, se existir esse papo de outra vida mesmo acho que devo ter sido cigano, ou quem sabe motorista de caminhão.

pas - o grupo azymuth, fromado para acompanhar marcos valle, tem participação importantíssima nesse seu primeiro disco. que papel eles tiveram em sua obra, que paralelo você faria entre seu som e o de marcos valle?

h - há um equívoco nessa pergunta. o azymuth já existia com o nome de grupo seleção. o marcos chamou o trio para gravar a trilha do filme "o fabuloso fittipaldi", acho que tinha uma música com esse nome e eles resolveram adotar o azymuth a partir daí. marcos valle é um burguês querendo fazer música popular, eu sou um músico popular em todos os sentidos. eu não desço o nível propositadamente, estou sempre dando meu máximo. houve um tempo, lá por volta de 1972, que gravei uns jingles com ele, as músicas eram dele e do seu irmão paulo sérgio valle. ele mostrava a música, em seguida passávamos. era um quarteto, marcos de piano, eu de guitarra, o batera era o nelsinho e o baixista, o tião neto, que tinha tocado no grupo do sergio mendes. era uma produtora chamada aquarius, de que ele e o irmão eram sócios [e também andré midani, e nelson motta] e tinha contas de empresas muito importantes. eu nunca gostei de gravar jingle, quando você começa a curtir, pimba, acaba, 30 segundos é muito pouco tempo. quando pintava um jingle de um minuto era festa. mas era assim, o marcos apresentava, a gente passava uma ou duas vezes e gravava, mas ele ficava puto que eu sempre puxava as levadas pro meu jeito e ele acabava entrando na minha. era um trabalho de que eu não gostava muito, mas pagava muito bem. acho o marcos um ótimo compositor, mas como músico é meio "mão de ferro".

pas - o universo "black music" do soul (e/ou samba-soul, samba-rock, outros tantos rótulos) que você freqüentou antes, durante e depois de "na rua, na chuva, na fazenda..." foi habitado também por nomes como tim maia, roberto carlos, jorge ben, elis regina, marcos valle, wanderléa, wilson simonal, cassiano, bebeto, maria alcina, arnaud rodrigues & chico anysio, luiz melodia & black rio, entre tantos outros. você poderia dar pequenos depoimentos sobre todos esses caras?

h - roberto carlos fez algumas incursões no soul. luiz melodia tinha uns lances, como em "ébano" e "pérola negra". cassiano faz mais soul music do que muito negão do harlem. a elis era fã do gênero, adorava as cantoras negras americanas e fazia algumas experiências audaciosas na época, como chamar o tim maia pra gravar com ela "these are the songs", uma canção dele, mas fica por aí. eu estou escrevendo um livro para deixar meu testemunho sobre alguns fatos. acho que o testemunho escrito é muito importante, senão fica aquela história de telefone sem fio e depois, no futuro, vai ficar mais difícil pra se separar o joio do trigo. por exemplo, o trabalho do arnaud rodrigues e chico anysio não era musicalmente sério nem engajado em algum movimento musical. era uma piada para divertir as pessoas, não tem nada de samba–rock. neguinho fazia umas músicas engraçadas para ganhar dinheiro e divertir a galera, acho válido, e era muito bem-feito. cheguei a compor duas músicas com arnaud rodrigues, mas nunca gravaria uma música dessas num disco meu.

maria alcina, quando a conheci, eu estava tocando com toni tornado e ela foi convidada pra abrir o show dele no teatro do copacabana palace, e nós a acompanhamos. ela tinha ganho um festival, acho que de cataguases (mg), excelente pessoa com talento nato pro palco. se eu escrevesse um musical a chamaria com certeza. gravei tocando algumas músicas de um cara que mandou muito nessa praia, o hélio matheus, gravei guitarra em "crioula", que a wanderléa cantou, e uma gravação de uma música linda chamada "boi da cara branca" [linda!, linda mesmo!, de morrer!], com ele mesmo cantando, que foi pra uma novela ["o astro", 1977-78, de janete clair], o erlon chaves também tinha uma levada dessa praia. mas eu mesmo nunca compus nada parecido.

o erasmo carlos chamou eu, luis vagner e helinho para gravar um disco com ele, chegamos a iniciar a gravação. não deu certo, mas erasmo usou levadas que criamos nas sessões, que não foram aproveitadas no disco que ele concluiu com outras pessoas. não lembro o nome do disco, mas a música que caracterizava a nossa marca era "mané joão" [o nome do disco é "sonhos e memórias - 1941-1972", saiu em 1972. reúne músicos como azymuth, luizão, pedrinho, tavito, jorge amidem, lafayette (inventor do órgão iê-iê-iê), renato e paulo césar (dos blue caps), roberto (irmão de wilson) simonal etc., e é um dos álbuns mais geniais da história da música brasileira]. o que foi legal para mim foi que o erasmo me convidou pra ir para argentina e paraguai e me nomeou diretor musical, com total liberdade para convidar os músicos que eu quisesse. adivinha quem eu chamei? claro, o azymuth. como o tecladista zé roberto [bertrami] não podia ir, eu chamei o cidinho, um pianista que havia trabalhado comigo na banda da eliana pittman, para substituí-lo. foi muito bom, porque passamos quase 40 dias viajando e essa convivência com o mamão e o alex malheiros [os componentes do azymuth, com bertrami] refletiria no nosso entrosamento na gravação do meu disco, que eu começaria a gravar no ano seguinte.

pas - você diria que se ouvem no disco de estréia referências à música de seu estado natal, a bahia? qual é sua relação com a música de dorival caymmi, de joão gilberto, dos tropicalistas (haveria algo de "domingo no parque" no lindo arranjo de "quando a noite vem"?), de raul seixas, de novos baianos, de antonio carlos & jocafi? entre eles, você seria uma violeta num jardim de rosas?

h - nunca associei "quando a noite vem" com "domingo no parque". no arranjo procurei, através das cordas e do coro feminino, criar um clima de mistério, de medo. claro que sofri influências da tropicália, com aquele lance de misturar tudo, amava os mutantes. joão gilberto e dorival caymmi são referências obrigatórias para quem gosta de boa música, são dois craques do violão, e uma coisa peculiar é o contraste da maneira de cantar: um canta baixinho e o outro alto, colocado, deve ser porque dorival sempre morou em casa e o joão em apartamentos [genial a hipótese, hyldon, genial!]. talvez, para não incomodar os vizinhos, tinha que cantar baixinho. agora, do raul seixas e antonio carlos & jocafi, não tive nenhuma influencia, não.

pas - você diria que se ouvem nesse disco referências à sempre tão maltratada música "cafona", ou kitsch, brega, tantos outros rótulos? qual é sua relação com a música de odair josé, wdom & ravel, wando, maria alcina, fernando mendes, reginaldo rossi, tantos outros? entre eles, você seria uma violeta num jardim de rosas?

h - em 1969, fiz um excursão com os diagonais, que tinha um convidado chamado maurício reis (anos depois eu produziria um lp dele para a polydor, que tinha uma música chamada "verônica" que puxou a vendagem do disco, e também um bolero do cassiano). eu tinha um fusca, e fomos daqui do rio a salvador fazendo shows, em clubes, circos, bares e puteiros. chegamos a morar em algumas "casas" dessas por dias, quando a situação apertava. geralmente eu e o maurício arranjávamos as namoradas para arrumar lugar pra dormir. eu me dava bem porque era o mais gatinho. maurício cantava só musica brega: "o ébrio" do vicente celestino, sucessos de altemar dutra, adilson ramos, carlos alberto... as meninas choravam quando o maurício cantava. mas tinha uma coisa que ele ficava puto, queria matar eu e o cassiano, que nos revezávamos entre o contrabaixo e a guitarra. por exemplo, quando ele cantava "o ébrio" e nós puxávamos a levada para o soul, ele virava para a gente e nos fuzilava com olhares, a gente só ria. quando acabava a apresentação, ele vinha reclamar dizendo que nós estávamos estragando o número dele. mas não adiantava, eu e cassiano sempre fazíamos isso. o resto do show era os diagonais cantando músicas que tinham gravado, tinha "você fingiu", que tim maia gravou no primeiro disco dele. aliás, várias músicas desse nosso show entraram no disco do tim, como "coronel antônio bento" (do luiz wanderley), que era uma parte cômica do show, em que camarão imitava o coronel ludogério (um cara tipo genival lacerda). na gravação do tim, quem canta a segunda parte da música é o camarão.

e finalmente eu cantava duas músicas minhas, "eu me enganei" (gravada pelo robert livi), música que entrou na coletânea "as 14 mais" da cbs e rendeu uma grana legal, que foi o dinheiro com que comprei o carro que nos conduziu, um fusquinha 1965. imagina cinco caras, malas, instrumentos e dois meses viajando por estradas que nem sempre eram asfaltadas. tem uma cena em uma cidade, leolpodina (mg), quando fomos pedir para dormir a um padre e ele, claro, quando viu aqueles cinco homens esquisitos, negou categoricamente. acabamos dormindo todos no fusca sentados em frente à igreja. a outra música que eu cantava era "chove, a natureza chora", minha e do meu primo pedrinho, gravada pelo wanderley cardoso. na gravação do w.c., os diagonais fizeram vocal, e o cassiano depois se inspirou nela pra compor "primavera". aí vai a letra: "chove, a natureza chora/ assim como eu choro a falta de você/ lembro, você me disse que as flores voltam com a primavera/ já é inverno/ tudo é tão triste/ a primavera passou e você não voltou". a música é totalmente diferente, mas a letra tem a ver. tem música dita brega que eu gosto, acho bem-feita. e tem muita música clássica chata.

pas - como "a turma do samba", de martinho da vila, beth carvalho, paulinho da viola, clara nunes, roberto ribeiro etc. etc. se relacionava com a "turma da black music"? havia disputa, chegou a ser barra pesada? para você, o que separava os "sambistas" dos "blacks", se suas origens pessoais muitas vezes eram parecidas?

h - maravilhosamente bem. eu tinha grandes amigos sambistas: agepê, roberto ribeiro, joão nogueira, joel teixeira. aliás, ainda tenho. o jorge aragão gravou no seu último disco uma música minha ("na rua, na chuva ,na fazenda"), o sombrinha e o carlinhos vergueiro jogam futebol comigo.

pas - embora seu nome nem sempre seja lembrado entre os artistas sempre citados das gerações heróicas dos anos 60 e 70, você é dono de dois clássicos inquestionáveis da música pop brasileira, "as dores do mundo" e "na rua, na chuva, na fazenda (casinha de Sapê)", que passaram a ser revalorizadas por grupos dos anos 90 e até hoje gozam da simpatia da molecada. como explicar esse descompasso?

h - eu colocaria "na sombra de uma árvore" nessa lista... eu tenho uma parcela de "culpa" por esses períodos de ostracismo. é da minha natureza gostar de observar as pessoas, mais do que ser observado. meu sonho era que todo mundo conhecesse a minha música e ninguém soubesse como eu era fisicamente. de certa maneira trabalhei para isso, só "aparecia" quando tinha alguma novidade para mostrar, tipo diretor de cinema, escritor de livro, por aí... gosto da liberdade do anônimo. o que acontece é que a nossa indústria fonográfica é uma titica, os caras estão mais preocupados em ganhar dinheiro fácil, em resultados imediatos, e em roubar também, sabe como é, caixa 2... então interessa para eles trabalharem com artistas que movimentem grandes somas, arte que se dane.

junte-se a isso algumas crises pessoais, resultado: grandes hiatos entre um disco e outro. e a mídia para mim é um cachorro louco, cego e faminto [waaal! morou na contundência da imagem, formulada por um "artista popular"?], salvando-se raríssimas exceções. vai em qualquer uma. o que salva é que o tempo (a história) sempre se encarrega de fazer justiça com as próprias mãos. o que tem me ajudado é estar vivo, com saúde, produtivo e com a mesma garra de quando era moleque. e a história está mostrando que meu trabalho é honesto, simples e de qualidade. antigamente o repórter não colocava meu nome, apesar de eu ter sido citado. de uns tempos para cá, isso melhorou. agora citam meu nome, mesmo quando não sou citado (rs). o mesmo acontece quando dou entrevista e falo de algumas pessoas importantes para mim e para a música e não sai na matéria [ê!, aqui é blog!, agora vão sair!], tipo luis vagner lopes, hélio matheus, robson jorge e outros mais.

pas - sendo romântico, falando de coisas simples da natureza e da vida e buscando o otimismo, você dizia querer esquecer as dores do mundo. schopenhauer não estava com nada?

h - quem sou eu, primo, para ousar duvidar da inteligência de um filósofo? eu fiquei pau da vida por que ele ia de encontro ao amor platônico, inocente e verdadeiro que eu sentia pela gioconda. soube que a mãe dele tentou matá-lo empurrando-o escada abaixo, morrendo de ciúmes porque ele era um menino-prodígio e com 14 anos escrevia melhor que ela, que também era escritora [a história de schopenhauer, contada com tons diferentes dos de hyldon, mas confirmando-o, pode ser lida no psico-romance "a cura de schopenhauer", de irvin d. yalom]. às vezes, quando eu estava lendo seu livro "as dores do mundo", me parecia que ele odiava as mulheres. então, a música era uma resposta às coisas que ele falava sobre o amor romântico. eu era um adolescente apaixonado e não podia ser contrariado. se ele fosse vivo eu teria mandado o disco ou pelo menos a letra para ele.

pas - politicamente, você admitiria que fazia parte da turma "alienada" da mpb, ou isso também é outro mito de que os "populares" se tornaram bodes expiatórios, enquanto só artistas da casta de chico buarque e caetano veloso eram vistos como essencialmente politizados? como você sentiu e reagiu à barra pesada política de seus anos de produtividade musical mais evidente?

h - apesar de nunca ter me envolvido em política, fui preso duas vezes pela ditadura. tive uma música desse meu primeiro disco censurada. era uma música instrumental que eu havia feito para o meu amigo hélio celso, jazzista radical, e a única frase que tinha na música aparecia no final, que dizia "cuidado pra não virar jazz". o advogado da polydor, dr. joão carlos müller, me chamou um dia na sala dele e disse que estávamos com um probleminha com essa música, que ela sido censurada, mas que poderíamos ir eu e ele a brasília tentar libera-la. eu, que havia sofrido duas prisões arbitrárias, nem pestanejei, "precisa, não, joão carlos, essa música já está fora", e tirei a música do disco. mas cheguei a imaginar a cena, eu de tênis, camiseta e aquele cabelão black power tentando me explicar para uma bancada de generais prontos para me mandar pro pelotão de fuzilamento.

eu procuro trabalhar o máximo minha individualidade, e acho que assim agindo estou fazendo pela coletividade, que é formada por indivíduos. a música para mim é sagrada, está acima da política. mas não sou contra quem faz isso, respeito a individualidade. é isso, cada um faz o que acha melhor para ele e para a comunidade. eu faço música primeiro para me satisfazer e segundo para satisfazer as pessoas. sou contra guerras, guerrilhas, acho uma estupidez, tanto é que me alistei no exército para tirar carteira de identidade e motorista e nunca mais dei as caras por lá.

nunca senti na pele essa discriminação na classe artística, acho que era mais coisa da imprensa, tipo ou você estava engajado ou era um merda. mas dos artistas, não, caetano veloso cantou "na sombra de uma árvore" num show dele chamado "cinema transcendental" e compôs uma música comigo, "primeira pessoa do singular", que foi do meu segundo lp, "deus, a natureza e a música", de 1976. uma vez eu encontrei o chico buarque na casa do chico anysio e ele me disse que "na rua, na chuva, na fazenda (casinha de sapê)" era a música dele e da marieta severo.

pas - seu lp de estréia está completando 30 anos. se você fosse escolher uma música ou um detalhe dele que representasse o ano de 2005, qual seria?

h - "balanço do meu violão": "esqueça todas as tristezas, venha e caia no balanço do meu violão".