quinta-feira, dezembro 21, 2006

tão perto, tão longe...

então, se a vida gira em círculos, eu brinco de me despedir de 2006 com um texto de exatos 365 dias atrás, publicado na "carta capital" 373, 21 de dezembro de 2005. porque, já que tanto se fala de roberto carlos nos dias que correm, por que não falar um pouco de erasmo carlos e de wanderléa, por quê?

a propósito, será que a vida vem mesmo em ondas?, ano após ano? o antigo 1982 em que a cantora elis regina criticava os colegas que só "brigam pelo interesse do patrão", em vez de reivindicarem direitos próprios, é tal e qual o 2006 em que o repórter rodrigo vianna se despede da rede globo ironizando o abaixo-assinado que seus colegas empunharam, em prol de seus globais patrões?

somos todos iguais nesta noite?, a música popular brasileira É o jornalismo popular brasileiro?

a propósito ainda, essa carta do repórter da globo tem toda a pinta de documento-testamento de 2006 para a posteridade, não? é certo que ali, a certa altura, ele está "apenas" se referindo a um personagem obscuro, da corte de josé serra, em comparação (e reação) a um outro personagem obscuro, da corte de luiz inácio lula da silva. mas a frase corriqueira que isso inspira é para lá de legal, não só pelos "apenas", mas muito mais ainda pelos "além disso", olha só:

"que jornalismo é esse, que poupa e defende platão, mas detesta freud! Deve haver uma explicação psicanalítica para jornalismo tão seletivo!".

pois então, é a "jornalismo platônico" que o repórter está se referindo?!?!?!?!?!, hahahahahaahahahah. tá vendo, querido(a) companheiro(a) aqui deste blog, o que eu falo o tempo todo sobre romantismo mórbido, sobre amor platônico, sobre síndrome-do-dedo-apontado-por-sobre-quem-você-mais-ama?!?!?!?! será que a "grande" mídia (venha ela na forma de palavra, som, música, desenho, pintura, cena ou o que for) virou uma romântica mórbida (& cínica)?!?!?!

por quanto tempo mais continuaremos fervorosamente platônicos, teimosamente antifreudianos? será que em 2007 nós continuaremos defendendo patrões que nem sequer conhecemos, que nem sequer sabemos quem são? em 2007, ainda seremos os mesmos & viveremos como nossos pais, acreditando (sempre) que daqui para frente tudo vai ser diferente?

ou o reconhecimento de que ainda somos os mesmos & vivemos como nossos pais (& nossa mãe elis, & nosso pai roberto) será - está sendo - o primeiro & doloroso passo de (auto)reconhecimento, rumo à adoção de novíssimos e mais polpudos caminhos?

bem. taí um abacaxi suculento que teremos que começar a descascar no desde já fervilhante 2007. pois pode vir quente, 2007, que nós já estamos fervendo, frevendo, a 40 graus!!! boas festas para todo mundo [e as bênçãos, wanderléa & erasmo (& roberto) carlos!], e obrigados mil pelo acompanhamento constante & pelo carinho contínuo (tão longe & tão perto, continuaremos passando por aqui, mas mais esporadicamente, até o desabrochar da primeira semana do ano-pimpolho que já tá chegando)!!!!! beijos muitíssimos!, tão de lonjão!..., tão de pertinho!...


TÃO PERTO, TÃO LONGE...
A festa e a nostalgia conservam vivo o iê-iê-iê

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Há 40 anos, é quase automático pensar em Wanderléa quando se fala em Erasmo Carlos, e vice-versa; se se adicionar à brincadeira o termo "Roberto Carlos", então, o quebra-cuca está inteiro montado. Mas, guardadas aparências públicas potencialmente enganadoras, na "vida real" a comissão de frente tríplice da jovem guarda vive, há 40 anos, bem mais separada do que integrada.

É o que deixam entrever pelas frestas Erasmo e Wanderléa, num encontro proposto por CartaCapital, no momento em que ambos participam do lançamento coletivo, em CD e DVD (e turnê nacional de shows), de um pacote chamado Jovem Guarda – 45 Anos de Rock Brasil ao Vivo, dividido também com os Golden Boys e os Fevers.

Com o tempo, esse modelo de projetos rememorativos em datas redondas tem sido uma das raras circunstâncias de encontro para os dois líderes da música jovem dos anos 60. Outro, também intermitente, é o especial natalino do terceiro elemento, RC, a quem seria inútil propor uma participação no reencontro, pois há uma década ele só concede entrevistas exclusivas à rede televisiva de que é contratado desde 1973, a Globo.

"Nossos filhos só se descobriram agora, por causa desta turnê. As meninas estão encantadas, Erasmo virou o herói delas", surpreende-se Wanderléa. Não é só ele: apenas agora as duas filhas adolescentes passaram a ouvir os seis álbuns que ela lançou nos anos 60, recém-reeditados na caixa A Ternurinha, junto à equivalente O Tremendão, com os seis primeiros títulos de Erasmo.

"Juntos na estrada o tempo inteiro nunca estivemos, nem na jovem guarda. Era só o encontro semanal (no programa televisivo Jovem Guarda), muito também nas reportagens. Depois não deu mais, fomos para a estrada solitária, cada um fazendo o seu", descreve a cantora e precursora espontânea da liberação feminina à moda brasileira.

O parceiro oficial de todos os maiores sucessos da carreira milionária do "rei" comenta o fetiche idílico do público pela eterna comunhão entre os "reis do iê-iê-iê": "As pessoas cobram, também do Roberto. Pensam que a gente está sempre literalmente junto". "Mas é igual família, que se vê só em batizado e casamento", atalha Wanderléa.

As redescobertas de agora denotam a intimidade menor do que a dos sonhos dos fãs: "Na estrada, juntos, nunca estivemos antes. Fico vendo como é a Wanderléa no ônibus. Vejo que todo mundo fala alto e só ela fala baixinho. Nunca na vida ouvi ela falar 'merda', 'bunda'".

A parceira enrubesce, dá um tapinha no joelho, balbucia que é "mentira", "ele é que está acostumado com a coisa pudica da mineira". "Eu também não falo muito palavrão", socorre Erasmo, com indecifrável expressão séria.

Embora renovando votos de afeição e de alegria pela celebração, ambos sabem que a ciranda das datas comemorativas sempre ressurge para assanhar a indústria musical multinacional, e até mesmo a independente (o selo Atração editou outro projeto coletivo ao vivo, com nomes como Leno & Lilian, Os Incríveis e Vanusa).

O Erasmo de hoje tem de conviver com o de 1972, que criava o delicado LP Sonhos e Memórias e relatava com susto o impacto negativo que sofrera ao assistir, nos Estados Unidos, a um show de memória com pioneiros do rock’n’roll como Bill Haley, Chubby Checker etc.

"O que me incomodou, na época, foi a diferença de padrão dos shows. Para Elvis Presley era o hotel Hilton inteiro, a privada era Elvis, tudo era Elvis. E o Rock'n'Roll Revival era mais modesto, o show estava vazio, era humilhante. O nosso não é tão ruim quanto aquele", sorri.

E nem espera a próxima pergunta. "Se formos comparar com a gente, se Roberto Carlos for Elvis Presley, nós aqui tocamos nos mesmos lugares que o Roberto, sempre com casa lotada. Acho que as drogas que lá fora eles tomaram foram mais pesadas que as nossas", brinca, e completa: "A nossa foi Coca-Cola".

Se Erasmo prosseguiu após a implosão do iê-iê-iê com discos de pop, rock e MPB pouco reconhecidos, mas freqüentemente brilhantes, Wanderléa seguiu carreira mais inconstante depois de curada a febre de juventude. "O público nunca descobriu que eu tive momentos difíceis, de depressão brava. Nunca levei ao conhecimento dos fãs, mas a ferrugem disso estava me corroendo. A depressão vai cerceando seus momentos, vai tirando o brilho do olho".

Olhos nos olhos brilhantes de Wanderléa, Erasmo fica enigmático: "Minha postura é outra". É a vez dela socorrê-lo: "Erasmo vive de maneira introspectiva".

"Fiz as coisas mais ousadas que uma cantora pode fazer. Gravei Walter Franco, Jorge Mautner, Luiz Melodia, Djavan, Egberto Gismonti. Fiz tanta coisa depois da jovem guarda, nunca imaginei que fosse voltar tão de cabeça a esse lance. Mas o público quer suas músicas de sucesso", resigna-se, após se referir à despercebida fase de cantora "maldita" de MPB, que rendeu obras como a até hoje nunca reeditada ...Maravilhosa (1972).

Na quarta-feira 14, poucos dias após o encontro entre a "ternurinha" e o "tremendão", no hotel Brasilton, no centro de São Paulo, o "rei" apresentaria, em entrevista coletiva no Copacabana Palace do Rio, o 45º disco que prepara para o Brasil desde a estréia com Louco por Você, em 1961.

O artista que transformou em movimento de massa no País o rock'n'roll americanizado volta com uma semi-surpresa (além da de se posicionar a favor do uso da camisinha e contra o Vaticano): gravou um disco interiorano, voltado para o dito Brasil profundo, com canções como a guarânia paraguaia Índia, gravada aqui pela dupla caipira Cascatinha & Inhana. A única parceria inédita com Erasmo é Arrasta uma Cadeira, cantada em trio com outra dupla (sertaneja), Chitãozinho & Xororó.

Enquanto o "Rei" canta e canta e canta, Erasmo e Wanderléa revelam outra sintonia: ambos andam rabiscando esboços de autobiografias. "A minha é o seguinte: optei por narrar situações engraçadas, porque mesmo nas horas ruins eu sempre encontro o humor. Fiz uma lista de casos com Agepê, Roberto, Wanderléa, Bethânia, Alcione...", conta Erasmo, que comprou uma máquina de escrever Olivetti para enfrentar a tarefa.
"Eu só consigo escrever à mão, depois copio", diverge Wanderléa, que conta ter deixado de lado a biografia por ora, para escrever poemas. "Dei uma parada, é complicado. Não posso contar minhas vivências sem passar pelas deles. Preciso ser ética, mostrar o que escrevi."

Erasmo compartilha o dilema ético. "Eu gostaria que todos confiassem em mim. Não posso mostrar ninguém como imbecil. Não tenho medo que Roberto não autorize. É que se acontecer vou ficar puto", ri Erasmo.

Antes de um brinde de feliz Natal (que, quebrando a tradição, a dupla estuda passar reunida com as respectivas famílias), a última pergunta: qual foi o melhor momento que Wanderléa e Erasmo viveram juntos?

"Eu não posso contar", ele salta a frente, o sorriso ficando maroto. Wanderléa cora, hesita, completa: "Eu gostei... Viu como ele é filho da puta?".

Mas, hum, foi mesmo? "Realmente, foram muitas emoções, he he he", ela tergiversa, remedando o vértice mais distante do trio. Agora é tarde, o palavrão já foi disparado.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

a indústria em (trans)mutação

e a música, em termos industriais, como é que fica depois desta fase de transfigurações que não paramos mais de viver?

vai saber..., não sabemos... mas uma coisa é certa (ou não é?): a indústria e as fábricas podem ser feitas de tijolos (como costuma ironizar o joão marcello bôscoli, filho de elis regina e de ronaldo bôscoli). mas, antes ainda de serem feitas de tijolos e de cimentos e de patrões, elas são feitas de pessoas. de pessoas iguaizinhas a eu, a tu e ao rabo dos tatus-bola, filhos dos tatus-bolinha (sua bênção, seu dorival caymmi).

"carta capital" 420, de 22 de novembro de 2006.


A INDÚSTRIA EM MUTAÇÃO
O mercado oscila entre o declínio das gravadoras e o crescimento do Ecad

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A indústria musical está mais fragmentada que nunca. De um lado, a arrecadação de direitos autorais cresce ano a ano no Brasil e atinge a estimativa recorde de R$ 270 milhões a serem coletados pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) em 2006. De outro, a indústria de discos segue em queda livre, com perdas de 20% em unidades vendidas e 12,9% em valores arrecadados, em 2005, e de 11,6% em unidades e 6,7% em valores, só no primeiro semestre de 2006, segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD).

Diante de tamanho contraste, uma dúvida se impõe: o mercado musical brasileiro está crescendo, ou está definhando? As respostas variam enormemente de acordo com cada um dos braços dessa indústria complexa. E indicam, no mínimo, a consolidação de uma nova correlação de forças entre esses vários tentáculos.

O ponto de desespero continua sendo o das gravadoras de discos, reunidas sob o guarda-chuva da ABPD, cujo mercado de vendas de unidades físicas caiu quase 50% desde 2000 (op faturamento em 2005 foi de US$ 394,2 milhões), a bordo da pirataria física (de discos) e virtual (de downloads). Como explicar, dentro desse contexto, o progresso contínuo do tentáculo representado pelo Ecad, de coleta de direitos devidos aos autores pela execução pública de música (que se elevou em mais de 100% desde 2000)?

Órgão centralizador criado durante a ditadura militar, o Ecad foi historicamente visto como vilão, até mesmo por parte daqueles que representa (os criadores de música), devido a atuações tidas alternadamente como insuficientes e abusivas. Nos últimos anos, no entanto, tem sofisticado seus mecanismos de ação, a ponto de reverter pouco a pouco a imagem negativa que a mídia costuma rotineiramente amplificar.

A melhoria de organização e de imagem acontece a despeito de um sem-número de processos que o escritório move na Justiça contra pagadores inadimplentes. "O maior problema atual é o pagamento dos grandes usuários. Como é que os grandes têm uma postura totalmente anárquica em relação a isso, e nada acontece?", pergunta a superintendente do Ecad, Glória Braga.

Ela se refere às maiores rádios e redes de tevê do País, cuja praxe, segundo afirma, é a inadimplência. Segundo o Ecad, apenas 40% das rádios brasileiras legais pagam direitos em dia. Entre as maiores redes de tevê, a Record é a única hoje que paga regularmente. Redes como a Globo e a MTV (uma emissora dedicada à música) encontram-se em disputa judicial com o escritório, pagando em juízo, devido a discordâncias quanto aos valores a serem repassados.

Sendo assim, o progresso do Ecad se deve ao aumento de cobrança pela execução de música em bares, boates, casas de show, clubes, festas de casamento, academias de ginástica, que colaboram para que autores veteranos como Roberto e Erasmo Carlos se mantenham no topo da lista de arrecadadores, ao lado de sucessos de temporada como o sertanejo Rick ou o funkeiro MC Leozinho.

Se o Ecad se segura arrecadando junto às bases da pirâmide musical, as gravadoras, que ocuparam posto de máximo poder nos anos 90, espremem sua sobrevivência entre atitudes repressivas contra os consumidores de pirataria e sucessivos baques. O abalo mais recente aconteceu na multinacional de origem inglesa EMI, que em 25 de outubro passado anunciou a descoberta de uma fraude na filial brasileira e a "suspensão" de membros da diretoria local (entre eles o presidente local, Marcos Maynard, que nos anos 90 foi um dos homens fortes por trás da explosão mercadológica da axé music).

Segundo auditoria interna em curso, a EMI Brasil teria exagerado receitas em cerca de R$ 48 milhões e lucros na ordem de R$ 36 milhões. O espanto se espalhou pela cobertura da BBC, que estampou um título na linha de estigmatizar o Brasil e vitimizar a matriz: Brazilian fraud hurts EMI Music. Mas a conduta da gestão de Maynard já havia sido noticiada em agosto de 2005 por CartaCapital (edição 353), em reportagem que dava conta dos expressivos avanços registrados pela gravadora num cenário de crise generalizada: "Tais resultados se consolidaram nas vendas de Natal, em que o mercado sofreu uma queda de 18,3% nas cópias consumidas em relação a dezembro de 2003, enquanto a EMI registrou o formidável crescimento de 288%".

As gravadoras, cuja imagem pública vem se deteriorando progressivamente, enfrentam agora a impopularidade de bater na tecla da luta contra a pirataria, mesmo sob as boas notícias de que em 2005 o Brasil voltou ao ranking dos maiores consumidores mundiais de discos (na décima posição) e de que a pirataria física recuou no ano passado de 52% para 40% do mercado total.

Apoiada em pesquisa do instituto Ipsos, a ABPD divulga que 72% dos CDs falsificados são comprados por consumidores das classes C e D, como se a pirataria fosse uma questão de classe social. Mas o mesmo instituto desmente essa interpretação parcial: de acordo com a pesquisa, 67% dos praticantes brasileiros de pirataria digital pertencem às classes A e B, e 69% possuem pelo menos o colegial completo.

Diante do avanço da pirataria digital, a ABPD se integrou em outubro último à campanha mundial de processos movidos pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) contra pessoas que baixam música gratuitamente na Internet. Iniciaram-se 8 mil processos novos em 17 países, inclusive, pela primeira vez, no Brasil.

Golpeada por várias frentes, as gravadoras ensaiam se atirar sobre outro dos braços da cadeia produtiva da música, que até há pouco não as atraía: os shows. "É irreversível, todos os contratos de artistas novos já destinam de 10% a 20% do faturamento com shows e merchandising às gravadoras", diz o presidente da Associação Brasileira dos Empresários Artísticos (Abeart), Ricardo Chantilly, ciente da persistente dependência dos artistas diante do aparato das gravadoras.

Na ponta dos criadores, as tentativas de organização também seguem fragmentadas, entre a sempre contestada Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), associações de direitos autorais (centralizadas pelo Ecad) e de editoras, sindicatos e a própria associação dos empresários, que, segundo Chantilly, existe para defender os direitos dos artistas.

Ele diz que a Abeart, fundada em 2003, centra esforços atualmente na luta por uma legislação que moralize a cobrança de meias-entradas em espetáculos culturais. "Hoje existem computador e impressora, eu posso fazer carteirinha de estudante no meu escritório. Acontecem várias anomalias, agências de turismo e Pizza Hut estão emitindo carteirinhas", critica. "E o que aconteceu? Todo mundo se viu obrigado a dobrar o preço dos ingressos. Hoje, no Brasil, estudante paga entrada inteira e o cidadão comum que não é estudante nem picareta paga dobrado."

Outro pólo que se equilibra no tabuleiro é o das editoras musicais, que já andaram de braços dados com as gravadoras e hoje vivem com elas situação de litígio semelhante à que contrapõe o Ecad às rádios e tevês. Divergentes quanto a percentuais a serem destinados a editores e a produtores de discos, as gravadoras multinacionais lideraram uma dissidência da Associação Brasileira dos Editores de Música (Abem), dividindo forças mais uma vez.

A presidente da Abem, Marisa Gandelman, tenta diagnosticar os dilemas atuais do negócio da música como um todo: "A indústria, incluindo-se aí as editoras, vive o impacto das transformações produzidas pela vida digital, ao mesmo tempo em que produz muitas de suas próprias dificuldades".

A crise persistente, a julgar por avaliações como a dela, se localizaria menos na música que no modelo industrial que a embala. Tal sistema ainda não sabe lidar com a dimensão crescente de sua parte imaterial, via Internet, telefonia celular etc., o que representa, segundo ela, "um enorme desafio e um grande paradoxo: um potencial fabuloso ameaçado pela dificuldade de enquadrá-lo nas regras e nos costumes de funcionamento do mercado no sistema capitalista".

Para que direções se locomoverão todas essas engrenagens, diante do desmoronamento do modelo vigente, ainda é uma incógnita. Mas, cresça ou definhe a indústria capitalista como um todo, a peça-chave do jogo de xadrez em pleno movimento permanece sendo a música, essa que agora abandona os suportes físicos para voltar a ser o que sempre foi: imaterial.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

o-cê

mas, já que o assunto encardido da hora é a mediação de conflitos, testemos algumas notas avulsas sobre o show "cê", de caetano veloso, a que eu assisti ontem, no sesc pinheiros, ali pertinho de um dos rios mais vilipendiados do brasil (o pinheiros, irmão-em-desgraças do rio tietê):

* caetano cantou "nine out of ten", do disco "transa" (72), e a dedicou à equipe de criação original daquele disco, citando em primeiro lugar o nome de jards macalé; eis aí uma briga histórica aparentemente arrefecida, um conflito aparentemente mediado - e com direta participação da mana maria bethânia, pelo que se sabe. (em tempo: dedicou a mesma música, também, ao maestro jaques morelenbaum, parceiro em tempos bem mais recentes.)

* caetano cantou uma canção inédita, chamada (se consegui apurar direito) "amor mais que discreto", que (se entendi bem), que legal!, é uma balada triste e abertamente homossexual. bonita, linda, emocionante.

* caetano retomou "o homem velho", do disco "velô" (84), o que na minha modesta opinião comprova a filiação (ainda que enviesada) de "cê" a "velô". velocê, mora?

* caetano cantou num teatro, como já havia feito poucos meses atrás, ao conceber um show especial ao lado do filho moreno. tudo bem que melou a idéia-aramaçan de chegar a são paulo por santo andré, pelo grande abc, pela periferia. mas que legal o cara vir voltando a fazer shows em teatros, em vez dos canecões lotados de biritas, tábuas de frios & pessoas acondicionadas feito em latas de sardinha.

* "não me arrependo" começa sampleando lou reed ("take a walk on the wild side") e prossegue sampleando raul seixas ("cachorro urubu"), não? noviorque É salvador?

* os rocks ásperos de inveja, raiva, soberba, gula (& outros "pecados" capitais) de "cê" soam a estes modestos ouvidos como se oscilassem entre o agradável (às vezes) e o desagradável (muitas vezes). quando raspam no ouvido, o show fica lento, se arrastando que nem cobra pelo chão. (mas isto não é uma crítica, afinal, o que é que a gente quereria, no lugar deles? "tigresa", "o leãozinho"?).

* "odeio você", o mais lou-reediano e david-bowieano dos rocks de "cê", é bem agressivo, do pisca-pisca de luzes às texturas. mas é também o momento mais divertido: não é pouca porcaria ver o cara induzindo a platéia a repetir em coro o verso-refrão "odeio você", "odeio você", "odeeeeeeeeio vocêêêêê". porque, ah, vamos falar francamente, né?, até que enfim ele canta explicitamente esse negócio que alguém já disse, de que "o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões"... é aí que se cristaliza de uma vez por todas o espelho (in)exato entre o c(ê)aetano e a sua platéia, a mais "ame-&-odeie" do brasil... afinal, tipo assim um roberto carlos, quem é que não ama odiar caetano?, quem é que não odeia amar caetano?...

* caetano cantou "como dois e dois" (71), criada para roberto carlos gravar (e também cantada e gravada no ato por gal costa, no show-disco "fatal") e que nunca antes eu havia ouvido na voz do dono. áspera, dramática, tensa, bonita (só faltaram os "tcharará" da versão de rc, assim como sempre faltam os "blrrrrrrrr" das versões pós-mutantes de "balada do louco", conforme denunciou outro dia o mutante sérgio dias). e a concluiu de braços abertos sobre a guanabara (do rio pinheiros), feito jesus cristo rendentor.

* o show de caetano tem uma geografia curiosa, especialmente em seu miolo central ["central", de centro? não foi o lula que disse outro dia que um homem velho, se muito esquerdista, "tem problemas" (suponho que também tem, se muito direitista, ou estou errado?) caetano também É lula?]. tal geografia fixa-se sempre no sexo, mas passeia pelo "chão da praça" baiana, pelo (des)amor homossexual, pelos blogs, pelo samba, por roberto carlos, pelo (des)amor heterossexual, por são paulo, por noviorque, pela triste bahia de londres, por "odeeeeeeio vocêêêê"...

* lá na apca (associação paulista dos críticos de arte), votei contra a idéia de o "cê" ganhar o prêmio de melhor disco do ano, o que pessoalmente acho que chega bem perto da avacalhação [a propósito, meu voto é para "transfiguração", do cordel do fogo encantado; meu segundo voto é para "falcão - o bagulho é doido", de mv bill; meu terceiro voto é para "danç-êh-sá", de tom zé, esse densíssimo lado-b-do-cê]. mas, no fim das contas, feitas as contas, como dois e dois são (...quanto, mesmo?...), nem soa tão (auto)agressivo assim que os críticos da biliosa são paulo tenham escolhido o bilioso "cê" como, er, "disco do ano"... não chego a concordar, mas que faz bastante sentido, ah, isso faz...

[* obs. mais ou menos à parte, na incrível definição que apareceu outro dia na revista "bravo" e com a qual creio que concordo: "caetano veloso é uma neurose da imprensa". é?... e a imprensa, seria também uma neurose do caetano?...]

* no sambalanço geral, a estes modestos ouvidos & olhos, "cê", o show do "c", cansa & emociona. se formos somar em termos qualitativos, mais do que quantitativos, acho até que emociona mais do que cansa. e isso, veja só, mesmo com o cara lá gritando que "odeeeeeeeeeeio vocêêêêêê(s?)"... vai entender...

[* (só mais uma) obs.: a-ha!, ocê vai pular a discussão do tópico anterior, é?!]

terça-feira, dezembro 12, 2006

você já mediou um conflito hoje?

então. não sei quem percebeu e quem não percebeu, mas nos dois tópicos mais recentes estivemos discutindo apaixonada e exaustivamente alguns dos aspectos mais superficiais de uma coisa importantíssima, nuclear, chamada mediação de conflito.

ficamos brincando de pula-fogueira, amarelinha e dominó no planeta dos mutantes, fingindo jogar gasolina nas ritas, imaginando atear fogo nos arnaldos, burburinhando sobre quem expulsou ou foi expulso, futricando sobre quem ganhou ou perdeu muito $$$$$, oscilando na corda bamba entre as picuinhas mais incendiárias e as disposições mais pacificadoras. andamos pela fronteira, na zona de guerra, no front, na trincheira. fronteiriços, também nós, entre tochas humanas e homens-baldes-d'água, entre homens-bomba e mediadoras de guerra. pulando fogueira, amanhecendo mijados.

falamos de música. brincamos de seguir (ou não) a trilha de miolos de pão que vai dar na jaula dos julgamentos peremptórios e/ou na boléia da bajulação adulatória por sobre os mutantes, os ex-mutantes, os astronautas, os reis-meninos. nos nos simulamos penetras na festa high society de bolinhas chiques e luluzinhas famosérrimas. lambuzamos de brioche. boiamos na superfície que apenas belisca as mágoas mais fundas & os amores mais profundos de nossas (ir)realezas.

mas as profundezas e as profundidades do assunto crucial estava e está nos rondando, nos cercando, espreitando nossos próximos passos e nosso futuro. histórias em quadrinhos à parte, a (falta de) mediação de conflitos (e de guerra, lá para além dos limites) era e é e será tema definidor da nossa vida por sobre este planeta de mutantes e de não-mutantes.

vai daí que eu te proponho, outra vez: picuinhas pop à parte, vamos aproveitar o know-how e parlamentar um pouquim sobre medi(t)ação de conflitos?, no duro, na real, na maior, numa relax, numa tranqüila, numa boa?

o mote é dado por quem entende do riscado, porque vive na carne e no dia-a-dia a mediação de guerra, e a própria guerra, essa que eu-você-nós finjo-finge-fingimos todo dia que nem estamos vendo, que nem estamos ajudando a compor, em processo de criação coletiva.

da fala desses caras - desses artistas, se me permite - foi extraída a reportagem que segue abaixo, da "carta capital" 416, de 25 de outubro de 2006. e, se a gente não presta atenção nesses caras - nesses artistas -, a gente simplesmente segue incendiando tudo ao nosso redor, bem "contente" e "feliz", nénão? quem quer ser o estopim da bomba? quem prefere ativar supergêmeos na forma de um balde d'água fresca?

[obs.: tem, sim, música à beça circulando bem ali-aqui onde fica a trincheira, a interlândia, a zona, o front de batalha. ouve só, está tocando neste instante, bem aí nos seus-meus-nossos ouvidos...]


ARTE NA ZONA DE GUERRA
De Vigário Geral à Sérvia, a mediação de conflitos através da cultura

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Um grupo musical do morro toca no "asfalto" carioca, numa tradicional casa de shows, para um público que mistura empresários, artistas, celebridades e moradores de favelas. A certa altura, a platéia emudece e segura o fôlego, diante da entrada no palco de um batalhão de policiais fardados. Instrumentos em punhos, os policiais militares vindos de Minas Gerais passam a tocar percussão em companhia dos músicos. O grupo, chamado AfroReggae, floresceu a partir de uma tragédia, a chacina que em 1993 exterminou 21 habitantes inocentes de sua comunidade de origem, Vigário Geral.

Em outubro de 2006, pouco mais de um ano depois da cena descrita acima, o coordenador do AfroReggae, José Junior, de 38 anos, está em São Paulo, na avenida Paulista. Participa de reuniões na diretoria da Fiesp, para discutir projetos comuns da federação das indústrias com o recém-criado grupo F4, que agrega quatro das maiores ONGs cariocas, AfroReggae, Cufa (Central Única das Favelas), Nós do Morro e Observatório de Favelas.

Ele e Celso Athayde, da Cufa, se alternam entre a sede da Fiesp e a do Itaú Cultural, onde Junior e o AfroReggae coordenam os trabalhos do Antídoto – Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito. A diversidade ali reunida é vertiginosa.

Há o israelense Shai Schwartz, que mora numa cooperativa judaico-árabe em sua terra natal e trabalha em Londres com crianças e adolescentes refugiados de África, Afeganistão, Iraque, Turquia etc., especialmente aqueles que já foram torturados ou presenciaram massacres na família. O rapper Ferréz vem trazer a vivência da zona de conflito chamada Capão Redondo, periferia sul de São Paulo. O jornalista Veran Matic revisa a trajetória de fundador da rádio B92, a primeira emissora independente da Sérvia, que desempenhou papel importante na resistência contra o regime governado pelo ditador Slobodan Milosevic. Somam-se a esses antropólogos, uma psicóloga que media conflitos com as Farcs colombianas, um palhaço norte-americano, um coronel mineiro, uma ativista libanesa, e assim por diante.

José Junior não é só um artista, ou um músico, ou o coordenador de uma estrutura social e cultural que já virou comercial e se multiplica em turnês musicais pelo Primeiro Mundo e em rodadas de negociação com o "PIB brasileiro". Assim como seus pares espalhados pelo planeta e provisoriamente agrupados na avenida Paulista para o seminário Antídoto, ele se considera (e age como) um mediador de guerra.

"Cresci ouvindo que todo policial, empresário, político ou jornalista é filho da puta, principalmente o jornalista", provoca, sabendo que é entre esses mesmos personagens que ele hoje deseja circular (e circula) com desenvoltura, sem nunca perder contato com suas origens no centro carioca, em proximidade total com bicheiros, prostitutas, travestis. Outra das inúmeras mediações que se propõe a fazer é entre o tal "PIB brasileiro" e o que ele apelida de "PIB bélico", ou seja, as comunidades carentes em que coexistem traficantes e trabalhadores, muitas vezes estigmatizados em bloco pela sociedade do "asfalto".

Na época da chacina, por exemplo, Vigário Geral e a vizinha Parada de Lucas viviam uma guerra entre líderes do tráfico das duas comunidades, cada uma delas controlada por uma facção criminosa. Desde a fundação do AfroReggae, em 1993, Junior e os demais coordenadores vêm se consolidando como mediadores em situações de conflito e de guerra aberta entre facções inimigas. De lá para cá, instalaram um núcleo e promovem grandes shows na antes inimiga Parada de Lucas.

Experiências como essas e as da convivência entre policiais e cidadãos por intermédio não da violência, mas da música, estão condensadas no documentário Nenhum Motivo Explica a Guerra, dirigido por Cacá Diegues e comercializado diretamente em DVD. Sobre a necessidade de aproximar polícia e comunidade, Junior diz que fez questão de que entre os monitores do AfroReggae colocados em contato com os policiais mineiros estivessem alguns abertamente homossexuais; todos eles deveriam, necessariamente, ter sofrido experiências particulares com violência policial. Monitorados, os conflitos passam a ser, eles próprios, instrumentos de resolução de conflitos. "Todo mediador de guerra é alguém que teve perdas na vida pessoal", sintetiza.

Mas todo mediador se arrisca, também, a ser confundido com a situação que está mediando, a avaliar pelo depoimento de Celso Athayde, co-autor com MV Bill do documentário e livro Falcão: "Bill sempre foi tido como bandido, e eu também, em certa medida. Em parte por nossa causa mesmo, já que o rap também foi uma indústria de denúncias, que não oferecia alternativas ou soluções".

Citando os processos de apologia ao crime a que ele e Bill respondem por conta de Falcão, diz: "Se Caco Barcellos e João Moreira Salles tratam de violência, é literatura e cinema, porque eles têm autoridade. Nós não temos o mesmo direito, não podemos escrever livro, porque é crime". Quando a seleta platéia da Paulista aplaude um vídeo sobre mortes violentas em comunidades que ele exibe (e a que assiste chorando), Athayde classifica o aplauso de "constrangedor" e ironiza a situação, indagando se as palmas também não poderiam configurar apologia ao crime.

José Junior gosta de provocar quaisquer interlocutores citando e descrevendo a "narcocultura". "É uma estética, uma indústria, uma gastronomia. A narcocultura gera grana ilícita e lícita, como quando alguém instala uma padaria do lado da boca de fumo para aproveitar o movimento. 'É nóis' é um termo do Comando Vermelho. 'Tá dominado' também é, e virou hino da Xuxa. A Nike faz parte do universo da narcocultura", enumera, referindo-se ao fato de que meninos da favela traficam e roubam para atender ao sonho de consumo de ter um tênis de marca.

As referências à narcocultura e às guerras entre povos se multiplicam ao longo do evento, se embaralhando também com outros signos. Num vídeo sobre conflitos na Argélia, a imagem insistente de um pequeno aparelho de tevê é sempre seguida por imagens de metralhadoras e fuzis; a leitura de que a mídia também pode ser arsenal bélico é recorrente no seminário. A antropóloga brasileira Betty Mindlin discorre sobre os índios massacrados na Amazônia na esteira da exploração de diamantes que virarão "só colar no pescoço de europeus".

O antropólogo peruano Rodrigo Montoya critica o etnocentrismo: "Vemos o mundo da perspectiva do grupo a que pertencemos. Vemos a nós mesmos como 'superiores', e os outros como 'bárbaros'". E foca no etnocentrismo ocidental: "Os Estados Unidos atribuem à cultura islâmica uma condição de maldade, contra outra de bondade, que é a deles. Vira 'normalidade' versus 'anormalidade', 'civilização' versus 'barbárie', 'progresso' versus 'atraso'. São categorias inúteis. Ao usá-las, as pessoas voltam a argumentos do passado que servem para justificar a linguagem do nosso tempo de que está bem que uns povos dominem os outros".

O israelense Shai Schwartz, híbrido de ator, dramaturgo, educador, contador de histórias e psicanalista, relata o caso de um jovem da Somália que foi incorporado à guerrilha, matou e estuprou. Num exercício de dramatização, o rapaz acaba por se identificar com o mito do "monstro", afirmando que "é isso que eu sou, há um monstro dentro de mim". Conta Schwartz: "No meio do processo, ele disse que 'nem sempre sou um monstro', que 'não sou um monstro quando estou feliz, seguro, confiante em mim'. Perguntei quando ele era um monstro, ele respondeu que é 'quando estou com medo'".

Em seguida, Schwartz promove uma dramatização com a platéia do Antídoto, utilizando a fábula de Chapeuzinho Vermelho para conduzir alguns espectadores a se identificarem com as figuras da mãe, da avó e do lobo mau. "Você mata e come garotinhas, mas defende a ecologia. Não sente culpa por isso?", indaga ao rapaz que, interpretando o lobo, se debate para afirmar que é só lobo, e não lobo "mau".

Mesmo à luz da distância real e simbólica que separa o Ocidente e o Oriente, a mediação alegorizada pelo israelense faz lembrar as do carioca José Junior ao intermediar relações entre "cidadãos" e "bandidos", entre traficantes de facções distintas, entre mega-empresários e líderes comunitários, entre "pobres" e "ricos"... Não por acaso, o israelense e o carioca andavam dividindo nestes dias o mesmo palco do Antídoto, no centro nervoso de São Paulo, cidade do PCC.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

astronautas libertados

helena dos santos é o nome da autora de alguns dos sucessos mais felizes de roberto carlos na década de 60, mais alguns poucos iê-iê-iês desgarrados pelos anos 70 e até 80.

são de sua autoria as mimosas delicadezas "na lua não há" (63), "meu grande bem" (64), "como é bom saber" (65), "sorrindo para mim" (65), "esperando você" (66), "nem mesmo você" (68), "do outro lado da cidade" (69), "o astronauta" (70), "agora eu sei" (72, em parceria com edson ribeiro), "fiquei tão triste" (76), "recordações" (82, também com edson ribeiro).

no livro recém-editado "roberto carlos em detalhes", paulo cesar de araújo reconstitui a odisséia de helena, mulher negra (nascida em 1923), filha de lavrador, favelada e viúva. ele conta que, após tentar mostrar seus sambas a jamelão, dolores duran, emilinha borba, nelson gonçalves, cauby peixoto e sérgio murilo, helena foi bater no ainda desconhecido roberto carlos, à procura de alguém que a tornasse compositora gravada, jurada, sacramentada. após muita marcação cerrada, emplacou "na lua não há" no lado b do compacto de "parei na contramão", que seria o primeiro sucesso nacional do futuro rei da juventude. por tal feito, narra araújo, helena passou a ser considerada como um talismã por rc - e ele continuou gravando a (até então) pobre compositora, por anos a fio.


tudo isso é para dizer que, não, não há nenhuma novidade no fato de roberto carlos convidar um autor como mc leozinho para ser seu par num dueto musical de especial natalino. desde helena dos santos, rc se identifica com autores pobres, com artistas periféricos, com gêneros musicais marginalizados, com a miscigenação onde-tudo-se-mistura no seio da black music nacional.

é fato, também, que mc leozinho não é helena dos santos. cantor e compositor simples, direto e talentoso, leozinho já é um sucesso nacional, que freqüenta as rádios brasil afora [roberto diz que foi por essa via que conheceu o delicioso funk-melody "se ela dança, eu danço (ela só pensa em beijar)"] e já lançou cd bancado pela som livre, da rede globo [no qual, por sinal, regravou "sá marina", de antonio adolfo e tibério gaspar, sucesso em 1968 na voz black-caliente de wilson simonal].

mesmo aí, não há novidade no convite de roberto para que leozinho descesse o morro e viesse cantar-exultar que "falei com o rei!". rc sempre manteve os ouvidos colados no rádio, no que mais faz sucesso comercial-popular neste país quase continental. nesse espírito, sempre convidou para seu programa anual representantes dos gêneros mais populares do momento - axezeiros, pagodeiros, sertanejos, roqueiros, bregas, cafonas e românticos em geral têm tido ponto de parada garantido no breve instante anual de sociabilidade do mais brasileiro de todos os cantores e compositores populares brasileiros. rc gosta deles, porque gosta de si, e pronto, e ponto, etcetera e tal.

linha, margem, tracinho, tração.


mas, por favor, pare agora, um minutinho só. há, sim, novidade no fato de roberto cantar e abraçar mc leozinho no ano da glória de 2006. se me permitem a arriscada provocação, o funk carioca é (assim como o hip-hop) um gênero musical "de esquerda" - e, não, não é nada habitual que rc chame para duelar com ele algum dos artistas mais rebeldes de cada momento histórico entre os milhares que o "rei" já atravessou.

ora, direis, vaia de bêbedo não vale: leozinho é a ponta mais melódica, aguada, comercial e conformista do funk carioca. hum, pode até ser, mas insisto: ainda que os artistas que integram o movimento funk carioca sejam eventualmente "de direita", o gênero musical em si é "de esquerda" - assim como a dita mpb já virou há muito tempo um postulado musical "de direita", ainda que muitos de seus soldados sejam ou se pensem "de esquerda" (ou, no mínimo, "de centro"). no funk carioca, como no hip-hop, não há espaço (ainda) para antônios carlos magalhães.

o espaço do funk, seja o de leozinho ou o da contundente deize tigrona, é o da rebeldia, do levante, do feminismo, da liberação sexual, da crítica crua à hipocrisia comportamental brasileira. é o lado b (ou a?) do espaço do rap, que é o da rebeldia, do levante, do antirracismo, da denúncia social, da crítica direta à desigualdade social armada no brasil de baixo para cima, com grosseira hipocrisia. ainda que só pela beleza deste instante, roberto carlos hoje está com essa turma. é membro honorário dessa turma de terráqueos em vias dolorosas e demoradas de emancipação.

[não custa lembrar: há dois anos, o rapper paulista rappin' hood gravou uma (per)versão originalíssima de "a história de um homem mau", iê-iê-iê carlista de 65 que motivaria, logo a seguir, o retruque amorosamente (per)vertido "o homem que matou o homem que matou o homem mau", por jorge ben. jorge ben (jor) é um dos convidados natalinos deste 2006 na ceia do "rei", ao lado de mc leozinho, wanderléa, erasmo carlos e a (ex-) tribalista marisa monte. embora já tenha manifestado simpatia pelo hip-hop, rc ainda não liberou o sample da "história de um homem mau" por rappin' hood. e o iê-rap-iê segue inédito no espaço virtual.]

pois então, voltando a helena dos santos. o que paulo cesar de araújo também revela, e para mim foi novidade absoluta e impactante, é que, quando o manancial criativo da compositora começou a se esvair, rc passou a compor ele mesmo algumas músicas que assinou com o nome dela (imagino que, assim, engordava um pouquinho mais a conta de direitos autorais da mulher-talismã negra, viúva etc.). pelo menos duas das melhores canções de helena dos santos, segundo araújo, são de autoria de roberto carlos: os souls arrasa-quarteirão "do outro lado da cidade" (69) e "o astronauta" (70).

tudo isso, aliás, era para chegar a "o astronauta", na minha opinião uma das mais avassaladoras gravações da história do pop brasileiro, levasse ela a assinatura de dona helena ou de seu roberto. "o astronauta" é aquela que, entre batidas soul da pesada, vocais acachapantes e ruídos psicodélicos de nave espacial, diz assim, ó:

"não tenho mais nem uma razão/ pra continuar vivendo assim/ não posso mais olhar tanta tristeza/ por isso não vou mais ficar aqui/ o mundo que eu queria não é esse/ o meu mundo é só de sonhos. bombas que caem, jato que passa/ gente que olha um céu de fumaça/ meu amor não sei por onde anda/ será que os amores já morreram?/ um astronauta eu queria ser/ pra ficar sempre no espaço. e desligar os controles da nave espacial/ e pra ficar para sempre no espaço sideral/ não vou voltar pra terra, não...".

"astronauta aprisionado" era a vestimenta de rc no tormentoso 1970, momento histórico em que artistas brasileiros (e brasileiros artistas) se viam içados a optar entre o exílio, a submissão, a guerrilha ou a piração. roberto carlos colocava em público o desconsolo e optava por um quinto caminho: não ficar na terra, não, ir para o espaço sideral (onde certamente encontraria david bowie, space oddity boiando pelo éter numa tin can).

enfim, tudo isso foi para dizer que, já que estamos falando em astronautas, tomo este pretexto para encerrar o ciclo iniciado no tópico anterior, dedicado aos mutantes & seus cometas no país do baurets, na curva do espaço-tempo 1969-2001-2007. para isso, reproduzo aqui a reportagem da "carta capital" 422 (de 6 de dezembro de 2006) que se originou, pelas transversais do tempo-espaço, da entrevista transcrita abaixo e povoada, você já sabe, por terráqueos, internautas (da interlândia), marcianos, gauleses & troianos.

o que não pára de ribombar na minha brain can é isto, ora bolas: estariam(os) os astronautas em curso de emancipação?


ASTRONAUTAS LIBERTADOS
Os Mutantes driblam três décadas de desacertos, num reencontro histórico

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Numa das cenas-chave do filme 1972, a jovem aspirante a jornalista tenta convencer a editora sisuda de que as especulações em torno da suposta saída de Rita Lee do grupo de rock Mutantes são, sim, um assunto de grande relevância. Por coincidências da chamada "vida real", o filme de tintas autobiográficas dos jornalistas culturais Ana Maria Bahiana e José Emílio Rondeau está em cartaz justamente quando os Mutantes lançam seu primeiro trabalho novo em 30 anos. Mas sem Rita, que de fato se despediu da banda naquele ano de 1972.

A reunião dos "Beatles brasileiros" parecia impossível, fosse por desacordos vários e constantes entre os ex-integrantes, fosse pelo afastamento de Arnaldo Baptista, devido às seqüelas de uma tentativa de suicídio, em 1982. Mas os astronautas libertados (como dizia a letra de 2001) voltaram a aterristar em maio passado, num show proposto pelo Barbican Theatre de Londres, dentro de um festival dedicado à tropicália. E com Arnaldo, que vem ensaiando um retorno paulatino desde 2004, quando lançou o álbum solo Let It Bed.

Reagruparam-se neste 2006 Arnaldo e seu irmão mais novo, Sérgio Dias, ambos integrantes do trio original com Rita, e mais Ronaldo Leme, o Dinho, baterista que se integrou ao grupo em 1970. Sérgio diz que convidou Rita por e-mail, mas ela não topou participar. Quem ocupou o lugar, então, foi a compositora e cantora (de voz grave) Zélia Duncan, que tem se protegido de previsíveis críticas optando por grande discrição no palco e pela atitude de se basear nas interpretações de Rita, mas nunca imitá-la.

"Todos sabíamos o risco que estávamos correndo. Podíamos ser 'o maior mico internacional do ano'. Mas fomos direto para a boca do leão. Ou era ou não era. O nosso off-Broadway foi o Barbican, foi lá o primeiro show do resto da nossa vida", afirma Sérgio, citando de viés o disco Hoje É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, de Rita Lee, o canto de cisne do núcleo criativo original dos Mutantes, em 1972.

O fator determinante para levar a façanha adiante, segundo ele, foi a concordância de Dinho, hoje jornalista esportivo. "Falei 'tô dentro, mas vamos ver até aonde eu chego'. Fui sentindo que dava", diz Dinho. O hoje produtor musical Liminha, que esteve na banda a partir de 1971, seguiu a trilha de Rita e declinou o convite para voltar.

O show do Barbican, recém-lançado em DVD e CD duplo, motivou uma série de shows pelos Estados Unidos, que nos anos 90 se tornou pátria da redescoberta da música originalíssima dos Mutantes. Sérgio, o caçula da banda (em que começou como garoto-prodígio, aos 13 anos), assumiu a produção do retorno e tem orientado a recriação de 21 rocks tropicalistas concebidos e trabalhados entre 1968 e 1972. Reconstruídos, os arranjos são executados com uma equipe numerosa de músicos de apoio, sob virtuosa fidelidade aos originais e algumas modificações. Certas letras, por exemplo, voltaram a ser como eram antes de vetadas pela Censura no auge da ditadura militar.

O virtuosismo agora acrescentado remete à experiência dos Mutantes nos anos 70, quando se metamorfosearam num grupo de rock progressivo. Essa foi, aliás, uma das causas de desavença para Rita e, em seguida, para Arnaldo, que deixou o grupo em 1974. "Eu estou desbundado", afirma Arnaldo sobre a volta.

Rompida com o grupo de modo traumático, Rita foi inventar o rock'n'roll à moda brasileira, menos reflexivo e mais alegre que o de Pink Floyd e seguidores. Três décadas depois, os humores progressivos brasileiros parecem entrar em processo de revisão, não só por certos detalhes dos novos arranjos dos Mutantes como pelo imaginário retomado pelo filme 1972, que resgata do limbo bandas como A Bolha, Módulo 1000, Karma, Soma etc.

"Acho fantástico Sérgio, Arnaldo e Dinho tocarem juntos de novo. É algo parecido com o que aconteceu com A Bolha, que também se reuniu depois de 30 anos, por conta de 1972", diz o diretor José Emílio Rondeau. "Esse imaginário ficou esquecido tempo demais, ficou soterrado sob uma dicotomia falsa, de que no Brasil havia apenas os militantes e a ditadura. Mas havia mais, muito mais, tanto mais", avalia Ana Maria Bahiana. O filme tem causado controvérsia por colocar o ator e ex-cantor Toni Tornado no papel de um militar truculento, mas ao mesmo tempo terno e solidário aos jovens "transviados" (e despolitizados) da história.

Quanto aos Mutantes, é Sérgio quem se encarrega de fazer a defesa apaixonada, por sobre a cortina de ceticismo que envolvia qualquer hipótese de volta. "Todo mundo dizia que Mutantes não iam acontecer, como todo mundo achava que Lula não ia emplacar na segunda vez", ri. E adiante complementa: "É legal a gente dizer 'sim', dentro do Brasil, onde tudo é 'não'. Por que a gente tem que tachar tudo de impossível? Por que é impossível que o Brasil seja o melhor país do mundo, que o povo brasileiro seja o mais inteligente do mundo, que a gente tenha igualdade social? É possível, sim".

Seu discurso se sustenta em dados concretos, no que diz respeito aos neo-Mutantes. No exterior, a volta tem gerado expectativas e casas lotadas, a acolhida tem sido emocionada. Zélia ilustra: "Em Miami, dois garotões americanos entraram no camarim chorando, tremendo, com os LPs para eles assinarem".

Arnaldo parece plenamente ciente da empatia persistente, quando, usando sua lógica toda peculiar, afirma: "Eu sou tão importante que, quando consigo falar, o que eu falo te atinge. Mas você também pode entender errado o que falo e dizer 'isso é confusão'. Vai saber...".

A dinâmica já começa a se reproduzir no Brasil natal, ainda que sob o velho véu de desavenças, que a mídia invariavelmente amplifica. Em entrevista recente ao Fantástico, da Globo, Rita opinou que "revival é um bando de velhinhos espertos tentando descolar grana para pagar o geriatra". E se valeu de risos e ironia para afirmar que "não vou fazer revival de Mutantes nem a pau... a não ser com uma boa grana".

Em outro trecho, que não foi ao ar no Fantástico (mas seria exibido dias depois, no canal pago GloboNews), ela se pôs a relembrar de um grupo de que era fã quando pequena, os Velhinhos Transviados, e arrematou: "Vou fazer os Velhinhos Transviados revival...".

Poucos dias depois, foi a vez de os Mutantes protagonizarem um minishow especialmente para o Fantástico. Diante de platéia seleta, a corrente de reações emocionadas voltou a se desencadear, fazendo chorarem fãs, artistas amigos, até o presidente da Sony BMG, gravadora que banca CD e DVD. Nas entrevistas, olhos chorões também se espalham entre repórteres, assessores de imprensa, familiares e os próprios músicos. O entrosamento transparece nas expressões de alegria do grupo (sobretudo de Arnaldo) e contagia quem se aproxima dos re-Mutantes.

Na entrevista àquele Fantástico, eles driblaram com elegância perguntas sobre Rita, brigas e geriatras. Não se lembrou, como em geral não se tem lembrado, da ausência de outro integrante da trupe original, Rogério Duprat, arranjador de todos os álbuns tropicalistas, inclusive os dos Mutantes. O genial maestro não participará de mais nenhuma travessura com os pupilos, pois morreu em 26 de outubro passado, aos 74 anos, sem gerar grandes comoções entre os ditos "formadores de opinião".

A razão provável dos dribles, Sérgio expõe numa resposta a CartaCapital, sobre a dificuldade de falar sobre a relação tão delicada com a ex-companheira de banda: "Não é dando chute que se consegue o beijo de uma menina". Para a mídia e para eles, parece mais fácil e cômodo girar em torno das brigas que lidar com o amor intenso e conturbado que soldou para sempre os ex-Mutantes.

Sabedora de que o chão é de brasa acesa, Zélia Duncan ressalta que a primeira coisa que fez, ao ser convidada, foi pedir o aval de Rita, de quem também é parceira. O aval foi dado, mas como ela se sentiria e o que faria se, por alguma reviravolta, Rita Lee quisesse resgatar seu lugar?

"Eu ia morrer de emoção de vê-los juntos. Às vezes imagino isso no meio de um show. Quando liguei para Rita, disse a ela que o que mais vi naquele estúdio foi ela mesma. Pude imaginar os três ali, criando, rindo, implicando. Sabe quando você está guardando um lugar pra um amigo no ônibus ou no cinema? Acho que seria assim. E, já que é sonho, antes de sair, eu pediria pra cantar 2001 com ela. E eu ia fechar os olhos e cantar como mutante: Dei um grito no escuro, sou parceiro do futuro, na reluzente galáxia...", Zélia responde.

Enquanto isso segue sendo impossível, os Mutantes se preparam para a real reestréia nos palcos brasileiros. O primeiro show do resto das vidas deles acontecerá em 25 de janeiro, no aniversário de São Paulo, cidade de Rita, Arnaldo e Sérgio. Será gratuito e ao ar livre, em frente ao Museu do Ipiranga. "Não vai ser um show, vai ser um grito", brinca Sérgio, que já comprou uma espada em Paris, especialmente para o "dia do fico".

terça-feira, dezembro 05, 2006

hoje ainda é o primeiro dia do resto das nossas vidas

em 1999, trabalhando na "folha de s.paulo", tive a oportunidade de fazer uma entrevista histórica com baden powell num hotel paulistano, ocasião em que ele revelou, por exemplo, que já não cantava mais os saravás dos afro-sambas em parceria com vinicius de moraes, porque havia virado evangélico.

foi uma entrevista difícil, porque o homem em si, além de genial, era bastante difícil, e não fazia questão nenhuma de ser delicado ou agradar repórter. mas foi maravilhoso, emocionante, arrebatador para um repórter relativamente jovem, de 30 e poucos anos. por alguma razão que eu não soube direito, transcrevi e editei a entrevista na "ilustrada" utilizando boa parte das (muitas) coloquialidades que baden dizia. de presente, pela entrevista que tanto me orgulhava, ganhei uma baita bronca de um leitor - já não lembro exatamente o que ele argumentava, e nem sei se a carta dele foi publicada (acho que não foi), mas se não me falha a memória ele dizia que reproduzir a fala coloquial do artista era um modo de esculhambá-lo, de desrespeitá-lo. em suma, uma operação ideológica (e eis aí uma crítica que, aliás, nunca ouvi ninguém fazer quando a jornalistada reproduz, por exemplo, a fala coloquial de um rapper ou de uma funkeira).

enfim, tomei a bronca e fiquei achando que o cara tinha razão. ademais, qual transcrição, edição, redação, redução ou interpretação seria não-ideológica? era engraçado [e dizer "engraçado" é um modo de (não) dizer que isso aí era - e é - uma baita pressão que vem por todos os lados] saber que entrevistados reclamaram, reclamam e reclamarão dos modos como suas falas são selecionadas-cortadas-editadas-reduzidas, tanto quanto é possível um jornalista tomar um puta esporro de um não-entrevistado por ter se mantido estritamente fiel à fala dos personagens de tal ou qual reportagem. tipo, se correr o baden pega, se ficar o powell come.

mas, então, de volta para o presente: tudo isso é porque agora, apesar de broncas passadas e futuras, me deu uma baita vontade de transcrever uma outra entrevista do modo mais literal e coloquial possível - é a que fiz com os mutantes, numa tarde de segunda 29 de novembro de 2006, num salão de hotel na cidade de são paulo [a reportagem resultante está na "carta capital" 422, ora nas bancas, que é metade complementar da entrevista que vem transcrita aqui embaixo]. sim, deve ser operação ideológica, com objetivo sei lá qual - talvez o de afirmar que é histórico poder encontrar e conversar com os mutantes, seja em 1969, 2001 ou 2006, seja com ou (infelizmente) sem a presença de rita lee, seja quem forem 10 mil anos depois esses tais mutantes.

a propósito, a operação ideológica, desta vez, deu um trabalhão danado. havia uma platéia considerável espalhada pelo comprido salão, que incluía as esposas de arnaldo baptista (lucinha) e de sérgio dias (lourdes), assessoras de imprensa & outros. ouvindo a fita, as vozes não raro se sobrepõem e se confundem; a de lucinha estava longe demais, foi difícil de decifrar na fita cassete para muito além da memória; outras vezes fica difícil decifrar de quem são as vozes que vêm; em certos momentos, todo mundo fala junto mesmo, e aí é aquela água. ah, e posso também ter entendido errado um ou outro termo (e se, porventura, algum mutante ou participante do colóquio vier a passear por aqui e vir sua fala modificada, agradeço entusiasmadamente toda e qualquer correção; para isso mesmo a internet é letra viva, assim como também o são os mutantes, não é mesmo; aliás, a internet É mutante, não?).

enfim, o que vem abaixo é a tentativa mais rigorosa possível de reproduzir o bate-papo como ele aconteceu - o que inclui (talvez para purgar a bronca do antigo leitor, mas mais para inscrever no monolito do futuro, mesmo) manter intactos também os cacos, as coloquialidades e os micos do repórter (mesmo quando causem a este vergonha e uma baita vontade de apagá-los ou corrigi-los). ideologia para todos, democraticamente!, sem hierarquias!, aiô, silver! ideologia ou morte!

o esforço e o risco se impõem (assim eles ensinam, como naná e itamar), não só pelo caráter "histórico" de uma entrevista em grupo com os novos (velhos) mutantes, mas também porque foi tão divertido, porque eles pareciam tão contentes, porque dinho leme sorria do jeito caladão dele, porque zélia duncan parecia feliz enquanto pisava em ovos, porque sobressaltos e silêncios emocionados de gregos & troianas se antecipavam a respostas mais delicadas (em especial as que envolviam o nome de rita lee, evidentemente). talvez vá daí também um pouquinho de ideologia; mas talvez, quem sabe, pudéssemos substituir o termo "ideologia" por "emoção", "intuição", sei lá. porque, assim como música, jornalismo descarnado e calculista também não é mais "moda", não tá com nada, é treco de dinossauros mamutes, não de mamutes mutantes.

pois vai daí a entrevista, com meus agradecimentos empolgados a mutantes, a novos mutantes, a velhos mutantes, a não mutantes e nunca mutantes (ah, e salves especialíssimos aos pop-maestros celestes baden "saravá" powell, rogério "coração materno" duprat e raul "eu vi pedro negar cristo por três vezes" seixas!). a nós.


pedro alexandre sanches - a impressão mais freqüente era de que essa volta dos mutantes nunca iria acontecer. o que permitiu que ela acontecesse?

sérgio dias - never say never. a gente sempre foi fã do james nond.

arnaldo baptista - lá vem 2007, dois-zero-zero-sete.

sérgio - são dois 007.

pas - mas deve haver um momento histórico que permita que aconteça de fato, não? qual é este momento de agora, o que aconteceu?

sérgio - tem. acho que é o mesmo momento que criou a banda. acho que por razões razões acima do nosso conhecimento, no momento, nunca dantes navegadas...

zélia duncan - conjunções...

sérgio - conjunções desastrais [risos]...

pas - depois de quanto tempo, mesmo?

sérgio - 33 anos. idade de cristo. [essas contagens são meio confusas, né? rita lee saiu dos mutantes há 34 anos; arnaldo, há 33; o último disco "original" dos mutantes, tendo apenas sérgio como remanescente da formação original, saiu há 30 anos.]

pas - como foi gestada a volta? não sei para quem olho para perguntar isso, vou olhar sempre para a cortina [risos].

sérgio - pergunta para o dinho, ele é que sabe bem. [para o repórter] que legal o seu tênis.

pas - você olha para o meu tênis e eu olho para a cortina...

sérgio - o bico parece que é de outro...

zélia - o tênis está gripado.

sérgio - ele está gripado! legal, o bico é maior! ele é conversível? que marca é isso?

pas - não sei...

arnaldo - a sola de borracha é rubber sola. rubber soul [risos].

pas - mas, então, por que, e como foi?

sérgio - porque... nunca teve não porque. depois que a juventude passou por nós e a gente foi viver as nossas vidas... eu estava nos estados unidos, arnaldo estava vivendo aqui, rita estava fazendo a vida dela, dinho estava fazendo a vida dele, foram outros caminhos que a gente teve que viver para chegar até aqui. por exemplo, por que eu estou em são paulo? estava nos estados unidos, depois vim para o rio de janeiro, fizemos uma casa em araras, depois resolvemos vir para são paulo. são tantas coisas externas, se for parar para pensar onde isso começou a gente pode dizer que... imagina quando o cara botou a primeira pedra fundamental no barbican [o teatro londrino onde se deu a apresentação de volta, em maio passado]. foi lá que começou, então, porque, se for pensar, é muito louco o negócio. da maneira como a coisa aconteceu é mais ou menos exatamente o que eu sempre pensei que iria ser: basta um telefonema.

pas - você sempre pensou que ia ser assim?

sérgio - sempre, sim. acho que todo mundo. muita gente botava esqueleto dentro do nosso armário, e não tinha nenhum, nada a ver.

pas - qual foi esse telefonema?

sérgio - o telefonema foi... para mim foi o do dinho. quando ele disse "eu topo", aí foi que caiu a ficha.

arnaldo - para mim quem falou foi o aluizer [malab, empresário sediado em belo horizonte, que gerencia e/ou gerenciou o trabalho de artistas como pato fu, otto, arnaldo baptista (em seu retorno solo, há dois anos) e, agora, mutantes].

dinho leme - é, o aluizer foi quem falou com todos nós.

sérgio - ele foi o cara que fez o tricô. e foi muito bom.

arnaldo - ele trabalha na empresa polvo, a voz do polvo é a voz de deus.

lourdes dias - não, é malab, malab produções [risos; o logotipo da malab é um polvo, daí o trocadilho de arnaldo].

sérgio - apesar de malab, ele tem uma boa lábia. mas aí, sei lá, a maneira como aconteceu foi muito... foi completamente fora da nossa jurisdição... foi o cara do barbican, foi o eduardo, foi o aluizer, foi tudo menos a gente.

pas - quem é o eduardo?

arnaldo - não lembro quem é o eduardo.

sérgio - não lembro o nome, o eduardo que era da trama. edu era curador do barbican, e ele falou para o chefe de lá, que estava fazendo aquela exposição, que fazer uma coisa de tropicália sem mutantes era completamente irrelevante, não tinha o menor sentido. aí, sei lá, acho que isso escapou na imprensa lá fora, eu recebi e-mail da menina da "mojo magazine", dizendo "escuta, você vai tocar de novo aqui, que legal". eu disse "pô, não tô sabendo". daqui a pouco começa a pipocar em tudo quanto é lado, a rádio kiss dizendo que a gente já estava ensaiando, que eu estava falando com liminha [outro dos ex-mutantes que, como rita, não topou a nova jornada] pelo telefone [ri].

pas - vocês não estavam ensaiando?

sérgio - não. o legal disso tudo foi que fez os telefonemas acontecerem. quando dinho falou que tocava, aí para mim é muito sério, porque eu sei, o dinho não é moleque, ele sabe o que significava para ele ter que dizer "eu toco". é uma encrenca do cacete, você voltar 30 anos depois e pegar um palco como o barbican de frente. o nosso off-Broadway foi lá, o primeiro show do resto da nossa vida foi lá. foi um belo desafio.

pas - dinho, o que levou a falar esse "sim" neste momento?

dinho - talvez o motivo seja esse. se fossem me convidar para fazer um som dentro de casa, na praia, como me convidavam sempre, eu não ia.

zélia - ele só sai de casa para ir para o barbican [risos, comentários paralelos].

sérgio - dinho é muito elegante.

pas - você não estava fazendo mais nada com música?

dinho - não.

sérgio - eu sou fã dele, ele é quem faz o fórmula-truck. eu fico vendo lá.

dinho - mas é isso aí, a vontade de fazer um negócio legal, mesmo. tanto é que eu falei para o sérgio: "tô dentro, mas vamos ver até onde eu chego". fui sentindo que dava.

pas - e tem este moço aqui [para arnaldo], que tinha feito um disco solo e vinha progredindo muito nos últimos tempos.

arnaldo - é, aos poucos. eu não estava conseguindo ligar meus equipamentos ainda, eu ainda pasto horrores para conseguir lá. tenho os melhores amplificadores da terra, né?, audio research e valvulados. mas não tenho pré-amplificador. passei uns cinco anos para conseguir um valvulado, agora consegui. é muito difícil. além disso consegui um alto-falante subsônico, tecnologia inglesa, americana. a gente ouve até 16, ele alcança abaixo de 13. é igual a um trovão, que você não ouve nem no barbican. eu nunca tinha ouvido, até que comprei. isso é bipolar, não vai para a frente nem para trás, só para a frente, 10 mil watts. é bom. então eu estou construindo esse som, e aos poucos eu vou... por exemplo, eu não posso tocar bateria com os mutantes, que eles não têm dois ximbaus e dois bumbos. a minha tem. antigamente eram dois bumbos e um ximbau. então, se eu tocasse ia ser pela metade. também tenho dois baixos gibson, os mutantes não têm. eu teria que fazer diferente. então tem todas essas coisas que a gente tem que aos poucos se entrosar, né? mas está sendo coisa, para mim, que eu não pensava que fosse possível. um exemplo: eu gostar, adorar a guitarra do sérgio, e agora eu acho que é a melhor que existe. mas antigamente, se batesse na minha cabeça, eu não ia acreditar. é piração total o que aconteceu. a guitarra do sérgio ficou em segredo, até para mim, dois anos atrás eu não entendia. agora eu entendi e aprovei.

sérgio - é, tem coisa nessa guitarra que até hoje não foi contado, tem segredos tecnológicos.

pas - que você sabe?

sérgio - é lógico, foi o meu irmão que fez.

pas - onde está o cláudio [cláudio césar dias baptista, irmão mais velho de arnaldo e sérgio e uma das figuras pardas por trás dos mutantes, era engenheiro de som e fabricava instrumentos musicais]?

sérgio - está em rio das ostras.

pas - vai assistir ao show, será, em algum momento?

sérgio - tomara. difícil é conseguir arrancar ele de lá.

arnaldo - tomara que ele não vá [risos].

pas - por quê, arnaldo?

arnaldo - porque eu não gosto.

sérgio - não fala, é seu irmão.

arnaldo - que nem falar mal de fumar, falar mal do cláudio césar, eu sou assim.

sérgio - tá certo.

pas - é, os mutantes voltaram, realmente [risos].

zélia - com tudo que isso significa.

sérgio - com tudo que isso significa.

arnaldo - eu saí dos mutantes por causa dele, então para mim é importante. para outros talvez não.

pas - mas você também não vai ficar bravo se ele aparecer lá, vai?...

arnaldo - desde que ele não ponha amplificador transistorizado, perfeito [risos gerais].

sérgio - os meus são válvula!

arnaldo - nem guitarra. eu usei o contrabaixo dele a vida inteira de mutantes, e no festival o output do baixo do césar era horrível. o serginho tem distorcedor, então não importa qualquer amplificador porcaria, porque o distorcedor é alto. mas eu tinha que botar meu baixo no máximo, com o amplificador no máximo, com um barulho horrível, e tentar fazer o festival inteirinho com aquele som horrível.

sérgio - e todo mundo gritando...

arnaldo - é, que o cláudio césar tinha feito. mas vai entender isso... agora tenho um gibson.

pas - [para arnaldo e sérgio] e vocês dois no palco, juntos, fazia um milhão de anos que não acontecia?

sérgio - fazia, muito.

pas - desde a época dos mutantes?

sérgio - é. teve alguma coisa, de o Arnaldo dar canja, mas muito pouco.

pas - e como está sendo?

arnaldo - eu estou desbundado.

sérgio - está sendo, como eu posso dizer?... um cataclisma [ri].

arnaldo - a catapulta [ri].

sérgio - catapulta, cataplasma.

pas - uma catapulta, arnaldo? catapulta é o que atira algo para outro lugar, não?

sérgio - uma vez pintou um gato, que ele chamou de catapulta. cat-a-pulta [risos].

arnaldo - trocadilho..., eu misturei as coisas [ri]...

sérgio - o "pulta" é que até agora eu não entendi...

arnaldo - tá catando...

sérgio - catando "pulta"...

pas - ou pulga...

arnaldo - é, também.

pas - bem, temos que falar naquele assunto... um dia vocês tiveram que telefonar para rita lee, que acabou não topando...

arnaldo - ah, isso o sérgio sempre fala, "eu telefonei". eu nunca telefonei para ela.

sérgio - o arnaldo nunca telefonou para a rita.

arnaldo - para mim, eu não ligo a mínima [risos].

sérgio - eu telefonei.

arnaldo - é.

pas - e aí?

sérgio - aí... não, eu mandei um e-mail para ela...

pas - então você não telefonou também?

sérgio - não, eu não tinha o telefone dela. aí mandei o e-mail, ela gentilmente declinou da oferta. mas é lógico que eticamente teria que avisá-la, né?

pas - não chegou a haver uma negociação, ela não chegou a cogitar?

sérgio - não, não existe negociação. como negociação?

pas - quero dizer que vocês poderiam ter tentado convencê-la.

sérgio - não, não, não, não existe. tá a fim? não tá a fim? have a nice day. é assim que é. bicho, é igual... nunca consegui paquerar na minha vida, não sou desse tipo. eu saio já beijando. eolou, rolou. não rolou, tio, tchau. você não viu o que eu fiz com essa mulher [dirigindo-se a zélia]? "uuuuuuh" [imita os vocais pândegos/fantasmagóricos de "2001"], aquilo foi demais, ela está maravilhosa. a zélia é um amor, né? meu deus do céu, dançando castanhola no "el justicieiro"...

zélia - perdi minha fama de mau, cantando agudinho ali.

sérgio - imagina, "cabeludo patriota" [grita, imitando a música]. "uuuuuuh", imagina a zélia fazendo "2001", estudou tanto para isso [risos]...

zélia - anos de pesquisa...

sérgio - anos de pesquisa, para fazer "uuuuuuuuh"... ai, ai.

pas - ele falou de brincadeira, mas "estudou tantos anos para isso" pode ter outro sentido, para cantar nos mutantes...

zélia - é...

sérgio - olha, bicho, eu não tinha a menor noção de quem essa mulher era. caí de costas depois da minha ousadia. fui à casa dela, ainda estava aquele negócio de ela ser convidada especial. eu chutei o pau da barraca. "escuta, e aí?"

zélia - "qual é?"

sérgio - "vamos? vamos entrar na história, vamos nessa..." aí ela me mostrou o dvd dela. malandro!... puta que pariu...

pas - o "eu me transformo em outras"?

zélia - é.

sérgio - cara, é de matar. fodeu. a gente ouviu as maiores cantoras do mundo, né? vivi muito, a gente viveu muito perto de elis...

arnaldo - gal...

sérgio - gal... gente muito séria. e fazia muito tempo que eu não ouvia alguém cantar como a zélia. quando eu vi ela cantar no "eu me transformo em outras", bateu uma coisa que... não tem palavra, é honra. você ter uma elis regina no grupo é foda. é horrível você ter que dar um termo comparativo desse, mas dentro do brasil elis é um marco, dentro do mundo elis é um marco. mutantes é um marco. e a zélia... marcou, bicho.

pas - você diria mais ou menos como se hoje houvesse uma elis nos mutantes, então? essa idéia é interessante...

lourdes - não, não é isso, não.

sérgio - não tem nada a ver, estou falando da elis porque digo da qualidade técnica, de timbre e de saber o que está fazendo, saber como colocar emoção no que canta. você ouve aquele vibrato da elis, aquilo não é vibrato, aquilo é tremor, aquilo é emoção pura. isso você não acha em técnica. tem cantoras que tem técnicas estupendas, mas a emoção que uma intérprete passa é o quilate da coisa. é ali que você vê. pode estar no meio de onde for, pode estar tocando num cafundó do judas, você vai ouvir aquela mulher cantar e vai cair de costas. e é o caso da zélia.

zélia - bonito.

lourdes - a gente foi ao outro show da zélia, maior rock'n'roll...

sérgio - é, maior roqueira, meu, tocando guitarra e tudo.

pas - [para zélia] ainda assim, com ele dizendo tudo isso, em certo sentido a sua missão é a mais complicada, a mais delicada, não?

zélia - é, é... cada um tem o seu tributo ali...

pas - como e por que você veio a aceitar?

zélia - outro dia eu estava até falando, gente, este ano está acabando, quanta coisa aconteceu na minha vida que eu não podia fazer a menor idéia. eu conheci o sérgio naquele domingo chuvoso... como fã e artista tive ali naquele dia uma honra, putz, já conheci o sérgio, vou conhecer o arnaldo agora, mas... como uma fã que sempre adorou esse som. não sonhava nunca em ser cantora junto com eles. nem depois de ter conhecido.

sérgio - foi uma coisa muito louca. a gente se conheceu por acidente...

zélia - a gente se esbarrou, né, Sérgio?

sérgio - é, se esbarrou, mas o legal disso é que a gente teve a consciência do moment, "opa!".

zélia - é, tem gente que você se esbarra, e tem gente que você se encontra. de repente a gente se encontrou, foi muito surpreendente, por tudo. não só pelo meu timbre de voz, mas por tudo. pouco tempo depois, sérgio me ligou... quer dizer, uma pessoa que estava comigo ligou para o aluizer, o aluizer estava perto deles, aí eu mandei um beijo para o sérgio, aí desligamos. dois minutos depois ligaram, "o sérgio quer falar com você". sérgio botou pelo telefone, "olha aqui o que a gente está fazendo", e eles começaram a tocar. eu fiquei feliz, "parabéns!, que lindo!, obrigado por ter botado para eu ouvir!". e aí, pouco depois, ele fez o convite para eu ir até lá.

pas - isso nós estamos quando, exatamente?

zélia - estamos em final de março, começo de abril, eu acho. pô, o show era em maio, loucura. aí eu vim a são paulo, conheci o arnaldo também, de repente estava lá conversando com os dois, parecia que eu estava meio doidona. cara, não é possível isso [ri]. e ainda com medo, e quando chegar no estúdio? até falei, já grilada, "olha, sérgio, se não der certo, pelo menos eu tive o prazer de passar uma tarde cantando com vocês". e aí, quando acabou aquele ensaio, o sérgio falou: "vamos?". e aí eu comecei a mudar a minha vida inteira por causa disso. e sabendo o tamanho do risco que eu estava correndo.

pas - teve que mudar tudo?

sérgio - todos nós, bicho. imagina só, pensa bem o que estava na reta. ok, tem essa tal famosa frase, "podia ser o maior mico internacional do ano", frase cunhada. e realmente a gente foi direto para a boca do leão, mesmo. ou era ou não era. a gente foi tocar? fomos. fomos onde? no barbican. qual é o dvd, o do último show? não, foi o do barbican, o primeiro. quer dizer, não teve meio termo. foi uma coisa muito "what you see is what you get".

zélia - é por isso que não adianta muito conjeturar, eu acho, pelo menos, de por que isso tudo aconteceu. para a minha vida só tem uma resposta: por causa da música. eu cheguei naquela tarde lá, já tinha tido a emoção ali de ver o arnaldo e o sérgio, de conhecer o dinho, que eu não conhecia também... mas, quando a música começou a ser tocada, acabou. aí é o que arrebata. é o que arrebatou os fazedores de opinião lá no dia da apresentação do "fantástico", porque a música está ali viva.

sérgio - ...é o que tem arrebatado os fazedores de opinião no mundo há alguns anos...

zélia - é, a gente fez o barbican, aí fez seis shows nos eua, nos lugares mais bacanas, fillmore, hollywood bowl, aquelas coisas todas, e por quê? só tem uma resposta, é a música. porque não adianta as pessoas terem na cabeça quem é o sérgio, quem é o arnaldo, se eles fossem cantar e a música não saísse. acontece que eles estão lá, as pessoas olham para eles e se emocionam. e, quando a música começa, a garotada de 17, 18 anos levanta também.

pas - mas para eles, fosse o máximo ou não fosse, eles são os mutantes...

zélia - claro, eram eles.

sérgio - mas podia ser um flop, uma porcaria, um bode. podia não rolar energia.

pas - mas eram vocês, mutantes.

zélia - são os criadores, né?

sérgio - por exemplo, eu vi deep purple quando tinha 17 anos, quando a gente estava tocando no olympia. o deep purple estava tocando lá, eu nem sabia, fui ver um negócio da minha guitarra, entrei lá e dei de cara no backstage com o deep purple tocando. porra, aquilo foi uma apoteose, uma loucura, um absurdo, nunca vi um som tão alto na minha vida. era assim, dantesca, a coisa. aí depois, em 1980 e não sei quanto, fui ver, quando eles se reagruparam, a mesma formação, no radio city hall. sentei na frente, quinta fileira, e não rolou, tio. agora, mutantes está rolando. se não estivesse, tio, eu era o primeiro a parar.

zélia - mas o que você está querendo dizer é que eram os caras...

sérgio - se não nos satisfizesse... a primeira coisa, antes de tudo, é que tem que satisfazer a gente.

zélia - claro. por isso embarquei da maneira que embarquei, de cabeça. teve aquele telefonema para a rita, que para mim foi importante...

pas - queria mesmo que você contasse isso, que era uma parte delicada, até por você ter já uma ligação com ela...

zélia - é, eu já conhecia a rita há muito tempo, somos parceiras, você sabe que eu adoro ela. liguei, porque acho que seria estranho a rita saber pelo jornal.

pas - e ela soube por você?

zélia - soube por mim, foi a primeira pessoa a saber.

sérgio - foi ela que deu a notícia, né?

zélia - é, ela que resolveu falar [risos].

sérgio - falamos "não vamos falar para ninguém", quem mandou ela falar? ela que falou, quem mandou?

zélia - ela falou "vocês sabem da última?" [ri]. mas ela foi extremamente receptiva e carinhosa, e só falou coisas bacanas comigo no telefone, e isso também me encorajou. ah, poxa, se os caras me chamaram e ela achou legal... aí um abraço, né?, não importa...

sérgio - mas legal é que a zélia gostou.

zélia - é, muito mais que isso, né?

arnaldo - o resto é conversa de barbican...

zélia - é isso aí [ri]!

sérgio - de bêbado, né?...

arnaldo - de bárbico...

zélia - vaia de bêbado não vale...

pas - e, bem, deu certo, o risco valeu, zélia se transformou em mais uma, e essa de forma intensa...

zélia - é, foi um salto. só não foi totalmente no escuro porque a música estava ali. mas, para mim, pessoalmente, foi um salto um pouco no escuro, porque, cara, quando a gente entrou no barbican... eu fazendo os coros, quando foi chegando a hora de cantar "baby", que foi meu primeiro solo, eu ficava dizendo para mim "calma, calma, calma" [arnaldo ri], porque... mutantes é assim, quando os caras começam a tocar uma introdução, eles já são aplaudidos lá fora, as pessoas já sabem o que vem. e na primeira vez de "baby" o que vinha era eu, não era o que eles estavam acostumados a ouvir. eu tinha medo disso um pouco, mas, ao mesmo tempo, a aventura, estar apoiada por eles, obviamente me deu força.

pas - e tem um jogo interessante aí, que é de eles não terem ido buscar uma pessoa que lembrasse imediatamente a rita lee.

zélia - ...uma cópia, isso foi bacana.

arnaldo - é isso que eu estava quase falando: na inglaterra, ver uma rita lee você vê toda hora na esquina [risos].

pas - ah, é?

arnaldo - mas ela [olha para zélia] é difícil.

sérgio - um monte de loirinha de olho azul, né? aí essa morena maravilhosa, essa cabrocha...

zélia - [ri] não se fazem mais cabrochas como antigamente...

pas - talvez a fernanda takai [que foi cogitada antes de zélia, assim como rebeca matta] tivesse uma dificuldade extra, por haver uma semelhança mais forte com a rita. seria mais comparável com ela, o que não tem tanto sentido com você.

zélia - é, não. quem não gosta é porque não gosta de ser tão diferente. não pode dizer que estou imitando, absolutamente, seria ridículo, mas, ah, "não tem nada a ver", tudo bem, cada um tem sua opinião. mas obviamente eu parto dali, do que ela fez. estou ouvindo o que ela fez o tempo todo. mas não estou nunca desejando ser aquilo, porque para mim seria uma missão impossível, e ridícula. então é legal que nos eua, por exemplo, eles nunca se apresentaram. até um jornalista escreveu, eu achei engraçado, que ninguém teve saudade do que não viu [arnaldo ri], porque foram os primeiros shows lá. de certa maneira, o que as pessoas guardam dos mutantes é aquele som, são as imagens que a gente vê na tv, mas o show em si não foi tão apresentado, né, sérgio?

sérgio - não.

zélia - então agora a gente está indo para apresentar o show desse som.

pas - se pensar nos jornalistas musicais que estão militando hoje no brasil, a maioria de nós também nunca viu mutantes. eu nunca vi.

zélia - é, o próprio lauro [lisboa garcia, jornalista do "estado" que os entrevistara no mesmo dia] disse "pô, eu nunca vi um show dos mutantes, que legal".

sérgio - isso é legal para você ver que, dentro do brasil, onde tudo é "não", onde tudo é impossível, tudo é difícil, acho que é legal que a gente diz "sim".

zélia - é verdade. sem truque.

sérgio - a gente conseguiu fazer um sim, sem truque, sem correção monetária... foi simples.

zélia - verdade, a gente tem mania de enterrar as coisas e as pessoas, né?

sérgio - ou então emaranhar elas numa teia de aranha.

zélia - rotular... bota o rótulo e passa para a próxima.

pas - mas, sérgio, você, o arnaldo e o dinho, especificamente, deviam temer o dia em que isso acontecesse - se é que ia acontecer, não?

arnaldo - foi uma aventura, né?

sérgio - para mim, não.

pas - porque estamos falando de um mito que é igual ao dos beatles, é como se os beatles tivessem voltado.

sérgio - mas para os beatles isso não é mito, entende? para os beatles é normal, é o dia-a-dia. o dinho é o dinho, eu vivi com esse cara a vida inteira. lembro dele batendo no pauzinho.

pas - mas aquela responsabilidade, igual você narrou falando do deep purple, o medo de que fosse um mico, não havia?

sérgio - quando a gente sentou e tocou... eu tenho estrada suficiente para saber o que é bom e o que não é bom. você é bom provador de vinho ou não, né? de vinho não entendo porra nenhuma, mas de música entendo um pouco. de banda, de energia de banda, eu entendo. e quando vi o arnaldo tocando, quando vi o dinho tocando, pô, fodeu. tá tudo aí. lógico, era um diamante bruto. tem que polir? tem que polir, vamos polir.

arnaldo - é o sérgio diamantes [risos].

sérgio - [rindo] arnaldo está arrasando hoje. tá com a corda, foi o sorvete.

pas - como estávamos falando há pouco, quase ninguém viu um show dos mutantes, entre as pessoas mais jovens. mas vocês, desse modo, com 20 e tantas músicas, nunca tinham voltado a tocar aquelas músicas também, a refazer aqueles arranjos.

sérgio - não, e a escolha dessas músicas foi justamente por isso. foram as que não dá para tocar.

pas - como assim?

arnaldo - sem orquestra. porque agora a orquestra são sintetizadores. mutantes tocavam todas as músicas de festival com orquestra. e era horrível.

sérgio - se tocar "caminhante noturno" sem orquestra, é um pé no saco.

arnaldo - e agora ficou diferente.

sérgio - agora a banda tem um porte que comporta tudo isso. a tecnologia hoje em dia nos permite fazer isso, também. não tem nada sampleado lá, é tudo tocado. a gente usa instrumentos virtuais, sons virtuais, mas é tudo executado. quem está tocando somos arnaldo, henrique, vitor [músicos de apoio], eu, é isso aí que você está ouvindo. não tem overdub dentro desta história. não tem clique na orelha do dinho para a gente andar junto com a base que já foi feita. não é seguro, irmão, não tem rede embaixo. se cair, caiu mesmo.

pas - e vocês pularam... [para zélia] você inclusive.

zélia - [ri] nossa, eu quase caí.

sérgio - ué, não é o que o castañeda mandou fazer? castañeda não mandou pular? pulamos.

zélia - é verdade, caraca. quando estava na ponta do trampolim, no barbican, eu pensei: "ai".

pas - mas, espera aí, o pior que podia acontecer era o quê, para zélia, e para vocês?

sérgio - entende o seguinte: para todas as pessoas e para nós, principalmente, mais do que para qualquer pessoa, o que a gente é e o que a gente fez é extremamente importante. para mim é muito importante. mutantes para mim sempre foi muito importante, eu não consigo conceber falar mal dos mutantes, ou dizer que não me serviu para isso ou não me serviu para aquilo. mutantes foi, sim, o começo da minha vida, foi a coisa mais importante que eu fiz. eu tive a sorte e a honra e o privilégio de ser um dos sócios fundadores, com arnaldo e rita e essa coisa toda que aconteceu. então podia, sim, ter sido uma porcaria, um desastre.

arnaldo - exato. isso podia ser o contrário. podia ser vaiado. vai saber...

sérgio - hoje em dia, principalmente, até para a própria opinião brasileira, estava todo mundo com garfo e faca prontos para comer a gente. meu deus do céu, bicho. por que os caras são tão maldosos? essa foi uma das razões principais para mim, e acho que para todos nós, de pegar isso a pulso e dizer "ah, é?, então agora vocês vão ver, quem mandou cutucar?". agora vocês vão ver e vão ter que ouvir legal.

pas - mas há também o contrário disso, que era possível também, de as pessoas serem condescendentes por causa de toda a história de vocês...

zélia - você acha mesmo, pedro?

pas - eu sinto que não é o que está acontecendo, mas acontece com algumas bandas, mesmo pensando no exterior...

zélia - eu conheço uma pessoa no brasil com quem acontece isso - não vou dizer o nome -, que é incrível, tudo que faz neguinho diz "ó, mas também, não, mas espera aí". é raro.

pas - mas não é a uma pessoa que já integrou a banda, né?

zélia - não, não, absolutamente.

pas - foi uma brincadeira, desculpe. mas existem graus de condescendência...

sérgio - mas nós não somos condescendentes.

pas - ...a volta dos Mutantes emociona todo mundo que gosta, e poderia acontecer, não? eu ouvi o disco duas vezes, não tinha visto show, estou chegando agora, e gostei. achei que não preciso ser condescendente. mas podia ser o caso. isso já aconteceu com outras bandas.

sérgio - ah, sim, com certeza, mas aí, qual foi o resultado?

pas - não sei.

sérgio - quem vive das reformações e dessas coisas todas? eu não penso que isso aqui vá acabar aqui.

pas - é? ih, zélia duncan... [zélia ri.]

sérgio - zélia cristina, aqui é zélia cristina.

pas - desculpem, fiz piada, meu papel não é fazer piada... [para sérgio] você acredita que não vá parar aqui? como assim?

sérgio - não. pensa bem, toda essa roda da fortuna que rodou aí, essa merda toda que fez acontecer... nenhum de nós fez nada para isso rolar, bicho, então acho que vai ser muito difícil, muita burrice astral, isso chegar e acabar aqui, parar, a gente não fazer nada, não fazer música... para que então isso tudo? só para a gente tocar no barbican? puta troço chato.

arnaldo - mas eu acho também que nem tudo era contra. a prova foi que o público pagou.

sérgio - com certeza.

zélia - ...que é a coisa mais importante, né?, para a gente.

pas - mesmo os críticos, em geral, acabaram não sendo contra.

sérgio - é, e você vê que gozado, o chamamento não veio da pátria. o chamamento veio do exterior, né?

pas - mas você não sente que a pátria chamava também? todo mundo morria de medo, eu pensava [ponho a mão na cabeça] "meu, esses caras voltarem... que medo". mas que a gente queria, lá no fundo...

sérgio - que coisa simples, né? lembro uma vez, quando a turma da "bizz" fez uma reportagem e era capa, eles vieram falar comigo "escuta, a gente pode tirar uma foto de você, depois uma outra do arnaldo...". eu disse "por que vocês não ligam para eles, marcam um lugar, a gente vai lá e tira a foto?". [arnaldo ri.] puta complicação, bicho, os caras inventavam roda, ficavam rodando lâmpada.

pas - ficou o mito – ou a verdade – de que vocês são complicados.

sérgio - nós não somos complicados. nós somos extremamente complicados, nós somos complexos.

pas - você falou que são extremamente complicados?

sérgio - nós somos extremamente complexos, mas isso não significa que nós somos complicados. a nossa música, apesar de complexa, é de uma simplicidade absurda.

pas - sendo assim, eu diria que em algum momento vocês vão ter que chamar rita lee para fazer uma participação especial...

arnaldo - eu não toco.

sérgio - [ao mesmo tempo que arnaldo] não acho. ela já foi chamada.

pas - por que não, arnaldo?

arnaldo - porque eu não gosto. porque a zélia é mais musical.

pas - as duas juntas, já pensou? [olho para zélia.]

arnaldo - aí...

sérgio - a zélia canta com ela, depois...

lucinha baptista - mas ela falou que só se tiver grana preta. não vai ter a grana preta...

pas - estou provocando vocês, mas...

sérgio - não, provoca...

pas - ...a gente gostaria de ver, também...

sérgio - querido, olha, todo mundo dizia que mutantes não ia acontecer. todo mundo achava que o lula não ia emplacar na segunda vez [ri, zélia também]... Oo brasil é muito louco, bicho. mas, no momento, ninguém aqui está pensando nisso. eu estou muito mais preocupado com todo mundo aqui, em "ok, e agora?". para mim o próximo passo é a gente sentar junto, pegar violão, acender a lareira e começar a fazer música. é isso que eu quero, isso é o barato.

uma das mulheres (qual?) - o arnaldo está louco para isso, não é, arnaldo?

arnaldo - vamos levar adiante, vamos ver até onde a gente vai, né? pode ser longe, pode ser perto, não adianta a gente querer saber o futuro, que é tão difícil, né? vamos fazer, vamos coordenar tudo, eu acho que tem um futuro enorme pela frente. sem amplificadores transistorizados [risos].

sérgio - não tem mais. já não tem.

arnaldo - em todos os shows americanos teve, ele está mentindo [risos gerais].

pas - pronto, acabou a banda [mais risos]!

arnaldo - não, mas não era ele. são os lugares. com o show estava tudo bem.

sérgio - os lugares são todos transistorizados. hoje em dia, pedro, os circuitos são todos integrados, não tem como fugir.

arnaldo - mas agora a gente pode fazer um nosso, né? todos têm até avião que comportam um pouco de som, sei lá...

sérgio - eu dou força, meu. adoraria comprar um avião.

zélia - contrata um avião.

sérgio - chama o aluizer!

pas - o que estou querendo dizer, mesmo tocando em coisas delicadas sobre rita lee, é que eu só ouvi mutantes por disco na vida, e fico emocionado só de ouvir o disco: "os mutantes voltaram, estão tocando superbem, maluquice!". estou falando isso para todos, estou falando ali para a cortina. a zélia também não foi dos mutantes, a participação dela também...

zélia - outro dia eu estava dando uma entrevista e falei: "gente, eu também adoraria ouvir a rita lee cantando com os mutantes, eu ia achar superlegal".

sérgio - sabe o que é, bicho? o negócio é o seguinte: já não rolou, então não adianta perder tempo batendo numa tecla que não...

pas - mas, espera, não é isso que estou querendo dizer. quero dizer que eu, que só ouvi vocês em disco, ou a zélia, que é mais jovem e não era dos mutantes e hoje está tocando nos mutantes... – a gente fica emocionado, não fica, zélia?

zélia - fica!

pas - e eu imagino que vocês fiquem. e imagino que a moça teimosa também vai ficar um monte, no apartamento dela, tendo não participando. então quero dizer assim: a gente está mexendo com material altamente...

lucinha - inflamável.

pas - ...inflamável [risos]. eu queria dizer emocionante, mesmo. inflamável vale...

zélia - emocionado...

sérgio - olha, o negócio é o seguinte: a gente é legal pra cacete. nós todos somos gente muito legal. a rita é legal, eu sou legal, o arnaldo é legal, a zélia é legal, todo mundo aqui é legal. mMas tudo depende de como você faz a coisa, e não é dando chute que se consegue o beijo de uma menina [eeeei! cê tá entendendo???]. é a mesma coisa. e ninguém aqui vai falar mal da rita, ninguém vai sair chutando ela, nem nada disso, sob hipótese alguma. mas o fato é que, hoje, os mutantes somos eu, arnaldo, zélia e dinho. essa é a realidade. a rita não é mutantes.

pas - certo, então minha pergunta era a seguinte: para vocês três, dinho, sérgio e arnaldo, quanto é emocionante esse negócio?

sérgio - nossa!

arnaldo - o quanto a gente vai renovar para o bem? é esse o caminho. quanto, o quanto a gente vai renovar pro bem? pode ser, vai saber...

sérgio - a positividade da coisa, né, cara?

arnaldo - é...

sérgio - tem que ser positivo. por exemplo, o fato de a gente estar junto, aquele negócio do sim... a gente volta lá para o passado, "eu digo sim/ eu digo não ao não/ é proibido proibir", essa coisa do caetano. muita gente esqueceu isso, né? então é um negócio muito legal, você dizer sim, você aceitar as coisas. por que tem que tachar tudo de impossível? por que é impossível que o brasil seja o melhor país do mundo? por que é impossível que o povo brasileiro seja o povo mais inteligente do mundo, ou qualquer coisa do gênero? por que é impossível ter igualdade social? é possível, sim. depende, sim, dos nossos políticos, dos nossos ministros resolverem fazer as coisas certas.

pas - talvez dos nossos artistas também...

sérgio - talvez.

pas - ...De mostrarem o melhor que eles têm...

sérgio - com certeza, com certeza.

arnaldo - também tem a ver saber o que é certo. na minha opinião, o jimi hendrix fala isso em inglês, a humanidade atravessa um período de queimar. é uma coisa que falaram para ele, mas ele fala que queimar pode ser visto de outro jeito. a gente queima o combustível, sem saber que existe movimento sem fogo. mas a terra está o que está.

pas - mas está queimando, ainda?

arnaldo - queimando. e a gente pode queimar de outro jeito, hendrix fala isso.

pas - a gente é inflamável?

sérgio - to burn or not to burn... david byrne...

arnaldo - what's the question?

pas - arnaldo, você fez um disco solo há pouco. tem plano de fazer outros, ao mesmo tempo que toca com os mutantes?

arnaldo - tô com um plano de carreira solo bem importante, que comprei agora em londres um gravador de oito canais, sem fita, digital, muito bom, e ainda estou estudando, para mim, em função do que eu consigo. e eu sei uma coisa, também: eu sou tão importante que, quando eu consigo falar, te atinge. então é nessa que eu ando, você também pode entender errado o que eu falo e dizer "isso é confusão". é isso.

pas - você sabe disso, né?

arnaldo - em parte, né? eu vou tentando fazer o melhor [risos, comentários]...

sérgio - eu acho que sabe. arnaldo é puta velha.

pas - ele foi incisivo, "o que falo te atinge". e sempre foi assim, não?, mesmo quando estava mais quietinho.

arnaldo - [tímido] pode crer.

sérgio - acho que arnaldo nunca falou uma coisa que não atingisse alguém. sempre teve um...

zélia - um alvo, né?

sérgio - como é que se diz? e se fez o verbo. e o verbo era deus, né? OoArnaldo, pô, sempre falou coisas que... hoje em dia, ele está ensaiando, ele fala cada uma que você cai de costa. é de matar. a última coisa que arnaldo vai ser na vida é irrelevante.

arnaldo - uma vez, no ensaio... piração, mas o sérgio falou: "fala alguma coisa". eu falei: "alguma coisa".

pas - uma coisa legal é que sempre houve especulação, se os mutantes voltariam um dia, e até um dado momento se pensava que, se fosse possível, seria sem a presença do arnaldo, por causa de tudo que aconteceu com ele. e, hoje, olha ele aí.

sérgio - eu acho que arnaldo está ótimo.

arnaldo - vaso ruim não quebra.

sérgio - vaso ruim não quebra.

pas - ou vaso bom?...

sérgio - nós temos um monte de mazelas, todos nós. eu tive um monte de problemas na vida, o dinho teve os dele, arnaldo teve os dele. ninguém é invulnerável. nós somos humanos, a gente sofre, a gente ri, a gente brinca, a gente curte. mas o que importa é que a gente dá sempre 110%.

pas - o dinho imagino que não, porque vocês capturaram ele de volta para a música, mas você [para sérgio] tem planos solo?

sérgio - eu, no momento, não estou pensando em nada solo, não. já fiz um monte de coisa solo, mas agora estou fazendo basicamente mutantes. quando vou fazer alguma coisa solo, não sei. essas coisas acontecem.

pas - zélia, há pouco você disse que sua vida toda mudou por causa de mutantes. como vai ser isso para você, daqui para frente?

zélia - eu acabei de fazer um dvd do "pré pós tudo bossa band", que vai ser só dvd, não vai sair em cd. e vai muito bem, cheguei de recife no fim-de-semana, fiz show superlegal lá.

pas - a idéia é conciliar as duas coisas?

zélia - estou levando, as coisas estão indo superbem. e, assim, eu dou prioridade aos mutantes, contanto que as datas sejam bem planejadas. a gente está tentando administrar bem os escritórios, o dos mutantes e o meu, e aprendendo a lidar com isso como duas coisas distintas, para que as duas andem. você sabe o quanto eu cuido da minha carreira, o quanto eu adoro o que eu faço. mas acho até que é porque eu faço como faço que vim parar aqui, por ter a abertura que tenho, por querer me despojar, me aventurar, me arriscar mesmo. tudo bem que agora eu exagerei, [ri], mas o espírito é esse.

pas - você já estava ensaiando um pouco uma coisa assim, com o itamar assumpção, parava seu show e ia fazer.

zélia - já, total, fui tocar as coisas do itamar com naná vasconcelos. o próprio "eu me transformo" foi um pouco isso, eram coisas paralelas, na época eu fazia o "sortimento" e o "eu me transformo". essa porteira já estava aberta, a bagunça boa já estava instaurada. eu quero muito me divertir com a música, no melhor sentido, e aprender com ela, e saber que tenho sempre um monte de coisas para aprender. este ano, nossa, com tudo isso, com eles, com os movimentos que resolvi fazer, com os riscos que até hoje eu estou tomando... ê, vidão. pena que a gente morre.

pas - você falou "riscos que estou..."? "tomando"?

zélia - tomando.

pas - por quê?

zélia - é, teve o primeiro desafio no barbican, e a apresentação para o "fantástico" foi o segundo desafio maior. era uma apresentação com fãs ardorosos, com artistas que adoram mutantes, com jornalistas... todo mundo se apropria, né?, as pessoas acham que são meio donas daquilo. então de repente eu ousei estar ali no meio, e um pouco antes de entrar pensei nisso, falei "caramba, logo eu, mais uma vez me jogar aqui, vamos ver o que vai acontecer".

sergio - estava bem acompanhada...

zélia - ah, estava, lógico, tinha gente para soprar depois [ri].

sérgio - os batedores.

zélia - e aí a gente teve essa surpresa de ver as pessoas muito emocionadas, e gente que eu não esperava que viesse falar comigo tão desarmada veio... acho também que principalmente porque, num certo aspecto, a gente está desarmado. a nossa arma é a música, a minha pelo menos é. eu não estou ali dizendo "eu sou zélia". tenho um amigo, hugo prata, que me viu no ensaio aberto dos mutantes, que foi muito importante a gente fazer. eu estava numa alegria, eu fico numa alegria meio infantil que até tenho que me policiar um pouco. aí ele chegou lá, olhou para mim e disse: "zélia! você aqui?", "você vai filmar?", "você vai cantar?". aí ele disse que olhou para mim ali e pensou que eu estava parecendo aquelas meninas que ganharam a promoção "cante com os mutantes por um dia" [risos]. falei para ele que estava me sentindo como se tivesse aberto o chocolate wonka, o último, falei "eu abri o chocolate wonka, e se tivesse direito a acompanhante eu levava você", porque ele chegou para filmar no mesmo espírito de emoção. então foi uma alegria de criança que me ajudou, me protegeu, para eu não ficar ali "meu deus, a minha carreira, ai, eu tenho um nome". eu pensei nisso, mais isso ficou pequeno diante do que eu senti quando ouvi a música e estive na presença deles. isso realmente foi arrebatador para mim, eu ainda acredito nisso. daqui a um tempo vou fazer um balanço, mas eu vou na intuição, no coração, como faço tudo na minha vida. senão talvez eu não fosse, e eu ia perder.

sérgio - talvez estejamos falando de um momento histórico que vem acontecendo: até muito recentemente esse raciocínio de não fazer coisas inesperadas porque era preciso "pensar na carreira" era o que vigorava – e as pessoas estavam interagindo pouco umas com as outras.

zélia - vou falar um pouco de mim, mas se você pensar um pouco no que venho fazendo, você é um cara que me conhece muito bem, eu já estava abandonando esse pensamento há muito tempo, essa competição de cantoras, essa egotrip demasiada. não que eu não tenha a minha, eu tenho a minha, é claro. mas eu sempre tentei minimizar isso e botar a música antes de tudo. errando e acertando, errando e acertando, normal, mas o meu movimento sempre foi esse, às vezes de uma maneira mais legal, às vezes meio no escuro, mas eu sempre procurei isso para mim. e acho que essa é a prova, não estar tentando provar nada para ninguém, mas existe um desejo de fazer música, e me sinto muito privilegiada e honrada de estar aqui.

[longo silêncio.]

pas - ficou até um silêncio...

[risos, comentários. uma das pessoas presentes diz que ficou emocionada. a assessora de imprensa da sony bmg, cristiane simões, diz "eu também".]

pas - ela falou uma coisa bacana, sobre egotrip, porque, assim como com todas as outras bandas que existiram no mundo, deve ter acontecido com os mutantes, não?

sérgio - como assim?

pas - não sei, quando vocês brigavam. hoje arnaldo fala do transistor brincando com você, diz "ele está mentindo" e você dá risada, mas vocês já brigaram por causa disso...

sérgio - não, nunca brigamos.

pas - se desentenderam, sei lá.

arnaldo - eu só saí dos mutantes e ele continuou [risos].

sérgio - eu não tinha outro. [outro o quê?, não deu para entender...]

arnaldo - eu também não [os risos continuam].

zélia - não tinha briga, eles não se falavam [mais risos].

pas - "ficar de mal", então. as pessoas ficam de mal [olho para zélia]...

sérgio - não, acho que não, o que aconteceu na época foi que a gente estava tomando muito ácido mesmo, e não sabia como lidar com aquilo.

arnaldo - eu não acho, eu não acho.

zélia - eram jovens, né?...

sérgio - muito jovens.

zélia - tudo para processar, ali...

pas - você falou que não acha, arnaldo, por quê?

arnaldo - porque eu acho que a expansão mental é uma coisa que acarreta.

pas - do ácido, você está falando?

arnaldo - é.

pas - mas talvez, de fato, as brigas de juventude não acontecessem hoje. talvez não aconteçam.

sérgio - não sei...

arnaldo - vai saber [risos]...

pas - ou já estão acontecendo, e eu estou aqui bem bobo, achando que não? [mais risos.]

sérgio - o cara está querendo fazer a gente brigar [mais risos]!

arnaldo - não vai conseguir.

sérgio - pô, vai se foder, ô! pô, o tullius detritus, aqui!

arnaldo - não vai conseguir, ele não vai conseguir.

pas - poxa, eu aqui tomando o maior cuidado nas perguntas...

sérgio - [para zélia] lembra do tullius detritus, do asterix?

zélia - ah, do asterix!

sérgio - o tullius detritus era a arma secreta do césar, quando ele ia o cara armava a maior briga, ai, ai... brincadeira isso.

pas - eu tomando o maior cuidado com as perguntas...

zélia - viu? pode se voltar contra você...

pas - ou vai se voltar, fatalmente... [zélia ri.] eu queria falar um pouco sobre o repertório, sobre como vocês escolheram quais músicas voltar a trabalhar.

sérgio - eu comecei a falar que era pelas mais difíceis, pelas impossíveis de tocar. por exemplo, "desculpe, babe" qualquer banda pode fazer. "balada do louco" é uma coisa que até hoje não entendi por que, mas, na hora do "blrrrrrrrr", todo mundo que cantava sempre arrumava uma maneira harmônica ou coisa assim, ninguém assumia a loucura da "balada do louco", em todas as versões que foram feitas até hoje. mas, por exemplo, tocar "caminhante noturno", "dom quixote", "dia 36", "ave, lúcifer", essas são encrenca.

arnaldo - o que ele quis dizer, eu senti assim, é que escolheu um tanto que precisava de orquestra e que sintetizador fazia. certo?

sérgio - eu acho que é mais do que isso. acho que, além disso, são as músicas mais...

arnaldo - ibope...

sérgio - ...como é que se diz?, as mais...

zélia - características?

sérgio - não, as mais místicas, as mais míticas.

zélia - sim.

sérgio - você vê "dia 36", não é brincadeira fazer isso no palco. com cello, baixo...

zélia - o timbre da guitarra...

sérgio - ...o timbre da guitarra é uma loucura...

arnaldo - ...leslie na voz....

sérgio - ...leslie na voz. quer dizer, tudo é uma encrenca do cacete. não é fácil fazer ao vivo. e isso é que era legal. tocar essas aí para mim era o grande barato. tocar "top top" é fácil, mas tocar essas aí é treta.

zélia - em cima daquele som, daquela sonoridade, né?, o arnaldo falando aquelas coisas que até hoje a gente não sabe o que são...

pas - de qual música você está falando?

zélia - de "top top".

sérgio - não pode ser o que é.

arnaldo - uma coisa difícil também é entender o que o autor do "dia 36" tocava.

pas - o autor é você?

arnaldo - não, o johnny dandurand, uma maravilha, usava uns instrumentos antiqüíssimos. então tem a ver a letra com o modo como ele era, um inglês que morava aqui no brasil.

sérgio - foi o cara que entrou no meio de "é proibido proibir", aquele louro louco gritando. foi ele fez que fez, e eu fiz a versão, foi a primeira letra que eu fiz.

pas - arnaldo, quais você mais gosta de fazer?

arnaldo - é [pensa]... "ando meio desligado"... "le premier bonheur du jour" também é gostoso, o coral do vocal é meio bachiano... e aquela rapidíssima, que eu esqueço o nome [cantarola, acelerado], "tatatatatatata"...

zélia - "cabeludo patriota".

arnaldo - [rindo] é, "cabeludo patriota"!

sérgio - o dinho que chama ela rápida pra burro, meu deus do céu!

zélia - e depois fica lá ralando para correr...

dinho - e ele [arnaldo] vai no dobro! [cantarolam a melodia, demonstrando a aceleração cada vez maior.]

zélia - fica embaraçado, o cabelo embaraçado.

sérgio - cabeludo embaraçado. mas saiu.

zélia - você não viu o dvd?

pas - não, ainda não. e o "cabeludo patriota" que, pela primeira vez, tem seu nome original... [interditado pela censura, o rock foi lançado em 1972 com vocais abafados e o título de "a hora e a vez do cabelo nascer".]

sérgio - o verdadeiro nome, né?

zélia - ninguém tossindo.

sérgio - não tem ninguém tossindo, a letra está lá de verdade.

pas - em "top top", também, "sabotagem" virou "sacanagem"...

sérgio - que era o original.

pas - arnaldo, como foi fazer as músicas de que você participa cantando?

arnaldo - ah, interessante. como eu acabei de falar, é um pouco mais fácil de ser total agudo quando você está em coro. então, quando eu ficava solando, eu encontrava uma dificuldade disso ou daquilo, com monitoração, eco, leslie e tudo. mas foi gostoso. o "cantor de mambo" eu adoro cantar.

sérgio - é muito legal, muito.

pas - escutando no fone de ouvido, iquei ouvindo ele arnaldo falar um monte de coisa, preciso ouvir melhor ainda [arnaldo ri].

sérgio - ele fala um monte de loucura. "este é pablo... desde que pablo..." [xiii, para entender esses castelhanos, agora... me corrijam se entendi tudo errado?...]

arnaldo - "(...) de carajo!”, "yo no tengo nada a dicir desde que pablo ha dejado de hablar".

sérgio - [ri] essa eu não conhecia também...

arnaldo - eu invento essas coisas...

sérgio - arnaldo inventa uns troços que são demais.

pas - e o mr. mendes [citado em "cantor de mambo"] é sergio mendes?

sérgio - lógico, é o "carajo".

pas - foi feito para ele?

sérgio - foi, agora finalmente veio à tona.

zélia - agora você vai ouvir de outro jeito essa música, nunca mais será a mesma.

pas - agora mais do que nunca, porque ele está todo todo de novo [com o lançamento do modernoso e multinacional álbum "timeless"]...

zélia - "ganho bem cantando mambo", "moro aqui em hollywood"... [risos.]

pas - ele alguma vez reagiu a essa música?

zélia - vai ver que ele também vai saber só agora.

sérgio - ele vai saber só agora, né?

zélia - a gente vai te dizer daqui a pouco.

pas - como foram as reações dos gringos nos shows que já houve, como vocês sentem?

arnaldo - para mim, foi melhor do que eu esperava. nunca esperei que fosse tão bom.

zélia - em nova york tinha coro para o arnaldo. eles estavam esperando os mutantes, estavam comovidos. é engraçado de ver o jeito que eles chegavam, muito jovens, ou mais velhos, de todas as idades. e mais gringos que brasileiros, exceto em miami.

sérgio - muito mais gringos.

arnaldo - o jeito que eles conseguiam compartilhar isso, o pessoal podia ver um cair, e guerra mundial lá, e não aqui, que nunca existiu bombardeio aqui, né?, então era o jeito que eles conseguiam compartilhar do nosso sentimento, sabe?

zélia - muito, adorei.

pas - em miami eram mais brasileiros?

sérgio - foi onde tinha mais brasileiro. mas o resto todo, seattle, chicago, não tem brasileiro lá, tem muito pouco. san francisco tem menos, los angeles.

zélia - san francisco foi o melhor momento, fillmore...

sérgio - fillmore, meu deus do céu, um escândalo aquilo lá. foi um puta show.

arnaldo - será que fillmore quer dizer "enche mais"? [risos.]

zélia - ou "sente mais"?

arnaldo - ah, é? também, né?, mais fácil.

pas - os shows que vieram depois foram mais legais, mais entrosados, que o que ficou registrado em dvd?

sérgio - diferentes, né?

arnaldo - ele fala uma coisa linda: "livres". por que o outro foi um pouco ensaiado, não sei.

zélia - por isso acho o dvd importante, e não só a audição, porque você vai ver, é emocionante ver a gente em cena.

sérgio - é genial você ver a decolada.

arnaldo - perfeito.

sérgio - a gente decola mesmo em "tecnicolor" [a terceira faixa]. aí decolou, aí a gente sabia já que estava tudo em casa.

zélia - ali a gente está muito consciente. eu adoro, acho que o som que conseguimos tirar é muito bacana, estou muito feliz com esse disco. como sérgio falou, você sente que o tipo de concentração é diferente. é o primeiro. para mim, o primeiro de todos. para eles, o primeiro em 30 anos. uma platéia abarrotada.

sérgio - acho que ele tem uma entrega que, talvez, seja a coisa da virgem, que os outros talvez não tenham. eu não lembro do show.

pas - como assim?

zélia - a primeira vez.

pas - mas a virgem 30 anos depois...

zélia - com teia de aranha, já [risos].

pas - você foi o arnaldo, agora [mais risos].

zélia - eu sou pupila, pupila.

arnaldo - pupila [ri].

sérgio - o que me lembro desse show é que foi de uma entrega inacreditável.

zélia - no dia seguinte eu fiquei doente, todo mundo ficou doente depois. eu caí de cama, e ainda fui para portugal depois cantar.

sérgio - e eu fui para paris.

arnaldo - eu saí do show e, nem sei por que, dei uma cambalhota, quase caí, "eu consegui fazer o show".

sérgio - é, pulou no palco, deu uma cambalhota.

zélia - é, no palco, eu levei um susto. e ele em pé, pô, o arnaldo levantou, eu falei, "gente!", muito legal.

sérgio - foi genial. mas agora a gente está mais dono da bola. ali, não, ali a gente teve que se entregar completamente.

pas - como você disse antes, vocês peitaram inclusive gravar e lançar logo o primeiro show. mas estão crescendo e melhorando a cada show?

sérgio - com certeza.

zélia - ah, é. e, no meu caso, me sinto mais relaxada. ali eu estava como convidada especial de um dia que era uma loucura. agora me sinto mais à vontade, podendo arriscar um pouco mais a minha performance. no ensaio aberto, fui ao sérgio e disse "sérgio, eu posso segurar o microfone na mão?". não vou dizer a resposta, porque é imprópria [risos]. ele falou "vai tomar...!, claro que pode!".

sérgio - "o palco é seu", eu falei isso.

zélia - eu queria ir devagar, imagina já chegar?...

lourdes - cada ensaio é uma coisa diferente, é um grande astral.

sérgio - a zélia é uma lady, uma delicadeza maravilhosa. a maneira como ela lidou com isso tudo, foi tudo tão subliminar... por exemplo, primeiro a gente tinha convidado ela para fazer o barbican, e tinha os outros shows dos eua...

zélia - foram várias etapas, né?

sérgio - lembro um dia que a gente foi ensaiar e a zélia virou e falou para mim "pois é, quando vocês fizerem nova york"... puta que pariu, aquilo bateu e voltou, na hora eu chamei ela e falei: "escuta, não tem essa, não, não tem volta, it's up to you".

pas - e quais são os próximos passos, exatamente? um show de aniversário de são paulo?

zélia - que é a estréia no brasil, no museu do ipiranga.

sérgio - em frente ao museu do ipiranga.

zélia - grande estilo, né?

pas - só falta agora dizer ao povo que ficam...

sérgio - pegue esta coroa e bote na sua cabeça antes que algum aventureiro lance mão dela.

zélia - isso não é um show, é um grito. as cortes portuguesas querem mesmo escravizar o brasil! cumpre, portanto, declarar nossa independência!

sérgio - joguem os laços!

zélia - independência ou morte!

sérgio - eu estou com a espada, já.

zélia - o cara trouxe uma espada de paris, de verdade.

sérgio - uma espada de 1800.

arnaldo - dom pedro segundo era filho de dom pedro minuto, eu vou falar na hora [risos gerais]. piração.

pas - já houve algum show antes no museu do ipiranga?

sérgio - foi sugestão do calil.

pas - do secretário [municipal de cultura, carlos augusto calil]? que legal.

sérgio - do secretário. a gente estava pensando lá onde, ibirapuera...

arnaldo - anhembi...

sérgio - parque da aclimação... todos esses lugares que a gente já fez. quando ele falou do ipiranga, eu caí de costas, que genial, lugar maravilhoso. parece versalhes, né?

pas - qual é a expectativa para essa que vai ser a estréia no brasil? os gringos receberam bem, foi legal, mas agora é com a terra natal.

zélia - tem uma gente nossa lá...

sérgio - tem, a gente já deixou umas bombas...

zélia - tá minado, né?

sérgio - o campo está minado, tem umas minas lá.

arnaldo - também de minas gerais...

zélia - tem muita mina...

sérgio - tem muita mina., vitaminado. é uma mina ao contrário, a da vida, é vitaminado.

zélia - e parece que no verão, junho e julho, já tem umas coisas.

sérgio - sim, junho e julho já estão separados para turnê nos eua. não sei o que vai acontecer em relação à europa, está sendo visto isso.

zélia - e aqui já vai começar, depois de são paulo já tem mais...

sérgio - e a gente não está com pressa, não, a gente está querendo fazer as coisas legais.

pas - mas, espera, vocês fugiram do meu assunto e já foram para os estados unidos. artista sempre fala que não tem medo de nada, então sérgio vai falar que não tem medo, mas não dá medo voltar a tocar para o brasil, tocar no brasil?

sérgio - querido, aos 13 anos eu saí da escola...

zélia - eu estou nessa palavra desde que entrei...

pas - ah, é, essa foi mais para eles...

sérgio - com 13 anos de idade eu saí da escola e resolvi que ia ser profissional. eu não tenho o menor medo. de tocar?

zélia - é a nossa vida mesmo, né?

sérgio - é a nossa vida. vai ser um puta barato.

zélia - se vai ter gente ou não vai ter, se vai ser bom ou não vai ser...

sérgio - vai ser maravilhoso. o show vai ser escandaloso, meu, vai ser fantástico.

lourdes - depois de ter visto todos os shows, estar lá vendo o show de gravação do "fantástico", a minha alegria foi tão grande, "vocês estão tocando no brasil!"...

zélia - é, foi bacana pra caramba, é claro que é diferente.

sérgio - é, é impressionante. me lembro de ver pessoas com quem a gente tem relacionamento, o george israel, que é meu amigo... vi o georginho, ele deu uma transfigurada. quando a gente começou a tocar "tecnicolor" [para zélia], você lembra?

zélia - a expressão das pessoas... uma surpresa, uma alegria.

sérgio - "que é isso?", foi uma coisa absurda. foi fantástico. foi muito bonito ver isso.

zélia - uma mistureba...

pas - são paulo, para vocês dois - não tenho certeza do dinho -, é a cidade natal, e é onde tudo aconteceu, né?

sérgio - com certeza, com certeza. e foi genial porque a gente foi convidado pela cidade. isso é um negócio, são paulo tem nos honrado muito, fomos sagrados cavaleiros.

arnaldo - comenda!

sérgio - comendadores, aqui em são paulo, na câmara municipal, a gente recebeu a comenda josé de anchieta.

pas - são cavaleiros e já vão para o ipiranga...

zélia - dali para o ipiranga é um pulo [risos]!

sérgio - aiô, silver!

pas - você mora em são paulo, sérgio?

sérgio - estou morando.

pas - e arnaldo e lucinha?

lucinha - continuamos entre juiz de fora e belo horizonte.

pas - e dinho?

dinho - eu nasci em campo grande, no mato grosso, e saí de lá com dez meses de idade. fui para rancharia e depois vim para cá.

sérgio - aí se tornou sir ronaldo i de rancharia [risos], como arnaldo batizou.

pas - e aí hoje tem uma niteoiense na banda também...

zélia - é...

sérgio - niterói é foda, bicho, é um lugar forte pra cacete de música dentro do rio de janeiro. tem nego bom pra cacete que vem de lá.

zélia - sabe que músico de niterói só atravessa quando pega a ponte? [risos.]

sérgio - essa arrasou, hein?

arnaldo - maravilhoso.

pas - isso não é uma piada, mas, se não me engando, mr. mendes é de niterói também, não?...

zé - é de niterói! me entregou! [risos gerais.]

sérgio - é verdade? eu não sabia que era de niterói. genial.

zélia - baby do brasil...

sérgio - ...paulinho guitarra, arthur maia...

pas - quem é o paulinho guitarra mesmo?

sérgio - tocou com tim [maia].

zélia - [ao mesmo tempo que sérgio] tocava com ed [motta].

pas - cada um foi para uma geração [risos]...

zélia - fui falar em herança...

pas - no show estão as mesmas músicas do disco, ou entram outras?

sérgio - não, são essas. não dá tempo de a gente fazer outras coisas agora.

zélia - no show para o "fantástico", fizemos só dez, e vimos como o pessoal ficou feliz de ouvir, agora vamos tocar as 21.

pas - e pensam em fazer outro disco depois?

zélia - tudo é possível.

sérgio - não é para isso? não é minha profissão desde os 13 anos?

arnaldo - que nem na música, ninguém pode dizer o futuro, no one can tell. vai saber...

sérgio - vai que o osama bin laden aparece aqui agora, o que você faz?

arnaldo - eu chamo um disco voador [risos].

pas - e há a idéia de fazer coisas inéditas?

sérgio - já tem três músicas inéditas.

pas - feitas pelos mutantes?

sérgio - mutantes sempre trabalhou assim, cada um tinha um pedaço da música e trazia... antes eu estava muito preocupado com isso, mas de repente ouvi "senhor f", porra, foi a primeira música que compus na vida. lembro que eu trouxe a música, arnaldo pôs a letra com a rita... "virgínia"...

arnaldo - demora um tanto, vai ter que adubar, botar água, a semente, uma criação.

sérgio - tenho três que estão desmembradas ainda. tem uma que eu e zélia começamos a mexer já, uma balada.

pas - vai virar parceira também, então?

sérgio - é lógico.

zélia - é...

sérgio - é lógico. aí tenho outra meio mambo aí... e o arnaldo tem umas que ele falou também...

arnaldo - é, "fábula da igualdade dos campos", onde o magnético se encontra com a atração da terra. aí pode-se levitar.

pas - o objetivo é esse?

arnaldo - é, exato, e ainda ninguém conseguiu.

pas - de preferência no museu do ipiranga?

sérgio - o melhor era levitar o museu, né? [risos.]

arnaldo - é, exato.

lourdes - vai sair a marquesa de santos, dom pedro i, dom pedro ii...

pas - ouvindo o disco, senti que vocês fizeram uma síntese do que os mutantes eram nos anos 60 com o que eles foram sendo depois que rita saiu, até mesmo depois que arnaldo saiu. tem um pouco de rock progressivo rolando nas beiradas, ou estou falando bobagem?

sérgio - não sei, não sei. é genial que as pessoas vejam as coisas que a gente não vê. é lógico que eu, arnaldo e dinho não somos as mesmas pessoas de 30 anos atrás. nós sofremos influências e, obviamente, isso vai transparecer na música. mas não foi nada consciente.

pas - novamente, nunca vi um show dos mutantes e não sei como era, mas nos discos não havia o virtuosismo, os solos...

sérgio - tinha, orra!

pas - não tanto...

sérgio - a gente não tinha um disco ao vivo, então fica difícil comparar, mas os meus solos eu sempre toquei. é lógico que agora estou livre para poder tocar o que toco...

arnaldo - eu estou sentindo um pouco de dificuldade, porque nos primeiros lps dos mutantes eu era baixista, de pé no palco, a mise-en-scène era totalmente diferente. sérgio e zélia estão sempre dançando, eu fico lá no teclado fazendo as coisas, então é difícil para mim, mas pode ser que eu possa até tocar baixo numa música, vai saber...

pas - tem vontade?

arnaldo - tenho vontade, eu gosto, mas vai saber se isso vai dar certo...

sérgio - ué, tenta. já fez tantas vezes, né?

zélia - nossa, vai ser lindo isso.

sérgio - quem fez o baixo em "baby" foi arnaldo, aquela linha de baixo é dele.

zélia - ah, é do arnaldo, é mesmo? aquilo é lindo. é melodia aquilo, né, arnaldo?

arnaldo - numa de paralela às coisas de mutantes, eu, quando comecei em mutantes, tinha um conjunto de meninas, e eu tocava baixo de pau.

zélia - é mesmo?

arnaldo - é, chamava kika, ula e tony. eu estudei baixo de arco no conservatório. mas faz tempo, muitos anos atrás. a ula era linda, úrsula. kika, ula e eu. nós fizemos um show no mackenzie.

zélia - seu instrumento sempre foi mais contrabaixo?

arnaldo - é, vai rodando, né? bateria também...

sérgio - aí depois, quando arnaldo passou para teclado, eu comecei a gravar baixo. por exemplo, o baixo em "ando meio desligado" sou eu que estou tocando.

pas - quando você passou para o teclado?

arnaldo - eu não estou capaz de saber em qual lp. acho que no terceiro. nos três primeiros, festivais e tudo, eu tocava contrabaixo, e depois passei para o teclado.

sérgio - tem música dos mutantes em que estou tocando bateria, porque o dinho quebrou a clavícula.

dinho - mas de vez em quando o arnaldo também gostava de tocar bateria. ele ia lá, quando a bateria nossa era alugada, ia lá e furava o tambor [risos].

zélia - ah, mentira!

sérgio - o arnaldo era mau, bicho, que ruindade!

arnaldo - uma vez acho que furei... fiquei contente e furei... mas foi pouquinho...

pas - só para terminar, aí tem os malucos lá, devendra [banhart, fã alucinado dos mutantes], essa gente... [risos] como é isso?

arnaldo - ah, nem queira conhecer.

zélia - loucura! eu era a única que tinha o disco do cara...

arnaldo - eu não sabia quem era...

zélia - falei "gente, ele é legal, deixa ele chegar, o cara é legal...".

arnaldo - ele foi e errou a letra com a gente.

sérgio - ele mandou e-mail para mim, dizendo "eu sei cantar 'el justiciero', essa, aquela". legal, então vai ser "el justiciero", vamos lá [enrola a língua para mostrar que ele errou tudo].

zélia - sérgio já disse "não, não vai ficar!". e eu "não, gente, calma, é o devendra, ele é legal, vamos fazer um negócio". aí ele botou um amigo lá, noah, você vai ver no dvd, eles entram que nem duas lombrigas, é muito legal [risos].

arnaldo - é, foi o grande público que entrou...

sérgio - é o davendra, domercado, daquitanda...

zélia - daquitandra.

pas - mas quer dizer que ele ficou rondando vocês?

zélia - não, isso já estava armado.

sérgio - ele telefonou para o barbican, dizendo que queria estar perto da gente, nem que fosse sendo roadie.

zélia - para quem queria ser roadie, cantar "bat macumba" é um super upgrade!

sérgio - pode crer.

pas - ele só cantou o "bat"? [risos.]

zélia - ele é fã mesmo. no ensaio, tem isso no dvd, ele levou uma câmera, ficou filmando os caras.

pas - mais recentemente, ele grudou no caetano, né?

arnaldo - aaaai...

sérgio - é da venda, do mercado, da quitanda...

pas - no brasil existe esse efeito? chegam jovens artistas doidos por mutantes, como ele?

zélia - pô, lá no rio chegaram. tinha menino com olho inchado desse tamanho, tinha gente chorando. foi uma graça ver as minhas sobrinhas, uma de 13 anos e outra 15, na primeira fila. uma delas me ligou de tarde, "dinda, qual é o repertório?". eu: "ah, luíza, tenho tanta coisa pra fazer...". "ah, a gente quer treinar", "tá bom, luíza". no meio da galera eu vi o filho do lenine, querido, cantando tudo, amarradão. em miami, dois garotões americanos entraram no camarim chorando, tremendo, com o lp para eles assinarem. tinham pago us$ 100 pelo disco.

sérgio - eu não sabia o que fazer a não ser abraçar os caras.

pas - isso deve acontecer aqui também?

dinho - acontece, porque no dia em que fomos receber a comanda na prefeitura tiveram que encher dois auditórios, porque estava lotado.

sérgio - acho que vai ser fantástico esse show do ipiranga. é um lugar forte, né? são duas coisas que aconteceram, a fundação de são paulo e o grito do ipiranga. agora vai ser o show [risos]. a espada eu já comprei.

zélia - ai, gente... vou ter que comprar a peruca da marquesa...

lourdes - cheia de esmeraldas, que a marquesa de santos adorava esmeralda. toda vez ela pedia de presente, e passava por dona maria i cheia de esmeraldas, e dona maria sabendo que o marido dela era quem tinha dado.

sérgio - bocetinha de ouro.

zélia - de esmeraldas, né?

arnaldo - fernão dias não era o caçador de esmeraldas? era dias... dias e noites...

pas - pelo visto, a história do Brasil nunca mais vai ser a mesma depois desse show [risos]...

@

num adendo posterior, por e-mail, zélia duncan respondeu o que faria e o que sentiria se, por acaso, se visse na situação difícil (utópica?) de ter de ceder seu lugar nos mutantes para... rita lee. respondeu o seguinte:

"sincerissimamente falando... eu ia morrer de emoção de vê-los juntos. à vezes eu imagino isso no meio de um show! quando eu liguei pra rita eu disse a ela que o que mais vi naquele estúdio foi ela mesma! pude imaginar os três ali, criando, rindo, implicando. sabe quando você tá guardando um lugar pra um amigo no ônibus ou no cinema, sei lá, seja onde for? dá uma alegria quando aquele amigo chega e acho que seria assim e, já que é sonho, antes de sair, eu pediria pra cantar com ela '2001'. e eu ia fechar os olhos e cantar como mutante: 'dei um grito no escuro, sou parceiro do futuro, na reluzente galáxia'! trrrrimmmmmmm! ops, meu despertador tocou!".