segunda-feira, abril 26, 2010

ai, a solidão vai acabar comigo...

Ando falando muito pouco por aqui, acho que porque ando falando muito em outros lugares, não sei. E, em outros lugares, ando falando muito sobre compositoras - além de Dona Ivone Lara, há a Nara Leão, e agora a Dolores Duran. Como foi maravilhosa, no brevíssimo prazo que teve, a Dolores Duran...

Texto do caderno "Outlook", do jornal "Brasil Econômico", de 24 de abril de 2010. (E, por falar em compositoras, no mesmo caderno há, por sinal, uma belíssima entrevista da Phydia de Athayde com a Teresa Cristina, Dona Ivone Lara versãos anos 2000. Um trecho? "Lembro de chegar em casa, chorar muito e questionar: por que tem preto no mundo? Por que não é todo mundo de uma cor só? Era uma revolta tão envergonhada...".)


O que aprontou esta penetra no clube do Bolinha

Caixa reúne a quase-íntegra do legado de Dolores Duran, que influenciou desde Bethânia até Marina Lima

TEXTO PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Dolores Duran era um ET na época em que se afirmou definitivamente como artista da música brasileira, na segunda metade da década de 1950. A última (e provavelmente primeira) vez que uma mulher conseguira se impor como compositora no Brasil havia sido 80 anos antes, em 1877, no advento de Chiquinha Gonzaga. Foi em 1957 que Dolores gravou em voz própria pela primeira vez uma composição sua, Por Causa de Você. Somava 17 anos de carreira (fora cantora-mirim revelada no programa de calouros de Ary Barroso) e 27 de idade. Dois anos mais tarde, sairia da vida para entrar na história, antes de completar 30 anos. Revelada pouco depois de Dolores, Maysa seguiria rota errática de autora-cantora, e ainda não seria ela quem arranharia a brutal reserva masculina de mercado no campo da composição.

Foram-se mais 51 anos desde a morte de Dolores, até que viesse à tona, agora, em versão reunida, a quase-íntegra do legado deixado por ela, na caixa histórica Os Anos Dourados de Dolores Duran (EMI, cerca de R$ 120). O pesquisador Rodrigo Faour agrupou ali, em oito volumes, os quatro álbuns que a moça gravou em vida, mais dois volumes agrupando gravações avulsas no antigo formato 78 RPM e um CD duplo com outras vozes interpretando composições de Dolores, a maioria delas reveladas pós-morte.

O trabalho minucioso de compilação permite mirar de perto o ET que ousou afrontar com delicadeza o clube do Bolinha e morreu precocemente (por problemas cardíacos e/ou abuso de barbitúricos) deixando meras 35 composições prontas, apenas sete delas registradas em sua própria voz. Contavam-se aí canções de dor-de-cotovelo hoje plenamente integradas ao imaginário nacional, como Solidão, Castigo, Fim de Caso.

Não nasceu de parto normal a Dolores autora. Incorporada ao mercado de trabalho como mão-de-obra infantil em radioteatro, tornou-se crooner adolescente de boates cantando sucessos da época, aprendidos e repetidos por instinto em inglês, francês, espanhol, italiano e alemão. Essa verve algo exótica foi aproveitada pela gravadora Continental num primeiro LP no formato precursor de 10 polegadas, batizado Dolores Viaja (1955) e constituído de sete faixas em línguas estrangeiras (uma delas em esperanto) e uma Canção da Volta no encerramento em português.

Nos álbuns seguintes, Dolores Duran Canta para Você Dançar, volumes 1 (1957) e 2 (1958), manteve-se o coquetel de idiomas e a variedade de gêneros musicais (até um rock, Love Me Forever, fazia parte do cardápio), entremeadas com canções brasileiras matreiras como Coisas de Mulher (de Chico Baiano), Estatuto de Boite e Se Papai Fosse Eleito (de Billy Blanco). No volume 1 estava sua estreia como intérprete da própria obra, Por Causa de Você, com melodia de um Tom Jobim ainda desconhecido.

A Dolores autora brotou, portanto, no contexto desenvolvimentista da era Juscelino Kubitschek e de Brasília, de João Gilberto e da bossa nova. Ela desde sempre ostentou voz macia como veludo, mas isso não impediu que sua música ficasse represada no pelotão atropelado pela novidade da bossa. O movimento, de resto, jamais foi propriamente acolhedor a mulheres autônomas, fossem mortas ou vivas (como Nara Leão).

Sobretudo o derradeiro LP da artista, Este Norte É Minha Sorte (1959), renasce das cinzas (e do mundo maravilhoso dos downloads) com sabor de surpresa. É um suculento álbum de baiões e temas nordestinos, vários deles compostos por um rapaz cearense mais tarde conhecido como Chico Anysio. Talvez ali Dolores selasse seu divórcio com a porclamada modernidade, pois Este Norte É Minha Sorte tendia bem mais a Luiz Gonzaga que a João Gilberto, algo que o senso comum pós-bossa não perdoaria.

O que a caixa traz de mais sensacional são as canções só lançadas em compacto, entre as quais se amontoam raridades como A Fia de Chico Brito (1956), de Anysio, Manias (1956), do futuro apresentador de TV Flávio Cavalcanti, Na Asa do Vento (1956), de Luiz Vieira e João do Vale, as pândegas Pano Legal (1956) e A Banca do Distinto (1959), de Billy Blanco, e A Noite do Meu Bem, êxito autoral que ela não testemunharia, pois morreu três meses após o lançamento.

Dessas faixas avulsas emerge uma evidência que há, mas costuma ficar abafada, como se ainda vivêssemos nos idos de Chiquinha Gonzaga: mesmo com tão curta trajetória, Dolores foi tremendamente influente sobre a próxima geração de artistas brasileiros, que despontaria nos anos 1960. Maria Bethânia indicaria sua filiação gravando uma versão semitropicalista de Pano Legal, em 1968. Caetano Veloso resgataria Na Asa do Vento do esquecimento em 1975. Elza Soares sacudiria A Banca do Distinto, em 1963.

Em 1974, o ex-roqueiro Roberto Carlos, já então convertido ao romantismo, registraria uma versão de Ternura Antiga, composição póstuma de Dolores – podia até parecer estranho, mas Roberto passara a adolescência amando as canções de fossa de Tito Madi e de Dolores. Além dele, Nara Leão, Elis Regina, Gal Costa e Clara Nunes também resgatariam, nos anos 1970, a pena compositora de Dolores, regravando Estrada do Sol. Já em 1979, uma nova autora-cantora surgia apresentando como faixa 1 de seu primeiro LP uma versão agressiva de Solidão – era Marina Lima.

A influência de Dolores Duran se mantinha como um rio submerso, algo assim como um amor que não se pode pronunciar. Mas nunca mais deixaria de existir, e essa artista desbravadora abriria enorme sorriso se visse, hoje, a caixa em sua homenagem e a quantidade impressionante de autoras-cantoras que não param de aparecer no Brasil de 2010.

quarta-feira, abril 14, 2010

serrinha custa, mas vem

Fala a verdade, não é um luxo completo a gente ser brasileira(o) e ter uma Dona Ivone Lara no horizonte, como referência?

Texto da "CartaCapital" 590, de 7 de abril de 2010.

Senhora majestade

A modéstia acompanha Dona Ivone Lara, nome maior da música brasileira que, aos 89 anos, lúcida e ativa, é tema de DVD com participação de convidados

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Ivone Lara foi a primeira mulher a assinar seu nome na coautoria de um samba-enredo carioca. Aconteceu em 1965, quando o Império Serrano desfilou Os Cinco Bailes da História do Rio, composição dividida por ela com dois homens, Silas de Oliveira e Bacalhau. Naquele ano, quem ganhou foi o Salgueiro, mas já na estreia a compositora Ivone Lara chegou a vice-campeã.

Hoje conhecida pelo Brasil como Dona Ivone Lara, ela completa 89 anos em 13 de abril, e ao longo das últimas décadas não viu essa situação muito se modificar, pelo menos não no ambiente das escolas de samba. Da segunda colocação, nunca passou. Outra autora que se aventurou nessas competições, Leci Brandão, por seis vezes emplacou sambas finalistas nos concursos da Mangueira, mas nenhum deles jamais chegou à avenida ou ao sambódromo.

Dona Ivone deprecia o próprio talento ao explicar como conseguiu furar o bloqueio masculino em 1965. “Meus primos eram diretores de harmonia, faziam parte das diretorias, eram maiorais na escola de samba. Eu quebrei esse tabu sendo parente deles”, explica, numa manhã paulistana, após um fim-de-semana de shows na cidade. Não diz que antes disso um primo criado como irmão, o futuro Mestre Fuleiro, chegou a mostrar sambas dela como sendo dele, supostamente para driblar a não-aceitação de uma compositora mulher.

Ivone já tinha 43 anos quando contou “em sonho” Os Cinco Bailes da História do Rio. Alegremente sorria/ algo acontecia/ era o fim da monarquia, diziam os versos finais, sob a obrigação, estendida a todas as escolas, de se debruçar sobre temas históricos da pátria brasileira. A demora não é particularidade dela. Mais ou menos à mesma época, a empregada doméstica Clementina de Jesus era revelada cantora, já sexagenária, e Cartola, autor de canções gravadas por Carmen Miranda nos anos 1930, era resgatado do trabalho como flanelinha para o samba.

O pai de Ivone, João da Silva Lara, ajudante de caminhoneiro, morreu quando ela era muito pequena. “Nasci em Botafogo, num lugar bonito, uma avenida. Meu pai faleceu, fui morar num lugar completamente diferente. O conforto já não era igual”, conta. A mãe, Emerentina Bento da Silva, foi empregada doméstica. “Ela trabalhava em casa de família e tinha necessidade de me levar com ela. A família era rica, mas não tão rica para ter mais de uma empregada. Embora com pouca idade, eu era bem serviçal. Ia comprar jornal, fazia trabalhos miúdos.”

Foi para um internato, onde estudou canto orfeônico com Lucília Villa-Lobos, esposa de Heitor Villa-Lobos. E trabalhou, desde muito cedo. “Eu criança, com 11 anos, tive que procurar emprego. Fui ser auxiliar de copeira, lavava muita louça, trabalhava em pensão. Já mocinha, lendo jornal, vi que as matrículas estavam abertas na escola técnica de enfermagem.” Tornou-se enfermeira, trabalhou em hospital, estudou serviço social. Deve ter salvado algumas vidas, não, Dona Ivone? “Muitas”, responde. “Trabalhei em berçário, e ali a gente aprende muito. Criança pequenininha dá muito trabalho, e corre muito risco também. Sem querer a gente às vezes tem gestos que salvam uma criança com coqueluche, à noite, passando mal. Sem querer, não, que a gente vai para salvar das crises.”

Mais tarde, cuidou de adultos. Aposentou-se após 40 anos de profissão, 32 deles cumpridos no Serviço Nacional de Doentes Mentais, fase em que conheceu e trabalhou com a psiquiatra Nise da Silveira. “Me habituei, era a coisa mais natural lidar com eles, mesmo em período de agitação. Para mim era a mesma coisa que não houvesse nada de mais. Ficavam internados seis meses, um ano. Às vezes a família abandonava um e ele passava a ter a residência dele em hospital psiquiátrico.”

Ainda jovem, Ivone compôs a primeira melodia que sobreviveria à passagem do tempo (e seria registrada em disco por Alcione, em 1976), chamada Tiê. Falava de um pássaro que ela ganhara de presente. “Era a minha boneca. É preto e vermelho, um pássaro muito bonito, com um canto muito bonito.” Representava pra mim carinho, amor e paixão/ lembrar do tiê despertou meu coração, dizia a letra.

Em 1947, casou-se com Oscar Costa, filho do presidente da escola de samba Prazer da Serrinha, para a qual compôs, já àquela época, um samba chamado Nasci para Sofrer. A Império Serrano surgiria naquele mesmo ano, como dissidência da escola comandada a mão de ferro por seu sogro, Alfredo Costa. Ivone foi fundadora da nova escola, ao lado de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola.

Enquanto Ivone se firmava como integrante garbosa da ala das baianas da Império, a escola vivia momentos de glória com sambas-enredos como Aquarela Brasileira (1964), de Silas, Heróis da Liberdade, dele e de Mano Décio (que em pleno 1969 gritava os versos passava noite, vinha dia/ o sangue do negro corria dia-a-dia/ de lamento em lamento, de agonia em agonia/ ele pedia o fim da tirania) ou o alegre Bumbum Paticumbum Prugurundum (1982), de Aluísio Machado e Beto Sem Braço. Nestes anos 2000, a escola tem amargado sucessivos rebaixamentos. “Fico triste, sou Império até hoje.”

Dona Ivone mostra-se arisca a falar sobre discriminação racial: “Não me preocupo com isso, não. Porque tem uma coisa, até a presente data, graças a Deus, sempre fui bem recebida em qualquer ambiente”. Isso não a impediu de cantar temas afirmativos criados por outros autores, como Sorriso Negro, gravado por ela em 1981 em duo com o sambista impuro Jorge Ben, ou Lamento do Negro (1982). Um sorriso negro, um abraço negro/ traz felicidade/ negro sem emprego/ fica sem sossego/ negro é a raiz da liberdade, manifesta-se a primeira. O negro veio de Angola/ fazendo sua oração/ na promessa da riqueza/ só ganhou a escravidão/ canto do negro é o lamento/ na senzala do senhor, aprofunda a segunda.

Se em 1965 Ivone foi finalmente notada pelo mundo do samba, demorariam ainda mais 13 anos para que pudesse lançar seu primeiro disco individual. Tinha 57 anos quando saiu Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz (EMI-Odeon), creditado não a Ivone, mas a Dona Ivone, e até hoje não reeditado em CD. Naquele mesmo 1978, contou com duas madrinhas midiáticas de peso, Maria Bethânia e Gal Costa. Antes mesmo que Dona Ivone o fizesse, elas gravaram Sonho Meu, no álbum Álibi, de Bethânia. Dulcíssimo, o samba é um de seus grandes marcos, sob letra não tão doce assim do parceiro preferencial, Delcio Carvalho. Vai matar esta saudade, sonho meu,/ com a sua liberdade, sonho meu (...) a madrugada fria/ só me traz melancolia sonho meu, dizem os versos insones que seriam registrados pela autora em 1979, em dueto com ninguém menos que Clementina de Jesus.

Bethânia repetiu a reverência (e o sucesso) em 1980, cantando Alguém Me Avisou em trio com Caetano Veloso e Gilberto Gil. Por intermédio das vozes dos rebeldes da Bahia, a letra de Dona Ivone afrontava mansamente a resistência sempre calada a tudo que ela representava (e representa): Foram me chamar/ eu estou aqui, o que é que há?/ (...) eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho/ alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho/ (...) sempre fui obediente, mas não pude resistir/ foi numa roda de samba que juntei-me aos bambas pra me divertir.

Dona Ivone lançou poucos discos, mas apresentou muitos sambas de grande qualidade, vários deles revelados por outros intérpretes. As mágoas amorosas (além de outras mais, provavelmente) conduziram canções desalentadas como Alvorecer (lançada por Clara Nunes em 1974), Amor sem Esperança (Beth Carvalho, 1975), Acreditar (Roberto Ribeiro, 1976), Resignação (Cristina Buarque, 1976), Tendência (1981), Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço? (Nana Caymmi, 1981, e Paulinho da Viola, 1983), Enredo do Meu Samba (Grupo Fundo de Quintal, 1983, e Sandra de Sá, 1984)...

Ainda em 1982, Dona Ivone amenizou as dores de Nasci para Sofrer em uma das mais suaves e ternas gravações que o samba conhece, batizada de Nasci para Sonhar e Cantar. O que trago dentro de mim preciso revelar/ eu solto o mundo de tristeza que a vida me dá/ me exponho a tanta emoção/ nasci pra sonhar e cantar, canta, quase num sussurro.

Dona Ivone tem revisitado tais canções, as mais e as menos alegres. Por estes dias de 2010, está lançando um DVD (o primeiro de sua história) com participações de Caetano, Gil, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Jorge Aragão. Outro CD, gravado com Delcio Carvalho, apresenta somente composições inéditas da dupla. No fim-de-semana que passou, ela dividiu o palco do Teatro Fecap com o grupo paulista Samba Esporte Fino. Fêmur fraturado e voz frágil, cantou a ponto de não querer parar, mesmo com as cortinas se fechando à sua revelia. “Trabalho até hoje por esporte, porque gosto”, explicaria depois, serena, mas admitindo que a empreitada lhe custa esforço (“a gente sempre se cansa, né, porque só a tensão que a gente fica...”) e que cantar, é, sim, um trabalho: “É trabalho, tanto que fazem cachê. Mas eu sempre aproveito...”.

No palco, cantou os maiores sucessos, privilegiando os de autoria própria. Não apareceu, por exemplo, um samba de terreiro que ela aprendeu na Serrinha, de Carlinhos Bem-Te-Vi. Serra dos meus sonhos dourados, onde nós fomos criados/ lá eu hei de morrer/ não desfazendo de ninguém/ Serrinha custa, mas vem, afirma a letra do compositor-passarinho que diz tudo e mais um pouco sobre o jeito de ser da cantora-compositora-sonhadora. (Dona) Ivone Lara custa, mas vem.