sexta-feira, setembro 19, 2008

sérgio ricardo

já está nas bancas a "carta capital" 514 (data de capa 24 de setembro de 2008), com o seguinte perfil, originado de entrevista produzida no rio de janeiro em 8 de setembro de 2008. aqui, no blog-irmão deste, há um texto-irmão deste, talvez oposto, talvez complementar, talvez um pouco de cada coisa.

(obs.: o texto "zelão e seu violão" não chega a mencionar, mas o nome de batismo de sérgio ricardo é joão lufti, e ele é filho de um sírio nascido em damasco.)


ZELÃO E SEU VIOLÃO
As aventuras e desventuras de Sérgio Ricardo com a Bossa Nova, a canção de protesto e a vida na favela

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES


Grito, mas ninguém vem me escutar/ canto, ninguém me acompanha/ batuco e não vejo ninguém sambar. Os versos se adequavam ao vozeirão caymmiano de Sérgio Ricardo em 1979. E se ajustam com precisão ainda hoje, quando, aos 76 anos, o cantor e compositor regrava a canção Lá Vem Pedra num disco de retorno, batizado Ponto de Partida (Biscoito Fino).

Ele é caso dos mais excêntricos na história da música brasileira. Esteve no big bang da Bossa Nova, mas carregou consigo a peculiaridade de se fazer dissidente mesmo antes da consumação do movimento. Quando estreou em disco, em 1960, o músico paulista de Marília cantava temas de amor e suavizava a voz à maneira aprendida desde 1958 com João Gilberto, seu amigo até hoje. Mas o LP Não Gosto Mais de Mim escondia em seu interior uma pequena canção-contradição, nascida antes da influência da bossa, chamada Zelão.

Era exemplar do que só cerca de quatro anos depois levaria a alcunha de "canção de protesto". "Morava em Botafogo, minha janela dava para um morro onde a chuva derrubou um barraco. Aquilo me comoveu muito", ele rememora, instalado no apartamento-estúdio-ateliê em que vive, com impressionante vista para o mar e a Favela do Vidigal.

Zelão foi o maior sucesso do LP, mas colaborou para deslocar Sérgio da turma de Copacabana, empenhada em forrar a Bossa de sal, sol e sul. O afastamento paulatino viraria catarse na co-autoria da enfezada trilha sonora do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, o primeiro a desafiá-lo a soltar o trovão que guardava na garganta. O protesto parecia ser o destino de Sérgio Ricardo.

"E por que o indivíduo faz isso? Porque quer atuar na transformação da sociedade. Não quer só gracinha, barquinho, prainha, amiguinhos. Chega desse negócio", justifica, acostumado ao preço pago por conservar tal posição. "Se o recado dói na cabeça das pessoas, é porque dói na consciência. Aí começam a atacar", raciocina.

A reprovação à música engajada foi explícita nos anos seguintes ao golpe militar de 1964, e sobrevive semi-oculta nas saliências e reentrâncias da indústria cultural. "Você entrega seu pêlo, se arrisca, pode ser preso, torturado, expulso do País, não ter mais entrada na mídia", ele descreve.

Seu apartamento de vista magnífica fica na subida do morro do Vidigal, antiga Ladeira do Tambá, hoje avenida Presidente João Goulart. "Tenho inquietação, por isso moro num lugar pacífico", brinca. Ele subverte assim uma máxima cantada em 1965 pelo bossa-novista Marcos Valle, falar de morro morando de frente pro mar/ não vai fazer ninguém melhorar, em crítica à bossa então politizada de Nara Leão, Carlos Lyra e Geraldo Vandré. Sérgio mora de frente para o mar. E para o morro.

Embora demarque respeito e amizade pela geração da Bossa, ele sustenta opinião contra o "clube" erguido ao redor da invenção inicial. "Quando alguém vem dizer que faz Bossa Nova, fico arrepiado. É sempre arremedo, cópia. Quando se descobre um cânone, todo mundo imita", diz.

E cita João Gilberto, que, por sinal, tem cantado em shows recentes uma de suas bossas românticas iniciais, O Nosso Olhar: "Há certa confusão. Não gosto de falar em nome de João, seria bom que ele falasse. Mas não é muito satisfeito com os rumos que a coisa tomou, não".

Dissidente da Bossa, Sérgio seguiria dissidente vida afora. Desde os anos 60 milita na luta pelos direitos autorais, o que lhe angariou e angaria hostilidades. "O Ecad virou o arrecadador de todo o dinheiro, que distribui de modo suspeito. Há pouco dei um depoimento numa reunião, fiz um discursozinho que desagradou o pessoal da situação."

Músico de formação clássica, reorientou textos e melodias para milongas, modas de viola, capoeiras, batuques africanos, música nordestina. "No Rio e em São Paulo havia um preconceito contra o Nordeste, 'os baianos'. Há um deboche até hoje, como há em relação aos negros. E dizem que não há racismo no Brasil."

Em 1967 discordou dos pares mais engajados e deixou-se de fora de célebre passeata contra a guitarra elétrica. Em reação, inseriu guitarra no show que levava no Teatro Arena, antes de a tropa de elite tropicalista iniciar a tomada de poder na MPB.

Incidente maior aconteceria no mesmo ano, quando apresentou o samba de fundo social Beto Bom de Bola no festival da TV Record. Vaiado impiedosamente pela platéia, descontrolou-se, destruiu o violão no palco, retirou-se e foi desclassificado. O gesto o marcaria para sempre. O nome Sérgio Ricardo viria sempre com, vírgula, "o cantor que quebrou o violão".

"A canção até favoreceu, meu nome permaneceu sendo falado. Se não fosse ela, teria partido para o anonimato total", reavalia. Mas em 1991 demonstrou seu desconforto com o zangado livro Quem Quebrou Meu Violão (Record).

O caso não o fez desistir da voga dos festivais. No ano seguinte lá estava outra vez, com Dia da Graça. A Censura vetou parte da canção. Nos trechos que ele era forçado a silenciar, a platéia munida da letra cantava os versos proibidos. "Fui à forra. E aí, iam prender a platéia?", orgulha-se. Curiosamente, a história oficial disseminou o episódio do violão, mas não guardou registro qualquer da "desforra".

Sérgio ficou na mira da repressão antes de o mesmo acontecer com outro de seus maiores amigos, Chico Buarque (que, de brincadeira, costumava chamá-lo de "titio"). Foram censurados Calabouço (sobre o assassinato do estudante Edson Luís pela ditadura em 1968), uma canção sobre Che Guevara, os filmes que dirigiu anos 70 adentro.

O anonimato não foi total, pois havia o "circuito universitário". "Os estudantes cantavam minhas músicas comigo, eu não entendia nem como tinham aprendido. Se eu tivesse gravado os shows que fiz pelo Brasil afora, nossa senhora, quero ver quem é popular."

Frestas nas vitrines oficiais foram raras. Em 1977, integrou a trilha sonora do primeiro Sítio do Picapau Amarelo da Globo. Cantava para as crianças o desalentado tema da boneca de pano de Monteiro Lobato: pobre de mim, Emília, me traga uma notícia boa.

Data dessa fase a relação duradoura com o Vidigal. Um dia, da janela que ainda ocupa, prestou atenção num barraco de madeira lá adiante. Queria bolar o roteiro para um filme inspirado no Zelão, e acabou por comprar o barraco. Quando pediu escritura, recebeu a resposta do proprietário: "Você entra com seus móveis pela porta da frente, eu saio pela de trás e está feita a escritura".

Deixou alugado o apartamento e foi para dentro do Vidigal. Mal havia se mudado, a Prefeitura decidiu desalojar os moradores e demolir os barracos. Transformou-se de súbito em líder comunitário. Mobilizou imprensa, cardeal, advogado. Levou Chico Buarque para show gratuito na comunidade. E o barraco do personagem Zelão, reencarnado em seu criador, dessa vez não foi ao chão. Mais tarde, foi habitado por uma sua empregada doméstica, que havia sido despejada da Rocinha.

Ele voltou à janela de sempre. Ali, com mar e morro lá fora, concebeu o novo Ponto de Partida, feito em parte de versões retrabalhadas de suas canções, das mais engajadas à bossa romântica de Folha de Papel (olha só o que o vento faz com o papel/ e traga ele a notícia que for/ vai voar, voar...).

Todo permeado de arranjos elegantes e harmonias sofisticadas, o CD foi gravado com uma equipe extensa de músicos jovens, inclusive os três filhos do cantor. "Descobri que a juventude não estava alienada como pensei", ri. Refaz Deus e o Diabo na Terra do Sol com delicado arranjo sinfônico. Zelão fica de fora, mas o mito inaugural de Sérgio Ricardo habita dentro dele, por todos os poros e vizinhanças.

quarta-feira, setembro 17, 2008

loiras dos olhos azuis

encontro na "rolling stone" do mês uma entrevista muito bacana com deize tigrona, ela, em pessoa. e parei especialmente no seguinte trecho, quando a repórter (adriana alves) pergunta o que mais marcou a funkeira (e moradora de cidade de deus, e ex-empregada doméstica) nas turnês que tem feito fora do brasil. ela responde assim:

"Copenhague [Dinamarca]. Vi um bairro lá que me deixou muito impressionada. Tinha uma galera cantando hip-hop e era uma favela, diferente da que a gente tem aqui, e o que me impressionou foi o fato de estar num restaurante, eu, negra, sentada, e tinha umas crianças loiras dos olhos azuis brincando quase que na lama e quase vindo me pedir comida... Me senti do outro lado da história. Quando vi aquilo, pensei: 'Meu Deus, como é que pode.' Só saindo do Brasil para ver que aqui o pessoal reclama de coisas que no mundo afora também tem".

uma porrada, mas a conclusão dela é genial, não? quem dá mais?

quinta-feira, setembro 11, 2008

o rabão

ih, vexame, eu devo ser a última pessoa no planeta a ler este livro, o faladíssimo (imagino que não na "grande" mídia, né?) "a cauda longa" (campus/el sevier, 2006), do cara da "wired", chris anderson.

cheguei eu mesmo lááá na cauda do cometa, atrasado que só eu, mas, vá lá, copio aqui alguns dos trechos embasbacantes, pedindo perdão desde já para quem sabe dessas coisas de cor e salteado há mil anos-internet. (os grifos? são meus.)

capítulo 1, "a cauda longa", subcapítulo "a maioria oculta", página 24:

"Uma maneira de raciocinar sobre as diferenças entre as escolhas limitadas de ontem e a abundância de hoje é comparar nossa cultura com um oceano em que só aflorassem na superfície as ilhas de sucessos. Nele se avistam uma ilha de músicas feita apenas das mais ouvidas nas paradas de sucesso, uma ilha de filmes composta somente de campeões de bilheteria, um arquipélago de programas populares de TV do horário nobre e assim por diante.

Imagine a linha de flutuação como sendo o limiar econômico da categoria, o volume de vendas necessário para satisfazer os canais de distribuição. As ilhas representam os produtos que são bastante populares para erguer-se além da superfície e, portanto, lucrativos o suficiente para serem oferecidos por meio de canais de distribuição com capacidade escassa, ou seja, o espaço de prateleira da maioria dos grandes varejistas. Perscrute o horizonte cultural e o que se destaca são os picos de popularidade elevando-se acima das ondas.

No entanto, as ilhas são, na verdade, apenas os cumes de grandes montanhas subterrâneas. Quando o custo de distribuição cai, é como se o nível da água baixasse no oceano. De repente, despontam na superfície áreas até então submersas. E o que está abaixo da linha d'água é muito maior do que à tona. Agora, à medida que os varejistas on-line exploram suas extraordinárias eficiências econômicas, começamos a divisar as encostas de grandes montanhas de escolhas, onde antes se avistava apenas o pico.

Hoje, mais de 99% dos CDs existentes no mercado não estão à venda no Wal-Mart. Dos mais de 200 mil filmes, programas de televisão, documentários e outros vídeos que foram lançados comercialmente, uma loja típica da Blockbuster oferece apenas três mil. O mesmo se aplica a outros importantes varejistas e a praticamente qualquer outro produto, desde livros até artefatos de cozinha. A grande maioria das mercadorias não está disponível nas lojas. Por necessidade, a economia do varejo tradicional, movida a hits, limita as escolhas.

Quando se é capaz de reduzir drasticamente os custos de interligar a oferta e a demanda, mudam-se não só os números, mas toda a natureza do mercado. E não se trata apenas de mudança quantitativa, mas, sobretudo, de transformação qualitativa. O novo acessos aos nichos revela demanda latente por conteúdo não-comercial. Então, à medida que a demanda se desloca para os nichos, a economia do fornecimento melhora ainda mais, e assim por diante, criando um loop de feedback positivo, que metamorfoseará setores inteiros - e a cultura - nas próximas décadas".

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capítulo 2, "ascensão e queda dos campeões de venda" (adoro!), subcapítulo "a economia movida a hits produz uma cultura movida a hits" (adoro!), páginas 37 e 38:

"Em nossa fixação pelo poder das estrelas, vibramos com o salário astronômico das grandes celebridades e observamos suas vidas públicas absurdas com interesse que excede em muito nosso interesse por seu trabalho. Não importa que se trate de atletas superstars ou de executivos carismáticos, prestamos atenção desmedida à ponta do topo do monte. Em outras palavras, fomos treinados para ver o mundo através das lentes dos hits.

Se não for sucesso é fracasso. Não passou no teste econômico e, portanto, nunca devia ter sido produzido. Com essa mentalidade movida a hits, a história do entretenimento é escrita pelos arrasa-quarteirões e o melhor teste de qualidade é a receita das bilheterias. E tais paradigmas não se limitam a Hollywood. Esse também é o critério para distribuir espaço nas prateleiras de lojas, definir os programas que entram no horário nobre da televisão e elaborar as playlists das emissoras de rádio. Tudo se resume em alocar recursos escassos aos mais 'merecedores', o que significa dizer os mais populares.

Em última instância, nossa resposta à cultura de hit é reforçar ainda mais a cultura de hit. O jogo do espaço das prateleiras é um jogo de soma zero: um produto toma o lugar do outro. Forçado a escolher, cada elo da indústria do entretenimento opta, muito naturalmente, pelos produtos mais populares, outorgando-lhes posições privilegiadas. Ao concentrarmos toda a força comercial nos grandes vencedores, estamos, na verdade, ampliando o abismo entre os vitoriosos e o resto. Sob o ponto de vista econômico, isso é o mesmo que dizer: 'Se pode haver apenas uns poucos ricos, que pelo menos sejam super-ricos'. A conseqüência disso é que a encosta íngreme da curva de demanda torna-se ainda mais escarpada.

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mas, no entanto, contudo, porém, todavia, capítulo 5, "os novos produtores", subcapítulo "democratização das ferramentas de produção" (adoro!), páginas 61 e 62:

"A conseqüência de tudo isso é que estamos deixando de ser apenas consumidores passivos para passar a atuar como produtores ativos. E o estamos fazendo por puro amor pela coisa (a palavra 'amador' vem do latim amator, 'amante', de amare, 'amar'). O fenômeno se manifesta por toda parte - a extensão em que os blogs amadores estão disputando a atenção do público com a grande mídia, em que as pequenas bandas estão lançando músicas sem selo de gravadora e em que os colegas consumidores dominam as avaliações on-line de produtos e serviços é como se a configuração básica de produção tivesse mudado de 'Conquiste o direito de fazê-lo' para 'O que o está impedindo de fazer?'.

O autor Doc Searls chama esse fenômeno de mudança do consumismo para o 'producismo' participativo:

'A 'economia do consumo' é um sistema controlado pelos produtores, no qual os consumidores não são nada mais do que fontes de energia que metabolizam produtos em dinheiro. Esse é o resultado absolutamente corrompido do poder absoluto dos produtores sobre os consumidores, desde que os produtos ganharam a Revolução Industrial.

'A Apple está oferecendo aos consumidores ferramentas que os convertem em produtores. Essa prática transforma radicalmente tanto o mercado quanto a economia que nele floresce'".

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reflet, no brasil as pontas de ilhotas, geleiras, icebergs se chamam joão, caetano, chico, gilberto, roberto e assim por diante, não é mesmo? por baixo deles há muita bahia subterrânea, muito nordesde submerso, muito brasil latente.

márcio, "tropicalismo - decadência bonita do samba" e "como dois e dois são cinco" estão láááá no fundão das montanhas submersas, né?... dizem que tudo que mora lá embaixo é lixo, mas eu é que não compro essa esparrela, não!!!

quarta-feira, setembro 03, 2008

o mar e dorival caymmi

da "carta capital" 510, de 27 de agosto de 2008.


CAYMMI VOLTA PARA O MAR
O compositor baiano nos lega uma obra simples, compacta e precisa

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Em 1978, quando procurava traduzir seu ideário musical num texto explicativo, Dorival Caymmi cunhou uma definição precisa não só da obra iniciada em meados dos anos 30, mas de si próprio. Em raro momento de prosa, escreveu assim, no livro Cancioneiro da Bahia, de letras, cifras e comentários caymmianos: “Os negros e mulatos que têm suas vidas amarradas ao mar têm sido a minha mais permanente inspiração. Não sei de drama mais poderoso que o das mulheres que esperam a volta, sempre incerta, dos maridos que partem todas as manhãs para o mar”.

O mulato de sangue africano, italiano e português se referia ao imaginário norteador de parte substancial de sua criação, mas hoje parece nítido que oferecia também uma metáfora sobre o modo como ele enfrentou a vida, o trabalho e a arte. Nascido em Salvador, em 1914, e morto no Rio, no sábado 16 de agosto de 2008, ele lega ao Brasil um relicário musical compacto, conciso. Segundo documentou a neta Stella, na biografia O Mar e o Tempo (2001), são meras 101 canções, apresentadas ao longo de mais de sete décadas de presença na cultura local.

Cedo Caymmi descobriu-se pescador de canções. Fisgou-as em água salgada, na praia de Itapuã, e carregou-as na bagagem quando, aos 23 anos, pegou um ita no Nordeste e veio ao Rio morar, para sempre. A saudade da Bahia seria o eterno retorno do pescador musical, que faria fama e fortuna, aqui e alhures, a partir da associação com Carmen Miranda (1909-1955). Portuguesa criada carioca, a “falsa baiana” apanhou de Caymmi o samba O Que É Que a Baiana Tem? (1939) e os balangandãs que espalharia pelos filmes da Atlântida e, depois, de Hollywood.

São do Caymmi jovem e recém-exilado no Rio pedras fundamentais como Promessa de Pescador (1939), O Mar (1940), Noite de Temporal (1940), É Doce Morrer no Mar (1941, sobre texto de Jorge Amado) e A Jangada Voltou Só (1941), logo merecedoras da alcunha de canções praieiras.

O mar, como se sabe, foi o nutriente essencial do compositor-inventor que levantava vôo. Mas não era o único. Pouco se fala sobre isso, mas nas primeiras canções, como em muitas outras depois, a morte seria tema sempre à espreita, de a jangada saiu com Chico Ferreira e Bento/ a jangada voltou só a é doce morrer no mar/ nas ondas verdes do mar. Caymmi fazia-se porta-voz simbólico do operário braçal pobre e oprimido, e, nos cantos de trabalho que entoava, volta e meia a noite era de temporal.

A vida, o trabalho e a morte no mar voltariam de modo recorrente à voz de trovão de Caymmi. Outro ápice foi a aterrorizadora suíte História de Pescadores, que ocuparia metade do LP Caymmi e o Mar (1957). Ao mar, somaria um conjunto restrito e delimitado de temas, como a paixão pelo samba (O Samba da Minha Terra, 1940), as coisas e festas da Bahia (A Preta do Acarajé, 1939, Vatapá, 1942, Dois de Fevereiro, 1957) e, depois, os ritos do candomblé (Oração de Mãe Menininha, 1972).

Caymmi seguiu o curso da música gravada no século passado, da consolidação do disco como bem comercial na “era do rádio” à desmaterialização da música via iPod. Gravou nos modelos inaugurais as mais importantes criações. Quando, em meados dos anos 50, foi inventado o LP, de várias músicas reunidas num “álbum”, priorizou regravá-las, apenas as adequando aos novos figurinos. Lançado ao mar da indústria musical, foi à captura dos peixes-canções que já conhecia, e que não ficam em risco de extinção com sua morte.

Adquiriu pecha de autor “lento”, até “preguiçoso”, mas é que seu imaginário estava pronto, consolidado. A Caymmi, nunca interessou dourar pílulas de criatividade ou abundância.

O oceano musical ficava por vezes revolto e tornava instável a jangada caymmiana. Ele presenciou as rupturas que vieram, e até participou de algumas, numa química que nem sempre o artista mais velho e o mais novo conseguem (ou querem) produzir.

Nos anos 40, por exemplo, surgia uma antítese bombástica de Caymmi, chamada Luiz Gonzaga. Onde um era praia e mar, o outro era sertão e caatinga. Se um co-inventara o samba baiano, o outro esparramaria o forró pernambucano a partir do estrondo de Baião (1949). O que num era mansidão e idílio explodiu no outro como árida e bruta realidade. Pareciam incompatíveis, mas eram necessariamente complementares. Com Caymmi e Gonzaga (inclusive no patriarcalismo agudo de ambos), o Brasil teve de começar a compreender seu norte, seu Nordeste, suas entranhas.

Não se sabe se houve relação de causa e efeito, mas foi exatamente aí que a música de Caymmi sofreu a mais forte (talvez a única) virada. De repente se acariocou, abrandou o trovão e a veia social, foi cantar Copacabana. E cumpriu papel crucial na popularização do samba-canção, mais lento e menos marítimo que qualquer peça anterior. Nunca Mais (1949), Não Tem Solução (1950), Você Não Sabe Amar (1950), Sábado em Copacabana (1951), Nem Eu (1952) e Só Louco (1955) hoje soam como prenúncios em série da chegada da bossa nova, em 1958.

A guinada afastou-o da crueza de Gonzaga e o aproximou do futuro. João Gilberto tirou do baú de Caymmi vários dos sambas que vestiria de bossa, como Saudade da Bahia (1957) ou Doralice (1945). Caymmi apadrinhou o discípulo também baiano na gravadora Odeon. Nos anos 60, gravaria discos em parceria com Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Uma canção de Caymmi Visita Tom e Leva Seus Filhos, Nana, Dori e Danilo (1964) trazia a voz da cantora Stella Maris, que abandonara a profissão ao se casar com Caymmi. Ela não entrava no rol de convidados agraciados no título.

Idolatrado pelos tropicalistas de 1968, passaria mais ou menos ileso pelo próximo projeto arrasa-quarteirão de ruptura na música nacional. Nos anos 70, Gal Costa e Maria Bethânia popularizaram Oração de Mãe Menininha (as duas) e Modinha de Gabriela (a primeira).

O africanizado LP Caymmi (1972) foi o derradeiro a conter vários (e inspirados) temas inéditos. A partir daí, afastou-se progressivamente de nossa presença. Viveu a vida na brisa, com docilidade de pescador, um amanhecer após cada pôr-do-sol. Há três décadas já é história em estado bruto. Viveu 94 anos e foi descobrir (mas não nos contará) quão doce é morrer à beira do mar. O vento que o soprou ao encontro de Iemanjá foi o do mar adotivo, de Copacabana, não o de Itapuã.