quinta-feira, junho 30, 2005

o homem-escada

em 8 de junho de 2005, a carta capital (alô, anonymous!) 345 destacou o belo hermínio bello de carvalho - segundo um leitor da revista, o anti-eliana tranchesi (a dona da daslu). e o anti-roberto jefferson, acrescentaria eu? (aliás, quem derrubou bob jeff do armário? quem estava em cima do armário, quem estava dentro? quem fez aquele rombo na testa de bob jeff???)

ih, agora vou viajar pra brasília... até a volta!

O HOMEM-ESCADA

Hermínio Bello de Carvalho completa 70 anos de participação semi-anônima na história da música brasileira

Por Pedro Alexandre Sanches

É possível que você veja na prateleira a luxuosa caixa de CDs Timoneiro (R$ 95), imaginada pela gravadora independente Biscoito Fino para celebrar os 70 anos de Hermínio Bello de Carvalho, e se flagre perguntando internamente: "Mas quem é esse tal Hermínio Bello de Carvalho?" O poeta, compositor, produtor musical, pesquisador, jornalista, fã de música, músicos e intérpretes e descobridor de talentos há de ser, em pessoa, solidário com essa pergunta.

Pois partem do próprio artista dúvidas semelhantes: "Como me traz alegria, essa caixa também me traz a certeza de que sou uma imagem muito difusa diante do público. Quem é esse cara? Ele também é letrista, poeta? É o cara que há 30 anos fazia o Projeto Pixinguinha, numa outra hora está celebrando a ausência de Pixinguinha e Jacob do Bandolim, depois produzindo Elizeth Cardoso, idealizando a Escola Portátil de Música?... Isso tudo me faz de certa forma perder uma identidade pública, não ter uma imagem definida".

Esboços de respostas já se encontram dentro da própria dúvida, e esse é o novelo que ele vai aos poucos desfiando ao ser desafiado com a pergunta sobre quais teriam sido, ao longo de quase cinco décadas de atuação, seus momentos mais gloriosos.

"São muitos, muitos momentos. Posso mencionar a hora em que concorri como parceiro de Pixinguinha no Festival Internacional da Canção (de 1967), com Fala Baixinho. Em vez de descer de braço dado com ele a rampa do Maracanã, parecia que eu estava subindo ao céu, ao lado de um deus. Aí eu tive a noção exata de quanto eu era pequenininho perto daquele homem, e tenho essa impressão cada vez mais funda. Tenho os pés permanentemente no chão", derruba a primeira peça do dominó.

"Eu ter conhecido Cartola e entrar de braço dado com dona Zica na igreja, sendo padrinho, foi um momento único na minha vida", continua, desencadeando numa cena de bastidor uma seqüência de peças que toca a história de artistas que ajudou a descobrir e/ou redescobrir, como Aracy de Almeida, Pixinguinha, Araci Cortes, Elizeth, Elton Medeiros, Marlene, Nelson Sargento, Simone e dezenas e dezenas de outros.

Com Carlos Cachaça, mestre Cartola seria, por sinal, seu parceiro na hoje clássica Alvorada (celebrizada por Clara Nunes em 1972), dos versos "Alvorada lá no morro, que beleza/ Ninguém chora, não há tristeza/ Não existe dissabor", reutilizados em alto-contraste numa das cenas mais violentas do filme Cidade de Deus (2002). "A miséria não é bonita, é deplorável, mas há esses momentos em que aquela beleza estranha predomina no coração do poeta. Naquele tempo, vista lá de cima, do cume, a Mangueira parecia mesmo um céu no chão", reavalia, evocando também os versos de Sei Lá, Mangueira (1968), dele com Paulinho da Viola.

Paulinho é outro que surgiu primeiro num projeto seu, o histórico Rosa de Ouro (1965). Não bastasse isso, o espetáculo coletivo trazia para primeiro plano um mito máximo na história de Hermínio: Clementina de Jesus. Descoberta por ele já sexagenária e plenamente anônima, a empregada doméstica e matriarca negra viraria, após sua intervenção como incentivador e produtor, uma das mais altas expressões de canto feminino popular brasileiro.

Pois veja só como ele se refere àquela conjunção ímpar: "Detesto ser visto como descobridor de Clementina. Não. Lancei um olhar mais atento para ela, lamentando que ela só fosse revelada aos 62 anos. E as pessoas que a ouviram antes, o que fizeram com aquele material maravilhoso? Eu me considero uma escada. Apenas coloquei uns degraus para ela subir. Esse é o meu papel".

Cabe aqui outra dúvida possível: por trás de tamanha rigidez de auto-avaliação não haveria um componente de falsa modéstia? Pois seu nome é, sim, uma marca particular, impressa sobretudo em espetáculos e discos idealizados nos anos 60 e 70, que vinham com a assinatura "um show de Hermínio Bello de Carvalho".

"Meu nome passou a ser uma grife, porque passei a produzir discos de Elizeth, a fazer coisas que ninguém estava fazendo. Reunir Pixinguinha, Clementina e João da Baiana no disco Gente da Antiga (1970) era uma coisa inusitada. Revelar uma mulher chamada Clementina de Jesus e aquilo não ser uma enganação evidentemente fazia meu nome passar a ser uma grife, sim, para determinadas coisas. Tenho muito orgulho disso até hoje", afirma, despindo por instantes a capa protetora da modéstia.

A imodéstia e o sentimento de ter uma presença "difusa" na cultura nacional reencontram-se nessa próxima pedra do dominó: "As pessoas não sabem nem que tenho 14 ou 15 livros publicados, porque não faço parte dessa multidão que corre atrás da mídia. Não faz meu estilo. Só vou à mídia para brigar. Agora estou brigando com a TVE, por meu acervo que está lá e não pertence a eles, mas à cultura brasileira. Não me interessa se sou eu que estou ali entrevistando Aracy, Elizeth, João Bosco e Raphael Rabello. Tirem minha figura, mas preservem o trabalho que fiz. Nessa hora de brigar, vou à internet, escrevo cartas desaforadas, é meu lado explosivo que eclode e não consigo conter. Tenho um diabo dentro de mim, e ele salta de vez em quando".

Mas, por trás das túnicas de humildade, haveria um homem que cultua seus próprios feitos e os acalenta intimamente? "Quando vou caminhar, na trilha que ladeia a encosta do Morro da Urca, há um lugarzinho lá no fundo, quando chego ao final, em que converso com meus deuses e agradeço. É nesses momentos que essas lembranças afloram. O que tenho a fazer agora é olhar o que eles me deram e tentar repassar para a garotada. Fui bafejado por essa corrente de generosidade que não posso deixar que se interrompa, mesmo sabendo que sou um elo muito pequeno. Não admito que a honestidade e a integridade deles sejam pisoteadas por ninguém, os grandes poderes que se danem."

Entre os mais jovens que hoje acolhem quem no passado resgatou do esquecimento pixinguinhas, clementinas e cartolas está Zélia Duncan, produtora de um disco inédito incluído na caixa Timoneiro, com quatro reedições dos anos 70, 80 e 90 – dois tributos coletivos, um trabalho em parceria com o cantor paraense Vital Lima e um disco em que Alaíde Costa interpreta suas canções. Sob a batuta de Zélia ("tomara que ela nunca me deixe, nunca me abandone"), o novo tributo reúne uma turma heterogênea que vai de Chico Buarque e Zeca Pagodinho (em dueto) a Mart'nália e Lenine, de Paulinho da Viola e Dona Ivone Lara aos meninos dos grupos Afro Samba e Siri na Lata.

Hermínio une essas duas pontas da curva do tempo ao comentar sua personalidade, que admite ser mais memorialista que novidadeira: "Sei que o tempo dos jovens não é igual ao meu. Tive um infarto há três anos, podia ter morrido, quanta coisa teria deixado de fazer? O tempo que tenho pela frente é menor, então racionalizo cada segundo do meu tempo, sem nenhuma morbidez. Me proíbo olhar a morte com morbidez. Tenho que olhar as pessoas maravilhosas que tenho ao meu lado, trabalhar com os tempos que nos são servidos. É como se entrássemos no empório do tempo, 'sirva-se'".

Olhos postos permanentemente no futuro, ele conta que freqüenta psicanálise há dez anos, desde que completou 60: "Olhei para dentro de mim e não gostei do que estava vendo. Pensei que estava na hora de me harmonizar melhor com o mundo. Não quero deixar de brigar, mas quero brigar com mais racionalidade e objetividade, até porque não tenho muito mais tempo pela frente para brigar".

Convocado a mencionar pontos de baixa em sua história, ele o faz, mas contagiando-os com outras qualidades: "Não pavimentei minha vida para aos 70 anos ser um homem próspero. Mas fico muito orgulhoso de pertencer a uma casta de pessoas que não enriqueceram ilicitamente. Me orgulho de ter seguido o percurso de meu pai, que era calista, de uma família muito humilde, um cara que sempre trabalhou". Pronto, você agora sabe um pouco mais sobre Hermínio Bello de Carvalho.

terça-feira, junho 28, 2005

"pobre coitado é o cacete"

então... mesmo sem querer, a cabeça da gente está ultimamente toda povoada de poroca, maroca e indaiá - são as três cantadeiras paraibanas cegas que deram um golpe de estado no documentário "a pessoa é para o que nasce" e construíram, junto com o cineasta golpeado roberto berliner, uma das coisas mais lindas destes anos lula nas telas brasileirinhas de cinema. a reportagem correspondente ficou bem bonita (modéstias à parte) e está na "carta capital" que está nas bancas (a nº 348). para fazer um complemento/contraponto, eis aqui um comentário crítico faixa a faixa sobre o cd com a trilha sonora - ou melhor, sobre metade dele, o volume 2, no qual vários nomes da música contemporânea brasileira reinterpretam a sabedoria musical das "ceguinhas de campina grande" (assim elas são tratadas na capa do primeiro cd que puderam gravar em vida severina), sob produção fina, precisa e moderna de lula queiroga, poeta pop pós-moderno made in pernambuco.

"atirei no mar", com os paralamas do sucesso e bnegão. no filme, "atirei no mar" é o fio condutor musical das aventuras & desventuras de poroca, maroca e indaiá. a letra, na versão delas, é uma dura cacetada na ingênua impressão que se pode ter a priori, de que falta substância ao imaginário popular/tradicional/folclórico/atávico dos cocos a três da poroca, da maroca, da indaiá. "atirei no mar, o mar vazou/ atirei na moreninha, baleei o meu amor", lamuria o refrão, fazendo o contato das cegas atávicas com o mito da visão (ou de sua ausência): o que vaza ali é o mar, não é o olhar cego de cada uma delas; na doce mitologia das três paraibanas, o olho vazado tem as dimensões gigantescas do mar. o rap-pop-rock-mangue-bit-carioca da versão toca o dedo na ferida, logo de cara, com as rimas cruas inventadas pelo ex-planet hemp bnegão: "a narrativa é punk e o calor é de sertão, irmão/ isso é panela de pressão pura". isso é panela de pressão pura, cê tá escutando?

"abre a janela", com mombojó. "acorda, formosa morena, vem ver como é linda a canção deste amor", soluçam as três mulheres que não podem ver e chamam a morena da janela a vir ver por elas. "enquanto ela dormia em seu bangalô de flor", os garotos pernambucanos do mombojó também fazem o mesmo, impregnando a musicalidade nordestina crua da canção de mimosos elementos de rock, de iê-iê-iê e, principalmente, da consistência de caldo de cana da cafonice popular brasileira - "abre a janela" vira um tema tortuoso de bordel, e a gente fica mais feliz assim.

"como é bom a gente amar", com lenine. bem pernambucano, bem pré-pós-mangue bit, lenine cerze samples da voz firme de maroca, por entre as fibras tênues de uma simples e delicada canção de amor de "face mimosa", "lábios cor de rosa". maroca baila ao fundo, linda e fantasmagórica, sobre os risos soltos de poroca e indaiá (e também dela mesma): "primeiro marido, eu passei onze anos com ele... onze anos casada com ele... morreu. a minha filha ficou com cinco anos de idade. aí, agora, esse outro, eu passei só dois anos... aí se eu arrumar outro de novo, vai passar só um mês... ave maria, deus me livre". e as três: "êêêita", antes que volte lenine, um cavaquinho carioca em punho e a capa pernambucana patriarcal de um alceu valença ou de um luiz gonzaga sobre os ombros. "como é bom a gente amar", conclui maroca, onipotente.

"segredinho", com junio barreto. autor (re)descoberto no seio do mangue bit noventista, junio barreto transforma uma das mais belas melodias do trio em seca nordestina, em climão, em aridez sofrida & sofredora. do refrão vibrante fica só o esqueleto, "vou lhe contar-lhe um segredinho/ à tardezinha quando eu for embora", por cuja inconclusão passeiam as carcaças de toda uma população, de toda uma multidão, de todo um admirável gado novo.

"siga e venha, siga e vá", com bnegão. bnegão já avisara em "atirei no mar" que se está aqui tratando de coisa de "rapper, repentista, partideiro, cantador". a misturança sacode a maravilhosa "siga e venha, siga e vá", que segundo a filosofia secular de maroca é um coco alagoano, "quebrado", "a minha fala", "é alagoano". o discurso de maroca, recortado pelas vozes segundas e terceiras das irmãs mais medrosas, está sampleado no estrondo de rap-repente modulado por bnegão, que pelas benesses da tecnologia inventa um rap em coro - em que as coristas, luxuosíssimas, são indaiá, maroca e poroca em pessoa (afinal, elas são para o que nasceram). os versos, proferidos pelas mulheres em sílabas realmente quebradas, são de vergar o torso, de tanta sabedoria-tristeza-melancolia-beleza: "há quatro coisas no mundo que eu não ensino a ninguém/ é passar no rio cheio, passar na frente do trem/ é amar quem não lhe ama e esperar por quem não vem". quem viu o filme saberá: cientes de que melancolia é a felicidade de se sentirem tristes, as irmãs barbosa pouco se dão a seguir os conselhos que advogam - todas as três sabem bem do gozo de arriscar amar quem não lhes ama, esperar por quem não vem.

"laurinda", com eddie. na levada miscigenada, a banda de mangue bit namora a bahia de lambadas, sambas-reggae e afrocubanismos - o arrepio das ancestralidades leva as cantadeiras à áfrica, ou traz a áfrica até ali ao lado, no sertão das paraíbas. "no dia que eu vi laurinda quase me dava um desmaio", desmaia-se a cantoria das mulheres que, não vendo, vêem mais que oitocentos óculos.

"coco do leão", com nervoso e canastra. a tensão se apodera de "a pessoa é para o que nasce", quando o pop-rock carioca de nervoso e da banda canastra se transmuta de modo a parecer que zé ramalho, messiânico, fez um rasante de volta à sua paraíba natal. o agreste assoma e assusta em versos como "eu tenho raiva da morte/ que matou meu velho pai/ o povo mata e vai preso/ e a morte mata, não vai", em que ruge o coco do leão. a vocação pré-los hermanos de nervoso comparece na segunda parte da canção, quando o coco vira um ska-rock acelerado.

"tamborim", com teresa cristina e zé renato. "deixei meu tamborim lá no sereno/ o orvalho da madrugada molhou", e teresa e zé protagonizam o primeiro momento de lirismo desbragado (embora não se compare, em intensidade, com o drama contido na matriz cantada em solo por poroca). principalmente por causa de teresa cristina, o ouvinte deleitado descobre que o samba carioca de raiz e o coco nordestino de de raiz são primos-irmãos apaixonados, doidos de amor um pelo outro como o tamborim pelo orvalho, o olho pelo glaucoma, a flecha pelo coração sangrado, o pirata pelo mar singrado.

"avião", com lirinha. o menestrel do cordel do fogo encantado traz das entranhas do pernambuco de dentro a noção da relação também tempestuosa entre nós e as três cantadeiras: sua voz sopra fantasmagórica por cima das de maroca, indaiá e poroca, em alguns dos mais tristes e intensos versos de seu imaginário. "ó, menina, me diz por que é que a pedra do seu anel brilha mais do que o sol", cantam as três, fazendo o nexo mítico com a lia de itamaracá de pernambuco e com a vista turva que deixa ver da luz não muito mais que lampejos do brilho cortante do sol.

"canção da despedida", com otto. pernambucano cafuso de negro, índio e holandês, otto vai na valsa do mombojó e estabelece outro coco romântico de bordel de beira de estrada, de amor de fruto proibido nas vigas do cais, de tema de motel suburbano de roberto carlos, o pai brasileiríssimo de toda vista e de toda cegueira desta grande nação cheia de gente dizendo adeus. despetalam-se daqui alguns dos versos mais lindos do cancioneiro nacional, "a tarde quando declina/ é como a flor quando cai/ que se despreza do galho/ adeus para nunca mais". numa nação que ainda cultiva a dependência (alô, mensalão) como fator de união da família, assombram de beleza e poesia as imagens cegas de que a flor não se desprega nem se desprende do galho de árvore frondosa - não, a flor se despreza da folha, a folha se despreza do galho, o galho se despreza da árvore, a árvore se despreza da terra seca. do brasil, resta a imagem glauberiana da lavra de maroca, de poroca, de indaiá, quanto à exploração [alô, mesada, alô, chantagem, alô, suborno, alô, ladroeira] pelos parentes sem cegueira, os videntes: "trabalha o feio pro bonito comer", feio não é bonito, nara leão reencarnada na silhueta de três formosas damas antigas que, de feias, nem sombras possuem.

"noite enluarada", com pato fu. mais nara leão rediviva, feio é bonito. a voz de fernanda takai preenche de meiguice e formosura a melancolia da "noite enluarada", sob a qual "a minha sina é sofrer até o fim". john ulhoa faz mirabolâncias pop no arranjo, e a constatação da paixão da cegueira pela visão vem em frases como "eu fico triste quando canto e não te vejo" e "és a mais linda das mulheres que eu já vi". se falta a visão, os outros sentidos comparecem aos borbotões, no tato-olfato-paladar de "tu és a jovem que possui maior beleza", "o meu desejo é gozar o teu amor" etc. e tal.

"moço, me dê uma esmola (vista grossa)", com fausto fawcett, laufer e lula queiroga. em pique de funk carioca, dance music sulista e sla radical dance disco club brasileiro, os samples das tristíssimas vozes originais conduzem a convulsão, a subversão, a revolução. da letra original, sobram imagens chocantes: "ô, moço, me dê uma esmola/ não queira dizer que não/ favoreça a quem lhe pede/ está chegada a ocasião/ que você tem a luz dos olhos/ nós vive na escuridão". mas, não, pós-"kátia flávia" e pós-"rio 40 graus", fausto fawcett recebe um santo pós-"cabeça de porco" e dá à luz o pós-mendigo, o des-pedinte, o anti-dependente: "aí, não tem essa de pobre coitado/ pobre coitado é o cacete, eu não sou pobre coitado/ eu como, eu bebo, eu trepo [ah, disso as irmãs barbosa são provas plenas], eu leio, eu danço, eu amo [ih, idem], eu odeio, eu tenho sentimento geral igual a você, rapá!/ só que no meio da rua". a constatação não é uma praga rogada, é antes o sino da sensatez: "se bobear, eu sou você amanhã". o profeta se despede celebrando o "samba de porão" e revendo a bravura de jards macalé num "banquete dos mendigos" que sempre se avizinha e sempre tarda a chegar.

"era tarde", com cabelo. também na claque glauberiana de sublinhar as tensões que cimentarão o abismo social, o poeta, músico e artista plástico cabelo cria cenário surrealista de faroeste bangue-bangue e ali finca a elegância e a nobreza dos vestidos de chita das cantadeiras agora hollywoodianas. era tarde, ou não era? terceiro mundo vai explodir?

"abre a janela e escuta", com silvério pessoa. a janela ressurge aberta, moldura dos olhos em forma de olho de casa, as vistas embaçadas de maria, regina e conceição sonhando com o mundo lá fora, com o mar, com o mundão de meu deus ("êêita"). silvério pessoa, ex-cascabulho, atual cidadão do (outro) mundo, une europas e brasis na lindeza áspera e fatalista de que "mais vale a morte do que o desprezo/ já estou satisfeito, vou viver com deus", lúgubre associação entre casamento & morte. insatisfeitas pela própria natureza, as três irmãs sobrevivem, sobreviverão, estão apenas começando. e o cd entorta, tão bonito fica nesta hora tão medonha.

"jurema preta", com elba ramalho. única representante de gerações heróicas da mpb no cd, elba ramalho escapa de ser apêndice apartado e costura uma das mais pungentes releituras de toda a lista. o agreste paraibano que ela tão bem conhece cai sobre nossas cabeças com toda a crueza dos versos perturbadores da "jurema preta", em que a(s) narradora(s) redistribui(em) suas mágoas e sai(em) pelo mundo a estralar "uma tapa" no "diabo da velha", no "diabo do macaco", no "diabo do valente", no "diabo do soldado". o lirismo, aqui, é o do ódio guardado no baú dos ressentimentos sociais, o(a) tapa na cara da sociedade mais cega que a cegueira das cegas dos grotões de "meu deu". pois o cinema marginal não avisava que "o terceiro mundo vai explodir, quem tiver de sapato não sobra" (alô, rogério sganzerla)? destemida, elba-maroca-poroca-indaiá provoca, pororoca: "ô, tamanqueiro, eu quero um par, eu quero um par/ eu quero um par de tamanco pra eu andar".

"inhame", com lula queiroga. colada à versão mais espantosa do disco, a faixa do produtor das releituras se espalha entre cacto, carcaça de bode, raiz forte, assum preto: "quem nunca comeu batata não sabe o que é inhame/ (...) quem nunca foi na cadeia não sabe o que é vexame". sabedeiras de todas as coisas da vida, as irmãs barbosa (& queiroga) jogam miolo de pão pelas trilhas do destino: "eu, como fui na cadeia, já sei o que é vexame".

"as quatro coisas do mundo", com bráulio tavares. eminência parda pernambucana por trás de lenines e lulas (queirogas), bráulio tavares recita sob um faroeste agreste, um western jabaculê, um sertão-vai-virar-mar do terceiro mundão sobre o primeiro mundinho. a utopia da visão aparece com toda fúria nessa raspa de tacho cosida pelas cantadeiras ancestrais: "tem quatro coisa no mundo que o mundo nunca pôde me ensinar/ qual é a cor desse céu, qual é a forma do mar/ o modo certo de ser e um jeito fácil de amar". "eu nunca vi", diria maroca...

"sinto no peito essa dor", com pedro luís e a parede. os artífices plurais do monobloco fazem da cantoria popular paraibana um samba-enredo, um sambinha de roda, um sambão de rua, uma batucada entristecida. clementina de jesus chove suas bênçãos sobre maroca, poroca, indaiá, o sertão vai virar mar.

"dub blind", com originais do sample. a brincadeira eletrônica vem encerrar o cd (nem precisava, pois eletrônicas as "ceguinhas de campina grande" já são, de dar choque). como brincadeira-bônus, o sambão jóia dos originais do samba é lembrado no viés, nos (des)originais do sample. o nordeste é coco é samba é brasil é mundão de meu deus.

copiado até a exaustão, o original deixa de existir e volta à terra como a soma de todas as cópias, (re)original de gelar a medula. o volume 2 da trilha de "a pessoa é para o que nasce" mata de dor&prazer, de angústia&alegria, de tristeza&felicidade, de melancolia&melancolia. mas soa como brinquedo de aprendiz se comparado ao volume 1, à lista das mesmas canções entoadas nos espantosos originais mil vezes copiados e reformulados de regina barbosa, maria barbosa, conceição barbosa. suas vozes se imprimem em nossos cérebros&corações, para nunca mais desgrudar - porque são o sopro vivo das vozes de nossas avós, de nossas mães, de nós mesmos. a amplidão do oceano está contida dentro dos suspiros de "êêita", "errei, meu deus", "ô, meu deu", "hummmm", "!!!" que saem a todo momento dos peitos das marocas, das porocas, das indaiás. nas três letras estendidas de "eta" cabe em toda sua extensão o próprio mundo, este potro chucro domado por poroca, maroca, indaiá.

quarta-feira, junho 22, 2005

primeiras leituras

hey, cowboys & cowgirls... vamos brincar um pouquinho de colocar alguns pingos em alguns iiiiiiiis?

é que fico aqui só matutando, matutando, matutando... que, ok, é perfeitamente viável (e até provável, no atual estado de coisas) que fiquemos acreditando que o mundo caiu, que o pt acabou, que o governo acabou, que o lula acabou, que o brasil acabou, que o mundo acabou... podemos até nos deprimir por isso tudo, mas... mas eu tenho uma perguntinha siiiiimples: a gente está comprando esse pacotão inteiro com base em quê? única e exclusivamente da leitura e interpretação do que é filtrado pela grande mídia, das globos e dos jornais? ou estamos compondo um painel mais amplo, completo, complexo, tentando entender os ooooutros laaaados das moedas?

quem aí tem dado uma escapulida rebelde para freqüentar também as páginas da velha esquerda e/ou as neo-páginas da mui livre imprensa virtual e/ou a grande reforma agrária virtual dos blogs (alô, eu!)? ou vamos ficar aí entupidos tão somente das visões que passam bem dentro dos neurônios de gigantes interesses de duas dezenas de grupos poderosos (mas não obrigatoriamente movidos por interesses brasileiros por excelência)?

não quero me intrometer, cada um acredita no que bem quiser. mas eu quero propor, "eu te proponho...", umas leituras do lado b (sempre fiz isso na música, tenho gostado cada vez mais de aplicar o método no supermercado, no jornalismo, na política etc.). se discordar de tudo e continuar acreditando que o mundo acabou, tudo bem, dê minhas lembranças ao fim do mundo - mas, ah, vá, dá uma lidinha mesmo assim, vai? porque atrás da novela sempre vem a antinovela, tão mirabolante quanto as peripécias de sol no reino ensolarado dos estados unidos do sul da américa do norte...

então tá. o primeiro e meu preferido deles é este aqui, de renato rovai, no site da revista virtual "fórum", criada por inspiração do fórum social mundial. já leu alguma análise parecida com essa aí por cima dos panos? não? textinho intrigante, não?

outro, analisando especificamente o espetáculo deprimente que foi o "roda viva" com roberto jefferson (alô, querida madamada!), está na "agência carta maior", aqui, ó, assinado pelo jornalista marco aurélio weissheimer. num faz um tiquinho de sentido? [e, eu acrescento: por que bob jeff lançava olhares tão ameaçadores, tão faiscantes de ódio, para os jornalistas da bancada?]

por fim, um outro também na "carta maior" (atenção, bebês, nada a ver com a "carta capital", ok?), assinado por emir sader, importante (e fortemente crítico/zangado, alô, crianças binárias!) pensador destes tempos petistas (e, para meu orgulho, homem ligado à editora boitempo, que publicou meus dois primeiros livros). ói só, vixe maria!

hum, tem tantos mais... fuça por aí, vai... ou vamos ficar acreditando em quem? na "veja"?????? é ruuuuuuim...

(iiiiiih... mmmmmúsica, pedro [xô, depressão!!!!], mmmmmúsica!!!)

terça-feira, junho 21, 2005

o sucesso do excluído

na carta capital 344, de 1 de junho de 2005, o focalizado foi lobão, essa trombeta da república entrincheirada nos domínios da canção popular. acho que todo mundo sabe que admiro e respeito o cara, tanto musicalmente quanto pelas "horas extras" em que ele chama os seus na chincha, em que ele descarna o constrangimento geral para consumo envergonhado dos acomodados. mas, putz. eu não queria dizer isso, nem pensar isso, mas... relendo o título dessa entrevista, "o sucesso do excluído", foi inevitável materializar em minha mente cansada a imagem desagradável de bob jeff.

mas, não, atenção!, lobão é outro papo. saca só:

O SUCESSO DO EXCLUÍDO
Acostumado ao isolamento, Lobão tem de se readaptar às vitórias

Por Pedro Alexandre Sanches

"Às vezes eu me sinto um fantasma" e "não há estilo sem fracasso", canta Lobão em seu novo CD, Canções Dentro da Noite Escura. Aos 47 anos, o cantor, compositor, agitador e rebelde profissional se refere a si mesmo como um "isolado", um "exilado" – "eu estou morto" é frase que repete ao menos três vezes, numa entrevista de três horas.

Refere-se ao conjunto de circunstâncias que o colocaram num lugar à parte do cenário musical brasileiro, a que já chamou de "universo paralelo". Após um auge de sucesso com a geração pop-rock dos anos 80, Lobão cumpriu trajetória acidentada de prisão por porte de maconha, fuga do País, rompimentos com quase todas as grandes gravadoras instaladas no Brasil, mil e uma desavenças com a classe musical...

Nesse registro tempestuoso foi se dando a reconstrução de sua figura pública, que nos anos 90 se consumou como uma (ou, possivelmente, a única) metralhadora giratória incansável contra as gravadoras, os artistas acomodados, a televisão, o jabaculê e a corrupção na indústria fonográfica... "Eu estaria morto hoje se não falasse" é outra frase que ecoa ao menos três vezes durante a entrevista.

O sentimento de desajuste persiste e freqüenta toda a ossatura de Canções Dentro da Noite, todo sombrio e soturno e dominado pelo rock setentista entre Led Zeppelin e Pink Floyd e por intervenções de MPB, bossa nova e eletrônica, de que a bossa furiosa Pra Sempre Esta Noite é o exemplo mais bem resolvido.

Mas alguma coisa mudou nessa história. Um punhado de fatos recentes concorre para desmentir a opinião de Lobão sobre si. Hoje leva a duras penas um selo próprio e uma revista sobre música, Outracoisa, que difunde nas bancas de jornal, ao largo das gravadoras, discos de artistas independentes de cepa como Mombojó, BNegão e Cachorro Grande (todos fãs das atitudes do mestre) – e, desta vez, seu próprio CD.

Desde o êxito de sua campanha pela numeração obrigatória de discos pelas gravadoras, Lobão vem ampliando conexões com o Poder Legislativo e o governo federal, do Ministério do Trabalho ao Ministério da Cultura.

Inusitado é o fato de que, agora, Lobão é apresentador de programa na tevê aberta – o talk show Saca-Rolha, dividido por ele com Marcelo Tas e Mariana Weickert, vai ao ar de segunda a sexta, às 22h30, na recém-reformulada Rede 21.

O que sua metralhadora giratória cospe sempre ecoa na imprensa, mesmo sob ressalvas, como as que o jornal O Globo lhe dirigiu há poucos dias, reclamando do discurso "gasto" contra bossa nova, Caetano Veloso e axé music – mas divulgando-o na capa de seu caderno cultural.

O Globo ecoava, ali, uma noção corrente nos bastidores da indústria fonográfica, de que a rebeldia virulenta de Lobão seria uma forma peculiar de marketing, estratégia dele para se manter presente no cenário musical, mesmo rompido com (ou boicotado por, como ele prefere) gravadoras e colegas. "Você ainda dá ouvidos a Lobão?" é frase corrente de detratores ocultos no bastidor, ouvida (e dita) repetidas vezes por jornalistas de música.

Constatado o relativo êxito da ilha independente que ergueu sozinho (e do qual tem ciência), Lobão uiva: "As pessoas, no país da fofoca, odeiam opinião. Estou dando a minha opinião, e não vou deixar de dar. Se é positiva ou não, ela é a minha opinião. Isso não é marketing, positivamente não é. Dizer isso é uma forma de despotencializar minha opinião".

Marqueteiro de si próprio? "Ninguém fala que marketing é o grande jabá. Marketing da pior espécie é pagar para tocar na rádio, é se fazer de bom moço e ficar cumprimentando nos bastidores hipocritamente seus colegas, 'parabéns pelo seu trabalho', para pertencer a uma comunidade corporativista. Isso sim é marketing. Em termos de dividendos, não ganho nenhum falando o que falo. Ao contrário, só ganho antipatia", vocifera o lobo.

Sim, marqueteiro de si próprio. "Então tá bom, vamos supor que seja marketing. É marketing. Agora vamos para a questão. E o que estou falando? Existe ou não existe? 'Ah, Lobão é invejoso', 'Lobão toma muitas drogas', 'Lobão faz marketing'. Tá, mas e o que estou falando? É pertinente ou é loucura? O tempo todo ficam passando ao largo do que falo? Alguém diz que esse discurso está errado? Não rola, fica todo mundo saindo pela culatra", morde o lobo mau que, no novo CD, ensaia brincar de lobo bom ("não sou lobo louco, não/ eu brinco de polichinelo com o bobo coração") e até mesmo de Chapeuzinho Vermelho ("pela estrada afora/ eu vou/ com a alegria de uma aventura").

Talvez ainda se sinta desacostumado às evidências de que, mesmo com tanta oposição subliminar, sua opinião tem sido sistematicamente ouvida – e muitas vezes virado realidade, como nos casos do desmonte da grande indústria fonográfica, da falência do pop de mero marketing, da prosperidade da música independente.

Talvez por isso o disco, composto nos últimos quatro anos, apresente certo déficit em relação à sua real presença atual. Talvez por isso o CD se cerque do culto a artistas mortos de sua geração – Lobão reata parcerias inéditas (ou semi-inéditas) com o arauto Júlio Barroso e com Cazuza ("para dizer a verdade, eu não entendi muito a letra dele") e homenageia Cássia Eller (em Boa Noite, Cinderela).

"Perdi essas pessoas que tinham tanta vida, enquanto ironicamente se vêem vários cadáveres insepultos transitando incólumes por aí. É um modo de eu, sendo o único que está restando dessa turma, puxar vida daquilo", tenta explicar. De volta ao marketing. "Cazuza disse: 'Precisou eu pegar Aids e Lobão ir para a cadeia para a gente ter alguma notoriedade'. Então isso é marketing? Será que ele pegar Aids é marketing? Falaram que eu ser preso era marketing, o que passei na cadeia foi marketing? Ou será que a gente corre risco? Eu corro, corro mesmo."

Por baixo dos véus da rebeldia, as águas vão ficando mais profundas. Se sempre se referiu de modo pândego à prisão em 1987, hoje o falastrão pode descrever um pouco daquela barra-pesada: "Fui mascote do Comando Vermelho. Me enredei, me envolvi emocionalmente com os caras, aprendi a atirar com as armas deles. Vi amigos morrerem, vi o (companheiro de cela) Zaca sendo torturado uma noite inteira – arrancaram as unhas dele, quebraram a canela, furaram de cigarro. Virei meio um bandido, fiquei cheio de cordão e queria invadir o Palácio Guanabara, tomar o Rio de Janeiro de bazuca. Sim, eu tive essa vontade".

Mas bandido, como assim? "Não, não pratiquei crime nenhum a não ser ir para os morros. A prisão foi a porta para o infinito, entrei dentro desse mundo a partir dali. Era uma coisa que eu repudiava, mas é a faculdade do crime, né?"

Foi um divisor de águas também para o músico, que encerrava ali a era descontraída de Cena de Cinema e Décadence avec Elegance. "Me tornei um exu para certas pessoas, a garotada em shows me jogava seringa, garrote, papelote. Era angustiante, por um lado havia uma perseguição política, por outro eu me lembrava de Jimi Hendrix e achava que não era esse o viés. Foi uma época muito difícil."

E se Lobão fosse hoje mais uma vez se desconstruir, quem mereceria elogios daquele que costuma só bombardear? Será que Lobão consegue elogiar? Ele tenta, cita poucos de sua própria geração – Ultraje a Rigor, Ira!. Elogia os músicos independentes. Pesca um ou outro político, sempre do PT. "Mas não acho que o PT no governo está legal, não. Bom, mas aí já estou pichando novamente..." (risos).

Finca pé no MST: "É a instituição que maior representatividade tem lá fora. Isso, sim, me causa orgulho". Passa por mangue bit, rap carioca, Erasmo Carlos, Toni Tornado ("alô, Toni Tornado, temos que fazer um disco!"), Sidney Magal, Amado Batista... "Se a gente puxa, vai aparecendo gente..." Abre exceção para o (ex-) desafeto Gil ("ele não tem verba nenhuma, mas tem uma equipe sensacional, que está definitivamente a fim de fazer alguma coisa pela cultura"). "Você vê, já temos bastante coisa..."

E chega à revelação bombástica, sobre ex-alvos favoritos do homem-bomba no passado: "Taí, eu gosto dos Titãs, não vou dizer que não. Andávamos muito juntos no início dos anos 80. Gosto deles todos, são meus irmãos, com todas as discordâncias. Acho que tá legal, né?"

sábado, junho 18, 2005

charco, limbo, pântano [espelho] pântano, margem, favela

ao contrário do que diz clóvis rossi em seu artigo "severino, o novo herói" ("folha", 18 de junho de 2005), o brasil não é um charco que queria ser lagoa. proponho que viremos ao avesso o espelho: o brasil é uma lagoa que quer continuar sendo charco "para todo o sempre", como concluiriam os contos de fadas em que o articulista se apóia para construir sua fábula. é uma lagoa com complexo de charco.

[é engraçado esse folguedo, gostoso de testar de brincadeira quando não há nada mais a fazer: pegue um argumento que lhe pareça óbvio e vire-o no espelho. entenda-o do modo como já o entendia, adotando só a premissa oposta à que você está acostumado. a dor de barriga pode ser pior que a de despencar numa montanha-russa, mas há de ser bem divertida, se é que estamos mesmo no campo das fábulas rasas.]

o brasil não é um charco que queria ser lagoa (estados unidos, england, escócia, china, japão). é uma lagoa com profundo complexo de charco, medrosíssima do monstro do lago ness que supostamente habita suas próprias profundezas.

o charco, nas palavras de clóvis, é imagem-metáfora para alegorizar o brasil de 2005, governado por, segundo ele, um sapo barbudo que um dia sonhou ser príncipe. afora o infantilismo das imagens de fábula (que fazem par de vasos "à esquerda" com as "mesadas" que andam recebendo os parlamentares do tal charco), é preciso dar um basta no raciocínio classista enviesado e transtornado que, sempre e sempre e sempre, entala na garganta do brasil esse figura-travo perniciosa do "sapo barbudo".

[leonel brizola está morto.]

o que é um sapo? um batráquio "asqueroso" (aos sentidos humanos), feio, mole, pegajoso (contagioso?), de pele cheia de perebas, desprezível, que chafurda num melancólico lodaçal e nunca haverá de ter acesso aos palácios de cristal, sob a pena de cobri-los de lama também (e que lástima haveria de ser a daslu coberta de lama, ó, horror supremo?). se o sapo sonha em ser príncipe, trata-se única e exclusivamente de sonho, desejo, delírio - aos sapos não é dado ser príncipe.

pois eu peço um basta, um basta à lógica alinhavada que racha os viventes entre sapos e príncipes, entre feios e bonitos, entre leprosos e saudáveis. peço um basta ao argumento míope que nega e entope de poeira a origem plebéia de todos nós - somos todos plebeus filhos de mítica mãe lavadeira, de atávico pai pedreiro, e essa é nossa maior grandeza. nutramos respeito por nós mesmos, por favor.

o brasil, já que as metáforas convocam o naturalismo do positivismo, é um país cheio de charcos, pântanos, planícies, vales, veredas, florestas, planaltos, serras, chapadas, pampas, portos, praias, sertões, cidades, favelas. o brasil é feito de charcos e lagoas - e de muito mais. e o raciocínio que escolhe o charco como imagem-símbolo de um brasil inteiro é tão fantasioso quanto o "...e foram felizes para sempre..." de um conto para ninar neném que ainda não mereceu receber mesada.

sim, nós que acreditávamos na ética petista estamos convocados à realidade, para nós nada mais será como antes. aos que nunca acreditaram em nós, vocês têm agora em punho o chicote para o açoite em lombo ferido de carne negra. chicoteiem, se assim pensam se purificar. a crueza colonial escravagista nubla menos nossos olhos baços que a fábula do patinho feio, ou a da princesa que beijou o sapo, o do joãozinho que sonhou alcançar o céu pelo pé de feijão, o da cigarra que azucrinava a formiga, o da formiguinha assassinada pelas mãos de deus com os pés atolados na neve - pois neve branca, plim plim!, também pode ser charco, se assim quisermos.

acontece que o brasil não é um charco. o raciocínio que elege o charco como valor presidente da nação está cego para o fato de que esse próprio raciocínio está, ali, desmpenhando o papel do sapo, do bobo da corte, do complexado, do ministro avançado para a acelaração das crises. a manutenção do raciocínio fabular nos condena ao círculo vicioso que nos impede a chegada à lagoa do círculo virtuoso. o sapo que o articulista não ousa denominar "lula" poderia também ser apelidado, mais simpoloriamente, de "brasileiro". ainda que tudo dê errado no final, num desfecho do tipo "...e foram infelizes para sempre...", o sapo-lula é presidente do brasil porque o brasil decidiu bancar a experiência mais radical de sua história: eleger um sapo, eleger a si mesmo, autodeclarar-se gestor de seu destino. mais que levar um partidinho feio ao poder, naquele gesto o brasil assumia a feiúra do sapo (que é nossa feiúra), a emotividade do sapo (que é nossa emotividade, alô, roberto carlos), a falibilidade do sapo (que é nossa falibilidade), a coragem pantaneira do sapo (que é nossa coragem).

o artifício de dinamitar o sapo é autodestrutivo, infantil-suicida. é o raciocínio de que nós, brasileiros, saídos do analfabetismo funcional da ditadura sem eleições, elegemos collor para derrubar collor, elegemos fhc para derrotar fhc, testamos a suprema ousadia de eleger lula (ou seja, eleger-nos a nós mesmos) para espatifar lula-nós da festa no céu cá para baixo, para lancetar a medula espinhal de lula-nós numa mesa fria de dissecação. é penitência, auto-flagelação.

basta.

o brasil não é um charco. charco é a nuvem simbólica em que nos sufocamos paralisados por nossa crença cega de sermos impotentes, incapazes, imprestáveis, corruptos por natureza. não somos, não somos, não somos. nossa boçalidade convive dentro de nossa grandeza como o charco faz parte de nosso sistema hídrico-ecológico de grandes lagos. sabemos bem do charco (afinal, já escravizamos negros, índios e brancos há 505 anos), mas já é mais que hora de a gente-sapo acordar, abrir os olhos redondos, desinfetar a cegueira e enxergar por fim, num final feliz transitório até a próxima depressão, que também somos montanha, caatinga, praia, mangue, cachoeira, primavera, verão.

se o espelho da madrasta de branca de neve, em reflexo, só sabe receber o comando malogrado de que "não, rainha, não existe no mundo mulher mais bela que a senhora", que tal engolirmos a maçã de eva e nos mirarmos no reverso do reverso do espelho? que tal uma visita não mais ao charco, mas ao morro, à margem, à favela?

sonhando o passeio, eis a lembrança dos sapos mangueirenses padeirinho e jorginho, que, "era uma vez", há muitos e muitos anos, compuseram um sambinha que cantarolava assim: "numa vasta extensão/ onde não há plantação/ nem ninguém morando lá/ cada um pobre que passa por ali/ só pensa em construir seu lar/ e quando o primeiro começa/ os outros, depressa, procuram marcar/ seu pedacinho de terra pra morar/ e assim a região sofre modificação/ fica sendo chamada de nova aquarela/ é aí que o lugar então passa a se chamar/ favela". "favela", era esse o nome do samba.

você pode, a seu bel-prazer, chamar a "vasta extensão" de charco, favela, jornal, lagoa, brasília ou brasil - a vasta extensão continuará sendo o que é, um terreno livre e fértil por sobre onde os homens plantam suas sementes e projetam suas índoles. suas índoles, se pudermos dar um basta no raciocínio binário que nos comanda em pique de "big brother", são feitas de charco e de lagoa - e de muito mais. são complexos, complicados, ricos, vigorosos, cheios de vida como o ecossistema diversificado de um pantanal.

[brincando de virar o raciocínio do avesso, vamos? segura nas travas que o comboio de vagões da montanha-russa vai despencar de novo. uuuuuuuuuuuuuupaaaaaaaa.]

se no espelho de nossos deputados e governantes continuarmos a nos acomodar no raciocínio que extirpa um pretenso tumor (nós mesmos) de um todo que nós ajudamos a construir, continuaremos a, infantilmente, nos acreditar batráquios malévolos, corruptos, imprestáveis - o sapo-lula que queria ser príncipe-mulatinho-com-um-pé-na-cozinha somos nós. continuaremos, feito facas, fazendo o triste papel de sangrar uma ferida que nunca cicatriza - chega desse nhenhenhém.

se nos vemos de modo tão desprezível assim, melhor não será acabarmos logo com isso tudo, apontarmos uma arma de fogo em nossas próprias têmporas, rumo a um suicídio coletivo que extirpará do mundo essa charneca, essa excrescência chamada brasil? não, basta. basta. basta. mais que nunca, após a eleição do "sapo" que queria ser "príncipe" (ou seja, a nossa eleição, de nós que nos considerávamos tão ínfimos), precisamos demolir esse hábito autista de desqualificr todo e qualquer governo eleito (por nós mesmos, há já quase duas décadas) - esse hábito de auto-sabotagem em moto contínio de círculo vicioso é, ele sim, o gesto suicida que aperta o gatilho apontado em nossa têmpora. escolha agora, queira morrer ou prefira viver.

[elementar, meu caro watson, o brasil não é uma charneca!!! aqui não há monstro do lago ness nem abominável homem das neves - no máximo, aqui há saci pererê, cuca, boitatá, curupira, bicho papão e roberto jefferson.]

o que fazer, para dar um basta? a resposta não está nos livros nem nas bancas de jornal (alô, raul seixas). está naquela favela a que agora há pouco nos convidamos hesitantemente visitar. está nas palavras da revista "trip" (alô, henrique, obrigado) deste mesmo junho, que dá conta do que andam fazendo, "por debaixo do mundo", "sapos" pretos como mv bill, nega gizza, negra li, rappin' hood, ferréz, dexter etc. etc. etc. dá conta, sobretudo, do que anda fazendo e pensando o novo antonio carlos jobim, o novo glauber rocha, o novo caetano veloso, o novo chico buarque, o novo gilberto gil - o nome dele é mano brown.

ouve só, de olhos bem arregalados, as palavras dos dois seguintes parágrafos da "trip", substitutas astutas da varinha de condão que transformava a gata borralheira em cinderela e depois devolvia o sapatinho de cristal em forma de abóbora. enxerga aqui, de ouvidos bem abertos, a receita simples feito arroz-com-feijão de um solo-país todo coberto por lavouras, além de charcos e limbos:

"algumas das principais lideranças do rap brasileiro se reuniram recentemente a portas fechadas em são paulo. na pauta, ordem e progresso para o povo pobre das periferias. durante dois meses, 'trip' apurou os bastidores das reuniões fechadas que pretendem mudar para sempre o hip hop no brasil e, mais que isso, mudar o brasil. iniciativa com poder para iluminar outros setores da sociedade ao dar exemplo de responsabilidade numa época de isenção coletiva. e tudo começou quando um corpo bateu no palco.

quem tem notícia de um meeting de profissionais de marketing para falar das conseqüências da cultura do consumo desenfreado sobre as camadas mais pobres da população? ou levante a mão quem viu os donos das grandes organizações de mídia esquecerem por um instante os ibopes da vida para discutir como levar cultura e educação aos menos favorecidos. e os políticos? pelas imagens recentes dos parlamentares negociando comissões, não se deve esperar muito deles."

[abrace os rappers, funkeiras e meninos do sinal, mano. dispa-se de preconceitos, fobias, complexos de charco. no avesso do avesso do avesso do espelho, eles são o sapo-príncipe-lula que é você mesmo. alô, de novo, raul "caymmi" seixas: "você já foi ao espelho, nego? não? então vá".]

se o brasil não for um charco, nobre clóvis, então até conseguirei concordar com a lógica cartesiana de seus excelentes argumentos. então concordarei, sobretudo, com o deslocado título de seu artigo, "severino, o novo herói". porque só então consigo compreender que você não está falando do saco-de-pancada severino cavalcanti, mas sim daquele sapo feio que se locomove brasil afora em epopéia de morte e vida severina. esse severino(a) - biu, em idioma pernambucano -, que pode-se chamar mano brown ou deize tigrona ou mv bill ou tati quebra-barraco ou lacraia, talvez seja mesmo "o novo herói" a que você se refere. ou melhor, talvez seja o anti-herói de um brasil que, desparafusando o reboque da locomotiva da dependência, não precisará nunca mais de heróis.

os heróis brasileiros estão na rua, as mãos à obra, em plena luta (e, olhe, o conclave dos rappers que a "trip" comenta nem foi assim uma aterrorizante marcha dos sem-terra; não, veja que mimoso, ela aconteceu no green express, um salão de baile de samba-rock plantado em pleno coração de são paulo, em pleno fígado do brasil - já viu os casais negros piruetando um samba-rock? é um dos maiores espetáculos da terra, saído do núcleo do charco). terra em transe, nós estamos lançados no coração do nosso tempo (você também, nobre clóvis), e é por isso que tentaremos, com toda nossa colossal e intocada potência, não precisar mais de heróis (nem de vilões, nem de bodes expiatórios - alô, wilson simonal, alô, escola base).

[talvez você, desavisado, tenha caído aqui por acaso, acreditando com convicção que o brasil (ou o governo, o pt, o psdb, o ptb, o raio que o parta, qualquer coisa) é mesmo um charco... ainda assim, experimente chafurdar no charco um instantinho. pise nele de pés descalços, sinta-se parte da matéria orgânica do charco. e, se um arrepio de autocomplacência percorrer de repente sua medula espinhal lancetada, experimente a suprema transgressão de plantar no charco uma única margaridinha. bom-dia, brasil.]

sexta-feira, junho 17, 2005

pato fu & o sítio do picapau verde-amarelo

no canto do cisco, no canto do olho, a menina canta. a menina, fernanda takai, pegou sua lancheira e, pela estrada afora, foi cantar uma música do folclore nordestino dentro de um filme que mostrava a vida de três mulheres pobres, paraibanas, quase indigentes, irmãs e quase completamente cegas de todos os olhos.

a menina nem se dava conta, mas havia um negócio chamado espírito do tempo operando em seu caminho, e ela cantava para assoprar o cisco, para desembaçar a visão, para começar a enxergar - era o mesmo que estava acontecendo com as três estrelas do filme, chamado "a pessoa é para o que nasce". lá no telão, cegas molambentas, as três mulheres de certa idade aprendiam a enxergar pela câmera obscura
do filme-documentário de roberto berliner, que as colocava no nicho de estrelas do nosso cinema e, assim, conduzia-as a um novo arco de visão.

a luneta nova era visão de assum preto, cego dos óios, um pássaro nordestino que, aninhado no coração-gaiola do planalto central do país, poder-se-ia apelidar luiz inácio, ou lula, ou assum preto da silva (no filme das três assuns, até o presidente do brasil, lula, aparecia como ator coadjuvante em participação especial).

fernanda, enquanto reaprendia a enxergar em caminhos cruzados com as cegas paraibanas que tudo viam & farejavam & sentiam, cantava feito veludo, cantava feito favo de mel, cantava feito nara leão. a voz de cantiga de roda de nara morrera em prol dum brasil doente, feito de sangue e ditadura; fernanda concentrava no estampido de pelica de sua pequena voz "toda cura para todo mal" - esse era o título do cd-irmão do filme das tias cegas, assinado pela banda pato fu, banda de fernanda, banda de seu marido john ulhoa, banda de seus amigos mineiros e/ou não mineiros, banda da pequena nina (filha de fernanda e de john, filha do tecnopop do kraftwerk, filha do brasil em tempos de lula), banda da cadela de estimação que, perdida de sua melhor companhia também canina, deixara ficar grisalho o redor do olho, de um olho só, cachorra rainha em terra de humanas cegas.

num festim melodioso de guitarras e órgãos iê-iê-iê, linhas rítmicas de funk e guitarras polpudas de rock'n'roll, fernanda (interpretando john) celebrava aquela vida canina. "acho que sou um cachorro, sim", retrucava fernanda-john na faixa-guloseima "amendoim", contorcendo o sentimento antigo de "eu não sou cachorro, não", revogando/revigorando waldik soriano, aspergindo açúcares de beija-flor para tentar demolir as arcaicas muralhas que outrora separavam o velho do novo, o chique do brega, o intelectual do iletrado, o otário do malandro, o erudito do popular.

e se você fechava o olho, a menina ainda cantava, e dançava. e assim também o menino, porque roberto carlos já estava assimilado, assimilado nos cravos sessentistas e no balé vocal elaboradíssimo de "anormal" ("mas que anormal/ eu devo ser/ pra ver você/ em todo lugar"), assimilado no doce-triste de melôs carlistas como "agridoce" ("por que você às vezes/ se faz de ruim,/ tenta me convencer/ que não mereço viver,/ que não presto enfim?").

meigo e tímido, o menino-homem ligava o processor de voz, virava desenho animado e fazia chover sobre uma casa no campo, numa cybercanção batizada "simplicidade": "quanto menor a casinha, ai/ mais sincero o bom-dia/ mais mole a cama em que durmo/ mais duro o chão que eu piso/ tem água limpa na pia, ai/ tem dente a mais no sorriso".

"busquei felicidade/ encontrei foi maria/ ela, pinga e farinha/ e eu sentindo alegria", continuava o moço-menino. seu brasil era de cachaça, farinha, isopor, televisão de cachorro, vida operária, simplicidade, alegria e mil marias - da silva. a imensa profundidade (da letra) podia ter a espessura de uma folha de papel (de gibi). o mundo girava nas voltas do sítio do picapau amarelo, ploquet, pluft, nhoque, patinhas, patacôncio, pateta, "pátofo, patôfo, patofú".

[adeus, maria fulô: nara leão morrera sem ver a banda passar, elis regina partira querendo uma casa no campo, ambas entregues quais trágicas noivas virgens ao sacrifício, em prol da manutenção de um porvir, de um status quo que nunca vinha de fato a existir. morrendo, se deslegitimavam temporariamente e legitimavam transitoriamente a ditadura que suas vozes não conseguiam exterminar.]

mas fernanda e john, não, esses já tinham uma casa no campo, já eram donos de seus narizinhos e já estavam, junto com o resto de seu país, reaprendendo a enxergar, sob as lágrimas grossas do sofrimento. estavam tranqüilos, porém (era só ouvir a maciez agridoce das mais cândidas baladas). sabiam, intuitivamente, que agora era hora de toda cura para todo mal, não mais do todo mal contra qualquer cura por vir nos sonhos de seus antepassados musicais.

"quem tem a paz como meta, quem quer um pouco de paz, que tire o reboque que espeta o carro de quem vem atrás", cantava john na pluripartidária "uh uh uh, la la la, ié ié!", já sem o processador de voz de cartoon. os versos soariam até truncados numa primeira desatenção, mas o que diziam em chuviscos de intuição era simples, simples, simplinho: desatrela, desatarraxa, solta os pinos e os parafusos, abre as portas e as janelas, põe a tocar todos os discos, quebra os vínculos, solda tudo com chiclete. era um convite à independência, à maravilha de não ter de rebocar ninguém, mais que nada à delícia de não se deixar rebocar por nada nem ninguém.

[lá fora o sistema político ruía, e o sonho-risco-utopia da hora era esse: eu sou o político de mim mesmo. o governo somos nós. eu sou meu líder. eu me comando, eu laço minhas rédeas. quando o segundo sol chegava, despertávamos todos, que havia um líder escondido dentro de cada um de nós.]

agora era hora de "vida diet" (humores pop meio marisa monte, meio lulu santos): "a gente se acostuma com tudo/ a tudo a gente se habitua/ e até a não ter um lugar/ dormir na rua/ a tudo a gente se habitua". a fadinha fernanda aspergia, esgrimindo tempos, tempos, tempos, manos véios de contenção, de contrição, de concentração: "me habituei ao pão light/ à vida sem gás/ o meu café tomo sem açúcar/ e até ficar sem comer/ sem te ver/ a gente custa, mas se habitua". mídia, disco, jornal, pra quê?, quem precisava? "se acostumou sem querer/ ao salto alto/ salário baixo, à vida dura/ e até ficar sem tevê/ é bom pra você/ televisão ninguém mais atura".

tudo se misturava em rotomusic de liquidificapum, "acho que eu sou um cachorro, sim,/ acho que sou um cachorrim", não quero mais mil casas no campo, sou mamute mutante, rita lee somos nós, arnaldo baptista piramos nós, "amor aos pedaços", "sete, catorze, vinte e um", como dois e dois são quatro.

a menina dançava. "uh uh uh, la la la, ié ié!", jackson five, michael jackson absolvido (mas não propriamente inocente - atenção, cuidado, atenção, menina, ao dobrar uma esquina, apenas viro, me viro, mas eu mesma viro os olhinhos - sem trailer, sem gancho, sem reboque, sem abuso, sem violência), isaac hayes em "shaft", roberto & erasmo & wanderléa & paul & john & yoko na festa de arromba... e, em meio ao baile de yeah-ié-yeah, aflorava mais um sintoma de recuperação de visão, mais uma constatação intuitiva de que era hora de o brasil parar de viver de mentiras: "tudo que se vê não é suficiente". meias imagens já não nos convenciam mais. a sociedade adquiria consciência, essa modalidade sofisticada de visão.

[a crise era crise, sim, mas era também um enlevo, um desvelamento. a membrana do glaucoma esfarelava. lágrimas negras caíam, saíam, doíam, cessavam. cicatrizava o furo nos olhos do assum, que, cego de dor, cantava e enxergava melhor do que nunca. "terra à vista", gritavam anônimos bilhões de assassinados das cores negra, vermelha, amarela, branca & furta-cor. não subestimem nossa sensibilidade, não subestimem nossa sensibilidade, era o que o coro dos coerentes vinha a cantar. sara, cura, nossa terra. estávamos lançados no coração do nosso tempo.]

se tudo lá fora estava incerto, quase deserto embora já não houvesse censura, era numa fagulha de gênio que a menina, o menino & seus correligionários diriam tudo que havia a dizer. a canção-faísca se chamaria "!", e não conteria versos nem palavras, nem ao mesmo sílabas ou letras. na canção de título impronunciável, barulhinhos estranhos irreconhecíveis entre o humano e o inumano fariam a vez do susto na montanha-russa, do ponto de exclamação, do !, do !, do !, do !!!!. como escrevera o sisudo josé miguel wisnik duas décadas e meia antes (quando amar roberto carlos ainda era coisa de mulher), a canção popular era um meio termo entre o silêncio e as palavras. no claro-escuro, o pato fu descobria que o meio termo, o justo meio, o minimistério podia ter a forma de uma barra e um ponto, de um !.

e então estava tudo dito: !

não, quase tudo: cioso, papai john passaria ainda um pequeno (e bem-humorado) pito nas "novas gerações", aquelas que não saem aqui dos blogs nem para fazer pipi: "quem mexe com a internet fica bom em quase tudo/ quem tem computador não precisa de estudo/ estudar pra quê?", fina ironia, ei-la, "estudar pra quê?".

e antes, por fim, que os jackson five todos pudessem ficar pálidos como branca de neve, brancos feito fernanda takai, haveria hora extra para um "boa-noite, brasil", na tradicional faixa de encerramento do disco. ensaiando a reconciliação histórica entre o colonizador e o colono (ou entre direita e esquerda, atrasado e moderno, psdb e pt, branco e preto, hetero e gay, homem e mulher, velho e criança), traziam, para dividir os óculos vocais com fernanda, a mansa manuela azevedo, mãe da portuguesinha nara e cantora da banda portuguesa clã, do disco "rosa carne" & outras rubras milongas. juntas, fernanda e manuela cantavam mais uma historieta inocente imaginada por john, de um episodiozinho em que um mentiroso contumaz se enchia de pânico & prazer diante da impossibilidade de continuar mentindo-enganando. dizia assim a canção luso-brasileira:

"essa noite o locutor/ errou mais uma vez/ e um satélite no céu/ contou pra todo mundo o que ele fez. eu não gosto muito dele/ perfeito até demais/ nunca diz um palavrão e nem pediu perdão/ pra recomeçar/ de onde parou/ sem mesmo piscar. no intervalo comerical/ reuniu seu pessoal/ disse que assim não dava pra continuar. demitiu seu assistente/ que foi quem o distraiu/ e mandou toda sua gente descobrir quem foi que riu/ e recomeçou/ de onde parou/ sem mesmo piscar. quando o intervalo acabou/ eu não sei se o senhor notou/ o seu rosto estava cheio de uma fúria/ os seus olhos, cheios de uma dor/ e ao se despedir do telespectador disse: boa-noite, brasil/ vai pra puta que o pariu!".

de volta ao presente. impressos no encarte, os termos "brasil" e "puta que o pariu" não são audíveis na gravação. mas a dor & a fúria de quem muito se força a mentir está em carne exposta a todo brasil (a todo portugal, a todo mundo). somadas, "!" e "boa-noite, brasil" fazem, por espetacular espírito do tempo, um retrato completo do brasil de junho de 2005, o mesmo que assiste ao nascimento de "toda cura para todo mal". de olhos bem abertos, a menina ainda canta até o sol raiar, até dentro nascer o que há. ave, pato fu. bom-dia, brasil.

[p.s., como nos quebra-cabeças e palavras cruzadas do rock bubble gum "o que é isso?", é hora de perguntar: alguém quer brincar de achar samples espalhados aí por cima? isso é crítica musical, garotada!]

quarta-feira, junho 15, 2005

as vozes dos anjos tortos: não à invisibilidade

para tentar não deixar a peteca cair, num momento colossal de tristeza e desconsolo (alô, mefistofélico dr. jefferson)...

música & literatura fizeram par de vasos em dois textos publicados na "carta capital" 343, de 25 de maio de 2005. reúno os dois vasos neste mesmo tópico em branco-e-preto - o primeiro fala de livros de/sobre bob dylan e torquato neto, e o segundo sobre "cabeça de porco", já pregado & martelado incansavelmente neste blog (e mais atual que nunca, na leitura de que, não, não é nas favelas que nascem os maiores transtornos do brasil e em confronto com o estridente "não à invisibilidade" agora protagonizado pelos excelentíssimos deputados brasileiros, essas versões "robustas" de nós mesmos).

[ocorre-me que, diante de tanta exibição de sinceridade e de tantos gritos histéricos de "não à invisibilidade" por parte dos nossos parlamentares, não há mais o que lastimar ou lamuriar - nós vínhamos pedindo isso deles (e de nós mesmos), seja por meio de passeata, protesto, fórum, denúncia, jornalismo, ficção ou realidade. esta é a nossa própria carne, sendo cortada em público. parafraseando a sara de "terra em transe", estamos lançados no coração do nosso tempo - viva o nosso tempo.]

samba & leitura pras branquinhas & pros negões.

AS VOZES DOS ANJOS TORTOS
Livros abordam detalhes "secretos" das personalidades de Dylan e Torquato

Por Pedro Alexandre Sanches

Dois livros recém-lançados no Brasil, e muito diferentes entre si, ajudam a compor a idéia de que a canção popular é construída por cima de pequenos mistérios e segredos que, a priori e a rigor, não são feitos para chegar ao conhecimento consciente de seus ouvintes.

Coincidentemente, tanto Crônicas, sobre o norte-americano Bob Dylan, como Pra Mim Chega, sobre o brasileiro Torquato Neto, existem para colocar em xeque e tentar desmontar, ao menos em parte, o pacto ilusionista que comumente se firma entre os amantes da música popular e seus heróis (ou anti-heróis), muitas vezes tidos como perfeitos, sobre-humanos.

São, os dois, personagens tão dessemelhantes na essência quanto parecidos nas entrelinhas. Dylan ajudou a reinventar a música norte-americana a partir de 1961, protagonizando a reentrada do protesto político-social e do folk tradicionalista nas modernidades do pop e do rock’n’roll.

Como um Dylan maldito, às avessas, Torquato ajudou a reinventar a MPB entre 1967 e 1968, atuando como o principal ideólogo de bastidor da tropicália, que vinha coalhar de rock, iê-iê-iê, carnaval e música cafona a rigidez então vigente nas frentes da bossa nova, do samba e da canção de protesto.

Dylan fundou uma nova tradição, explodiu, virou pop star e garantiu uma permanência que se estende até estes anos 2000, quando escreve, em primeira pessoa, os poéticos textos autobiográficos que compõem suas Crônicas – Volume Um (Planeta, 326 págs., R$ 44,90).

Torquato ajudou a desarticular antigas tradições, forneceu substrato intelectual (era poeta, compositor, jornalista e crítico musical) à tropicália, permaneceu à sombra (não era cantor nem tinha vocação para astro pop), implodiu e se suicidou antes dos 30 anos. Há pouco, teve seus poemas, manifestos, cartas, críticas e crônicas de jornal agrupados nos dois volumes de Torquatália (Rocco, 2004), sob organização de Paulo Roberto Pires. Aos dois volumes, soma-se agora Pra Mim Chega – A Biografia de Torquato Neto (Casa Amarela, 236 págs., R$ 36), do jornalista e escritor Toninho Vaz, que também já biografou Paulo Leminski.

Um encorpado pela permanência, outro pela volatilidade, ambos com o tempo se tornaram mais mitos do que homens – mas é a humanidade deles que os dois livros querem principalmente ressaltar.

Dylan, em pessoa, borda um painel surpreendente em sua autobiografia parcial, que começou a ser publicada lá fora no ano passado e deve render uma trilogia. Impregnam suas páginas temas que fãs e críticos costumam desassociar dos mitos: fragilidade, fracasso, falibilidade, insegurança, incerteza, isolamento, loucura, solidão. O ponto culminante é a crônica Oh Mercy, em que ele descreve a encruzilhada criativa em que se encontrava por volta de 1987 ("a intimidade, entre muitas outras coisas, tinha ido embora").

Eis os sentimentos internos (que o álbum Oh Mercy, de 1989, viria em parte contornar) revelados ali: "Eu me sentia acabado, um traste vazio completamente consumido. (...) Onde quer que eu vá, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk-rock, um artesão da palavra de tempos passados, um chefe de Estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estou no inferno do esquecimento cultural".

Não bastasse isso, o cronista cruel também brilha ao desmistificar a ligação espiritual que supostamente existiria entre um ídolo e seus admiradores. Falando sobre os fãs hippies que na virada dos anos 60 para os 70 invadiam sua propriedade rural em Woodstock à cata do "Príncipe do Protesto" (que, ele insiste em afirmar, nunca existiu), assim os qualifica: "gangues de periféricos e drogados", "parasitas em peregrinação", "mulheres com aspecto de gárgula", "espantalhos", "vadios à procura de festa". E confessa, bombástico: "Eu queria mandar bala naquela gente".

Outra rota tortuosa é seguida por Toninho Vaz, na reavaliação do mito subterrâneo de Torquato Neto, que se destituiu do isolamento e da loucura ao ligar o gás de seu apartamento em 1972, no auge do terror implantado pela ditadura militar brasileira.

O livro de Vaz ficou engavetado um ano entre a conclusão e a publicação – nesse intervalo, a viúva de Torquato, Ana Duarte, desaprovou os originais e um contrato já firmado com a editora Record foi desfeito. Pra Mim Chega vem à luz, finalmente, pela editora Casa Amarela, da revista independente Caros Amigos.

Os percalços poderiam ser justificados em parte por certa falta de rigor do livro em si (Vaz erra informações e insiste, por exemplo, em tratar como Verdades Tropicais o livro autobiográfico Verdade Tropical, de Caetano Veloso). Mas o autor atribui a recusa de Ana Duarte e a desistência da Record à presença de dados biográficos de Torquato que pela primeira vez são publicados. “A verdade não é para ser contada”, lamenta ele em entrevista à CartaCapital.

A bissexualidade do artista seria o principal deles, e o biógrafo defende a necessidade de trazer esse dado à tona porque, em sua interpretação, ele teria sido crucial para os desdobramentos que traria à história da MPB a grande cisão tropicalista de 1968, a bordo do AI-5 e da prisão e exílio de Caetano e Gilberto Gil.

Segundo Vaz defende (apoiando-se em depoimentos como o da cantora Nana Caymmi, então casada com Gil), uma ruptura amorosa entre Torquato e Caetano teria sido um dos motores da desarticulação do movimento tropicalista – a partir dali, Torquato se afastaria de todo o grupo e mergulharia em progressivo isolamento artístico.

Ao que indica Vaz, as feridas não se curaram até a escrita de seu livro – ele afirma que, procurados, o parceiro Gilberto Gil e as intérpretes Gal Costa e Maria Bethânia se recusaram a prestar depoimentos para a biografia.

Caetano está lá, no entanto, e confirma em entrevista à reportagem o depoimento concedido na biografia (contra a qual afirma nutrir reservas): "Não gosto muito de livros que tentam reproduzir sutilezas íntimas de pessoas conhecidas publicamente pelo seu trabalho. Só posso assegurar que nunca houve uma ligação amorosa entre mim e Torquato. E que apenas a prisão e o exílio interromperam as ações (mas não o ideário) tropicalistas".

Caetano volta agora a falar sobre Torquato e dá pistas indiretas sobre o que, a seu ver, teria separado o poeta piauiense dos colegas: "Ele reagiu mal, num primeiro momento, às inspirações tropicalistas. Mas, desde que sacou o lance, se tornou um criador fértil e intenso no jeito do movimento. Tornou-se também um tanto sectário, se comparado a Gil ou a mim próprio".

Relembra, enfim, as circunstâncias em que compôs Cajuína, que lançou em 1979 como uma homenagem póstuma ao ex-parceiro: "Passando por Teresina no meio de uma excursão, o pai de Torquato veio me ver no hotel e me chamou para ir com ele até sua casa. Eu chorei o dia todo. Ao chegar na casa, ficamos os dois sozinhos. Ele foi ao jardim da casa e me trouxe uma rosa-menina. Serviu cajuína para nós dois bebermos. Ele me consolava com pouquíssimas palavras. A música é sobre isso".

Paulo Roberto Pires apoiou o resumo biográfico de seu Torquatália em informações obtidas com Ana Duarte (que não respondeu aos apelos da reportagem por uma entrevista), e assim se refere ao novo livro: "A pimenta é que ele se arrisca a uma interpretação sobre o rompimento, mas a mim ela não convence".

Ele, no entanto, concorda com a idéia de que, juntos, Pra Mim Chega e Torquatália compõem um panorama até aqui inédito sobre a presença e a importância de Torquato na cultura brasileira. Menciona, em especial, a inédita e desalentada correspondência entre o poeta e seu cunhado Helinho.

Não é só isso. Sempre se arriscando na corda bamba entre a vida íntima do biografado e suas significações culturais, Vaz define um retrato algo confuso, mas menos incompleto que o que havia até aqui. Ali cabe a atividade criativa abundante de seu personagem, mas se encaixam também as crises de isolamento, os conflitos de sexualidade, as passagens turbulentas por hospitais psiquiátricos, o pano de fundo sangrento do Brasil do início dos anos 70.

Parece defender que o homem não teria existência plena sem o artista que era, mas também que o artista não existiria sem os profundos conflitos do homem que se escondia por trás dele – e isso é o que Bob Dylan afirma o tempo todo, em todas as mais de 300 páginas iniciais de suas memórias íntimas e discretas.

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NÃO À INVISIBILIDADE
Um antropólogo, um rapper e um militante da favela unem-se para questionar a violência

Cabeça de Porco vem compor o quadro literário atual como uma contribuição inusitada, até difícil de compreender num primeiro momento. O estranhamento inicial é causado por seu trio de autores, em que cabem um antropólogo e cientista político de renome (Luiz Eduardo Soares), um cantor e compositor de rap (MV Bill) e um empresário de rap e articulador militante da Central Única das Favelas (Celso Athayde).

As primeiras 67 páginas do livro manterão o leitor desorientado: Bill e Athayde assumem a narrativa, relatando experiências pessoais em situações extremas do cotidiano de violência e tráfico em favelas de nove diferentes capitais, do Norte ao Sul do Brasil. Às vezes espetaculares, os relatos vão formulando um ponto de interrogação na mente do leitor: qual é seu sentido, quais são suas intenções?

Na segunda parte, Soares entra em ação, procurando conferir com prosa clara, objetiva e coloquial um fio condutor teórico e ideológico para o que se está tentando dizer. Pouco a pouco, o antropólogo que conhece as entranhas da polícia e dos departamentos de segurança pública (dos quais foi expelido em meio a denúncias de parte a parte e a mágoas não curadas) põe-se a refletir sobre as causas da violência e da desigualdade social no país, sobre a inadequação de políticas públicas quase sempre adotadas, sobre possíveis soluções.

Também vagarosamente, o leitor vai descobrindo que a estranha presença de Bill e Athayde é justamente a grande razão de existir do livro: a teoria de Soares prega que, na prática, o único caminho a seguir é o da incorporação de personagens quase sempre marginalizados à sociedade produtiva. Ele vai edificando um ideário que tenta reaproximar os estigmatizados (sejam soldados do tráfico, trabalhadores da favela, rappers ou o lumpesinato policial que atua dentro das favelas) de seus duplos espalhados pelo resto da sociedade: a polícia como instituição, os políticos, os cidadãos das classes média e alta que se encastelam no pânico de se ver cara a cara com um assaltante ou seqüestrador potencial.

Fartos exemplos recolhidos em pesquisa de campo procuram ir transformando em realidade prática a teoria esboçada. Embora nessa parte Soares seja o protagonista, os relatos de Bill e de Athayde voltam em capítulos esporádicos, e se tornam cada vez mais pessoais e contundentes.

Uma palavra vira termo-chave: invisibilidade. Soares teoriza e Bill e Athayde traduzem em primeira pessoa a relação de espelho quebrado entre o cidadão incluído e o garoto invisível do semáforo que um dia pega numa arma num esforço simbólico desesperado de se tornar socialmente visível – para esse menino, dali em diante, a trajetória será de tragédia anunciada.

O livro de teoria social torna-se eletrizante, quase romance ou cinema, quando os dois co-autores contam suas próprias histórias. MV Bill narra uma de suas primeiras experiências mistas de invisibilidade e discriminação racial: o trabalho adolescente como carregador de compras num supermercado. Parte dos princípios éticos que povoavam seus pensamentos ao acompanhar uma madame até seu apartamento e chega à humilhação perante patrões e colegas, após uma suposta tentativa de flerte entre o carregador e a filha da madame.

Athayde conta em tom quase corriqueiro uma experiência de crueldade inaceitável: narra que quando menino participava, como "ator" e para ganhar uns trocados, de lutas em rinhas que não eram de galos, mas sim de meninos.

A teoria de Soares encontra o espelho chocante da brutalidade de uma sociedade que admite transformar crianças em galos de briga, enquanto dissimula uma falsa ignorância sobre o que acontece ali do outro lado do espelho. Reconhecendo-se na corda bamba da incerteza sobre como tapar um poço social que parece sem fundo, Soares demonstra em pequenos atos práticos o que há de viável por se fazer: subtrai do estigma e da marginalidade dois moradores da Cidade de Deus, que contam histórias terríveis e profundas num substrato (o livro) que antes nem sequer sonhavam ter direito de ocupar. - POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A obra: Cabeça de Porco (296 págs., R$ 33,90), de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde. Editora Objetiva.

segunda-feira, junho 13, 2005

we live in a political world... *

pela segunda vez consecutiva, roberto jefferson foi o dono do final de semana no brasil. coalhou a "folha" com mais revelações acachapantes, e não teve para mais ninguém - ou melhor, teve, de longe, para uma entrevista de capa da "istoé dinheiro", concedida por um ex-parceiro íntimo do suave jefferson: fernando collor de mello, que assim se alçou candidato ao posto de gestor credenciado a aconselhar luiz inácio lula da silva sobre que "erros" não cometer. jefferson e collor, os donos do brasil num fim de semana ensolarado de junho de 2005 - incrível, extraordinário, do arco da velha.
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enquanto isso, a "carta capital" veio com uma entrevista menos espalhafatosa, mas também estonteante (e que está causando comoção em ninhos tucanos), dada a maurício dias pelo cientista político wanderley guilherme dos santos. está aqui a entrevista, encarecidamente eu peço que prestemos atenção, que tomemos conhecimento desse viés do imbroglio, embora esse viés também seja, é claro, ideológico. wanderley contextualiza o cenário atual comentando os interesses da oposição tucana, mas também guarda trechos de análise essencial sobre a natureza dos interesses da mídia, da imprensa, da indústria jornalística, em casos como o de agora. relata como, historicamente, a imprensa atuou direta e ativamente para desestabilizar getúlio, juscelino, jânio, jango... recoloca essa peça - a da impresna politizada - de volta no tabuleiro do jogo, algo que temos o péssimo hábito de nunca fazer.
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então, o jefferson. algumas coisas lá nas novas três páginas de entrevista dele são de arrepiar (e, curiosamente, não estão anunciadas nos títulos e nas chamadas do jornal). a primeira delas é que o cara, que no resto todo do tempo se veste de revoltado contra a prática desonesta do mensalão, revela toda a dinâmica de transações entre um partido (o dele) e o governo em exercício. segundo seu depoimento, o pt teria lhe prometido r$ 20 milhões para custear as campanhas eleitorais do ptb (que país é este em que um partido custeia a competitividade de partidos "inimigos"????). diz que seu ptb recebeu duas parcelas desse acerto, num total de r$ 4 milhões, e que depois a fonte secou e o resto não veio mais. então eu poderia entender que o "suborno" miou depois de saldados 20% da "dívida"? eu poderia entender que o jefferson agora está gritando moralidades (ou, em outras palavras "chantageando") em busca dos r$ 16 milhões que "faltam" para o ptb eleger (com o meu, o seu, o nosso voto) uma fornada novinha em folha de deputados, prefeitos, governadores etc.? é essa dupla dinâmica entre suborno e chantagem que estamos lendo bailarem em letras garrafais nos jornais?
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mais uma coisa que meus ouvidos despolitizados receberam com reverberações bombásticas: pelo mal e mal que estou entendendo, o jefferson ali está explicando por que é que o brasil de brasília resolveu fazer dele o bode expiatório favorito da temporada. diz que o governo teria prometido ao seu ptb um alto cargo em estatal (furnas), ocupado há 12 anos por um gestor ligado ao presidenciável tucano aécio neves. e dá a entender que a enxurrada de denúncias contra os correios (e em pessoa contra ele, presidente do ptb) nasceram da disputa de poder por este cargo, entre ptb e psdb. eu posso entender que, segundo jefferson, o escândalo dos correios germinou em solo tucano? e que seu atual destampatório ambiciona desmoronar, de uma tacada só, petistas e tucanos? posso entender, então, que se insinua daí uma guerra entre partidos graúdos e nanicos, entre políticos que têm se alternado no poder e políticos-capachos que aqueles costumam sempre pisotear com pés cheios de barro?
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mais lama no destampatório de bob jeff: josé dirceu seria o cerne do mal, e da boca de dirceu escapariam avaliações que enlameiam também setores da imprensa - de que a "veja" (a primeira a detonar as denúncias sobre os correios) é tucana, de que as globos são manipuláveis pelo governo federal. ai, ai, ai, quer dizer que, como defende o cientista político wanderley, a imprensa e a mídia são mesmo peças ativas e detonadoras de toda essa disputa homicida/suicida de poder? quem está aí para nos defender (a nós, os miúdos)? e quem atende a interesses de bastidor, que não passam nem perto dos nanicos do lado de fora de brasília, de são paulo, da tela da tevê? quem enxerga direitinho os ilusionismos da novela das oito da globo saberá estender seu raio de visão e também enxergar, por sobre um milhão de sinais de fumaça, os ilusionismos do poder, da política, da imprensa, da mídia, do governo, da oposição, do eleitor, do eleitorado, do reflexo no espelho?
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então, pois é. tudo isso quem está falando é o roberto jefferson, do ptb, ex-defensor ferrenho da permanência de collor no poder, ex-aliado de fernando henrique cardoso, atual-quase-ex-parceiro político de lula, josé dirceu & cia. de dez dias para cá, a "folha" publicou nada menos que cinco páginas de entrevistas com esse ilibado cidadão. ok, não sejamos ingênuos, o que ele diz é de relevância irrefreável, embora nunca fundamentada em provas, nunca comprovada (alô, escola base!). ainda assim eu me sinto aflito, incomodado, desassossegado com esse noticiário. só dá roberto jefferson, só dá collor de mello, um pouquinho de daslu, só dá gente da mais fina categoria, se é que você me entende. serão esses os protagonistas oficiais do brasil de 2005?
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e como ficam nossos sentimentos maltratados quando um jornal como a "folha" elege roberto jefferson como seu interlocutor privilegiado e exclusivo? até outro dia não se condenava e linchava moralmente o lula por ele ter afirmado que jefferson era seu amigo, que para jefferson ele assinaria tranqüilamente um cheque em branco (mais um dos formosos atos falhos de lulinha paz e amor?)? mas não é justamente isso que está fazendo agora a "folha" - e, atrás dela, toda a indústria jornalística brasileira? então somos todos iguais nesta noite?
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enfim. este exercício de raciocínio não quer julgar moralmente nem lula nem "folha", nem fhc nem jefferson (saudades de antonio carlos magalhães? por onde anda acm?), nem globo nem severino cavalcanti. o que me assusta, e me empolga, e me parece inédito, é que olho para tudo ao redor e não consigo encontrar santos e heróis em canto algum, nem olhando para mim mesmo, nem olhando para você que está lendo este texto. sem messianismos nem heroísmos (alô, glauber rocha), fica mais fácil perceber o quão sistêmica e disseminada é essa nova rodada de escândalos no brasil. deste modo, dá para pescar em que grau de atoleiro estamos envolvidos nela eu e você, euzinho e vocezinho que votamos e assistimos ao "jornal nacional" e lemos jornais progressistas e buscamos a felicidade e nos indignamos com as grandes trapaças que são irmãs graúdas e poderosas dos nossos humilhados/humilhantes cambalachos do dia-a-dia.
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dito tudo isso, e tentando ainda aspergir gotículas de entusiasmo e otimismo, fico com o depoimento do bruno na caixa de diálogo do tópico anterior: pra frente, brasil!, acredita, brasil! e, acrescento eu, lembrando duma música de marina lima em 1985: muda, brasil! também não acho, diferentemente do nando, que tudo acabou. sintomas de fim de ciclo nós estamos vivendo, sem dúvida, há vários anos (é aquele século xx, que, medroso, tarda a se encerrar?). mas a novidade de agora não é o término de uma época - é o começo de outra época. mas isso vai depender de nós, de cada um de nós, das rédeas tomadas por cada um de nós.

[* título-sample do bob dylan de 1989, aquele que sempre se aborreceu com o ilusionismo vigente na relação astro-fã (político-eleitor?) e resolvia então, mais uma vez, se desconstruir, se reinventar, mudar, se reconstruir.]

quinta-feira, junho 09, 2005

milágrimas

t'esconjuro, semaninha do capeta! não dá para usar meias palavras: é assunto suficiente para deixar a gente desnorteado, desassossegado, desanimado, desesperançado... é hora, então, de reunir os frangalhos que ficaram espalhados pelo caminho, tentar fazer do ovo uma gemada.
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há um primeiro movimento que considero indispensável, e que faço aqui repetindo o que desabafei lá no blog do idelber avelar (onde a discussão política vai à fervura). é o seguinte: até hoje, nesta vida, eu só elegi um presidente da república. elegi luiz inácio lula da silva, após três tentativas frustradas de elegê-lo (e após uma geração inteira sem eleições). isso, aconteça o que acontecer, faz toda a diferença. não dá mais para ter a postura de antigamente e sair denunciando dum lugar fora, à parte, idealizado, a corrupção geral da nação: desta vez, pela primeira vez, sou diretamente co-responsável, e não vou me eximir em momento algum da minha responsabilidade. se o brasil de hoje é corrupto, sou co-responsável pela corrupção do brasil de hoje.
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não suporto mais aquele papo-ameaça eterno de "o brasil é um chiqueiro, na próxima eleição responderei com meu voto" - o cara que fala isso vota num outro amanhã e daqui a quatro anos está falando a mesma frase, outra vez, na trilha eterna do círculo vicioso. para esse cara, o sistema político está sempre podre, e ele próprio - o cara - está sempre puro, impoluto, impávido, colosso. não dá mais essa ladainha, e por esse lado é uma grande e dolorosa experiência a gente (que votou no lula) se ver do lado de dentro do espelho, pela primeira vez.
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já que falei em voto, esta também é velha: quem aqui lembra em quem votou para senador, deputado federal, deputado estadual, vereador? não lembro direito em quem votei, mas adotando um discurso de responsabilidade eu devo admitir que, por inclusão ou exclusão (tanto faz), eu sou co-responsável pela constituição do parlamento que mais uma vez está enchendo o brasil de vergonha. lá no isolado planalto central está empoleirada uma amostragem do brasil, uma amostragem de gente que a gente conhece de muito perto - inclusive porque talvez sejamos nós mesmos essa gente que é igualzinha, sempre a mesma, seja na favela, na daslu, na escola, no parlamento, na cadeia, dentro de casa, num asilo de velhinhos.
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minha impressão atual, por ter votado em quem eu acredito e por ainda continuar acreditando em quem acreditava, é de que não dá mais, é de que é preciso que todos nós tomemos de volta as rédeas das nossas próprias responsabilidades, de uma vez por todas (alô, nando, sim, "quando a gente muda, o mundo muda com a gente", acredito totalmente nisso embora não lembre de quem é essa frase).
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é preciso reconvocar, por exemplo, as responsabilidades daqueles que, após décadas de espera para que seus maiores anseios chegassem ao poder, esperaram apenas algumas semanas de governo para desembarcar, para desembarcar atirando e denunciando a "traição" (lamuriei esse dado no antigo tópico elogios à "traição": pra quê?, lembra?). essas pessoas precisam compreender que, desencapando feito viúvas volúveis o fio de um governo que apenas se formava, também se tornaram co-criadoras do cenário que está acontecendo agora - é fácil esfaquear moralmente a má qualidade dos atuais "amigos" do governo, mas quem foi que primeiro renunciou a entregar suas virtudes à coalizão que então (não) se formava? quem admitiria que o psdb, há 10 anos preferisse a "amizade" do pt à do pfl? quem admitiria que o pt, há 2 anos, preferisse a "companhia" do psdb às de pl, pp, ptb? alô, heloísa helena, alô, intelectuais de esquerda, alô, pt de esquerda, alô, psdb, alô, academia. alô, alô, responde...
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uma coisa que me agrada nesse rocambole é que, mais que qualquer outro, o pt passa agora pelo tardio traumatismo de virar mocinho(a) (não dá para não pensar em crianças nessa história em que corruptos são acusados de receber "mesadas" - ora, quem recebe mesada é quem ainda não está pronto para se sustentar sozinho. ora, ora, senhores deputados, quanto vexame, com essa idade e esses brancos bigodões?). até aqui, havia uma disputa fratricida de reserva moral entre o governo e o pt, duas forças que se confundem e vivem em contínua crise de identidade uma com a outra. as ditas esquerdas petistas se valeram, não foi uma nem duas vezes, do argumento de que o pt governamental "traiu", "desonrou", virou direita. pois agora, numa queda-de-braço com lula, os ex-reivindicadores da reserva moral deslizaram em socorro do tesoureiro delúbio soares - ora, mas até aqui não era só o governo que estava "traindo" antigas convicções? quem aqui é a corda, quem aqui é a caçamba?
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se a capa de chuva rasgou e o pt está nu sob o temporal, que tal agora admitir(mos) que a disputa por reserva moral é falaciosa, por qualquer lado que se olhe? que o pt é uma pequena amostra do brasil assim como são os outros partidos - até mesmo, santa luzia dos cegos nos proteja, aqueles partidos sempre onerados (muitas vezes por seus próprios políticos) com o monopólio enlameado da escória, do atraso, da podridão? alô, ptb, alô, pp, alô, pl, alô, pfl! alô, alô, responde...
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aí a sociedade se ergue escandalizada com o mensalão, com a mesada que huguinho, zezinho e luisinho recebem da vovó donalda, do tio patinhas, do pato donald. políticos ilibados (alô, psdb, alô, miro teixeira do pt, alô, eduardo suplicy. alô, alô, responde?...) se cobrem de pejo e de horror e afirmam que coisa assim nunca se viu, que corrupção desse tamanho é inédita. e nós, espectadores passivos consumidores de sangue e papel, acreditamos e, marias, vamos com as outras. ora, ora, alguém aí algum dia da vida já acreditou que sujeito vende a alma para ser deputado e senador e ganharpor mês míseros r$ 5 mil, avaros r$ 10 mil (qual mesmo é o salário nominal do lula, aquela merreca?)? se é para ganhar essa modéstia toda, mais fácil seria irem ser executivos nalguma área mais pacata e menos espalhafatosa, não?
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não entendo bulhufas dos mistérios da política, mas será que é por aí que se poderia explicar a moderação exemplar do psdb e do pfl neste exato momento? quem já foi governo está na moita, não é mesmo? não é hora de admitir que as mesadas de um país que mal saiu da adolescência são parte da própria história desse imaturo país? não é hora de parar com as mesadas, convocar o brasil a ir ganhar a vida por seus próprios braços e pernas???? alô, pt governista, alô, sofrido lula. alô, alô, responde... alô, alô, parem com a mesada, parem com isso, por favor, parem agora...
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não é só o termo "mesada" que me encaminha ao perfume infantil, ao perfume familiar. há dois termos que aparecem aqui e ali, mas que são a todo momento sufocados, enfiados de volta para dentro da toca. um é "suborno" - o governo "subornou", isso é "imoral", isso escandaliza. outro é "chantagem" - roberto jefferson "chantageou", deputados "chantageiam" governantes, isso é bandidagem, isso horroriza. escolha seu vetor predileto, se quiser ficar do lado do governo ou se quiser ficar do lado do congresso (não adianta, ambos são você, ambos somos nós mesmos): a gosto do freguês, foi o governo que subornou, ou foi o congresso que chantageou. acuse, acue, repreenda, reprima, deprima: são todos uns celerados, de reputação irretocável, só nós mesmos, mesmo.
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mas, vem cá, também não nos são familiares demais esses termos? alguém aí já subornou irmão mais novo, amiguinho, avó, vizinha, primo, tia, avô, empregada doméstica? alguém aí já fez chantagem emocional com a mãe, com o pai, com o irmão, com os filhos? já chantageou a irmãzinha mais nova, o empregado, a patroa, a esposa, o esposo? ou esse troço vexatório é da natureza humana, e aqueles esquisitos entre nós que alcançaram o poder repetem tais vergonhas tal e qual, só trocando por "dinheiro" a moeda de troca que na nossa vidinha vil é "afeto", "amor", "desamor", "disputa", "ódio", "inveja", "ciúme", "insegurança", "instabilidade"?
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nesses termos, será que não estaríamos numa crise de amadurecimento? o que indica esse destampatório, esse confessionário, esse surto confessional que, das paradas de minorias à vocação tragicômica de roberto jefferson, tem nos acometido nestes novos dias? será que há algo de novo no front?
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somos um país que está ficando adulto a duras penas, ou esse será apenas mais um ciclo que depois de amanhã se repetirá, com a diferença do maior ou menor grau de, er, malemolência do partido que estiver no poder em cada hora? quem ajudou a construir este país até aqui terá a leveza de consciência para dizer o que já se ouve muito por aí, que lula é igual a collor? ora, bolas, não me venham com (mais) leviandades nesta hora. lula não é nem nunca será um collor, só quem odeia este país poderá por um segundo acreditar nisso.
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por mais que a corrupção (essa irmã graúda das irregularidades e contravenções que testemunhamos e praticamos todos os dias, em casa, no emprego, no trânsito, na declaração do imposto de renda) doa em nossos nervos lanhados, é preciso aqui afirmar, e lembrar a cada comprido segundo destes dias tão longos: desde que collor foi deposto e itamar franco assumiu, e fhc se elegeu, e fhc passou num balé descoordenado (por ambas as partes) a faixa para lula, o brasil vem vivendo um avanço institucional notável, inédito, colossal. nosso senso autodestrutivo não pode nos vencer a ponto de apagar essa evidência, a mais linda que possuímos, mesmo que tudo pareça um cenário de pleno desalento.
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porque é tanto avanço, tanto avanço, tanto avanço. a maturidade que no brasil as minorias (ou seja, a maioria dos brasileiros) estão conquistando é monumental, maravilhosa. alô, negros, alô, favelados, alô, praticantes de todas as formas de sexo, alô, cultores das religiosidade afro-brasileiras, alô, evangélicos, alô, wando, alô, raul gil. alô, alô, a resposta já está dada...
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é com base no fragmento acima que me sinto profundamente ofendido, agredido e humilhado quando leio a primeira frase do principal editorial do "estado de são paulo" no epicentro da crise, na quarta-feira que passou. chamava-se, puritanaamente, "o grande culpado", e principiava assim: "a começar do presidente lula, o governo parece acometido da síndrome da imunodeficiência: não só não consegue criar anticorpos para defender a administração direta e as estatais das investidas corruptoras de seus aliados, como não consegue reunir coragem para tomar as iniciativas sem as quais a crise política, na melhor das hipóteses, se tornará crônica, e, na pior, se transformará em crise institucional".
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"sindrome de imunodeficiência"? adquirida? aids? o "estadão" está "xingando" o governo de "aidético", repulsa fascista discriminatória por todos os lados? está assimilando o "trauma" de ter que assistir a uma parada política de 1,8 milhão de pessoas, para, então, jogar a "culpa" "moral" da crise numa doença que, há 20 anos, era tida como peste de homossexuais? é tolerável tamanha desfaçatez??? alô, "estado", alô, "folha", alô, "globo", nós precisamos de suas responsabilidades, de suas maturidades (maturidade de adulto, não de pai repressor, censor, juiz, bastião da moral)... alô, alô, responde, ajuda a virar nossa canoa para outro rumo, para a bonança, não para o surfe nas ondas gigantescas do "quanto pior, melhor"... melhor para quem, páginas pálidas?
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a onipresente mídia, a propósito, iniciou a descida ao inferno babando ódio, babando fúria, babando fobia - "estado" e "folha" à frente, palmo a palmo, nariz a nariz. incrivelmente, o tom raivoso desceu vários decibéis conforme a semana correu, até culminar em dois incríveis editoriais lúcidos, circunspectos, sólidos e respeitosos na "folha" - e outro n' "o globo", que em horas como essas apresenta o aliviante diferencial de se mostrar propositivo, positivo - ali não se puxa orelha; antes, ali se formulam palavras no estilo "lula deveria fazer tal e tal coisa para desacelerar a crise, para retomar as rédeas, para preservar o país em estado mínimo de saúde" - dedos rijos ainda apontados para o outro, mas pelo menos propositivos.
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muitos, diante da postura positiva/propositiva, tendem a enxergar fraqueza, tibieza, leniência, pieguice. atenção, o nosso vício pelo pior é crônico, mas não é da nossa constituição (alô, paulo lins, alô, cidade de deus), mas sim um parasita que habita o organismo de todo e qualquer brasileiro desde que o primeiro português assassinou o primeiro índio. não é o vírus da imunodeficiência, é o vírus (violento) da autocomplacência, da covardia crônica, que não mata de uma vez, mas mata um pouquinho a cada dia, todos os dias da vida. é dogville.
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de volta à mídia, é estranhíssimo acompanhar a curva que vai da hidrofobia dos primeiros dias da semana à sisudez ponderada dos dias de agora. nesse meio tempo, ficou um exercício hediondo (mas atraente como ver um atropelado sangrando no meio da avenida) virar as páginas dos jornais de são paulo. a corrente elétrica partia do escândalo político e chegava à satanização branda do filho de pelé (os eternos bodes expiatórios da sociedade: negros, pobres, traficantes, criminosos miúdos).
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mas no meio do caminho entre brasília e a favela, havia uma pedra. dando curto-circuito, páginas e páginasde propaganda esbanjavam aquela modalidade grotesca de vulgaridade de elite que é a daslu, cuja inauguração foi freqüentada com algum constrangimento pelo governador tucano geraldo alckmin. os anúncios publicitários da daslu nos escracham e achincalham de modo dissimulado, oprimidos pelos escândalos graúdos da política. era à custa da daslu (e das carcaças dos favelados que moram atrás da daslu) que os jornais faziam a gorda receita publicitária que movimentava as edições lotadas até o pescoço da "imaculada" condenação moral aos escândalos políticos.
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quem parecia pagar o pato, melancolicamente, era o filho desgarrado, ovelha negra, do pelé. era o pedófilo gay preso por abusar sexualmente de crianças da mais tenra idade. eram o cobrador e o motorista que foram flagrados fraudando o bilhete único. eram os pobres de periferia que freqüentam os ceus petistas em governo tucano, o qual ameaça trocá-los por gastos publicitários (espera-se que não na daslu, ao menos).
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não sei se isso me alinha às facções da população que merecem a forca e o linchamento, mas eu vou dizer. entre a daslu e o filho do pelé, eu fico com o segundo, sem piscar o olho. alô, daslu, alô, elite econômica, alô, elite política, alô, elite intelectual. alô, máquinas fazedoras de bodes expiatórios. alô, alô, responde, alô, alô, acorda...
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se vier mais chumbo no fim de semana, será que o ciclo vai se repetir, como em síncopes de ataque epiléptico? ou será que, junto com os tucanos, o resto da elite econômica do país atentou (com atraso equivalente ao da apatia verminosa de lula) para o sinal de pisca-pisca que já avisava que essa crise pode ultrapassar partidos, ideologias, convicções e pragmatismos e pode virar sistêmica, epidêmica, disseminada?
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se ninguém está se entendendo, vamos mais uma vez bater no buraco do "salve-se quem puder", dos ratos que abandonam o navio chamado brasil? se for assim, pule e enfrente o mar bravio. ou então fique e naufrague junto com o navio bravio brasil. ou então, terceira via, entenda de uma vez por todas o que é responsabilidade individual e o que é espírito coletivo e o quanto somos carentes dessa dupla do barulho. porque juntos, o mar revolto e o navio infestado de cupins são uma entidade só: nosso próprio organismo, nosso próprio sangue, nossa própria sobrevivência.
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por fim, gostaria de dizer o que eu espero do presidente lula, em quem continuo confiando, mesmo que nem mais em página de fábula ele se pareça com um herói inviolado e inviolável. espero que, mesmo que ele não possa se explicar a nós com todas as letras, palavras e (lindas) metáforas que devem estar cortando sua própria carne, ele não se sinta abandonado (abandonado ele já foi desde pequeno, abandonado sempre foi o brasil, abandonada quem se sente é criança que recebe mesada) nem deixe a impressão (ou a realidade factual) de paralisia dominar sua tez.
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de nós todos, brasileiros, eu espero que tenhamos a força e a fibra de, pela primeira vez, agirmos como adultos e desarmarmos o círculo vicioso - votando contra, a favor ou muito pelo contrário, nós elegemos e fomos eleitos e nos elegemos para mudar o brasil. para crescer juntos rumo à vida adulta. para parar para sempre com propinas, subornos, chantagens, picuinhas, birras, pirraças e criancices quetais. se, como diz alice ruiz (alô, itamar assumpção, você mora cada vez mais aqui!), "a cada mil lágrimas sai um milagre", nós já choramos milágrimas. agora chega de mágoa, é vez do milagre. se o "rei" está nu, então viva o "rei". agora é a hora da estrela.