sexta-feira, junho 25, 2010

rockin' robin

De modo geral, acho tristonha essa avalanche de textos e reportagens sobre Michael Jackson a propósito do primeiro aniversário da morte dele. Parece quase tão onipresente quanto a Copa (e sempre que vejo me pergunto: quem quer saber de MJ a esta altura dos acontecimentos?).

Mas, por contraste e contradição, graças à boda de um ano de morte dele o iG (16 de junho de 2010) me proporcionou fazer um texto que estava preso aqui na garganta há cerca de 365 dias, ou mais. E eu me contradigo e republico e faço aqui a mesma coisa que insinuei me causar tédio e aversão no início deste tópico. Saudades de você, Michael Jackson.


O homem no espelho e nós

Já faz um ano. O mundo ficou em estado de choque quando soube da morte de um dos heróis pop que mais lhe ofereceram alegria, diversão e prazer nas três últimas décadas do século passado. Mas sejamos francos: fazia anos que a humanidade esperava que, qualquer hora dessas, acontecesse alguma tragédia com Michael Jackson. Sejamos ainda mais transparentes: fomos cúmplices impassíveis, quando não exultantes, de uma das mais prolongadas histórias de agonia pública de que se tem notícia. As transformações, deformações e mutilações físicas eram apenas a face mais visível do processo.

Michael era um gênio musical, muitos correram a reconhecer a obviedade quando ele morreu. Mais embaraçoso foi, é e será reconhecer que grande parte da genialidade brotava justamente do sofrimento brutal que ele vivenciou (quase) publicamente desde que era o garotinho-prodígio do grupo Jackson 5, dirigido e tiranizado por um pai violento e abusivo (e pela indústria musical que sustentava o “fenômeno”). Entre as ofensas praticadas rotineiramente por Joe Jackson, sobressaíam aquelas relacionadas à cor da pele e à aparência física do filho, como Michael relatou pela primeira vez em 1993, no programa de Oprah Winfrey. Pode ser um exercício elucidativo rever suas músicas e letras após um ano, à luz não da festa e da farra, mas de tudo que o menino que nunca cresceu vivia enquanto cantava.

Aos 8 anos ele começou a se tornar a atração principal entre os Jackson 5, e aos 13 iniciou uma carreira solo paralela à trajetória de sucesso do grupo. No primeiro disco individual, Got to Be There (1972), havia uma canção infantil chamada "Rockin’ Robin", cujo protagonista era um melro roqueiro às voltas com outros pássaros, entre eles um “grande corvo preto”. O melro tomava aulas de “hop” e “bop” de um “corvo pequenino”, enquanto Michael disparava a trinar, “tweet, tweet, tweet”.

O personagem-título do segundo LP, Ben (1972), era um ratinho abandonado (e negro, também, como exibia a capa deletada em reedições posteriores), cujo único amigo era o intérprete-narrador. “Você sente que não é bem-vindo em lugar nenhum”, lamentava o pré-adolescente de cabelo black power que apenas iniciava a escalada épica para ser adorado, desejado e idolatrado pelas multidões.

Em 1973, lançou Music & Me, entre funks chamados "Johnny Raven" (“eu sou Joãozinho Corvo”) e "Euphoria". O narrador dessa última é um garoto que “vê o arco-íris brilhar” e “repousa numa cama de flores”, “sem conhecer doenças” e “sem tomar pílulas”. Podia parecer euforia (era?), e Michael não escrevia suas próprias canções naquela época, mas o recado era pesado para um garoto de 14 anos que mais tarde faria pós-graduação em “pílulas” e “doenças”.

Michael estava a duas semanas de completar 21 anos em agosto de 1979, quando lançou o esboço emancipatório Off the Wall, recheado de proposições eufóricas como “não pare até conseguir o suficiente”, em "Don’t Stop ‘Til You Get Enough", o primeiro cartão de visita para que o “corvinho” se convertesse em um dos donos do mundo. Algumas letras do disco pareciam falar mais de um operário na meia idade que de um vigoroso pós-adolescente. Em "Workin’ Day and Night", escrita por Michael em pessoa, o narrador trabalhava “do nascer do sol à meia-noite”, sentia dor nas costas e ao final exclamava, como quem não quer nada: “Estou tão cansado”.

Em "Off the Wall" (composta por Rod Temperton), gritos fantasmagóricos anunciavam a chegada do monstro pop que carregava “o mundo nas costas”, mas preconizava uma vida devotada à música e à diversão: “Somos os ‘party people’ noite e dia/ o único jeito é viver malucos”. Uma frase solta era ouro para bons entendedores: “A vida não é tão ruim assim”.

A emancipação de fato (ou a escravidão definitiva?) viria três anos depois, com Thriller (1982), que viraria de ponta-cabeça não só a vida do artista, mas toda a história do pop e da indústria musical. A importância crucial do disco reside no fato de Michael ter encontrado ali a pedra filosofal da fusão entre o funk-soul negro e o rock’n’roll branco – o “black and white”, a mestiçagem, o acasalamento que o mundo aclamaria de pronto, mas não perdoaria jamais a partir do momento em que percebesse que o menino negro supostamente desejava se metamorfosear em homem (ou mulher?) branco(a). Não desejava – só queria deixar de ser ele mesmo, mas isso a massa não quis ou não soube perceber.

Thriller condecorou a humanidade por sua própria “viralatice”, mas para Michael era a materialização dos pesadelos mais íntimos. O desabafo, esse sim emancipador, permeia cada linha da faixa-título, obra-prima máxima do funk de terror, do rock de arrepio, do pop de lobisomem: “você está paralisado”, “há demônios por todo lado”, “ninguém vai salvá-lo da besta à espreita”, “este é o final da sua vida”. Seria Joe Jackson um dos nomes da besta? “Se você não pode alimentar um bebê, não tenha um bebê”, diz um verso de "Wanna Be Startin’ Somethin’", parente próximo do drama de (não-)paternidade de "Billy Jean" (“o garoto não é meu filho”).

Se em Thriller Michael queria estar começando alguma coisa (o começo era o fim?), o resto de sua vida seria gasto na busca obsessiva (nunca alcançada) da autossuperação. Se em 1979 a vida era ruim, em 1987 ele tomaria para si o rótulo de Bad. “Sua fala é ordinária/ você não é um homem/ você atira pedras para esconder suas mãos”, dizia o autor-narrador da faixa-título, como de hábito usando “você” em vez de “eu”. "Man in the Mirror" (composta não por ele, mas por Glen Ballard e Siedah Garrett) continha o maior conselho que nosso Peter Pan deu a si mesmo, mas não quis ouvir (ou ouviu de modo plástico, deturpado): “Se você quer fazer do mundo um lugar melhor/ dê uma olhada em si mesmo e comece aí a mudança”.

Michael não conseguiu superar Thriller ou a si próprio nos discos da década de 90, mas eles guardam vários dos mais belos, pungentes e dramáticos depoimentos de dor e desespero da história da música, sempre recebidos por nós com ouvidos moucos. Primeiro, veio Dangerous (1991), quando o autor já se sentia “perigoso”. “Confusões contradizem a identidade/ sabemos distinguir o certo do errado?”, pergunta "Jam". “Eu sou o amaldiçoado/ eu sou o morto/ eu sou a agonia dentro da cabeça moribunda”, declara "Who Is It", mais transparente que H2O. “Todo mundo me controla/ (...) estou tão confuso”, diz "Will You Be There". “Agora faremos um juramento, vamos manter tudo dentro do armário”, deseja "In the Closet", em dueto com a princesinha branca Stéphanie de Mônaco.

Lançada dois anos após as primeiras acusações de que o ex-abusado tivesse virado ele próprio um abusador de crianças, a coletânea HIStory (1995) foi compreendida como um esforço de automitificação, o que abafou o fato prosaico de que ela continha um disco inteiro inédito, e profundamente revelador. “Parem de me pressionar”, “parem de me foder”, “estou cansado de golpes e tramoias”, começava "Scream", em duo com a irmã Janet Jackson. “Aqui abandonado em minha fama/ armageddon da mente”, declarava-se em "Stranger in Moscow". “Você viu minha infância?/ estou procurando pelo mundo do qual eu vim”, “é minha sina compensar a infância que nunca tive”, confessava em "Childhood", já num pique de autovitimização. “Mike é mau, eu sou mau, quem é você?”, provocava o jogador de basquete Shaquille O’Neal em "2 Bad".

Dois momentos eram especialmente eloquentes em HIStory. Um era "Tabloid Junkie", em que Michael direcionava sua ira e revolta contra a mídia sensacionalista refestelada em popularidade e dinheiro à custa de seus apuros. “Especulem para ferir quem vocês odeiam/ circulem a mentira que confiscam/ assassinem e mutilem”, cuspia na cara da “mídia canina histérica”. “Só porque você lê numa revista ou vê numa tela de TV não significa que seja real, factual”, tentava ensinar, anotando que “comprar é alimentar”, mas esquecendo-se de que ele próprio era uma das muitas faces do dragão chamado “mídia”. “Mas todo mundo quer acreditar em tudo”, acabava por desabafar, espalhando o próprio desabafo para os fãs que, afinal, também são abusadores em potencial.

O outro instante em que o “rei do pop” estava nu em HIStory era a valsa "Little Susie", sobre uma garotinha abusada, espancada e assassinada por um monstro não nomeado (poderia ser Joe Jackson?). “Todo mundo veio ver a menina que agora está morta”, “ela sabia que ninguém se importava”, “abandono pode matar como uma faca”, gemiam versos que pareciam a consumação dos pesadelos inconsequentes de Thriller.

Em 1997, o álbum de remixes Blood on the Dance Floor trazia algumas poucas faixas inéditas, quase todas referentes a fantasmas, gente assustada, sangue na pista de dança. Musicalmente pálido, dizia tudo sobre o estado de espírito do (ex-)herói, se quiséssemos ouvir. "Morphine", por exemplo, era um drama funkeado de dor e anestesia: “um ataque cardíaco, baby/ preciso do seu corpo”, “outra droga, baby/ você deseja tanto”, “confie em mim/ você está tomando morfina”, “você odeia sua raça, baby/ você é só um mentiroso”. “Demerol/ Demerol/ oh, Deus, ele está tomando Demerol”, cantava o funk hospitalar, em referência ao medicamento analgésico e sedativo que em 2009 seria apontado como o causador de sua morte.

"Ghosts" falava sobre “um demônio embaixo da cama” e confrontava mais um sujeito oculto (ou a vários): “Quem lhe deu o direito de mexer com minha família/ de assustar minha família/ de machucar minha família?”.

"It’s Scary" abria o jogo mais do que nunca. “Estou divertindo ou apenas confundindo você?/ sou a besta que você vê e quer ver?/ excentricidades/ serei grotesco para seus olhos”, começava. “Você veio a mim para ver suas fantasias encenadas diante de seus olhos?/ se veio para ver a verdade e a pureza/ aqui está um coração solitário/ deixe a performance começar”, anunciava a tormenta. “Fico assustado no seu lugar?/ estou cansado de ser abusado/ você sabe que me assusta também/ vejo que o demônio é você/ é assustador para você, baby?”, vomitava, desta vez falando a um “você” que poderia ser ele mesmo, o pai, eu ou você. No derradeiro Invincible (2001), “invencível”, o mesmo tema seria reelaborado na ressentida faixa-testamento "Threatened", “ameaçado”: “Eu sou o seu pior pesadelo”, “vou desaparecer, e então voltarei para assombrar você”.

Essa era a voz que poucos de nós ainda queríamos ouvir. O pacto ilusionista estava se quebrando, Michael estava indo além dos limites tradicionalmente permitidos. A pergunta deixada no ar, desde muito antes de sua morte, era se tínhamos gostado tanto dele só porque era um gênio, ou também porque nos confortava secretamente vê-lo se destroçando diante de nossos olhos e ouvidos e fígados. Ora, se o cara mais famoso do planeta era mais desgraçado do que nós...