quinta-feira, junho 25, 2009

Simonal e a ditabranca

O que segue aqui, até que enfim, é uma reportagem 100% inédita sobre a fábula de Wilson Simonal, que anda novamente na moda por estes tempos. Trabalhei nela durante a primeira metade de 2008, mas a dita cuja acabou nunca sendo publicada.

Em linhas gerais, o texto final aqui abaixo é fiel ao que parei de escrever em 22 de julho de 2008. Recebeu alguns acréscimos porque estava inconcluso, mas acréscimos que dizem respeito basicamente a atualizações necessárias e à inserção de mais depoimentos.

Enquanto adicionava tais depoimentos tendo este blog em mente, percebi que alguns deles eu não teria colocado no texto se fosse destinado a algum veículo da “grande” imprensa - não sei se por falta de coragem minha ou se porque não seriam publicados mesmo (bem, nem o texto seria publicado grande assim, não é mesmo?). A propósito, os dois últimos parágrafos não existiam, foram escritos agora.

Será fácil perceber que o título acima não se ajusta perfeitamente ao conteúdo do texto (na imprensa tradicional isso também acontece com frequência). Mas, dados acontecimentos dos últimos dias, não me parece impertinente, e agradeço ao Rick por ter inspirado o insight. E agradeço também à Meire Bottura, pelas maravilhosas capas de revistas e jornais que ela coleciona.

[Apenas dois lembretes, adicionados às 21h40: a) eu não tinha me ligado nisso, mas publiquei este texto neste 25 de junho de 2009, o mesmo dia do aniversário da morte de Simonal; b) cerca de uma hora depois de este texto estar aqui, morreu Michael Jackson, no mesmo dia da morte de Simonal. Como Wilson, Michael sofreu intensamente durante uma parte considerável do tempo que passou aqui. E, negro tragicamente embranquecido, foi-se pouco tempo depois da chegada de Barack Obama.]

E chega de procrastinar, agora vamos lá.


SIMONAL, O BODE

copyleft PEDRO ALEXANDRE SANCHES


1999. Tocou o meu ramal telefônico no quarto andar da redação. Atendi. Era ligação lá de baixo, de uma das recepcionistas da Folha de S.Paulo, onde eu trabalhava. O cantor Wilson Simonal estava no saguão do jornal. Furioso, fora de si.

Pretenso Clark Kent de caricatura, vesti minha capa fajuta de super-herói de araque e desci para conversar com ele. Já que eu era o autor da entrevista que enfurecera um dos dois cantores brasileiros mais populares dos anos 1960 (o outro se chama Roberto Carlos), cabia a mim proteger e defender o jornal, a instituição, o prédio, os proprietários – e, bem, a mim mesmo – contra a (suposta) fera.

O que eu e Simonal conversamos, não faço a mínima idéia. Apaguei da memória, bloqueei. Só sei que não tive a gentileza e a generosidade de convidá-lo para entrar, sentar-se, tomar um café (bem, acho que eu não me sentia mesmo muito “dono” da “casa”...). E que aparei sozinho, ali mesmo no saguão, a emoção e a revolta do artista contra a entrevista que a Folha publicara no dia 21 de maio daquele ano e, de modo bem mais amplo, contra o exílio, o banimento, a morte de corpo presente que o Brasil lhe impunha desde ao menos 1974.

Lembro que, de transtornado no início, ele foi pouco a pouco serenando, ou melhor, deixando-se vencer pelo cansaço de uma situação que se repetia a cada nova entrevista, a cada vez que os jornalistas lembrávamos que ele ainda existia. Não esqueço, e jamais esquecerei, a expressão de desconsolo em seus olhos, do início ao fim da “conversa”.

Naqueles dias, eu, por minha parte, sabia pouco, ou quase nada, sobre tudo que acontecera a Simonal entre 1963 e 1974, hiato que o remeteu da ascensão e da fama absoluta ao mais indestrutível ostracismo. Como outros repórteres antes e depois, tateava a “notícia” (ou a não-notícia?) em “investigações” (investigações?) superficiais, desinformadas, crente de que sabia de tudo, sem saber de nada.

Aquela foi uma das quatro ocasiões de minha vida em que estive diante de Wilson Simonal. Logo depois, fui ao show motivador da reportagem “Proscrito, Simonal tenta cantar em SP”, que ele então estreava no teatro do hotel Crowne Plaza. Ao final de uma sôfrega e melancólica apresentação, fui cumprimentá-lo no minúsculo camarim, e o encontrei abandonado numa cadeira, passando mal, de cabeça baixa, olhando o chão. Aceitou meu cumprimento indiferente, sem esboçar reação.

Havia o visto pela primeira vez numa situação fúnebre, em 4 de fevereiro de 1998, quando fui, a trabalho, ao velório de Silvio Caldas (1907-1998), cantor e co-autor de Chão de Estrelas. Simonal me chamou a atenção porque, apesar de ter sido um ídolo dos anos 1960, vestia-se como cantor de tempos ainda mais idos - terno branco, lenço na lapela e sapato de bico, ou algo parecido (não posso me recordar com precisão). Deixou-me intrigado também porque percebi que eu sabia, mas não sabia, quem era aquela figura extravagante.

Não tinha a menor ideia de que pertencia ao repertório dele em 1967 a píncara pilantragem (Simonal era então o “rei da pilantragem”) Para, Pedro (“esse Pedro é uma parada/ para, Pedro, Pedro, para”), que minha mãe interiorana cantava rotineiramente para mim quando eu era pequeno. Bem, em 1998 nem minha mãe lembrava mais que um dia havia existido um homem chamado Wilson Simonal.

Fúnebre seria, mais uma vez, a derradeira ocasião em que estive perto dele. Foi no cemitério do Morumby, em 26 de junho de 2000, no seu enterro. Morreu aos 61 anos, de falência hepática decorrente de alcoolismo.

Noutras palavras, a morte perpassou todo e qualquer contato que tive com o Roberto Carlos negro, enquanto ele vivia.

2009. Todas essas imagens zanzam por minha mente sempre que assisto ao excepcional documentário Simonal – Ninguém Sabe o Duro Que Dei, dirigido por Claudio Manoel, o Seu Creysson do humorístico global Casseta & Planeta, em parceria com os jovens Micael Langer e Calvito leal, ex-funcionários da Conspiração Filmes.

O documentário não fornece apenas dados novos sobre a tragédia de erros e a sucessão de abusos que levaram o Frank Sinatra brasileiro (e preto) ao desterro, ao autodesterro e ao desterro outra vez, em moto-contínuo. É precioso, também, porque oferece a primeira oportunidade, desde 1971, de (re)ver Simonal cheio de vida, em movimento, em cores ou em preto-e-branco, em diversas cenas de alto impacto musical.


Para quem, como eu, não viu Simonal ao vivo e em ação, há de ser a primeira chance para chegar perto de entender o poder comunicativo de um cantor-entertainer-apresentador televisivo que condensava, em si, qualidades (e/ou cacoetes) de personagens tão variados quanto Frank Sinatra, Agostinho dos Santos, Sammy Davis Jr., Cyro Monteiro, Ray Charles, Lúcio Alves, Harry Belafonte, Dick Farney, Chris Montez, João Gilberto, Chacrinha, Hebe Camargo, Silvio Santos, Roberto Carlos, Elis Regina, Sergio Mendes, Jorge Ben etc. e tal. De quebra, é senha perturbadora e incômoda para a compreensão um pouquinho menos superficial de um Brasil ditatorial que ainda reluta em se extinguir por completo.

“O filme se chama Ninguém Sabe o Duro Que Dei, mas também poderia ser Ninguém Sabe o Mole Que Dei”, diz Claudio Manoel. O que voltou à tona agora em imagens subsidiadas pela Globo Filmes e pela produtora TVZero (do perfurante documentário A Pessoa É para o Que Nasce) teria feição de drama shakesperariano ou freudiano, ou de tragédia épica hollywoodiana, se não fosse ambientado na chamada “vida real”, aqui no Brasil, poucas décadas atrás.

Não foi ficção, embora pareça fábula. Uma eletrizante história de ascensão e queda levou ao estrelato o garoto pobre que passou por favela, fome e rua, filho de mãe empregada doméstica e pai ausente. Simonal despontou em 1961, e por essa época a rotunda crítica teatral (branca) Bárbara Heliodora foi patroa de dona Maria (negra), que queria ver o filho cadete seguir carreira no Exército e, de início, rejeitava suas atividades musicais.

Na curva de ascensão e queda desse Ziggy Stardust tropical (e preto), o pico aconteceu em 1969, quando, escalado para abrir um show de Sergio Mendes no Maracanãzinho, Simonal papou o dono da noite, perfeitamente sintonizado com uma platéia de mais de 20 mil espectadores. O vale da curva aconteceria em novembro de 1974, quando foi condenado e preso, como numa confirmação definitiva da pecha de delator, disseminada em 1971 a partir do semanário O Pasquim. Entendido como informante da ditadura, foi condenado a cinco anos e quatro meses, por crime de extorsão. Atenção: pela Justiça da mesma ditadura de quem seria colaborador.

Se é ponto pacífico que 1969 foi o ápice comercial do artista, Marcos Valle tem uma história que amplia esse arco. Aconteceu em 1963, quando Valle foi levado a mostrar suas músicas à gravadora Odeon (onde Simonal iniciara trajetória fonográfica). “Quando cheguei à sala do diretor musical, Milton Miranda, ali estavam ele, um outro diretor chamado Ribamar, Roberto Menescal e Simonal”, lembra. “Simonal era considerado naquele momento, pelo que vi, o artista principal, a que estavam dando mais atenção. E estava ali para me ouvir. Como era da moderna música brasileira pediram que fosse me ouvir.”

O jovem Valle se considerava compositor (de bossa nova) e nem pensava em se tornar cantor. Mas Miranda anunciou ali mesmo sua contratação, também para cantar. “Ele disse: ‘Você está contratado’. Meu primeiro susto foi grande. Mas o Simonal foi adiante e falou: ‘É isso mesmo, garoto. Você está contratado’. Quer dizer, ele tinha uma força muito grande ali.”

O sucesso de Simonal começou a se consolidar quando ele deixou de lado o início nos redutos “sofisticados” da bossa e do Beco das Garrafas e partiu para um sólido projeto de popularização e se forjou em relações simbióticas com a política e a polícia da ditadura militar.

Nisso, teve como outra parceira simbiótica e co-protagonista crucial uma personagem quase sempre protegida pela penumbra de auto-imposta invisibilidade, que nem era tão conhecida por este nome no tempo de Simonal, mas hoje chamamos de Mídia, com M grande nem sempre merecido. Foi o conjunto dos meios de comunicação – música, televisão, rádio, jornalismo, publicidade, futebol – que constituiu os tentáculos do polvo Simonal, e enforcou-o (ou amputou um de seus próprios tentáculos) quando, na corcova entre os generais Médici e Geisel, a barra pesou de vez. Vejamos.

1966. Simonal iniciava a etapa mais fulminante de sua ascensão. Apresentava o programa Show em Simonal na então hegemônica TV Record, do qual os progressistas Jô Soares e Chico Anysio eram redatores. Numa cena do documentário, os também progressistas Geraldo Vandré e Gilberto Gil (esse às gargalhadas) aparecem integrados à platéia enlevada de um show em Simonal.

Foi ali que ele se encontrou com o conjunto (inicialmente) samba-jazz Som 3, de Cesar Camargo Mariano, futuro arranjador e marido de uma pupila de Simonal chamada Elis Regina. O primeiro produto dessa associação em LP foi Vou Deixar Cair... , pedra fundadora do estilo pilantragem, sob a retaguarda do comunicador Carlos Imperial (que conduzira os primeiros passos artísticos de Roberto Carlos e tivera como secretários particulares os jovens Simonal e Erasmo Carlos) e do compositor Nonato Buzar. Na capa do LP, o bonequinho Mug aparecia como artefato mercadológico de vanguarda, matraqueado em palcos e telas por Simonal e Chico Buarque, ambos empresariados à época por Roberto Colossi.

Nonato Buzar fala, 43 anos depois, sobre a invenção daquele novo estilo: “Pilantragem é um nome que abomino até hoje. Estávamos eu e Simonal tocando violão, surgiu o estilo, que pertence a mim e a ele. O nome que eu queria era bossa brasileira. O nome não era pejorativo, mas algo me falou dentro que ia ficar pejorativo, tanto que ficou. Pilantra é a pessoa que não presta. Se o nome fosse bossa brasileira, até hoje existiria, porque era um estilo bom, humano, que ressuscitava clássicos da música brasileira sem mudar uma nota sequer do original”.


Ainda em 1966, pop, iê-iê-iê, soul, pitadas de bossa-jazz e doses cavalares de alegria infanto-juvenil catapultaram para o gosto popular Meu Limão, Meu Limoeiro, Carango (dos versos “ninguém sabe o duro que dei/ pra ter fonfom trabalhei, trabalhei”) e Mamãe Passou Açúcar em Mim. E o domínio de Simonal sobre o público ampliou-se entre pilantragens em profusão, como Os Escravos de Jó, Vesti Azul, Nem Vem Que Não Tem (todas de 1967), Zazueira (1968) e País Tropical (1969). Nessa última, criada por Jorge Ben, Simonal encurtava palavras e transformava em jargão nacional o apelido Patropi como sinônimo de Brasil.

Eram os tempos do bordão (e da série de discos) “alegria! alegria!”, que Caetano Veloso tomaria emprestado para cimentar a gênese da tropicália. Um Simonal cada dia mais sorridente, rico e poderoso surfava na marola e definia a tropicália como uma forma de pilantragem. Carlos Imperial tentava rivalizar com o grupo baiano e lançava, em 1968, o disco Pilantrália, creditado à Superior Ordem da Pilantragem Avançada, S.O.P.A. (“nem vem de garfo que hoje é dia de sopa”, ou “de S.O.P.A.”, cantava Simonal desde o ano anterior, em Nem Vem Que Não Tem).

O programa de primeiro aniversário do Show em Simonal ficou eternizado naquele que deve ser o primeiro LP duplo da indústria fonográfica brasileira, primazia mais tarde reivindicada, a bordo dos esquecimentos, por Fatal (1971), de Gal Costa, e até pelo posterior Clube da Esquina (1972), de Milton Nascimento e Lô Borges.

Ouvido hoje, o disco de 1967 espanta. Durante a leitura de um fictício exemplar do Jornal da Tarde no ano 2000, o entertainer celebrava “o imperialismo do samba de breque”, citava o ex-presidente Juscelino Kubitschek (cassado pelo regime militar em 1964) e cutucava a ditadura, não se sabe se com ou sem intenção, ao ler a falsa notícia de que “o prefeito Faria Lima anuncia que ficará só mais seis meses no poder”.

Primor de ambigüidade e ironia, o LP intercalava inflamadas canções de protesto de Vandré, João do Vale e Marcos Valle com slogans e jingles comerciais de Philips, Kolynos, Gilette, Lux e TV Record. Sarcástico, Simonal oferecia duas opções ao ouvinte: “Você precisa confiar nos seus compositores” e “na música brasileira”, ou então “você pode confiar na Shell”.

Fortalecido, Simonal se dava a tais ousadias, e passou a sublinhar o racismo brasileiro em toda entrevista que concedia, e também na tela da TV. Ninguém Sabe o Duro Que Dei coleciona imagens fortes a esse respeito. Na mais leve delas, o cantor aparece num programa caracterizado como Lobo Bobo, junto à “Chapeuzinho” Vanusa. Na mais chocante, lidera uma pantomima em que aparece acuado por uma turba de brancos, enquanto canta: “Minha pele é escura/ e mais negra minha vida/ negro sem cultura/ vai ganhar bebida/ eu sou preto, negro, negro, mas, por Deus, também sou gente”.


O ápice do Simonal anti-racista se deu ainda em 1967, na gravação de Tributo a Martin Luther King (“cada negro que for/ mais um negro virá/ para lutar com sangue ou não”), dele e de Ronaldo Bôscoli. Na entrevista de 1999, me contou (e eu publiquei sem muita noção e com incrédula parcimônia) que a canção lhe rendeu uma das primeiras “visitas” ao famigerado Departamento de Ordem Política e Social (Dops), futuro nicho clandestino de tortura e terror de Estado. “Quiseram censurar a música, alegaram que era racista e que eu estava botando os negros contra os brancos”, afirmou. “Ouvi o que o censor falou. Falou, falou, falou, ah, porque o ambiente artístico, não sei o quê.”

1969. Em julho, pouco depois da primeira consagração no Maracanãzinho, o artista foi a estrela da edição nº 4 d’O Pasquim, que nos primeiros tempos parecia ambiguamente fascinado pelo ídolo negro. A chamada daquela edição era “Simonal: ‘Não sou racista’ (Simonal conta tudo)”. A anárquica patota, formada por Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral (pai do atual governador do Rio de Janeiro) e Pinheiro Guimarães, o entrevistou em tom jocoso, e insinuava que, sim, ele era racista. “A imagem pública que se tem de você é a do cara que está tranqüilo e que tem mordomo que acorda você às duas da tarde, com caviar etc.”, contra-atacava Tarso.


Ainda assim, o tablóide propagandeou à farta o filme É Simonal, de outro membro da turma, Domingos de Oliveira. Construída como uma versão negra dos filmes de matinê de Roberto Carlos, a produção implodiria em 1971 diante do início da derrocada do protagonista. Esta reportagem procurou Domingos, que se declarou “suspeito para opinar sobre esse assunto” e mais preferiu não falar.

“O público pagou, alguém tem que morrer”, Simonal profetizava na chanchada meio autobiográfica, até hoje semi-inédita. “Eu convivia com os caras do Pasquim. Era um porre, eles brigavam tanto entre eles”, me disse o cantor na entrevista de 1999. Por favor, peço atenção, este ponto é importante, embora eu não tivesse bagagem para percebê-lo dez anos atrás: “Eu convivia com os caras do Pasquim”.

Na esteira do Maracanãzinho, o cantor assinou contrato de vulto para ser garoto-propaganda da Shell. O patrocínio a Simonal se misturava com o patrocínio à seleção brasileira da Copa de 1970: a Shell o levaria ao México com seu grande amigo Pelé e cia., ele na condição de cantor oficial do Brasil na competição.


Na imprensa, Simonal aparecia ao lado do “gerente de comunicações e marketing” da Shell, João Carlos Magaldi, futuro diretor da Central Globo de Comunicações. O Jornal da Tarde noticiou o acordo, em 17 de setembro de 1969, como “o mais fabuloso contrato de publicidade já assinado” – se hoje certa cultura brasileira é fortemente subsidiada pela Petrobras, naquele tempo a música de Simonal já era, em parte, subproduto do petróleo.

Magaldi fora um dos vértices da agência publicitária Magaldi, Maia & Prosperi (MM&P), que em 1965 esculpiu a coqueluche nacional do programa Jovem Guarda, comandado por Roberto, Erasmo e Wanderléa na Record. Reza uma entre várias lendas que Carlito Maia, funcionário da Globo a partir de 1974 e futuro fundador do PT, extraíra o nome de batismo “jovem guarda” de uma frase do líder socialista russo Lênin. Carlos Prosperi, o outro publicitário da trinca, seria um dos fundadores d’O Pasquim, lançado em junho de 1969. Segundo escreve Jaguar no primeiro volume da antologia do tablóide, editado em 2006, O Pasquim foi gestado “na casa do Magaldi, diretor da TV Globo”.

A montagem das peças desse jogo de xadrez tira o chão da versão maniqueísta da história, quase sempre predominante, de que a origem dos anos de chumbo de Simonal estaria na oposição inegociável entre ele, à direita, e o exército d’O Pasquim, à esquerda. De Simonal e Roberto Carlos a Ziraldo e Jaguar, de homens de negócios e publicitários a jornalistas e músicos, de esquerdistas a direitistas ou “apolíticos”, todos eram filhotes da mesma ninhada (não custa repetir, Simonal dividira até empresário com Chico Buarque, futuro herói vitalício da esquerda). Em depoimento ao documentário, Jaguar parece desenhar instintivamente essa conclusão, ao afirmar num riso tristonho, diante de uma garrafa de cerveja Jaguar: “Ele morreu de cirrose, podia ter sido eu”.

1970. Começava a se desenhar o enredo intrincado que culminaria no grande cisma e no coroamento (e autocoroamento) de Simonal como bode expiatório prefererencial da “elite pensante” brasileira, num arco que apanharia todo o espectro ideológico. No meio do ano, faturamos o caneco no México, e o presidente Médici ganhou fôlego ilimitado para galvanizar a retórica radical do ufanismo pelo “Brasil grande”, “ame-o ou deixe-o”.

Em outubro, o V Festival Internacional da Canção (FIC) serviria de plataforma para uma ascendente Rede Globo transmitir imagens do “Brasil grande” para o planeta. Médici orquestrava o coro dos contentes, em entrevistas coletivas à imprensa internacional e em foto cumprimentando o vencedor da etapa nacional do festival, Toni Tornado, cantor (negro) de BR-3. Os compositores da canção vencedora eram Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, também autores (brancos) de um dos maiores sucessos de Simonal, Sá Marina (1968). Mas, poses fotográficas à parte, alguma coisa fugia ao controle do ambíguo consórcio verde-amarelo Globo-ditadura.


Inesperadamente, a bandeira brasileira se tingia de preto. Um tufão black power varria o FIC, e não era só Toni Tornado com o símbolo dos Panteras Negras desenhado no peito nu e namorando às escondidas uma das apresentadoras do festival, a atriz (e loira) Arlete Salles. Outro tornado no V FIC era Erlon Chaves, maestro (negro) ligado a Simonal, a Elis e à Globo e um dos contratados da Simonal Produções Artísticas, a mais nova empreitada do rei da pilantragem. Namorado eventual da ex-miss Brasil (loira) Vera Fischer, Erlon regeu uma interpretação anárquica de Eu Também Quero Mocotó, do soft-black Jorge Ben, à frente de um grande coral vestido em batas africanas.

Na etapa nacional, o Mocotó de Erlon Chaves conseguiu apenas a sexta colocação. Mesmo assim, foi convocado a se reapresentar na final internacional. Dessa vez, mulheres seminuas (brancas e louras) se integraram ao número, rodeando o maestro e cobrindo-o de beijos, para escândalo da face mais conservadora da sociedade, aí inclusas esposas de generais ancorados em Brasília. Na memória de um dos músicos presentes no palco, João Parahyba, do então nascente Trio Mocotó, a rebeldia foi além: alguns dos integrantes do coro teriam levantado suas batas sem mais nada por baixo, exibindo as bundas ao vivo, em cadeia internacional. Não se conhece registro visual do incidente, e Parahyba parece solitário na lembrança desse detalhe.

Poucos dias depois, Erlon deveria repetir a apresentação a pedido do apresentador Flávio Cavalcanti, em seu programa dominical na TV Tupi. Foi preso antes que o fizesse, como conta Flávio Cavalcanti Jr., hoje diretor da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert): “Erlon estava ensaiando, chegaram policiais sem farda. Tiraram ele do chão literalmente, encapuzaram, jogaram numa Veraneio. Ficou num batalhão quatro ou cinco dias, e depois soltaram”.

Cavalcanti Jr. nega a versão de que Erlon tenha sido maltratado na prisão. “Deram um susto nele. Não sofreu tortura, nem entrevista, inquérito, nada. Mas ficou muito apavorado, saiu de lá arrasado, querendo ir embora do Brasil.” De um modo ou de outro, todos os “vitoriosos” daquele FIC perderam o rebolado diante da pesada repressão que se abateu sobre o súbito levante black, ao qual naquele momento até os branquelos Ivan Lins e Wanderléa aderiram.

Ivan, outro contratado da Simonal Produções, emplacou O Amor É o Meu País como vice-campeã da fase nacional do V FIC. Mas a canção despertou discórdia à esquerda, pela ambigüidade exprimida pelo artista iniciante, meio perdido entre o soul inofensivo de amor e a adesão ao “ame-o ou deixe-o”. “A repressão e a censura estavam muito violentas. A classe pensante estava totalmente desorientada. E os militares se apossaram de nossos símbolos – bandeira, hinos, cores, até a palavra ‘país’. Sofri muito com a patrulha. Parei de cantar a canção”, diz hoje Ivan, que, no entanto, conseguiu aos poucos driblar a patrulha e se reinventar.

De resto, a carreira musical de Tornado foi abortada, ou se auto-abortou, no nascedouro (ele se tornaria mais tarde ator de novelas da Globo). “Estavam com medo que ele fosse um líder negro que pudesse insuflar a massa negra, causar a turbulência nacional”, diz Tibério Gaspar.

Antonio Adolfo afirma que só recentemente tomou consciência das implicações comportamentais, raciais e políticas em que sua BR-3 esteve envolvida – quando leu A Era dos Festivais – Uma Parábola (Editora 34, 2003), de Zuza Homem de Mello. “Eu não tinha consciência de black power, talvez Tibério tivesse”, diz. “Tinha a coisa do Martin Luther King, os Panteras Negras, mas eu nem sabia que aquele símbolo que o Toni usava era dos Panteras Negras. Para mim era coisa de índio.” Mas observa: “Jorge Ben saiu ileso daquilo tudo, é engraçado. Até Jair Rodrigues foi perseguido. Elis Regina teve que fazer média para não ser presa, lembro dela fazendo propaganda para o Exército”.

Tibério demonstra que, de fato, tinha maior consciência: “O black power começou a aparecer com a gente. Fui chamado no SNI, interrogado por quatro coronéis. Havia um dossiê meu, esquerda, fichário, negócio meio grave, eu quase dancei mesmo”. Segundo ele, o colunista social Ibrahim Sued, d’O Globo, teria espalhado a seguir a falsa informação de que BR-3 era, na verdade, uma canção sobre drogas, sobre injetar heroína na veia.

Em 1970, a turma d’O Pasquim também entrou na dança. Em novembro, logo após a publicação de uma charge de Jaguar na qual D. Pedro I aparecia gritando “eu quero mocotó!!” às margens do Ipiranga, quase toda a redação foi em cana. Como expôs a historiadora Beatriz Kushnir no livro Cães de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 À Constituição de 1988 (Boitempo, 2004), adiante o governo plantaria agentes dentro da redação para fazer a censura prévia da produção d’O Pasquim. Um deles era o general Juarez Paes Pinto, pai de Helô Pinhero, a “garota de Ipanema” eternizada em música e letra por Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Numa relação que poderia surpreender os mais maniqueístas, o censor privava do convívio com os jornalistas, dava conselhos e os chamava de “meus meninos”.

Eminência parda do VI FIC, Simonal via pela primeira vez à sua frente uma maré desfavorável. Segundo defende Toni Tornado em depoimento ao documentário, a virada da maré começara um ano antes, na apresentação com Sergio Mendes no Maracanãzinho: “Foi aí que ele arrasou, foi aí que ele causou a tal da inveja, foi aí que começou a bronca”.

“Ele fazia o jogo, era submisso. Não tinha visão política. Temiam que Toni Tornado tivesse”, opina Tibério. “Mas Simonal ficou ameaçado. Era o maior cantor do Brasil e estava prestes a deslanchar uma carreira internacional. Era a bola da vez.”

De fato, 1970 poderia ter marcado o início da internacionalização de Simonal, se o pássaro negro não acabasse abatido em pleno vôo. Stevie Wonder abria seu show naquele ano cantando Sá Marina em inglês, com o nome Pretty World (está gravada em Stevie Wonder Live, 1970). E esteve com ele aqui no Brasil, como lembra o filho mais velho do homem, Wilson Simoninha: “Houve um almoço para ele, eu me lembro porque era um cego andando ali pela minha casa. Miele e Ronaldo Bôscoli falavam que à noite eles fizeram uma jam que foi até o dia raiar, meu pai, Elis e Stevie Wonder”.

No mesmo ano, em visita ao Brasil, uma Sarah Vaughan embevecida (e negra) duetou com Simonal na TV, em imagens entortantes, de emocionar, recuperadas em Ninguém Sabe o Duro Que Dei. Ao mesmo tempo, a atriz louríssima Brigitte Bardot, também cantora bissexta, regravou Nem Vem Que Não Tem em francês, como Tu Veux Ou Tu Veux Pas.

E houve mais. Ainda em 1970, também veio ao Brasil para o V FIC o maestro Quincy Jones, futuro dínamo por trás do estrondo de Thriller (1982), de um certo Michael Jackson. Diz Simoninha: “Eu não me lembro, mas sei que Quincy ficou aqui com Simonal. Saíam direto. Sempre ouvi meu pai dizer que um dos motivos para sua saída da Odeon foi que a gravadora não quis fazer um disco dele com Quincy. Ficou puto”.

Simonal, o derradeiro disco pela gravadora onde se construíra, saiu em dezembro, pela primeira vez dissociado do imaginário da pilantragem. Mesmo sob a barra pesada do FIC, Simonal pisava dessa vez no acelerador do black power. O funk-baião Destino e Desatino de Severino Nonô na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (Oh Yeah!), de Renato Luiz, soava agressivo no limite da grosseria, explorando as peripécias de um astro pop ultracomercial nascido “no bairro de São Caetano, cidade de São Salvador”, que “foi pro Rio levando a gaytarra e a fome” e fez fama americanizada “cheio de renda e babado e cabelão de mulher”. À época, a minoria negra e a minoria homossexual não tocavam na mesma banda (hoje tocam?).

O soul Moro no Fim da Rua, de Luis Vagner e Tom Gomes, é outro que retroativamente soa profético, pela letra e pelos gritos de Simonal ao final, “I don’t want to be alone”. Gomes, hoje jornalista ligado à indústria fonográfica, conta a história: “Luis Vagner morava no Solar da Fossa, no fim da rua. Era uma república maravilhosa, de jornalistas, artistas plásticos. Lá moravam Caetano Veloso, Gal Costa, Paulo Diniz. Luis começou a música, ‘moro lá/ no fim da rua onde tudo é escuro demais/ escuro demais’, e eu completei. Mas não houve preocupação nossa de fazer para o Simonal. Depois é que ele gravou, para minha felicidade”.

O solo de guitarra em Moro no Fim da Rua era do futuro astro samba-soul Hyldon, que assim remete à “alienação” política de sua turma e à derrocada de Simonal: “Aquela história nunca me convenceu, mas era só intuição. ‘Dedo-duro’ todo mundo falava, quer dizer, a galera da zona Sul falava, o pessoal da MPB. Na galera da jovem guarda, do rock, no meio artístico mais popular isso passou batido. Todo mundo continuava gostando e admirando Simonal”.

Outra faixa notável do LP de 1970 é Deixa o Mundo e o Sol Entrar, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, um ataque à monogamia e à prisão do casamento, pura contracultura, de linguagem até hoje avançada. Transtornado em black power à brasileira, pronto para o mundo, foi aí que Simonal abortou. Como? Por quê?

1971. O astro começou o ano participando de um novo programa da Globo, o Som Livre Exportação, liderado por Elis Regina e Ivan Lins. “Naquele começo dos anos 70, quando entrou o Garrastazu Médici, nosso Pinochetzinho, a barra estava muito, mas muito pesada”, lembra Ivan. “Havia muito medo no ar. Em janeiro, começou o programa. Pelo tamanho da censura que rolava dentro da Globo, a ‘exportaçao’ bem que poderia ser traduzida por ‘exilio’. Chegamos a conversar algumas vezes nos bastidores, e Simonal era totalmente apolítico. Não queria saber do que acontecia por trás do pano. Eu também, nessa época, não sabia direito.”

Em questão de meses, Simonal seria um dos exilados, sem nem precisar sair de casa. Em 24 de agosto, o cantor migrou da música de diversão para o noticiário policial. Teria descoberto um desfalque na Simonal Produções e suspeitado de Rui Brizola (então sócio de Magaldi e futuro vice-presidente da Traffic Sports) ou de Rafael Viviani, funcionário da empresa. Com a aparente conivência e o carro de Simonal, Viviani foi seqüestrado, levado ao Dops e torturado, numa seqüência de eventos comandada e/ou testemunhada por dois, ou três, ou quatro, ou mais agentes do órgão, todos supostamente “amigos” do artista.

No Correio da Manhã do dia 29, surgiram informações de que Viviani fora “espancado e seviciado com choques elétricos numa dependência policial”, em reportagem aparentemente fundada num depoimento do cantor à policia – pois ninguém entrevistou Simonal naqueles dias. No depoimento, o cantor teria dito sofrer ameaças anônimas por telefone de pessoas que se diziam terroristas, e que “o que os terroristas querem é meu dinheiro para financiar seus movimentos”. (O documentário reencontra Viviani nos anos 2000, numa periferia paulistana, em frangalhos. Ele corrobora a tortura, e interpreta as declarações do ex-patrão à polícia como motivadas pela orientação de advogados.)

Numa lufada de vento, o garoto-propaganda de Médici, do Patropi, do “Brasil, ame-o ou deixe-o” ganhava as folhas policiais como protagonista de uma trama feita de vários temas-tabu, daqueles que a ditadura dava os dois braços, esquerdo e direito, para manter trancafiados no porão. À esquerda, subversão e terrorismo. À direita, tortura e choques elétricos numa dependência policial.

Em setembro, O Pasquim publicou o desenho do “magnífico” dedo indicador apontado de uma mão pintada de preto, e acrescentou: “Como todos sabem, o dedo de Simonal é hoje mais famoso do que sua voz”.

João Parahyba, que estivera no México com Simonal e naquele período tinha seu Trio Mocotó apadrinhado pelo Pasquim, avalia: “Adoro Jaguar, Millôr Fernandes, Paulo Francis e Henfil, mas Jaguar foi foda com Simonal. Dedo-duro era o cacete. O Pasquim pôs na frigideira, era um prato feito. Serviu talvez de informação nanica para a grande network acabar com a raça de Simonal. Foi para a boca do povo, porque informação mal dada passa de um para o outro”.

Assessora de Flávio Cavalcanti nos anos 1970, a jornalista Léa Penteado formulou uma versão mais incendiária para o caso, na biografia do apresentador que lançou em 1993. “Só depois de muitos anos (Simonal) soube, através de amigos, que o dinheiro desviado por Viviani era repassado a Dulce Maia, irmã do publicitário Carlito Maia, conhecida militante de esquerda, com o objetivo de financiar guerrilhas”, Léa escreveu e publicou em Um Instante, Maestro! (Record).

Ligada a Carlos Lamarca, Dulce foi torturada e banida do país em 1970. “Esses dados foram extraídos de uma entrevista que fiz com Simonal, em 1991 ou 1992”, me contou em 2008, Léa, então secretária de Cultura de Santa Cruz Cabrália (BA). A hipótese que lançou até hoje não foi comprovada. Nem tampouco foi testada ou investigada, seja na imprensa ou noutro canto.

Furioso até hoje com o que classifica como “inveja” contra Simonal, Nonato Buzar (à época compositor de trilhas de novelas da Globo) joga a esmo mais alguns tijolos no muro inconcluso. Sobre o momento em que o parceiro descobriu o suposto desfalque, ele diz: “Simonal foi procurar o Rui Brizola, e não encontrava. Todo mundo tem amigo detetive, da polícia, quem não tem? Foram procurar o Rui em vários lugares, inclusive na casa do Carlito Maia, e lá encontraram coisas subversivas. Eu fui preso três vezes, porque era fundamentalmente contra a ditadura, sempre fui. Simonal nunca nem pensou nisso. Prenderam ele, aí disseram que caguetou o Carlito. Ele caguetou sem querer”.

Nonato diz que não quis dar depoimento em Ninguém Sabe o Duro Que Dei, e explica a razão: “Porque eu tenho medo de mim”. Não é só ele, ao que tudo indica. O codiretor Calvito Leal explica ausências célebres no documentário: “Vários caíram por causa de data, vários não responderam, alguns não toparam. Jorge Ben Jor não deu resposta, Roberto Carlos também não. Nunca era diretamente ‘não quero participar’, era ‘preciso ver’. Tem uma coisa horrível, ninguém gosta de chutar defunto. Mas nunca existiu uma pessoa que levantasse bandeira contra o Simonal, era sempre à boca pequena. Não existia o anti-Simonal”. (Não são só os contrários que se calam sobre as desventuras de Simonal, como faz transparecer uma história contada por seu filho caçula, o hoje músico Max de Castro: “Em 1986, fui com meu pai a um show de Roberto Carlos no Maracanãzinho. No final, a gente foi lá atrás. Quando Roberto viu meu pai, ficou emocionado. Veio, se abraçaram uns 15 minutos chorando sem falar palavra. Trocaram uma frase, Roberto foi embora”.)

Léa Penteado interpreta as relações de Simonal com o trio Magaldi-Prosperi-Maia: “Os publicitários viram nele, com todo o sucesso de comunicação, um ótimo garoto-propaganda. Creio que houve muita ingenuidade do Simonal e de todos os artistas daquela época, que não estavam preparados para ganhar tanto dinheiro e ter tanta fama em tão pouco tempo. Não havia profissionais no mercado para assessorar. E até hoje, mesmo tendo ótimos profissionais, às vezes tem alguém que passa a perna no mais fraco”.

Simonal morreria culpando os ex-parceiros comerciais pelo desterro que ele, afinal, também foi responsável por provocar. Passou a acusar Magaldi de tê-lo roubado e a classificá-lo como responsável por barrar qualquer acesso dele à Globo, já que o publicitário virara um dos todo-poderosos da rede, o homem por trás do “plim-plim” da então autoapelidada “Vênus Platinada”. Magaldi, Maia e Prosperi morreram sem jamais contar em público suas versões para o grande cisma.

As imbricações desses personagens com a Globo explicariam a completa ausência de referência a eles num filme que leva o carimbo da Globo Filmes? Cláudio Manoel sustenta que não: “Quando fomos direto ao Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho), o resto virou subtema. O Boni é mais a Globo que o Magaldi. Os filhos dele não quiseram dar a versão deles. Ia desequilibrar, botar no morto uma das possibilidades”.

Em 1999, quatro dias após minha entrevista com Simonal, o Painel do Leitor da Folha publicou a seguinte carta: “Somos filhos de João Carlos Magaldi, maldosamente mencionado pelo senhor Wilson Simonal na entrevista publicada em 21/5. É uma atitude covarde acusar uma pessoa que não pode se defender, pois já está morta. Onde estão as provas de que o nosso pai roubou o sr. Simonal? A história profissional de nosso pai mostra a sua preocupação social, a sua ética e o quanto valorizava o ser humano. Essa tentativa do sr. Simonal de retomar a sua vida profissional denegrindo a imagem de várias pessoas, inclusive de nosso pai, demonstra sua mesquinhez e seu verdadeiro caráter.” Era assinada por Álvaro B. Magaldi e Monica Magaldi Suguihura, que também tentei contatar em 2008, sem qualquer sucesso.

1972. A partir do início do ano, o ex-soberano da pilantrália desapareceu do noticiário, fosse o musical ou o policial. O muro de concreto se erguia rapidamente ao seu redor. Na beirada do abismo, surpreendentemente, foi contratado pela Philips, a mesma gravadora que fomentava Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina, Jorge Ben, Gal Costa, Tim Maia, Raul Seixas, Rita Lee e dezenas de outros nomes da linha de frente da MPB, sob a direção do francês André Midani, outro personagem de quem Simonal levaria mágoas profundas para a eternidade. “Fui seduzido por um sujeito que veio para acabar”, me disse em 1999, referindo-se ao ex-presidente da gravadora.

No final de 2001, entrevistei Midani para a Folha e perguntei sobre Simonal. Ele afirmou que era “penoso dizer”, mas havia contratado o artista a “pedido” de uma “pessoa muito importante” do governo militar. “Tive que ir artista por artista, entre os mais importantes, explicando que ia ter que contratar o Simonal. Claro, não era um bichinho amado na companhia”, afirmou.

“Toda a MPB, sem exceção, o boicotou. Foi caça às bruxas, um macartismo brasileiro. Tem gente muito pior que ele, que passou em brancas nuvens”, protesta hoje João Parahyba. Max de Castro afirma que a mitologia da queda do pai “foi boa para todo mundo”, da esquerda à direita. “Os que não gostavam dele finalmente se viram livres. Para artista que não era engajado e era alienado foi bom, porque esqueceu a própria covardia”, diz. “Para artistas de esquerda foi bom porque isso dignificou mais ainda a luta deles, que sobreviveram mesmo apesar das delações de suas atividades.”

Procurei Midani novamente em 2008, mas ele se esquivou de nova entrevista acrescentou apenas alguns pontos dispersos, por e-mail: “Que Simonal freqüentava o pessoal do Dops, freqüentava. Ele devia gostar de frequentar ‘os homens’, certamente lhe dava uma gostosa sensação de poder, e disso ele gostava. Que não consta nos arquivos do Dops nenhuma referência a denúncias que ele teria feito sobre seus colegas, não consta. E a gente nunca ouviu dizer: ‘Fulano foi posto em cana por causa de uma denúncia do Simonal’. Que ele mandou dar uma surra no contador, não tem a menor dúvida, e, como ironiza Jaguar, talvez o contador merecesse receber uma surra”.

Midani também trouxe Magaldi à baila: “Há uma pessoa que, me parece, poderia ter trazido importantes informações, e essa pessoa era Magaldi, que não está mais conosco. Era sócio do Simonal e, conseqüentemente, teria sido também roubado. A gente nunca ouviu nenhum comentário de sua parte, e no entanto foi Magaldi que deflagrou a campanha contra o ‘dedo-duro’ Simonal”.

Meses mais tarde, entrevistei pessoalmente o ex-diretor da Philips, por conta do livro que ele estava lançando, e voltamos ao assunto. Num trecho até hoje inédito da entrevista, Midani prosseguiu um pouco mais: “A história que conheço, a mais sem gordura, é que Simonal era o rei do país, e foi lá na companhia, e não havia um puto de um dinheiro para ele. Quis saber, chamou lá uns caras do Dops, uns polícias, ‘vão dar uma surra no contador’. Deram uma surra no contador. Você diz, que horrível, deram uma surra no contador. Mas há outros aspectos a considerar. Simonal era um menino completamente ignorante. O dinheiro dele desaparece, ou pelo menos não aparece, não vou dizer que eu faria a mesma coisa, mas entendo uma pessoa de educação muito primária dizer ‘filho da puta, dá uma surra e vamos ver o que é’. E deram uma surra”.

E voltou a ressaltar, de modo mais ou menos enigmático, o que parece considerar o cerne da questão: “O sócio de Simonal quem era? Era o Magaldi. Mas por que Magaldi ficou tão ofendido com a não-pureza política do Simonal? Simonal não era nem de um lugar nem era do outro. Para ele qualquer coisa estava bem. Então o que eu imagino é que tem um pedaço importante dessa história entre Simonal e Magaldi que nunca foi contado, e que só eles dois sabem”. Sabem, mas estão mortos.

Na Philips de Midani, um Simonal já fortemente marginalizado gravou mais três discos entre 1972 e 1974. Caíram em completo vazio, e até hoje não foram observados com atenção ou pelo menos curiosidade (permanecem inéditos em CD). No álbum de 1973, batizado com o hermético nome de Olhaí, Balândro... É Bufo no Birrolho Grinza!, Simonal introduzia em meio a uma roda de samba uma enigmática frase: “Eu vô batê pa tu batê pa tua patota”.

1974. O mote seria glosado com grande sucesso popular no samba-rock Vô Batê pa Tu, interpretado por Baiano & Os Novos Caetanos, ou seja, pelos humoristas Chico Anysio e Arnaud Rodrigues, fantasiados de baianos caricaturais. Os autores de Vô Batê pa Tu eram Arnaud e Orlandivo, e a letra dizia que “é papo de altas transações/ deduração/ um cara louco que dançou com tudo/ entregação do dedo de veludo/ com quem não tenho grandes ligações”.

O samba-roqueiro Orlandivo explica para confundir, ou confunde para explicar: “A letra era do Arnaud. Acho que ele fez em cima de coisas derivadas de drogas. Há várias dimensões de desconfiança de que podia ser sobre Simonal, ou de que tinha a ver com droga. Mas onde eu andava achavam que Vô Batê pa Tu pegou em cheio no Simonal. Arnaud só ria quando a gente conversava sobre isso”. Não sei explicar por que, mas não cheguei a procurar Arnaud Rodrigues.

Autor gravado por Simonal em 1964 e 1965, Orlandivo evoca uma lembrança dos tempos pré-fama do cantor. “Pouca gente sabe, mas antes de cantar ele trabalhava numa firma de cobrança de cheque sem fundo. Cobrava cheque em bar e restaurante. Depois o cara se torna sucesso, e era o cara que cobrava cheque sem fundo. Na minha cabeça, acho que isso deu margem a outras coisas, ‘esse cara me cobrou diante de todos os meus amigos’”, especula.

Tibério Gaspar, candidato a vereador carioca à esquerda, pelo PC do B, em 2008 (com 388, não se elegeu), adentra nos temas espinhosos da delação e do colaboracionismo: “Era uma época infeliz, um regime de exceção. Não se pode raciocinar com regras de estado de direito em estado de exceção. Os militares exigiam muitas posições, ou você estava a favor ou estava contra. Valia para pessoas e para firmas. Falar que o César de Alencar era informante? Ele tinha programa estourado na Rádio Nacional, todos iam cantar lá. E a Rede Globo, não foi o porta-voz da ditadura, não passava o Amaral Netto enquanto matavam gente no Araguaia? Não eram cúmplices também? Simonal foi o menor mal”.

Depois de três anos de sumiço do olho público, o ex-rei da pilantragem voltou aos jornais de modo dramático, em 13 de novembro de 1974, ao ser condenado pelo juiz João de Deus Lacerda Mena Barreto a cinco anos e quatro meses de prisão, mais um ano de internação em colônia agrícola. Amigo íntimo do cantor e homem que se dizia de esquerda, Chico Anysio prestou-lhe amparo, e é até hoje seu ferrenho defensor, como se pode constatar no documentário.

O noticiário daqueles dias foi dos mais desencontrados. Informações picotadas davam conta de que a condenação ocorrera pela madrugada, sem a presença do réu. Declarações do cantor só apareceram no jornal Última Hora, onde Carlos Imperial era colunista. “O delegado Sérgio Fleury é meu chapinha e tudo vai correr dentro do figurino”, teria dito Simonal. Sérgio Paranhos Fleury, sanguinário delegado do Dops, chefiara a captura e morte de Carlos Marighella, em 1969. Antes, fora segurança da TV Record e de Roberto Carlos, no auge do Jovem Guarda.

Dois supostos agentes do Dops, acusados de terem participado da captura e tortura de Viviani, foram condenados à mesma pena. O Globo os apresentou um como “industrial trabalhando em torrefação de amendoim”, outro como “vigia de um departamento do Estado”. Estavam foragidos, e não se leu na imprensa notícia sobre a prisão dos dois.

Mas foi absolvido um outro personagem, Mário Borges, descrito nos jornais ora como “inspetor do Ministério da Indústria e Comércio”, ora como “chefe da Seção de Buscas Ostensivas do Dops” e, portanto, suposto chefe dos agentes punidos. Era invariavelmente apresentado nas reportagens como “amigo” de Simonal.

Talvez não fosse bem isso. Segundo o livro de Léa Penteado, Borges era segurança pessoal de Simonal. Segundo a autora, Borges teria acusado o “patrão” de informante tentando se livrar e justificar o fato de trabalhar como segurança nas horas vagas – como talvez aconteça até hoje, entre poderosos à procura de proteção e policiais à procura de bicos complementadores de salário. Na sentença, parcialmente reproduzida n’O Globo, o juiz afirmava que o próprio Simonal se definira como informante do Dops, e usava o “fato confirmado” como ponto de apoio para condená-lo.

Ou seja, um juiz imerso nas entranhas da ditadura condenava o réu famoso, entre outros motivos, por ser informante da... ditadura. Mas fazia malabarismos para absolver Borges, presumido executor da infração, e engavetava o termo “tortura”. Compreende?

Quaisquer que fossem as relações reais de Simonal e Borges com a ditadura, aparentemente ele e seu “amigo” tentavam jogar a batata quente um na mão do outro. Ela terminou na mão de Simonal. E não era batata quente, e sim uma banana de dinamite, cuja explosão terminaria de soterrar o cantor então já repudiado nos círculos de músicos e jornalistas aos quais antes pertencera. A ditadura, que tanto gostara de se colar à imagem de Simonal, enfim abandonava o bode expiatório ao próprio azar. “Culpado”, ele pagaria pelos próprios erros e abusos, mas também pelos de uma legião de “inocentes”.

Condenado, Simonal entregou-se imediatamente. Viajou de São Paulo ao Rio e foi apanhado na pista do aeroporto, sem passar pelo saguão. A polícia, segundo a imprensa, queria evitar qualquer pronunciamento do cantor. Pergunta até hoje nunca respondida (ou formulada): por quê?

Sem acesso a Simonal, o jornalismo papagueou versões a granel, menos a do réu. No dia 13 de novembro, o cantor chegou para ouvir a sentença do juiz segurando um exemplar do livro Universo em Desencanto, que naquele momento fazia as cabeças de Tibério Gaspar e Tim Maia, ou melhor, Tim Maia Racional. Presentes, Flávio Cavalcanti, Erlon Chaves e Agnaldo Timóteo choraram abraçados ao condenado.

Cavalcanti Jr. narra os acontecimentos do dia seguinte: “Sei que era dia 14 porque haveria eleições no dia seguinte, 15 de novembro de 1974 (a data marcou o primeiro grande revés eleitoral da ditadura militar). Íamos subir para a casa de Petrópolis, e Erlon me disse que ia comprar uns discos para levar para Simonal na prisão. Teve um infarto e morreu na loja de discos”. Entre as módicas declarações de Simonal que surgiram nos jornais nos dias seguintes, estava esta: “Ele morreu por minha causa”.

Após 12 dias, o cantor-presidiário foi libertado por habeas corpus e, num segundo julgamento, teve a pena abrandada (pelo mesmo juiz Mena Barreto, segundo Léa Penteado) para seis meses de detenção, que cumpriu em liberdade. Morreria se queixando de que a imprensa nunca publicara uma linha sobre o depoimento de um tal inspetor Vasconcelos, chefe de Borges, que teria desmentido a condição de “informante” do cantor.

Seguiu feito morto-vivo, num calvário de discos e shows ignorados pela mídia, quando não reportados só como pretextos para que os jornalistas abordassem a pena perpétua informal – como foi o caso de minha entrevista em 1999. O Brasil se tornou sua prisão domiciliar a céu aberto, e nós, os “inocentes” (e/ou cegos, surdos e mudos), vestimos a carapuça de carcereiros vitalícios do “vilão” oficial da nação.

Mesmo que tenha sido colaborador ou informante da ditadura em alguma instância, Wilson Simonal de Castro morreu sem conseguir compreender por que jamais foi perdoado. Afinal, o perdão (se é que cabe esse termo) foi amplo, geral e irrestrito para a maioria dos colaboradores do regime, entre eles homens com sobrenomes como Marinho e Frias – ou seja, os proprietários dos meios de comunicação que veiculavam (e vez por outra ainda veiculam) julgamentos sumários contra o bode preto, ex-pobre, depois ex-rico. E Simonal devia saber que alguns de seus algozes colaboraram com a ditadura com empenho bem maior – o livro de Beatriz Kushnir documenta, por exemplo, o uso de peruas do Grupo Folha no transporte de “subversivos” às dependências policiais onde seriam torturados e eventualmente mortos.

A história continua inconclusa, com muitas peças ainda a serem encaixadas. A mim, particularmente, alinhar aqui tantas informações intrincadas parece importante de algum modo estranho, e me ajuda a compreender por que até hoje, dez anos mais tarde, ainda me perturba e incomoda e machuca tanto a lembrança daqueles minutos desencontrados passados ao lado de Simonal no saguão de entrada da Folha. Eu nem sequer imaginava na ocasião, mas meu papel ali era de carrasco.

segunda-feira, junho 22, 2009

Hoje cedo, na rua do Ouvidor

Outro dia fiz minha rápida incursão pela São Paulo Fashion Week, e foi o suficiente para que o monstro do incômodo me perseguisse e se transformasse, em poucos minutos, na tromba de elefante do mau humor.

Bem na entrada, estavam os caras do movimento negro (suponho) portando faixa contra a desfaçatez da discriminação de negros e negras nas passarelas do evento de moda mais multicolorido do Brasil.

Pessoalmente, adoro a reivindicação dos caras e o posicionamento que eles têm tomado nas cercanias do pavilhão da Bienal e nas periferias da Fashion Week. Juro, não entendo como alguém consegue entrar no pavilhão em festa se sentindo bem depois de passar por aquela faixa.

Na minha entrada, por ato reflexo, sorri para um dos caras que seguravam a faixa e falei algo como "é isso aí, muito legal!!!". ao que ele respondeu, sério, algo como "pois é, como é que podem se dizer contra a violência legitimando a violência?".

Não me serviu como paliativo tentar uma frasezinha de apoio ao levante contra o racismo das lulus e dos lulus. Eu me senti branco como cera falando para o cara que a atitude deles é o máximo, mas entrando com meu convitinho (branco como mármore) na mão na alcova dos leões.

Aí fui assistir a um desfile, confesso que menos curioso pelo desfile em si que pelo(a)s modelos negros que iam desfilar - uma amiga querida que estava trabalhando na engrenagem disse que o povo (não, este não é um bom termo aqui) da Fashion Week optou por colocar algo como "dois modelos negros" por desfile, para amainar os ânimos (suponho).

Entendi, essa deve ser a tal "cota de 1" de que falou com imensa propriedade o José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares. Em entrevista que está publicada aqui mesmo, mais ali abaixo, disse assim o Vicente:

"Nós estamos agora contestando a cota de 10% ou 20%. Criamos a cota de 1. Você vai ver que em alguns lugares os caras agora fazem questão de pôr um negro: 'Olha, tem um aqui, tem um no bolso pra você'. Ou quando você discute espaços de responsabilidade social: ''õe um negro aí na propaganda, pra que possamos nos apresentar politicamente corretos". Mas o 'politicamente correto' é um negro e 30 não-negros do lado".

É isso, e eu ali era um desses 30 (para não dizer 300), contra os três modelos negros que iam passar passarinhos pela passarela.

Foram três. Eles entraram, um moço negro, uma moça negra, outro moço negro. Lindos de morrer. E só. A não ser que eu tenha comido mosca (ops!), percebi que cada um fez apenas uma entrada, à parte as belezas estonteantes que carregavam em cima dos esqueletos. Resolve logo esse treco aí, e pano rápido!

Fiquei imaginando a fortaleza que fazer aquele trabalho exigiu de cada um dos três. Porque o tanto de vibração negativa que emanava da plateia para a passarela no passeio dos modelos negros, esse eu senti na minha pele branca, cada vez mais pálida e latejante no pouco tempo em que zanzei por ali.

A propósito, foi zanzando que detectei a farsa da hora. Madame não gosta de samba, madame acha que não deve ter cota nenhuma, que isso é "racismo às avessas" (bombas e esfaqueamentos na parada gay também devem ser resultado de heterofobia, ou de homofobia às avessas, né?). Mas madame está enganada(o), ou então mente descardamente: sim, existe cota para negros na Fashion Week, sim!!!

Existe, ah, se existe. Não sou bom em contas e estatísticas, mas, pelo que pude ver por ali, arrisco chutar que entre os muitos, muitos, muitos seguranças que se moviam na proteção da branquelice geral da nação fashion, no mínimo uns 95% eram - são - pretos. Faxineiras e varredoras poucas eu vi, mas brancas não eram.

E aí, pronto, nem há o que contestar ou discordar de dona Glória Coelho, a estilista que (se teve a fala corretamente transcrita pela "Folha") há meses já cantou a bola. Assim a "Folha" disse que disse a dona Coelho: "Na Fashion Week já tem muito negro costurando, fazendo modelagem, muitos com mãos de ouro, fazendo coisas lindas, tem negros assistentes, vendedoras, por que têm de estar na passarela?". Cruzes. Assim os caras vão ter que rasgar a faixa, não é possível.

O fato é que doeu fundo passar pelos (e até levar patada dos) seguranças negros da Fashion Week e ficar pensando na fortaleza que eles deviam - devem - ter de segurar dentro deles próprios para conseguir ficar impávidos, fazendo vista grossa ao discurso impresso naquela faixa lá fora nas mãos dos caras.

Na saída eu não falei mais nada para os caras da faixa, não consegui nem olhar nas caras dos caras. E saí me sentindo ainda mais nojentamente branco do que tinha me sentido na entrada. Com a tromba de elefante batendo no chão.


[P.S. para um tema que precisa voltar aqui o mais rápido possível (e que não deixa de ter a ver com as cotas para negros nas penitenciárias, quero dizer, nas passarelas brasileiras): todos os méritos ao Mário Magalhães, pelo gol de levantar o conteúdo dos trâmites do caso Wilson Simonal na Justiça Militar Brasileira dos anos 1970 (será que ele não poderia compartilhar, disponibilizar na íntegra aqueles autos?, não seriam caso de utilidade pública?).

Mas, dito isso, me impressiona cada vez mais a obsessão de certos setores por focalizar e sentenciar apenas e tão-somente o papel do Simonal-em-si na história e a dicotomia "era dedo-duro?"/ "não era dedo-duro?" na trama policial que o levou ao pântano definitivo. Me perdoem os caras que respeito e admiro nesses setores (inclusive o Mário), mas me lembram muito, muito, muito, as mariposas de Adoniran Barbosa, esvoaçando ao redor da lâmpada até a morte, enquanto o mundão escuro sem porteira fica dando sopa lá fora, intocado e incompreendido.

O que quero dizer, em outras palavras: quem não abre mão de ficar zumbizando ao redor da mesma lâmpada artificial de sempre pode não entender o que está fazendo, mas dá sua cota gostosa de colaboração para conservar as lógicas mais perversas do status quo (militar-jornalístico-ditatorial) que produziu aquela - esta - história pavorosa.]

sexta-feira, junho 19, 2009

26 anos de vida normal, 5 eu passei lendo jornal

Opa! O diploma de jornalista roubou os holofotes da Xuxu no tópico aí abaixo, então eu vou também.

Tenho dificuldade de falar no assunto, primeiro porque não tenho nenhuma opinião fechada, e segundo porque fico dividido entre as duas bandas que tendem a dividir esse debate.

De cara, não me sinto nem um pouco contra derrubarem a obrigatoriedade. Infelizmente, o nosso jornalismo está hoje construído como um amontoado de generalidades, a tal ponto que fica difícil defendê-lo como alguma ciência especializada como medicina ou sei lá o quê.

A propósito, uma das principais sensações que me deixou o curso de jornalismo na USP (e que, ao contrário, não tinha me deixado o curso de farmácia na UEM) é a de que passei quatro anos lá sem aprender nada de concreto. Mesmo assim foram alguns dos melhores, mais divertidos e mais felizes anos da minha vida - inclusive no sentido da aprendizagem, embora raramente conseguida em livros.

[Depois de formado na "progressista" USP, fui ser serviçal da tradicional sociedade direitista paulistana (e brasileira), mas isso é outra conversa, que a gente pode ter outra hora...]

Mas eu lamento que a derrubada da obrigatoriedade coincida com este momento de esculhambação e de desprestígio máximo da profissão do jornalismo. Quem fez essa mixórdia com o jornalismo fomos os jornalistas (quer dizer, também nossos patrões, mas...), e nesse caso não adianta reclamar que a sociedade está desvalorizando a nossa especificidade, o nosso patrimônio, o nosso know-how. Quem desvalorizou primeiro fomos nós.

Só que essa coincidência histórica leva a coisa pra uma outra banda de que eu não gosto nem um pouco, que é esse modismo de que diploma não serve pra nada, de que não é preciso estudar jornalismo, de que fazer jornalismo é igual a fritar ovo, de que o jornalismo já era. Aí acho que vão alhos e bugalhos (e não entendo, Dafne, como seja possível a gente se "decepcionar" com o Leandro Fortes porque ele é pró-diploma, ou só por causa de uma diferença de opinião). O raciocínio pró-esculhambação só pode levar a mais esculhambação ainda, não?

Como eu poderia resumir o que estou tentando dizer? Talvez afirmando que, sei lá, acho magnífico um cara poder exercitar jornalismo sem diploma - seja ele o José Sarney, a Marina Silva, o Gerald Thomas, o FHC, o Luiz Inácio ou você que está lendo isto agora. Mas que, outra vez, isto não é caso de "ou", mas sim de "e". Diploma pode não ser obrigatório, mas continua a ser algo ótimo, maravilhoso, que ajuda a formar alguns dos melhores profissionais do pedaço (alguns, não todos, longe disso).

Cruzes, isto aqui ficou com cara de editorial... Isso porque afirmei que eu não tinha (e não tenho) opinião formada...

Mas que a celeuma dá margem pra umas situações engraçadas, dá. Do tipo Gilmar Mendes retribuindo o amor que os jornalistas lhe devotam chamando-(n)os de cozinheiros... Ou do tipo Otavio Frias Filho, que tanto se escandalizava com o fato de Lula não ter diploma, defendendo que não precisa ter diploma pra trabalhar no jornal dele, ou que não precisa ter diploma de jornalista pra ser jornalista "dele"...

terça-feira, junho 16, 2009

Sobrevivendo no inferno

Roubado d'O Blog do Guaciara, vai aí o formidável clipe "Pantera Cor-de-Rosa", da rapper Xuxu, de Juiz de Fora (MG).



O que pensaria sobre ela o ministro da Cultura? Que é uma artista "malsucedida"?

sábado, junho 13, 2009

pombo-correio, voa depressa

duas coisas, ambas de certa forma incitadas pelo já célebre caso petrobras.

a primeira: algo me diz que chegou a hora de Este Blog começar a usar Letras Maiúsculas. Foi boa enquanto durou a brincadeira de só falar em "caixa baixa" (para usar um jargão jornalístico), mas, como diria não lembro quem, O Tempo Ruge.

A segunda: na caixa de comentários de um dos tópicos abaixo (aquele que falava do caso Petrobras), recebemos uma reflexão do Beni Borja, ex-integrante do Kid Abelha e dono da gravadora independente Psicotrônica (por favor, me corrija, Beni, se eu tiver dito algo errado).

Pelo que entendi, foi um texto que ele escreveu em uma troca de e-mails com o Pedro Doria, mas o próprio Beni quis tornar público e copiou na janela vermelha ali abaixo. E eu fiquei achando mais que pertinente trazer a discussão cá para o blog-em-si.

Segue o texto dele, daqui para baixo, até o final do tópico.

@

Por BENI BORJA

"Faz uns vinte anos que eu escrevo os press-release dos discos que eu produzo.

Comecei por acaso, porque não gostei do release que o departamento de imprensa da gravadora fez para o primeiro disco que produzi.

Como sou relativamente alfabetizado e detinha a informação , já que havia acompanhado todo o processo de fazer o disco, achei que eu podia escrever algo como subsídio para o departamento de imprensa. Quando eles receberam meu texto, me disseram que estava ótimo e mandaram para a imprensa.

De lá prá cá, escrevo quase sempre o release dos discos que faço e outros tantos para diversas comunicações à imprensa dos artistas que represento.

Por conta disso ,adquiri uma certa experiência nesse lado do balcão , o da assessoria de imprensa , no meu mundinho da música e do entretenimento.

Nesse tempo ,vi um progressivo afastamento entre os jornalistas e a fonte da informação. Antes, o release era só um elemento para pautar a conversa entre o jornalista e o artista. Hoje com os jornalistas trancados nas suas redações , ele é frequentemente a única fonte de informação.

Cada vez mais vi os meus releases serem copiados , muitas vezes palavra por palavra, na imprensa. Hoje arrancar um jornalista da redação para entrevistar um artista , ou mesmo para ir assistir um show ,é um feito notável da assessoria de imprensa.

O negócio da imprensa cada dia menos era o de apurar as informações "in loco" , e mais o de mediar as relações entre os provedores de informação - os escritores de release - e o público em geral. Com a possibilidade de desentermediação que a internet oferece , esse trabalho perdeu simplesmente o sentido.

Acho que essa é a questão essencial da querela do blog da Petrobrás. Se as únicas informações que o jornalista dispõe são as que empresa fornece , ele será um intermediário cada dia mais inútil.

A reportagem é a essência do trabalho jornalístico, mas ela é cara e de resultados incertos. Os "gestores" de empresas de mídia , resolveram naturalmente que esse é um custo a ser eliminado.

Não é muito diferente do que aconteceu com a música , onde os gênios da gestão resolveram que o trabalho de busca e desenvolvimento de talentos , de resultados igualmente incertos , devia ser cortado dos seus orçamentos".

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quinta-feira, junho 11, 2009

dedé mamata

então a comissão nacional de incentivo à cultura (cnic) acha que caetano veloso não precisa de 2 milhões de reais de "incentivo" fiscal para bancar seu novo show, mas jo ministro da cultura juca ferreira (além da paula lavigne, é óbvio) acha que ele precisa? ou melhor, se bem entendi, acha que ele não precisa, mas prefere "incentivar" mesmo assim?

sei, sei, sei.

quarta-feira, junho 10, 2009

um jornal é tanta gente (*)

e, surpresa!!!!!!!, os jornais podem ser contra, mas a imprensa também está do lado do blog da petrobras (e é deste lado que eu me coloco, irrestritamente)! recolho do blog "fatos e dados" as seguintes informações (com grifos e itálicos de minha autoria):

A ABI e o blog da Petrobras
Junho 10, 2009 by Blog Fatos e Dados Petrobras

"Veja abaixo a carta enviada pelo presidente da Associação Brasileira de Imprensa:

'A ABI considera legítima a decisão da Petrobras de criar um blog para divulgação das informações que presta à imprensa e especialmente aos veículos impressos, uma vez que as questões relativas ao seu funcionamento e aos seus atos de gestão interessam ao conjunto da sociedade, que não pode ficar exposta ao risco de filtragem das informações típica e inseparável do processo de edição jornalística. A empresa tem o direito de se acautelar, através das informações que difunde no blog, contra as distorções em que os meios de comunicação têm incorrido, como a própria ABI registrou em matéria publicada da edição de 31 de maio de um dos jornais que agora se insurgem contra o blog da empresa.

A criação do blog constituiu-se em instrumento de autodefesa da empresa, que se encontra sob uma barragem de fogo crítico disparado por vários veículos impressos. Não se poderá alegar que é assegurado à empresa o direito de resposta, uma vez que quando este for exercido a informação nociva já terá produzido afeitos adversos. Ademais, é conhecido principalmente dos jornalistas o tratamento que a imprensa concede tradicionalmente ao direito de resposta, se e quando o reconhece e o acata: a informação imprecisa ou inidônea é divulgada com um destaque e uma dimensão que não se confere à resposta postulada e concedida.

O presente confronto entre a empresa e alguns veículos de comunicação tem inegável cunho político, com favorecimento de segmentos partidários que se opõem ao Governo Lula. A Petrobras encontra-se, infelizmente, na linha de tiro do canhoneio contra ela assestado. Atacá-la com a virulência que se anota agora não faz bem ao País.

Rio de Janeiro, 9 de junho de 2009
Maurício Azêdo, Presidente'"

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tudo em negrito (meu negrito), daqui adiante:

percebe a sutileza? a anj - a associação "nacional" dos jornais - afirma que o blog da petrobras é autoritário, mas a abi - associação "brasileira" de IMPRENSA - afirma que o blog da petrobras é libertário?

a gente já não ouviu essa melodia antes, quando "gravadora" montava discurso em nome da "música"? a gente lembra no que é que deu?

viva a IMPRENSA livre! e viva os jornais, redes de tv, rádios, blogs e twitters que honrem e enobreçam a IMPRENSA livre!



(*) verso de "o jornal", canção de gilberto gil interpretada por erasmo carlos em "a banda dos contentes" (1976). a propósito, diz assim a letra da canção-título desse mesmo disco, por erasmo e roberto carlos: "roer as vinte unhas não adianta nada/ correr pra velha não é solução/ todos dançam tristes na banda dos contentes/ ritmos todos bem diferentes". dá-lhe, erasmão!

segunda-feira, junho 08, 2009

separados no berço




apesar, contudo, todavia, mas, porém... cá estes os titãs de que eu sempre gostei:

"acima dos homens, a lei
e acima da lei dos homens
a lei de deus

acima dos homens, o céu
e acima do céu dos homens
o nome de deus

e acima da lei de deus
o dinheiro"

é a melô da crise global?... perestroika já!

sexta-feira, junho 05, 2009

só uma terceira força pode acabar com isso

fiquei caladinho até o último momento, porque eu mesmo estava custando a acreditar, só acreditava vendo. mas chegou esta semana às bancas "rc - emoções", uma espécie de revista oficial dos 50 anos de carreira de roberto carlos, editada pela joyce pascowitch. lá dentro está, logo no começo, um texto da minha autoria, um super-hiper-mega-condensado sobre o que veio acontecendo na música brasileira em todos esses anos de existência de roberto carlos.

minha surpresa se deve ao fato de eu ser autor de "como dois e dois são cinco - roberto carlos (& erasmo & wanderléa)" (boitempo, 2004), um livro que até aqui tem sido largamente ignorado pela, er, "cultura oficial" brasileira. se tem sido assim, imagina só eu ter esperança de ter algum tipo de aval (e nenhum tipo de censura) do personagem principal - sonho meu, sonho meu, vai buscar quem mora longe...

mas não é que, oficialismos à parte, aconteceu algo interessante com esse meu amado "como dois e dois são cinco"?

já no dia de seu "nascimento", o rebento recebeu o aval de wanderléa, que compareceu ao lançamento e ficou lá o tempo todo, maravilhosa, e depois esticou até à festinha chuvosa no fofo puteiro executivo's, no centrão. o meu exemplar pessoal, o que guardo aqui em casa, tem dedicatória escrita e assinada por wanderléa, como se ela fosse (e é) a co-autora indireta do meu livro.

erasmo carlos também chegou a emitir alguns sinais bem indiretos, mas foi só quase dois anos e meio mais tarde que recebi dele um aval também indireto, mas formidável.

e agora isto. por um chamado da joyce acabei escrevendo na revista oficial do pai da matéria (pelo que ouvi e entendi, ele liberaria pessoalmente o conteúdo da revista, texto por texto, tintim por tintim)! bem, esse pode ser o indireto do indireto do indireto, mas acho que posso considerar como um tipo de aval, não posso? posso!