sábado, abril 30, 2005

a guerra do menino *

tatá disse a que veio já ao nascer. veio ao mundo para ser um garoto desde sempre muito inquieto, imaginoso, hiperativo, uma mistura assim humana entre um helicóptero e o taz, o diabo da tasmânia lá do desenho do pernalonga.

apesar de viver em meio a tanta tecnologia que invadia o mundo no final do século xx, tatá era um menino brasileiro. como tal, vivia com um olho pregado na sua vidinha serena de garoto interiorano, o outro apontado para o mundão. guerra&paz, dois tatás competiam dentro de tatá. e, coisa estranha, os dois acabavam ganhando a parada, empatados vitoriosos.

como menino brasileiro crescendo em anos de início de abertura política após uma cruel ditadura e de uma nova onda de distensão dos costumes, tatá era muito, muito, muito, muito fã do... roberto carlos. no início dos anos 80, nem era assim tão de bom tom ser fã do roberto, mas tatá era.

era fã de roberto, como era fã de didi, dedé, mussum e zacarias. para sempre iria relacionar imediatamente um aos quatro, os quatro ao solitário roberto. nem entendia bem o porquê dessa associação de idéias & ideais (os sorrisos tristes dos cinco, será?). mas ela era para sempre, "
porcaqui, caqui é o meu lugar...".

como fã do roberto, tatá tenta até hoje entender porque foi ser assim tão fã do cafoníssimo roberto. as memórias povoam sua mente como fagulhas que coriscam feito o pisca do vagalume, distanciadas umas das outras no tempo-espaço.

tatá lembra que, desde pequeno, ia à sears com seu pai, para a tradicional compra natalina anual. o novo álbum carlista de cada natal era compra certa, seu pai nunca sairia de lá sem o robertão. daí em diante, era só esperar o especial natalino, o bimbalhar dos sinos, a sempre medonha virada de ano da "jovem para sempre" rede globo.

tatá lembra que, pixote, tentou por toda obra convencer a mãe e o pai a batizar o novo irmãozinho, que estava para chegar, pelo pomposo nome duplo de... roberto carlos. a mãe não quis - porque roberto carlos era rei, e ela preferia que o pitoco que estava para chegar fosse apenas mais um na multidão. batizou o caçula de um outro nome qualquer, talvez jefferson. e tatá seguiu infância adentro chamando o maninho de... roberto carlos. "mãe, o roberto carlos tá chorando!" "mãããe, dá chupeta pro roberto carlos." "pai, roberto carlos me beliscou!!!"

roberto carlos para cá, para lá, para acolá, tatá só desistiu do apelido quando caçulinha largou a chupeta e a mamadeira e aprendeu a andar. nunca soube o porquê daquela brusca interrupção, talvez porque o ato de andar e a figura roberto carlos fossem imagens incompatíveis dentro de sua cabeça - rc era nosso paralisado mais querido, tinha aquela perna meio dura, se apoiava no microfone qual numa muleta. peça ímpar do nosso folclore, roberto-carlos-pai era amado por tatá como um boitatá, um curupira, uma cuca maravilhosa, um saci pererê hibernado dentro do gomo do bambu.

tatá lembra que jeffersonzinho (ou o nome que fosse), falso-rc, depois de aprender a andar, cismou de aprender também a falar. era 1980, época em que o verdadeiro rc estava em guerra pela paz, ou em paz pela guerra, cantando a todo pulmão "a guerra dos meninos".
"lalalalalá, lalalalalá... hoje eu tive um sonho, que foi o mais bonito..." jeffzinho mal falava, mas já sabia cantar, cantarolar. não sabia a letra, mas provindenciava a sua própria, em espertíssimo embromês: "one one one, one one one, one one one oneeee", a melodia do lalalala do coro infantil gringo em "portinglês" como guia mestra para o enlevo.

tatá lembra que "a guerra dos meninos" era a predileta do pai à época - o véio gostava tanto da guerra dos meninos que nem se incomodava quando tatá e ex-robertocarlinhos se pegavam a tapa no corredor. pai chegava do trabalho, o caçula pulava à toda em seu colo e homenageava sua paixão musical:
"one one one, one one one...". o pai exultava, orgulhoso - a mãe, nem tanto, pois era "one one one" o dia inteiro, um treco assim beirando o insuportável.

mas assim seguia a vida no interior - aeroplanos voando alto no céu, um fusca parado na garagem, o mundão lá fora girando à velocidade da luz.

depois tatá cresceu, e virou cantor de rock'n'roll.


[* este texto baseia-se livremente em fatos reais, e reutiliza o truque do livro "como dois e dois são cinco", de criar em itálico capítulos de "ficção" nos intervalos entre as análises cronológicas das obras de roberto carlos & erasmo carlos & wanderléa (entre alguns outros malucos). como o livro acabou e já foi publicado, mas as historinhas reais nunca param de chegar, eis aqui este blog cumprindo a função extra e itálica (mas não negativa) de continuar, no mesmo banco da mesma praça, o que não tem fim, nem nunca terá. lalalalá.]

quinta-feira, abril 28, 2005

intervalo comercial

oiê, rapaziada! vou passar a tarde deste sábado lá na praça benedito calixto, fazendo um (não)lançamento do "como dois e dois são cinco", e ficaria felicíssimo de receber visitas sem cerimônia dos amigos... faremos uma tarde excelente, com direito a roberto&erasmo&wanderléa, literatura, vinis antigos, CDs usados, antigüidades, paqueras, biritas nos bares ao redor, comidinhas de minas e do japão e... aquele tradicional e delicioso cheirinho de acarajé com vatapá!!!

a partir das 14h! (vai aí reproduzido o release, quebrando o eixo e enfiando LeTrAs MaIúScUlAs neste espaço minúsculo)


O AUTOR NA PRAÇA

Apresenta

Pedro Alexandre Sanches


Pedro Alexandre Sanches é o próximo convidado do projeto O Autor na Praça, dia 30 de abril. Sanches estará autografando o livro Como dois e dois são cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa). O cartunista Júnior Lopes marca presença realizando caricaturas, além da participação de outros artistas convidados. Informações sobre o convidado e o livro abaixo.

SERVIÇO:
O AUTOR NA PRAÇA – Pedro Alexandre Sanches com o livro Como dois e dois são cinco.
Dia 30 de abril, Sábado, 14h – Entrada Franca.
Espaço Plínio Marcos – Feira de Artes da Praça Benedito Calixto
Informações: Edson Lima – Tel. 3085 1502 / 9586 5577 – oautornapraca@oautornapraca.com.br
Realização e Produção: Edson Lima e Associação dos Amigos da Praça Benedito Calixto

Sobre Pedro Alexandre Sanches e o livro:

"Como dois e dois são cinco" - Um estudo sobre Roberto Carlos, Erasmo, Wanderléa e suas relações com a música e a política do Brasil dos últimos 40 anos

"Traquinagens à parte, quero defender aqui: Roberto Carlos é um dos mais intensos e completos sinônimos de Brasil que já existiram, quase assim um mito do nosso folclore. Nutrido do misto de amor e resistência (repulsa?) que todos sentimos por ele, Roberto poderia se chamara Brasil"
Pedro Alexandre Sanches

Cantor mais popular do país, recordista de vendas por mais de três décadas. Ícone nacional que divide com Pelé o status monárquico de "Rei". Compositor junto com Erasmo Carlos de clássicos e clássicos da música popular, desde "Quero que tudo vá para o Inferno" (1965) e "Nas curvas da estrada de Santos" (1969) até "Detalhes" (1971) e "Mesmo que seja eu" (1982). Figura politicamente polêmica, ao tentar-se apolítico. Com toda sua importância e influência, era de se perguntar por que, até hoje, sua obra, carreira e impacto imensos na cultura nacional nunca tinham sido analisados a fundo. Preconceito?

"Como dois e dois são cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)", de Pedro Alexandre Sanches, é uma análise social e ao mesmo tempo emotiva da obra e trajetória de "RC" e dos dois outros grandes ícones (o "Tremendão" e a "Ternurinha") da jovem guarda. Um diálogo entre a música e a política, as mudanças no comportamento e no cenário musical das várias épocas que atravessaram. As contradições e a relação complexa da dupla de compositores com o regime militar, a TV Globo, a Igreja Católica, a "MPB" mais tradicional, as influências latinas e norte-americanas, o status quo e a vanguarda dos movimentos hippie e black power. E as idas e vindas na carreira da cantora que, "ternurinha", viu ao longo da sua carreia mudanças e mudanças na condição da mulher diante do machismo reinante na sociedade.

Segundo livro de Sanches, "Como dois e dois" segue buscando analisar a produção das últimas décadas da música brasileira e suas influências no cenário atual. Se em "Tropicalismo - Decadência bonita do samba" dissecava a obra dos tropicalistas Gil e Caetano, dos "tradicionais" Chico Buarque e Paulinho da Viola e de Jorge Ben(Jor), agora o foco se aproxima da música ainda mais popular, industrial, comercial, e ao mesmo tempo também brasileira dos Carlos. Nesse projeto estão os "capítulos-pausa" do livro, que tratam da trajetória de artistas que seguiram, entre sucessos e percalços, caminhos diferentes dos do "Rei", por isso tratados no livro como "anticarlistas": Marcos Valle, Raul Seixas, Tim Maia, Belchior, Rita Lee e, em sua controversa trajetória, Wilson Simonal.

"Como dois e dois" traz o Brasil dos Carlos que tocou e toca nas rádios e TVs, da renúncia de Jânio Quadros até a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Entre o conservadorismo e a modernização, que muitas vezes por aqui surgem sem estar claro o que é o que, o livro desvenda, pela análise do "arquétipo" Roberto Carlos, muito do país do qual ele é Rei.

Pedro Alexandre Sanches nasceu em Maringá (PR), em 1968. É jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP, trabalhou entrde 1994 e 2004 na Folha de S.Paulo, nas funções de redator, repórter e crítico musical, e escreve atualmente na revista CartaCapital. Publicou em 2000, também pela Boitempo, o livro "Tropicalismo – Decadência bonita do samba", com análises das obras de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Ben, Chico Buarque e Paulinho da Viola.

"Como dois e dois são cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" – 416 págs. – R$ 68,00

quarta-feira, abril 27, 2005

eu sou o samba (o rap) (o funk), a voz do morro (brasil) sou eu mesmo, sim, senhor

boa-noite, comunidade!
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[ih, lá vem o tópico mais longo de todos os tempos da última semana... o bom é que este blog pode ser lido, sem contra-indicação, num só gole, em pílulas, em drágeas, em conta-gotas, a (des)gosto do freguês... o ministério da saúde mental recomenda: consuma com moderação. mas consuma tudinho.]
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foi 100% sem querer (alô, denise garcia!), mas no tópico anterior acabei relacionando cidade de deus com dogville. e depois tive a sorte de ir em pessoa ao "roda viva", para testar na carne os paralalos que haviam recém-pintado na minha cuca lelé. foi inevitável chegar lá amedrontado, pensando em grace de dogville enquanto esperava a chegada de mv bill de cidade de deus. havia um nexo?
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o primeiro gesto foi um nexo, notado imediatamente pela psicanalista maria rita kehl, que nos deu o prazer de participar da mesa de entrevistadores. ela notou (instintivamente eu também havia notado) que o olhar assustado de mv bill era doce, que mv bill em pessoa era doce. confirmou isso conversando cara a cara com ele, eu não tive a mesma coragem. fiquei esperando o programa começar.
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havia o nexo? será que o olhar meigo de mv bill é o olhar meigo de grace de "dogville", a branca subserviente meiga humilhada violentada que ao final do filme explode em violência? sem nem sentir, eu temia que fosse, que os dogmas estivessem em voga e vigor. mas os fatos vieram me aplicar uma cilada, uma arapuca, um tropeção. porque o nexo era o antinexo, a negação do nexo.
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é que mv bill é a anti-nicole kidman, a anti-grace de "dogville". o que há de subserviência na personagem fictícia de lars von trier dissipa-se no comportamento altivo do rapper real da cidade de deus. ao menos até onde o assistimos no "roda viva" desta segunda-feira, mv bill pode ser o que você quiser, mas algo que ele definitivamente não é é subserviente. cada agressão que ele tomou naquela noite foi respondida na lata, imediatamente, com aquela candura de olhar que maria rita e eu havíamos percebido naquela noite, que os repórteres fernanda mena e cunha jr. (outros dos debatedores na mesa) já conheciam há mais tempo que nós.
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focos de tensão se estabeleceram instantaneamente na relação entre mv bill e o repórter policial veteraníssimo renato lombardi. este último me causou intenso desconforto, ao encarnar e sublinhar vícios que às vezes fazem o jornalismo parecer rito de julgamento, tribunal de inquisição, sala de tortura. pelo tom que lombardi imprimia às suas indagações, parecia que bill estava previamente julgado culpado e condenado -mas condenado pelo quê? acredito que nenhum de nós saiba ao certo, nem mesmo o lombardi (algumas respostas, a propósito, estão contidas em "cabeça de porco", o livro que bill pretendia ali divulgar).
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pois o rapper implicou, logo de cara, com certas observações (mais que perguntas) do lombardi, tipo "isso é verdade". na bucha, ele retrucava: "você não tem que dizer o que é verdade. tudo que eu estou falando é verdade". parece retórica e bobeira, mas não é. bill demonstrava, pelas entrelinhas, que tudo que caras como ele dizem é sempre previamente avaliado como mentira, não como verdade (alô, dr. caetano). as perguntas que se têm a fazer, a caras como ele, enebriam-se da droga pesada de confinar o debate em roteiros de traficantes, meninos mortos, armas, drogas, assaltos, cooptações, policiais corruptos.
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sentindo-se subliminarmente acusado e repreendido, o homem-símbolo do outro lado da moeda tomava de volta o domínio da situação, com a calma que lhe era possível, mas tentando coalhar a postura-destino de soldado do morro com a postura-atitude de artista e militante político. em ríspidas palavras, lombardi parecia bradar "seja subserviente"; bill se impunha, "subserviente não serei". não foi, nenhum segundo sequer, pois ele era (é) a anti-grace.
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[breve interrupção para um pequeno assunto diferente, que é o mesmo assunto: aí leio n'"o globo" o estimado antonio carlos miguel opinando que o samba-rap do (carioca) marcelo d2 convence, mas que o samba-rap do (paulista) rappin' hood não convence. por que, hein, ô, miguel? sinto falta de argumento palpável, sabe?, porque do jeito ligeiro como foi colocado fica tudo boiando, é só a (velha) impressão de que estamos no terreno (campo de futebol) estéril do bairrismo (rivalidade), que o rappin' hood não é bom só porque os caras do rio não querem que rappin' hood seja bom... pô, miguel, isso desmerece o rap (a jovem guarda) como um todo, não o rap (o iê-iê-iê) paulista ou carioca. a cadência fica lerda, morosa, esse papo que já não deu.]
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mv bill pertence, como ele mesmo declarou, à "ala falante do rap" (a gente adora quando fala a ala falante do rap! a gente adora a ala falante do rap, a do funk, a do samba, a do soul e a da rebimboca da parafuseta!!!). digo mais, o bardo de cdd provou ali pertencer não só à ala falante, mas também à ala pensante do rap, da música brasileira, do brasil. nos intervalos do programa, do interrogatório, da saraivada verbal, o ícone da ala pensante do rap se encolhia, abaixava a cabeça, apertava os olhos com as mãos, contava até dez, se concentrava em seus límpidos objetivos, ensimesmava. mv bill sofria, era evidente - e nós, ao redor, sofríamos juntos.
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[pausinha para dentro do mesmo assunto: a ida ao "roda viva" revela uma postura recente de mv bill, segundo me contou depois de assistir ao programa o julio moura, assessor de imprensa da biscoito fino que divulgou o cd "traficando informação", de 1999, pela gravadora natasha, de paula lavigne. passo a palavra ao julio: "na época, ele sequer admitia dar entrevistas fora da cidade de deus, e nós tivemos que fazer a coletiva lá, com direito a tiro de fuzil pra cima, avisando o pessoal do movimento que a van cheia de jornalistas tava 'liberada'. o cara tá bem mais flexível e extrovertido hoje. acho o Bill brilhante". como se vê, mv bill é um brasileiro que não senta o traseiro na cadeira esperando a caravana passar...]
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a ala pensante quer se expressar, mas exige o mesmo de seus pares. solicita tratamento equânime, sem subserviências. daí um dos ápices do debate: bill está respondendo a alguma pergunta de lombardi; lombardi interrompe a resposta à sua própria pergunta, re-perguntando: "você já usou drogas?"; bill tenta continuar a linha de raciocínio, busca não ser interrompido; lombardi insiste, acua, assedia: "você já usou drogas?"; bill encara lombardi nos olhos e rebate, em igual tom recrimiatório: "você já usou drogas?"; renato se empertiga, se retesa, apura o volume da voz para proferir um gordo e sonoro "não"; bill passeia sobre o nervosismo do "inimigo", retoma a responda à pergunta que havia sido interrompida. grace não mora mais aqui. e você, que assiste à tv cultura, lê este blog, é rapper e/ou repórter policial? já usou drogas? fuma, bebe, exagera no torresminho? ou cê tá se safando, só tem culpa o bill?
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mas o que eu queria saber era o que bill sente ao ver seu nome co-assinando um livro, um livro em parceria com o elaboradíssimo cientista político luiz eduardo soares. perguntei, ele respondeu meio de viés. mas lá adiante, já em outra pergunta, veio o esboço de resposta que eu supunha e que eu esperava: bill afirmou, com todas as letras, que nunca na vida imaginou que um dia escreveria um livro. pois está aí o ato consumado, mais potente que qualquer inquisição.
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[ê, comadre, já começou a chiadeira das classes médias e altas porque o lula lelé falou que brasileiro é acomodado e senta o traseiro na cadeira e fica esperando o juro baixar. "o lula também é acomodado", berrou o clóvis - ãhã, e aí?, vamos ficar pirraçando para ver quem é mais acomodado? ok, tomamos um pito coletivo do presidente falastrão, e ninguém gosta de tomar pito (eu o-de-io). se a conversa é entre gente adulta, pito não entra, mas isso é um outro assunto. por enquanto, o compadre me permita me alinhar um segundinho a mr. president, largar os juros e os cartões de crédito ("até porque não é pobre que tem cartão de crédito", disse mr. polvo) de ladinho e virar o binóculo da celeuma. independentemente do que o língua solta quis dizer, me diz aí, comadre-compadre: seu traseiro tá sentado acomodado na cadeira? você tá batalhando pelo que quer de verdade, ou é daquele(a)s que, como diz dr. tagarela, "reclamam de dia e à noite se conformam, reclamam de noite, mas de dia se conformam"? em outros trocaletras, você mora em dogville?]
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pois então, mv bill não sentou o traseiro na cadeira, foi atender ao desafio do antropólogo e co-escreveu um livro. depois do final do debate, perguntei a ele se ele já pensava em um próximo livro. disse que já pensa, sim, que vai fazer. lembro-me de "irmãos coragem", com jair rodrigues (estou me autoplagiando, e aproveitando para também divulgar meu livro - sobre meu amado roberto carlos -, que tem um capítulo com esse mesmo nome): "e os campos se abriram em flor...", para não dizer que não falamos de flores (alô, dr. geraldo vandré). você já leu mv bill, nego? então vá.
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[mais um intervalinho para nossos comerciais, este branco feito leite: já saiu o novo disco do kid abelha, "pega vida" (universal, 2005), em que paula toller e seus abóboras branquelos deram de falar de sexo pelos cotovelos (eu gosto). e, embora branco feito mármore, o cd traz uma versão de uma black music antiga feita por um cara quase tão branco quanto a paula, o guilherme lamounier (de quem também tenho falado insistentemente, eu sei - mas é que acho que nesse mato tem coelho, e eu não sei qual é). a música é "será que eu pus um grilo na sua cabeça?", uma das mais lindas baladas soul brasileiras dos anos 70, do saudoso lp "guilherme lamounier", continental, 1973. o co-autor é tibério gaspar, outro branco que já fez muita música preta brasieira (por exemplo "br-3", com que o abrasivo toni tornado arrasou o fatídico festival da canção de 1970). a versão do kid é reggaezinha, não pega totalmente o espírito do original (mas, bem, conservar intacta a supremacia da versão original também terá sido um sinal de sabedoria pop do kid, terá não sido?). ó uns trechos da letra: "abro meu coração/ solto meus cabelos livres no ar/ e não quero mais saber/ quero é dividir o meu amor com você", depois "curte essa canção/ solta o pensamento livre no ar/ e não queira mais saber/ venha dividir o amor que há em você". tão bonito. fora isso, ainda há os versos "olhe a natureza solta no chão/ veja aquele esquilo entre nozes e avelãs", aaaaaaaaaaah!!!!, esquilos e avelãs no brasiuuuuu, no brasill, aaaaaaaaaaaaaaaaah!!!!! será que eu pus um grilo na sua cabeça?]
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ah, mas a gente também adora as horas de clímax. houve um outro quando lombardi, já parcialmente neutralizado pela calma lancinante de bill, quis interromper de novo a fala do entrevistado, do dono provisório do programa da cultura. talvez exasperado com o ruído que vinha ali do lado, bill subiu levemente o tom de sua voz, tentando impor a obviedade de que eram dele ali a fala e o solo; lombardi invadiu, levantou também o tom de sua voz, competiu com o entrevistado pela primazia da voz; bill elevou mais uma vez seu tom, sem nunca querer ou precisar chegar ao grito ou ao descontrole; lombardi desistiu, calou, e bill pôde enfim completar seu raciocínio. então se virou educamente para lombardi, agora para saber o que tanto o afligia. e obteve do entrevistador o inesperado, um impactante pedido de desculpas, por que ele, entrevistador, vinha parecendo "meio antipático nas perguntas".
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gênio, gênio, gênio. naquele breve instante, o esqueminha do preto-bandido tomando tunga do branco-caubói desmontou, desmoronou, degringolou. lombardi não era o mocinho, porque bill não era o vilão, porque lombardi não era o mocinho, porque lombardi não era o vilão, porque bill não era o mocinho, porque bill não era o vilão... naquele instante parado no ar, a vida não se resumia a festivais, nem tampouco a filmes de caubói.
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e eis que fui me lembrar daquela frase tão fofa que pequeno pedrinho tantas vezes ouviu da boca de sua mãe, dona zaira: "quando um burro fala, o outro abaixa a orelha". zangado com seu lombardi, desejei repetir para ele a máxima de zaira. mas, espera, enfim qual de nós ali não atropelou o(a) outro(a) num desses ímpetos ansiosos de participar? ih, será que estou fazendo seu lombardi de meu "bode expiatório"?
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[pausinhona para o intervalo (anti)comercial. desta vez não é branco nem preto, nem homem nem mulher. é mestiço, postiço, castiço, arisco. chegou aqui também o single do chico césar, "compacto e simples", pelo independentíssimo selo próprio chita discos. eu tô rolando de rir, "odeio rodeio" é uma toada caipira cafooooooooona cuja letra estritamente mordaz diz assim: "odeio rodeio/ e sinto um certo nojo/ quando o sertanejo/ começa a tocar/ eu sei que é preconceito/ mas ninguém é perfeito/ me deixem desabafar", hahahahahaahahahahahahahahha. cançoneta que se diz & se contradiz & se antidiz na velocidade da luz, é cantada de modo "breganejo", naquela estratégia de duas vozes estridentes dos chitões e xorós. sabe quem faz a segunda voz? a "inventora" da expressão "odeio rodeio", rita ruiva lee. a outra faixa do single - s-i-n-g-l-e, ouviu?!, nóis também tem síngol! -, também composta por chico césar, se chama "brega", para desta vez dizer & desdizer & redizer a maldição do brega. estritamente cafona, faz assim: "olhar etíope devora seu retrato/ braços antílopes me apertam o coração", hahahaha. melhor, faz assim: "onde está meu araçá azul? devolve!", hahaahhaahahahahahahahhahaahahahahahhahahahahahahaha. eu não agüento, eu não agüento! dê-lhe, crítica & autocrítica!]
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[rapazes d'"o globo", atenção!, não vão falar que "compacto e simples" é ruim só porque chico césar, assim como a grande maioria dos seres humanos, não é carioca, hein?! já basta o drible furado de criticar vander lee porque parece jorge vercilo (desse vocês gostam, né?) e porque nessa seara já existem chico césar e zeca baleiro. ei, mas, com o perdão da grosseria, o que tem o cu com as calças??? ah, lembrei. chico é paraibano. zeca é maranhense. vander, além de mineiro, era sambista e agora resolveu surfar na onda bregapop do vercilo. que, suprema coincidência, é carioca de botafogo.]
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ah, não falei ainda do paulo markun, o gentilíssimo apresentador do programa. tratou mv bill com exemplar civilidade, mesmo cedendo brevemente ao chavão de reclamar que o livro de bill, soares e celso athayde abordava os problemas, mas não encontrava as soluções; não, aquele livro é, por ele só, um pecinha riquíssima da soluçãozona (falta todos nosotros irmos encaixando também nossas pecinhas neste imenso e complicadíssimo quebra-cabeças).
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pois depois do final do debate markun comentou comigo e com fernanda a importância da presença de lombardi no debate - renato personificava o contraponto, ele explicou. não entendi no ato, mas depois garrei a maginá. e concordei que, por querer ou sem querer, lombardi desempenhou a escada de apoio para que mv bill reafirmasse seu valor, sua auto-estima, a justeza das idéias que defende - e, ao contrário de seu antagonista, fez isso ressaltando que não tem certeza de que esteja certo, que sabe que são apenas suas convicções e nada mais; ah, se todos tivéssemos convicções assim tão firmes, e as colocássemos com a mesma delicadeza a nossos irmãos... dogville ficaria um tiquinho mais distante...
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[ah, mas viu numa notícia minúscula da "folha" outro dia que a favela de heliópolis não quer mais ser dogville? está lá o ruy ohtake, aquele das carambolas e melancias, coordenando o projeto imaginado pela própria comunidade, de pintar de cores vivas as casas da favela. parece que othake tinha dito que heliópolis era feia como o diabo, os habitantes não gostaram e se uniram ao antagonista para reformular. e, pelo que se via na foto, lá as riscas de giz sobre o chão nu à moda de "dogville" amanheceram pintadas de todas as cores, aquelas que, misturadas, colocam um sorriso discreto no canto da nossa boca.]
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e aí o ato de mestre de markun. depois do fim do programa, desceu humildemente de seu lugar com seu exemplar de "cabeça de porco" a tiracolo, chegou até mv bill e, observando que não tem o hábito de fazer isso, pediu-lhe um autógrafo, a mesma expressão generosa de maria rita kehl estampadando o rosto aparentemente fechado. meu mundo caiu, e eu, que nem diante de lou reed tivera a pachorra de pedir um autógrafo (tenho um de baby do brasil, mas foi ela que quis dar - e eu adorei), me curvei às evidências e pedi também o meu primeiro autógrafo, ao mv bill, cuja música nem consigo compreender completamente. cê tá entendendo a dimensão simbólica, que markun percebeu com tamanha presteza? evoco o branco ivan lins, cuja música também não consigo compreender completamente: "somos todos iguais nesta noite".
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[nos sorrisos simpáticos simultâneos trocados entre lula e condoleezza rice, qual dos dois você acha mais parecido com grace, de dogville? a nicole-negra-condoleezza? ou o homem-kidman-da-silva? quem tem mais medo, quem mente mais, quem toma mais pito? condoleezza rice é luiz inácio?]
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já amanhecendo no lusco-fusco desta gigantesca crônica (chama crônica isso? como isso chama?), fico achando que não fui muito claro a respeito de mim mesmo nesse balaio de gatos. saí de lá ainda tenso, mas feliz pela impressão de ter estabelecido durante o programa uma comunicação 100% não agressiva com o temido mv bill. ao vivo e em várias cores, perdi um pouquinho do medo que eu tinha dele. por trás das câmeras, não era bem assim, ali são outros 500 (anos de história). não quero passar a falsa impressão de que me comunico assim com tanta fluência e descontração com gente como mv bill, china, deize tigrona, maria rita, tati quebra barraco, felipe s., max de castro, rappin' hood e outros dos mais importantes artistas do brasil de 2005, os quais vivo cruzando por aí por força do ofício. não é bem assim. os diálogos, fora o disfarce dos ofícios, é truncado, doído, temeroso. é muita barreira a ser movida, para todos nós, brasileiros, que temos (re)aprendido que "o medo de amar é o medo de ser livre". doggodville (ainda) é aqui. boa-noite, boa-noite, bom-dia, comunidade-de-deus!

segunda-feira, abril 25, 2005

roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião

bom-dia, comunidade!
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então, deixa eu contar? o entrevistado de hoje (segunda-feira, 25 de abril, 22h30) do "roda viva", na tv cultura, é o mv bill, rapper de cidade de deus, ídolo hip hop da funkeira deize tigrona, co-autor de "cabeça de porco". eu vou estar lá, na mesa de entrevistadores, vê se aparece.
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falando em "roda viva", acho que gostei de "cabra-cega", do toni venturi, apesar daquele problema de os filmes sobre a ditadura brasileira passarem quase sempre a impressão de giro em círculos, em torno de um rabo claustrofóbico, provocador de medo, tristeza e opressão. a nova safra tem a vantagem de não livrar tanto assim a cara dos "heróis" guerrilheiros, expondo suas fraquezas junto com suas nobrezas. e tem um elenco supimpa, teatral, puxado com gana e garra pela débora duboc, de molhar os olhos da gente a cada vez que aparece. e tem a trilha de fernanda porto, feita de antigüidades (tipo "roda viva", de chico buarque) pós-modernizadas para os 2000 - ou seja, a trilha é chata, mas é legal.
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pois fernanda porto, à parte os excessos drum'n'bass, ousa parear clássicos buarquianos com "teletema", tema de telenovela, belezura bobinha de antonio adolfo & tibério gaspar lançada pela doce e meiga evinha, ex-trio ternura (reencarnada com sisudez por ná ozzetti)! o guerrilheiro é o noveleiro? o filme ainda traz de volta "eu quero é botar meu bloco na rua", cantada na cena mais linda pelo maldito sérgio sampaio, que fez em pleno 1972 esse hino político disfarçado de carnaval e depois morreu cedo demais (mas o tempo rodou num instante, nas voltas do nosso coração, e a morte maldita nunca é eterna: o klb regravou "eu quero é botar meu bloco na rua" em 2004 - cê tá entendendo?).
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ainda falando em "roda viva", quem leu décio pignatari escrevendo sobre "dogville", de lars von triers, ontem, no "mais!" da "folha"? supimpa, novos ângulos lançados sobre o filme, kierkegaard na jogada, relações lançadas pelo décio, o mesmo cara que colocou uma bola de gude num cu para simular o olho que ilustra a capa do genial disco "todos os olhos" (continental, 1973), do helicóptero tropicalista tom zé. adoro, arregalo os olhos de ver e rever que "dogville" é uma usina inesgotável (e ainda pouquíssimo explorada) de referências e reflexões, impressionante.
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e o que haveria de (in)comum entre a loura nicole "grace" kidman de "dogville" e o negro bravo polêmico mv bill de cidade de deus? como volta a sondar o concretista pignatari, dogville é godville (o cão é deus, deus é o cão?)? e godville é a vila de deus, a favela de deus, refavela de deus, é cidade de deus?

quinta-feira, abril 21, 2005

tom zé em pílulas

"estudando o pagode - tom zé na opereta segregamulher e amor" (trama, 2005) é uma das trilhas sonoras do momento. o cara fala de trocentos assuntos ao mesmo tempo e trança um pouquinho as pernas ao se debruçar sobre os mistérios da condição feminina. mas, aos 68, tom zé ainda trabalha pleno de inspiração, de capacidade de surpreender, de tropicália. já escrevi um tanto sobre o disco na revista, mas vai aqui mais um punhado de pensamentos soltos, desses que ouvir "estudando o pagode" fica provocando.
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em "ave dor maria", tom zé toma as vezes de homem chucrão e trata a mulher como o tal ser que "chocou" "o primeiro ovo do cão"; ao fundo, um coro de rezadeiras borda uma versão fantasmagórica e distorcida da "ave maria", e termina a canção espezinhando o homem-vítima-aprendiz-de-jesus: "desce da cruz", gritam ao parvo que acredita que "mulher é o mal").
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um dos "instrumentos musicais" recorrentes no disco é a folha de fícus, das quais tom zé extrai sons estranhíssimos, de modo que somente ele saberia explicar; as folhas de fícus entram à toda em "estúpido rapaz", misturadas a versos que pertenciam à canção anterior ("cru, belzebu, do rabo fez um pirão/ foi o pão que o diabo amassou"), mas que foram exportados para essa segunda, loquaz guerra dos sexos do tom zé que ainda acusa a mulher com a resposta aguda e gostosa de suzana salles, "da mulher/ deixa de pegar no pé".
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para que a segunda faixa vire a terceira, é convocada a entrada de um jegue que relinchar histericamente; seria o próprio homem o jegue?
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"proposta de amor" tenta reconciliar tom zé consigo mesmo, quando se deslinda uma tentativa masculina de restabelecer a paz entre os sexos ("ó, garota/ eu te convido para um novo tipo de amor/ menos novela").
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luciana mello será a próxima voz feminina a contradizer a do autor-narrador, em "quero pensar (a mulher de bath)". a interpretação tipo matrona mandona machona de luciana surpreende e lança nova túnica sobre uma cantora que até aqui tem apelado mais ao convencional que ao inesperado. no texto, o bate-boca se reinstala, com reclames e xingos divertidos da moça: "quero pensar, meu bom rapaz, numa boa" e o e "meu caro rapaz, meu carrapato" (enquanto isso, por baixo, as folhas de fícus estão enlouquecidas, psicodélicas, fotossintéticas). pobres homens, a que tom zé (n)os esfarela?
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advogado de acusação do sexo masculino, eis tom zé ralando o próprio coco em "mulher navio negreiro": "o macho pela vida se valida a molestar a mulher/ se diverte". a freira dessa puta é a mulher: "apavorada, ela que se péla, pouco pára de pé/ e padece". as proposições são justíssimas ("por isto existe no mundo um escravo chamado mulher"), mas, a meu ver, o autor resvala na tentação de defender o duplo oprimido pela arma da piedade - ou seja, mantendo a mulher paralisada na condição congelada de oprimida. quem paga o pato, na opinião do narrador, é ele mesmo, o homem, que "pia, pia, pia pra inibir na mulher o animal" e, por conseqüência, parmanece condenado a "transar uma boneca de pau".
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"pagode-enredo dos tempos do medo" é um pandemônio. um coro de pagodeiros assalta a canção, entre citações a várias sumidades da bossa nova e a doideira completa das suculentas folhas de fícus. mais: vozes corais de fundo são modulados em rotação acelerada, de modo a ficarem parecendo o pato donald, ou os três patinhos que cantavam o melô do "piripiri" com a gretchen. "essa cultura de massa/ é um saco de gato", conclui pai tom zé, fazendo couro de pagode-gato para seu tamborim de fícus pós-modernos.
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já vínhamos tomando com sede o o caldo indigesto "de pagode-bossa-tropicália; em "o amor é um rock" entram rock'n'roll e música caipira (o clássico caipira pan-americano "meu primeiro amor", na voz aqui adoçada de suzana salles). "o amor é egoísta/ sim, sim, sim/ tem que ser assim", celebra-lamenta o autor, que conhece tudo sobre a parceria entre a faca e a ferida.
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"duas opiniões" é um dos apogeus estéticos do cd, com zélia duncan desfibrando a voz mesculina enquanto suzana salles sangra a feminina. "ridículo chorar/ patético viver/ paradoxal prazer/ apologia do sofrer", lamenta-se zélia-homem(-mulher); "chorar é coisa do amor/ amor, coisa do coração/ o coração é do sonhar/ chorar este chorinho, chorar", discorda suzana-mulher(-homem). tom zé invade o final, interrompendo o idílio e blasfemando contra o pagode (pobre pagode expiatório), "esse facilitador de namoro".
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folhas de fícus voam qual harmoniosos fantasmas. "elaeu" apimenta o jogo de xadrez, simulando agora um diálogo entre dois homens, "guei a" (interpretado em voz feminina por edson cordeiro) e "guei b" (tom zé em si, propriamente dito). o profundo lirismo das duas faixas "gays" do disco mantém em vigor a discórdia entre os sexos, já que a orquestra orgânica de tom zé veta o dueto entre dois graves, ou entre duas agudas.
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"vibração da carne" atinge o fulcro da auto-estima feminina dilacera, conduzindo por isso ao bloqueio do sexo, od prazer sexual. em inversão à inversão de signos, tom zé e jair oliveira fazem, ambos graves, as vozes femininas - a confissão enviesada de que o homem também pode perder/fingir/fugir (d)o prazer leva a nobreza do cd aos píncaros.
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"para lá do pensar" é o momento mais realmente sambeado, apagodado do disco. cita a maracangalha de dorival caymmi, saudades do torrão natal por um sofrido migrante da bahia mãe à são paulo padrasta. tom zé canta só, sem dueto.
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o terceiro ato, fuga e subterfúgio, deriva o conflito nuclear por entre temas quebradiços. a bahia axé e a espanha épica são visitadas em mais um dueto comovente entre jair oliveira (quixote) e tom zé (sancho pança) em "teatro (dom quixote)", feito para louvar o teatro vila velha, de salvador, e furando na tangente a lógica de "estudando o pagode".
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após o teatro, é hora de política. samba à moda de adoniran barbosa, "a volta do trem das onze (8,5 milhões de km2)" faz defesa contundente da reconstrução da malha ferroviária brasieira, por cima de um lindo samba pós-moderno. sob posse das vozes masculinas, um excepcional discurso de tom zé ao final, se dirigindo ao "arnesto" dos sambas de adoniran, prepara um final filosoficamente confuso, musicalmente glorioso.
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e "beatles a granel" encerra o disco mansamente, qual uma valsa entre o pagode e o yeah-yeah-yeah, entre o homem e a mulher; testa-se uma ode de recusa à morbidez romântica ("quanto maior romantismo/ mais cruel se transfigura/ o carinho em tortura"), sem que a concórdia se estabeleça - um tropicalista é sempre um niilista por excelência?
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ufa. durma-se com um barulhão desses. nem parece, mas isso tudo é, sim, música popular brasileira da mais alta extração e expressão. acondicionado em obra-prima, tom zé celebra a mocidade voraz de seus quase 70 anos, mas deixa as procuras e os encontros de soluções a cargo das próximas gerações. alô, tem alguém aí?

quarta-feira, abril 20, 2005

billie jean is not my lover

esta semana está propícia para profissões de fé, então eu, pedro alexandre sanches, também quero fazer a minha. embora nascido e criado numa mansa família católica, quero professar que não comungo com os princípios vigentes na igreja católica. quero declarar que sou filho de deus e que não obedecerei a qualquer conselho de nenhum papa ultraconservador no que diz respeito ao amor, à sexualidade, à prevenção de doenças, ao celibato, à liberdade de escolha e pensamento, à morbidez da crença na dor e no martírio como purgantes da alma, à desigualdade entre os homens e ao prazer de ouvir o rock'n'roll. declaro que não aceitarei e gritarei sempre contra o hábito católico de apontar mazelas alheias demais e deixar descobertas demais as próprias mazelas - antes de ficar criticando a sexualidade alheia, eu gostaria que a igreja católica justificasse seus crimes passados e suas contravenções presentes, explicando, por exemplo, por que tantos de seus membros são tão afeitos à sexualidade clandestina, ao molestamento sexual de menores, à pedofilia.

quero dizer que "rezo" pelo dia em que toda essa estrutura bilionária suspenderá o hábito de demonizar o mundo lá fora ("o inferno são os outros", diria a máxima mentirosa) e fará sua própria mea culpa transparente, honesta e corajosa. nesse dia, acredito, quebraremos o monopólio da pretensa virtude que esses nossos guias espirituais tentam artificialmente preservar. deixaremos de concentrar "o mal" em figuras como michael jackson, um homem negro que foi vítima evidente de abusos violentos, parece ter rebatido praticando outros abusos equivalentes nele mesmo e em outras pessoas indefesas. graças a razões anteriores, mas também à conivência de instituições e indivíduos moralistas, um dos mais importantes artistas do planeta corre rapidamente a se transformar no "bode expiatório" mundial que acalmará o resto da humanidade, anestesiando-a e "perdoando-a" de refletir sobre os abusos sofridos e praticados por todos nós. como se prendendo michael encarcerássemos junto com ele nossas próprias maluquices, tanta tolice.

eu prefiro, na minha profissão de fé, sonhar com o dia em que michael jackson será não punido, mas submetido ao acompanhamento e tratamento psicológico humano que ele merece. se o mundo fosse justo, jacko teria como companheiros não de punição, mas de cura muitos de nós, dentre esses milhares e milhares de assustados seminaristas, padres, bispos, cardeais, quiçá mesmo o nobre joseph ratzinger, com aquela carinha safada que ele tem, de quem está doido pra cair de boca de caçapa no rock'n'roll.

[destoando do coro, preciso confessar que me causa certa empatia ficar observando aquele sorrisinho maroto-safado-irônico-maquiavélico de bento xvi; deve ocultar tanta dor por dentro.]

enfim... please, herr ratzinger, don't beat it!! a vida é apenas rock'n'roll, e a gente gosta. it's just the human nature, é assim que ela nos faz...

terça-feira, abril 19, 2005

olha o "efeito grafite" aí, gente!

quer mais um exemplo de como atitudes de auto-admiração como a do jogador grafite se espalham rapidamente pela sociedade, feito rastilho de pólvora boa? pois já achei mais um.

outro dia, n'"o globo", o jornalista hugo sukman (que eu respeito e admiro) deitou algumas bobagens sobre a jovem guarda, numa crítica sobre um disco realmente meio, er, irregular - um novo volume da série "um barzinho um violão" (mmmedo), cheio de alhos & bugalhos (minha faixa predileta é "o ritmo da chuva", hit 1964 com demétrius, reinterpretada com imensa fofura por fernanda "pato fu" takai e rodrigo "los hermanos" amarante). não lembro direito as palavras, mas ele dizia que a jovem guarda não foi movimento, que só roberto & erasmo prestavam dentro daquele caldeirão, umas tolices tipo essas.

hoje, no mesmo "o globo", deparo com carta-resposta na seção dos leitores, redigida por leno azevedo - ele mesmo, em pessoa, o gileno, potiguar de natal, o leno da dupla leno & lilian. repara só nestes dois trechinhos:

"nos estados unidos, a direita cristã chegou a queimar os discos dos beatles. aqui também tentaram algo semelhante com a 'beatleânica' jovem guarda através da famigerada passeata dos 'bem-pensantes' contra o iê-iê-iê (ponta do iceberg de uma intolerância que ainda pode ser observada hoje)."

"ter sido malvista pela extrema direita e sua similar tacanha, a extrema esquerda, foi o maior aval de independência artística que a jovem guarda podia ter tido. já hugo sukman a acusa de fazer 'roquinho de branco', afirmação contraditória, já que ele diz que o rock no brasil começou na tropicália (?!), em 1968. além de ter uma conotação racista, como se o fato de ser branco fosse um epidérmico defeito musical no rock. se falasse em 'sambinha de preto', provavelmente seria processado."

reparou na atitude nova do leno, que substitui o habitual silêncio diante de agressões por um cândido gesto de apreço por sua própria obra? e ele enconstou num nervo exposto - racismo é tosco, e é tosco em qualquer caso, em qualquer casa e em qualquer cor (posso testemunhar, porque sou branco de olhos azuis e já cansei de ser chamado, em tom pejorativo/intimidador, de "branquinho" - mas, ei, posso me orgulhar da minha cor, dá licença?).

no mais, vou além do que o leno falou e lembro um outro detalhe ignorado pelo hugo na crítica: a jovem guarda foi a motown brasileira, o ponto de partida para toda uma linhagem "black music" neste belíssimo brasil negrão. muita gente que floresceu no iê-iê-iê virou bleque pau depois, mesmo tendo pele branca, e isso valeu, no início dos anos 70, para, por exemplo, wanderléa, erasmo carlos, roberto carlos e leno & lilian. nesse período, raul seixas, ainda desconhecido e exercendo o cargo de produtor de discos na cbs, foi grande eminência parda da jovem e negra guarda - um dos grandes discos dessa leva, que quase ninguém conhece, é "leno e lilian" (cbs, 1972), uma mistura explosiva de soul, funk e rock'n'roll, embalada por uma ternura que só a experiência jovem-vanguardista poderia ter ensinado.

não bastasse, a jovem guarda foi a escola de nomes efetivamente negros (ou quase), embora não propriamente iê-iê-iê, como tim maia, jorge ben, trio mocotó, wilson simonal, getúlio côrtes, cassiano, toni tornado, gerson king combo, hyldon, luis vagner, tony bizarro & frankye adriano, guilherme lamounier etc. etc. etc. é história à bamba, não dá para decretar que não existiu. abaixo a invisibilidade. e viva o grafite, seja para lápis branco, amarelo, pele-vermelha, verde com bolinhas rosadas, pardo ou negro como as noites que não têm luar.

(p.s.1: fico sabendo - alô, chris martins! - que erasmo, wanderléa, golden boys e the fevers estão começando pelo rio uma turnê de comemoração aos 40 anos da jovem guarda. o lado meio chocho é o eterno retorno às "comemorações", que reduzem esses artistas a bem menos do que tudo que eles são. o lado comovente é que a turnê correrá os sescs de são gonçalo, madureira, são joão de meriti, niterói e nova iguaçu - ou seja, é o iê-iê-iê de volta às suas próprias origens, ao subúrbio, ao brasilzão natal nuclear.)

(p.s.2: além da fase rock'n'roll de leno & lilian, recomendo também os dois discos originais, bem iê-iê-iê romântico, da dupla: "leno e lilian", 1966, e "não acredito", 1967. já eram proto-soul music, mimosos até a ponta dos cabelos louros de lilian knapp e dos caracóis dos cabelos de leno azevedo.)

segunda-feira, abril 18, 2005

o "bode expiatório"

mais trechos explosivos do livro "cabeça de porco", vamos? pode parecer que este blog está ficando temático, mas não está - tudo isso é sobre a gente, mora no nosso quintal. a gente só quer ser feliz nesta grande favela chamada brasil em que a gente nasceu.

a felicidade que me move, hoje, é a de ficar sabendo que tem gente da central única das favelas passeando aqui pelo blog, o que me enche de orgulho e alegria. aliás, fico pensando que, nestes menos de quatro meses de atividade, este blog tem me dado uma alegria especial: noto que, embora modesto, ele tem se tornado um espaço democrático, freqüentado livremente por tipos tão variados quanto advogados, jornalistas, professores, músicos, publicitários, ativistas sociais, dramaturgos, artistas plásticos, designers, sambistas, rappers, roteiristas, cineastas, roqueiros, emepebistas, desempregados, estudantes, parentes (sem nepotismo!), pessoas cujas origens e profissões desconheço, de todos os sexos e cores. não havia me dado conta disso até agora, mas não é uma prova viva de que a gente adora quando tudo se mistura?

neste pedaço, nos convido a pensar sobre invisibilidade, violência, confinamento, medo etc. nos convido a pensar um pouquinho sobre o "bode expiatório", com a ajuda de luiz eduardo soares (& mv bill & celso athayde). nos convido a brincar de traçar paralelos entre as camadas sociais que nos constituem: a pensar que aquela "ovelha negra" na nossa família lá de casa é parente do "delinqüente" na esquina familiar lá do bairro, que é parente da favela na grande família brasileira, que é parente de áfricas e brasis na imensa família planetária, que... ao trecho, então (em negrito, desta vez, ficam os conceitos que mais me impressionaram):

"quando seria necessário reforçar a auto-estima dos jovens transgressores no processo de sua recuperação e mudança, as instituições jurídico-políticas os encaminham na direção contrária: punem, humilham e dizem a eles: ‘vocês são o lixo da humanidade’. é isso que lhes é dito quando são enviados às instituições ‘socio-educativas’, que não merecem o nome que têm – o nome mais parece uma ironia. sendo lixo, sabendo-se lixo, pensando que é este o juízo que a sociedade faz sobre eles, o que se pode esperar? que eles se comportem em conformidade com o que eles mesmos e os demais pensam deles: sejam lixo, façam sujeira, vivam como abutres alimentando-se do lixo e da morte. as instituições os condenam à morte simbólica e moral, na medida em que matam seu futuro, eliminando as chances de acolhimento, revalorização, mudança e recomeço. foi dada a partida no círculo vicioso da violência e da intolerância. o desfecho é previsível; a profecia se cumprirá: reincidência. a carreira do crime é uma parceria entre a disposição de alguém para transgredir as normas da sociedade e a disposição da sociedade para não permitir que essa pessoa desista. as instituições públicas são cúmplices da criminalização ao encetarem esta dinâmica mórbida, lançando ao fogo do inferno carcerário-punitivo os grupos e indivíduos mais vulneráveis – mais vulneráveis dos pontos de vista social, econômico, cultural e psicológico. esmagando a auto-estima do adolescente que errou, a sociedade lava as mãos, mais ou menos consciente de que está armando uma bomba-relógio contra si mesma, contudo feliz, estupidamente feliz por celebrar e consagrar seus preconceitos. o preço desta consagração autocomplacente é a violência. violência da qual, entretanto, a sociedade não pode prescindir (mesmo sofrendo tanto com ela), porque deseja continuar dispondo do bode expiatório para expiar seus males e exorcizar sua insegurança mais profunda, aquela que advém do reconhecimento de sua própria finitude, isto é, da sua mutabilidade – a história é para as sociedades o que a morte representa para os indivíduos. é preciso manter a todo custo a geografia moral: de um lado, o bem; de outro, o mal. pague-se o preço que for, mesmo que o preço seja a preservação das condições que propiciam a existência do mal. tudo para que cada um de nós jamais encontre, em si mesmo, o outro lado; tudo para que a sociedade e suas instituições possam preservar intocado seu espelho idealizador. a invisibilidade de uns serve à invisibilidade que mais importa, aquela que sustenta uma certa visão do mundo."

[lendo isso tudo e pensando no estado de são paulo, em que vivo, percebo estarrecido que o estimado governador geraldo alckmin, com suas excelentíssimas unidades da febem, nunca ouviu falar (ou, se ouviu, não quis escutar) de psicologia social. acorda, seu geraldo, desparalisa, toma tento. daqui de baixinho a gente vai também tentando fazer a nossa parte, ok?]

sexta-feira, abril 15, 2005

a "mãe" (& a refavela *)

você percebeu que ontem foi um dia incrível, notável, histórico para o brasil?

tudo começou quando dr. lula foi passear na áfrica. veio logo o apupo, o nhenhehém: que o presidente só passeia, que não há nada para fazer na áfrica, que a viagem está sendo inútil, que o ministro furlan se irritou com os africanos, que não vai adiantar nada no comércio, blablablá...

aí mr. simbólico vestiu as túnicas dos africanos. interiorizou, incorporou, recebeu o santo.

enquanto a comitiva passeava, o brasil seguia seu tino. como já aconteceu zilhões de vezes, num campo de futebol em público e ao vivo para zilhões de pessoas (ou seja, num lugar qualquer, paratodos), um jogador branco de futebol insultou de forma racista um jogador negro de futebol. e eis que, plim, alguma coisa estava diferente naquele dia, e o homem branco que espezinhava o homem negro foi chamado à sua responsabilidade. aprendeu, de forma traumática, que doravante terá de pensar duas vezes antes de dar vazão pública às suas próprias misérias.

mais ou menos ao mesmo tempo, na áfrica, o presidente do brasil pedia perdão público aos africanos, pela escravidão que por séculos os violentou. ministros choravam, em especial o ministro-cantor negro gilberto gil, pai de uma menina chamada preta maria e autor, há mais de uma geração, do hino medrosamente anti-racista "refavela" (do álbum medrosamente anti-racista de mesmo nome, philips, 1977, que também continha versos de paulinho camafeu que diziam "branco, se você soubesse/ o valor que preto tem/ tu tomava banho de piche, branco/ ficava preto também").

também estava lá a ex-ministra mulher negra ex-favelada benedita da silva, demitida daquele mesmo governo, quem sabe para pagar por antecipação os abusos do moreno (mas coberto de denúncias de todas as cores) romero jucá (esse, recém-nomeado, ficou aqui no brasil mesmo). escorraçada do governo em um dos expurgos anteriores, benedita disse que não guarda mágoa. será que o pedido de perdão também lava sua alma política humilhada, de algum modo? será que romero jucá guarda mágoa do sr. lula?

também estava lá a semi-ministra mulher negra matilde ribeiro, que responde pela secretaria especial de políticas de promoção da igualdade racial. mesmo da áfrica, matilde comentou o que acontecia nos campos brasileiros de futebol (ou em quaisquer campos). disse que o racismo não será suficientemente punido no brasil enquanto apenas brancos seguirem liderando o poder judiciário. espero que isso seja um chamado aos negros, mais que um puxão de orelha aos brancos.

e, obviamente, estava lá também abdoulaye wade, o presidente do senegal, país onde se encontra essa ilha de gorée (já cantada, em francês e com toneladas de dor, por gilberto gil) que era palco do pedido histórico de perdão. segundo ensina gil desde ao menos o álbum "quanta" (wea, 1997), gorée foi plataforma de lançamento de escravos africanos para vários cantos do mundo - o brasil colonial esteve na "vanguarda" desse atraso. pois o presidente do senegal falou, com simpatia e exagero, que chefe lullaby é o primeiro presidente negro do brasil. não, embora seja simpatizante, lula não é negro, não. o(a) primeiro(a) presidente negro(a) do brasil nós ainda havemos de conhecer.

dois pra lá, dois pra cá, brasil e áfrica seguiam o dia de ontem de mãos entrelaçadas, feito charles & camilla, numa corrente para a frente que articulava e enfileirava a casa dos escravos de gorée, o campo brasileiro de futebol, a prisão tupiniquim onde foi atirado, não sem certos esgares também racistas, o jogador argentino de futebol (a prisão ainda acompanha de perto o suco étnico do brasil - "a favela é a nova senzala", alô, lobão)... e o racismo, por raro preciosismo, virou manchete por um dia, em toda a mídia nacional (ecoando também por áfricas, argentina & outros continentes). era um dia histórico para os dois, mãe áfrica e filho (bastardo) brasil.

é possível que a gente ainda veja cada um desses flagrantes de forma isolada, confinada, camuflada, enrustida - é a falta de traquejo em nosso olhar sofrido. não articulamos os fios, como também não os relacionamos com fios como, por exemplo, a vitória do professor homossexual baiano jean wyllys no "big brother brasil", o pânico da mãe de santo brasileira periférica em voar no avião presidencial para encarar a "vanguarda" religiosa do mundo, ou as conquistas de deize tigrona, funkeira feminista carioca que não tem um pingo de vergonha de dizer que mora em cidade de deus e que não é só cantora e compositora, mas também empregada doméstica (mais detalhes na revista "carta capital" que está chegando às bancas).

mas, se pudermos desanuviar o olhar e ligar todos esses pontinhos, o nome do conjunto será "processo histórico", "espírito do tempo", "cura coletiva". e os dias entre março e abril de 2005 terão sido marcos de uma pequenina (gigantesca) revolução, à qual não sairá incólume (graças a deus) um brasil que se encontra em pleno processo de abolição da escravatura.

de repente, onde tudo se mistura, um país inteiro vestia colossal túnica africana.

(* "refavela", lembra? é assim: "a refavela/ revela aquela/ que desce o morro e vem transar/ o ambiente/ efervescente/ de uma cidade a cintilar. a refavela/ revela o salto/ que o preto pobre tenta dar/ quando se arranca/ do seu barraco/ prum bloco do bnh. a refavela/ revela a escola/ de samba paradoxal/ brasileirinho/ pelo sotaque/ mas de língua internacional. a refavela/ revela o passo/ com que caminha a geração/ do black jovem/ do black rio/ da nova dança de salão. a refavela/ revela o choque/ entre a favela-inferno e o céu/ baby blue rock/ sobre a cabeça/ de um povo chocolate e mel. a refavela/ revela o sonho/ de minh'alma, meu coração/ de minha gente/ minha semente/ preta maria, zé, joão. a refavela/ alegoria/ elegia, alegria e dor/ rico brinquedo/ de samba-enredo/ sobre medo, segredo e amor. a refavela/ batuque puro/ de samba duro de marfim/ marfim da costa/ de uma nigéria/ miséria, roupa de cetim. a refavela, a refavela, ó/ como é tão bela, como é tão bela, ó/ iaiá, kiriê, kiriê, iaiá.")

quinta-feira, abril 14, 2005

o serviçal de um samurai?

olha, sampleio mais um texto aqui, mas com o objetivo de estudá-lo, não de plagiá-lo - então não é pirataria, ok? esse é do jornalista mauro santayana (que não conheço), para a agência carta maior (que mal conheço), analisando o avião presidencial-papal que conseguiu reunir lula e fhc em parcos mesmos metros cúbicos de dever, poder, piedade e vaidade. vai lá (e os grifos, novamente, são todos meus):

"muitas foram as críticas ao convite feito por lula a fernando henrique e a josé sarney para que o acompanhassem às cerimônias fúnebres em homenagem ao papa joão paulo ii. mas o presidente agiu como agiriam os mais hábeis políticos da história. o melhor manual para explicar a habilidade de lula é o pequeno e denso ensaio de plutarco, 'como tirar vantagem do inimigo'.
foi o que fez lula, que já conhece suficientemente a vida, para saber que o ex-presidente só pensa em desforrar-se do êxito que o operário vem obtendo na chefia do governo. ao convidar fernando henrique, o presidente deu-lhe apenas duas saídas: aceitar ou recusar o convite. se o recusasse, teria sido pior. assim, não teve como não o aceitar.
a astúcia não é disciplina acadêmica, mas, sobretudo, conquista das dificuldades. chegar à presidência da república com uma família bem constituída, vinculada ao poder, boas escolas, e convenientes relações pessoais, é muito mais fácil do que sem esses privilégios de nascimento e destino. é esse o contraste forte entre os srs. fernando henrique cardoso e luiz inácio da silva. a astúcia de lula não é uma deformação do caráter, mas sim, recurso de seu atribulado destino. ela se contrapõe à esperteza – essa, sim, uma irmã bastarda da astúcia.
os que estiveram presentes testemunham que fernando henrique se encontrava constrangido durante os eventos, e procurava esquivar-se das fotos. foi necessário que o fotógrafo de chirac o enquadrasse ao lado de lula em uma das imagens divulgadas.
o presidente lula comportou-se como um estadista acima das questões imediatas da política. ao levar os dois ex-presidentes em sua comitiva, procurava conduzir o brasil como um todo, não a facção política eventualmente no poder. atuou da mesma forma ao convidar representantes de outras religiões (...).
o ex-presidente levará algum tempo para refazer-se do arranhão de ponta de sabre, no golpe de esgrima de lula."

o que não concordo muito é com esse papo de esperteza ser irmã bastarda da astúcia. esperteza pode ser um lixo, mas por que o pejo negativo na palavra "bastarda"? qual é, afinal, a indignidade de ser bastardo?

também penso se ele não está exagerando em tamanha habilidade de dom lula - afinal, o clinton também estava lá, coladinho nos bushes...

mas e essa foto do chirac com lula & fhc, fhc & lula, juntinhos, judite? eu não vi, alguém aí viu? onde é que foi parar aquela menina?

falando em menina, fico cada vez mais triste com a ausência da mãe de santo na comitiva papa-lulal... desconfio que ela seria a única representante de alguma religião, er, "profana" ("bastarda"?), provavelmente uma das únicas religiosas mulheres naquele festim. desperdiçamos.

(esse título não tem asterisco, porque djavan está sempre em catálogo.)

quarta-feira, abril 13, 2005

a mulher invisível *

mais um pedaço irresistível do "cabeça de porco", do luiz eduardo soares (& mv bill & celso athayde). os grifos são todos meus - brinco por sobre o texto (direito sagrado de todo leitor, certo?) colocando:
itálico nas palavras que me machucam;
negrito nas palavras que me aliviam;
negritálico nas palavras que aliviam & machucam.
o papo agora é invisibilidade.

"um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível. (...) há muitos modos de ser invisível e várias razões para sê-lo. no caso desse nosso personagem, a invisibilidade decorre principalmente do preconceito ou da indiferença. uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo da nossa própria intolerância. tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo, tudo o que nela é singular desaparece. o estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos.
quem está ali na esquina não é o pedro, o roberto ou a maria, com suas respectivas idades e histórias de vida, seus defeitos e qualidades, suas emoções e medos, suas ambições e desejos. quem está ali é o 'moleque perigoso' ou a 'guria perdida', cujo comportamento passa a ser previsível. lançar sobre uma pessoa um estigma corresponde a acusá-la simplesmente pelo fato de ela existir. prever seu comportamento estimula e justifica a adoção de atitudes preventivas. como aquilo que se prevê é ameaçador, a defesa antecipada será a agressão ou a fuga, também hostil. quer dizer, o preconceito arma o medo que dispara a violência, preventivamente.
essa é a caprichosa incongruência do estigma, que acaba funcionando como uma forma de ocultá-lo da consciência crítica de quem o pratica: a interpretação que suscita será sempre comprovada pela prática não por estar certa, mas por promover o resultado temido. os cientistas sociais diriam que este é um caso típico de 'profecia que se autocumpre'."

ei, você aí? itálico ou negrito? você se sente invisível?

(* este título homenageia a deliciosa faixa homônima do grande disco "e a vida continua", de ritchie, lançado pela epic/cbs em 1984 e desde então nunca mais reeditado, salvo engano meu. alô, dona sony & bmg! muda?!!?)

terça-feira, abril 12, 2005

cabeça de nego *

estou devorando, estarrecido, o livro "cabeça de porco" (objetiva, 2005). como já citei de raspão antes, foi escrito em parceria por luiz eduardo soares (que é antropólogo, cientista político e filósofo e foi subsecretário de segurança pública do estado do rio de janeiro), mv bill (rapper carioca) e celso athayde (empresário de hip hop e co-fundador da central única das favelas); pelo que entendi, ainda houve a participação, não creditada no rol dos autores, de miriam guindani (doutora em serviço social).

nem saberia agora explicar direito do que se trata, mas o texto "conspiração contra a mudança", em especial, é a coisa mais impactante que leio desde, sei lá, "as horas"... vai um trechinho, só, que blog também é cultura:

"há, portanto, um conluio da coletividade, uma espécie de surda conspiração contra a mudança, ainda que esta seja desejada pelas instituições e pela comunidade diretamente envolvidas no processo. também aqui funciona um sistema: quando alguém é mau, outros são bons; se um é louco, outros são saudáveis; se alguém tem problemas, outros não têm. além disso, quando uma criança apresenta deficiências - e com ela, por extensão, sua família -, muitas outras famílias são redimidas de suas culpas e pecados, e podem celebrar seu sucesso, assim com todo um conjunto de profissionais - e suas funções se valorizam. só haverá vitoriosos se houver perdedores. se ninguém ocupar esta última posição, será preciso atribuí-la alguém, mesmo que ao preço da artificialidade e da crueldade. a conseqüência mais grave é a crença que se instala no espírito da própria criança acusada de que ela é, efetiva e essencialmente, assim... daí em diante, a tendência será a confirmação do prognóstico. a profecia tenderá a se autocumprir."

voltando ao mesmo tema, mais adiante, já num outro texto: "não há pavor comparável àquele que sentimos ante a mais remota possibilidade de nossa própria mudança. nós sonhamos com a mudança positiva dos outros, no entanto, tememos a nossa. até nossa mudança positiva nós tememos, porque, se ela pode ocorrer, qualquer outra transformação também pode sobrevir" [cê tá entendendo por que luiz eduardo soares convoca mv bill e celso athayde a dividir o livro com ele, por que o cara os move do papel social deles para um outro, do qual pareciam irremediavelmente condenados a nunca participar?].

vem cá, ê você (nós)? será que você (nós) consegue (conseguimos) aplicar isso aí na sua (nossa) própria vida? fora da retórica do vencedor e do perdedor, do bandido e do mocinho, do favelado e da patricinha, quem é você, vocezinho, você sozinho? quais são as suas fobias? você consegue listá-las, investigá-las, acariciá-las, movê-las, as suas próprias fobias? subvertendo os titãs (do iê-iê-iê): você tem medo de quê?

(p.s. promocional: um pirulito pra quem escrever o primeiro comentário deste tópico!)

(* o título deste tópico é uma homenagem ao fenomenal disco homônimo, de joão bosco, que saiu pela barclay/polygram em 1986 e desde então, se não estou enganado, nunca mais foi reeditado. alô, dona universal! muda!?!)

domingo, abril 10, 2005

queremos colo

e eu fui, pela primeira vez na vida, a um show do fábio jr. não sei se isso soa esquisito, mas devo confessar que várias músicas do cara marcaram minha infância/adolescência, e elas me parecem ótimas até hoje. "20 e poucos anos", "pai", "quero colo" (1979), "seu melhor amigo" (do guilherme lamounier!), "eu me rendo" (1980), "hei cara" (1981), "enrosca" (do lamounier, sempre ele...), "seres humanos" (1982)... fábio hoje é cheio de (simpáticos) trejeitos, tem um nariz parecido ao do michael jackson e canta bem pra caramba, mas fico meio atordoado com as músicas mais românticas - tipo "quando gira o mundo" (1985), "felicidade" (1988), aquela das metades da laranja (como se chama?). às vezes ele pula esses limites que atordoam, mas é profissionalíssimo, um excelente intérprete soul-pop secundado por um quarteto brega-chique de vocalistas negros.
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de tudo, o que mais deixou meu queixo caído foi a postura das doces vândalas que lotavam o show às multidões. eu estava lá meio acuado, sentei ao lado de uma moça que me dava beliscões caprichados enquanto pedia para eu roubar uma cadeira da mesa ao lado (meu deus, moça, quem te deu intimidade pra ficar me beliscando forte assim???). mas ela e todas as outras seguiam à risca a praxe e o ritual: vinham produzidíssimas para o fábio, e ao final do espetáculo perderam completamente a compostura e treparam em cima das mesas, talvez para ficar mais à altura do ídolo (fábio, aqui, parecia um pastor de igreja, e me assusta essa coisa de culto, seja do papa ou do pop). não sei direito o que me deslocou meu queixo, talvez o fato de as mesmas mesas em que pouco antes meninas, moças e mulheres depositavam cotovelos, copos e coxinhas (de frango) virarem, num passe de mágica, chão para elas amassarem a festa da uva e saírem trotando, trotando, trotando, quando girava ao mundo, ao encontro de fábio.
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os caras também gritavam "gostoso" e "lindo" (ele fingia não ouvir). tudo aquilo parecia meio inédito pra mim, nos shows a que costumo ir os caras não chamam o cantor de gostoso, as moças não põem o pé na mesa, eu não preciso ficar sei lá quanto tempo na fila (fila, fila mesmo, indiana) para conseguir entrar, nem o show atrasa uma hora e meia sem que ninguém dê um pio sequer. mas, com tanta esquisitice, ainda fiquei pensando: a única diferença desse show para os que costumo freqüentar (sejam de caetano veloso, coldplay ou o diabo-que-te-carregue) é que naqueles em que eu vou as(os) fãs descabeladas(os) não trepam em cima da mesa.
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você pode chamar de grosseria, mas eu posso chamar de enrustimento...
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outro momento esquisito do fim de semana (nossa, como tudo anda esquisito nestes dias): na festa max, no bar/boate/(ex-)puteiro executivo, atual reduto do underground mais desvairado e, er, "moderno" de são paulo, vejo pouco a pouco os excessos do imaginário electro se sublimarem numa outra coisa, ainda mais esquisita. sábado foi o ápice, difícil até de explicar: a pista vinha morna (tipo show de palace), até que rolaram uns funks cariocas - foi frisson imediato, não são só as patricinhas da lov.e que entram em surto diante do funk. a seguir, após uma performance de "thriller" - em espanhol! -, começou uma sessão de... lambadas!!! luiz caldas, beto barbosa, kaoma, acho que cid guerreiro´... alguém me explica, por favor, que eu não tô entendendo?
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não tô entendendo, mas vou arriscar. aquele max incluía um mini-show, também underground, da banda multiplex (que me pareceu uma mistura estranha entre ronaldo resedá e que fim levou robin? - e eu não estou chochando, tome como um elogio): um show em português!!!, na max!!! aí fiquei pensando se aquela sessão de lambada não era uma chochação do dj em cima da banda, que ia interromper o fluxo electro do embalo de sábado à noite para tocar musiquinhas em português. olha, até agora não decidi se era ou não era. só sei que, embora o cantor do multiplex parecesse contrariado (ele faz um estilo bem rock britânico) e muitas pessoas tenham ido embora daquela hora das lambadas em diante, a pista entrou em delírio e diversos casais (de todos os sexos) se puseram a dançar de dois em dois - você consegue imaginar clubber dançando coladinho? nem eu, mas, meninos, eu vi. ou seja, agora é moda, a kaoma colou e quem queria chochar tomou o tiro na culatra. muito esquisito, tá tudo muito esquisito.
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já que o assunto é esquisitice, pra não dizer que não falei do papa: algum de nós imaginou nesta vida ver aquela confraternização planetária (que mais parecia interplanetária, só não tinha marciano) de árabes, israelenses, bushes, africanos, orientais, brasileiros, o escambau?
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no dia em que vi a tv, ficava o chato me gritando no ouvido, que o tempo presente é a guerra entre o oriente e o ocidente, mas, ai, que preguiça. quase sem querer, entre um fábio jr. e uma lambada eu almocei num restaurante árabe (porque agora adoro kibe cru), e garrei a maginá: como pessoas como arnaldo jabor, glória perez e george bush conseguem polarizar assim o mundo entre ocidente e oriente? como se pode acreditar que o mal mora no oriente, se os árabes são capazes de preparar as refeições mais delicados do planeta, elaboradas em mel, trigo, hortelã, grão-de-bico, coalhada, folha de uva, pistache, almíscar...? olha, prefiro ficar com os titãs (do iê-iê-iê): "o inimigo sou eu". xô, satanização.
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mas, ah, voltando ao funeral do pope. puxa, por mais que os rituais católicos me agridam, tenho que dar o braço a torcer ("onde é que foi parar aquele menino?") e me emocionar com a confraternização transglobal. mesmo que ela seja falsa, da boca para fora, dure apenas os 15 minutos de warhol. o velhinho podia ser aborrecente e reacionário que era o cão, mas concordo com humberto gessinger: era pop. na morte ele esculpiu algumas das cenas mais impressionantes que a gente já viu, não foi, não? fico aqui pensando que papa existe para morrer, que essa é sua grande função. a parte do culto obsessivo à morte é ruim, mas e essa onda de inimigos se abraçando que o pasamento do supremo tem provocado? mesmo que seja nuvem passageira que com o vento se vai (alô, hermes aquino), a gente tem que reconhecer, vá: é bonito, é bonito e é bonito...
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mais bonito ainda foi a mãe de santo suburbana sendo convidada para o vôo presidencial e perdendo o bonde do lulão. claro que a gente preferia que ela fosse, mas tem uma carga simbólica tão grande ela não ter "conseguido"... a religião dela ainda é das mais ofendidas, agredidas, olhadas de soslaio. ela não ia se sentir bem no meio de tanto fausto e preconça (até o boca de caçapa fhc estava lá!!! junto com o lula!!!! tá vendo o porte da coqueluche da paz do jp ii?). não foi. perdeu o vôo, disse que não tinha conta bancária, esfregou no nosso nariz a própria marginalização a que vive fadada (e ainda tenho que ouvir mais chatos me gritando no ouvido que "até" a macumbeira foi chamada pelo lula. "até" por que, cara pálida? trepa na mesa, querida).
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aliás: aposto que a mãe de santo ia andar de avião pela primeira vez na vida. eu me lembro da minha primeira vez, sei de cor e salteado o que ela devia estar sentindo. a primeira viagem de avião é um terror, mas imagina se além de estrear de gaiato no avião em companhia de severinos, fernandos, rabinos e marcelos rossi (ops, esse, não, que deus é grande!) você ainda tivesse à sua espera, no fim da linha, no ponto final, o papa morto estirado na diagonal? eu, hein, rosa?
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outra coisa incrível: há poucas semanas, conheci na lov.e a funkeira carioca deise tigrona (do funk da injeção, "tá ardendo, eu tô agüentando"). ela é fofa, inteligentíssima, e contava para a gente que naquele dia havia andado de avião pela primeira vez na vida, do rio para são paulo. comentei o medo que ela devia ter sentido, e deise, durona, explicou que não: "não fiquei com medo. só estranhei descobrir que avião faz curva". ou seja, ficou com medo, sim, né, tigrona?
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o que eu queria dizer: reparou como tem gente andando de avião pela primeira vez na vida (ou fazendo alguma coisa que nunca fez pela primeira vez na vida, ou desistindo de algo pela primeira vez)? eu explodo de felicidade quando são pessoas como a funkeira e a macumbeira (essa ainda vai pegar avião, eu aposto). tem algum significado muito profundo nisso, tem, não? o expresso 2222 tá partindo daqui pra depois, nós estamos no século xxi e a morte do joão paulo ii encerrou o xx de uma vez por todas. a bênção, século xxi, saravá.
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a ponte talvez não seja instantânea, mas tudo isso me leva ao lula. enquanto o brasil gasta todo seu tempo achando ele péssimo, o mundo está apaixonado pelo lula. e eu queria saber por que, e ninguém me responde, porque fica todo mundo ocupado sentando a lenha nos governos brasileiros ou escrevendo textos hipnotizados sobre o papa (concordei, bechara!). mas, diante do "bbb" papal e de cardeais caóticos, bispos abismados e padres pretos, maringá garrou de novo a maginá: sabe por que eu acho que o mundo adora o lula? porque, pela primeira vez, o brasil comete um presidente cuja imagem pessoal bate tal e qual com a imagem geral do país. acho que os gringos tão ligados nisso (será que é o que faz clubbers de londres e britpops e electropavões do centrão de são paulo bailarem, na curva, o funk e a lambada?). que imagem o brasil entregava ao mundo com um jânio todo trançado, com uma fileira de ditadores trogloditas fardados, com a quase inexistência de sarney, com a maria-antonietice alérgica a povo de fhc? e, no contraste, que imagem lula oferece? pode xingar quanto quiser, mas eu vejo só agora o brasil tomando cara de brasil.
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você pode chamar de grosseria, mas eu posso chamar de desenrustimento...
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já que o tédio não escolhe patrão, são paulo veste mais uma vez a túnica do niilismo, mas pelo menos veste democraticamente, sem escolher freguês. poucos meses depois de achincalhar com todas as (muitas) qualidades de marta suplicy, os paulistanos já fazem o mesmo com josé "eu sou nuvem de chuva" serra. é, queridos tucanos, mau humor e intolerância não escolhe partido. o cara tá rejeitadíssimo nas pesquisas, acho que muito mais do que merece até. mas essa é a marca da intolerância, do espírito de choramingação que ainda acomete 9,99 de cada 10,00 brasileiros. crueldade e auto-estima em frangalhos também são valores democráticos...
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falando em niilismo e falta de auto-estima. não é impressionante como joão paulo ii e terri schiavo parecem a mesma pessoa, naquele delírio de morrer/não morrer, de sofrer com/para a platéia, de democratizar martírios e pecadilhos pessoais? será que o pavor da morte, transfigurada em terri e em karol, nos impele a manifestar essa onda súbita de solidariedade internacional, essa que leva bush a schroeder, lula a fhc, dj marlboro ao lov.e, o professor universitário ao "big brother brasil" (aliás, ali o cara é que era gay, mas quem saiu do armário da intolerância foi o brasil inteiro) (dizem que agora só tá faltando joão silvério trevisan e andré fischer selarem seu acordo de paz.) etc. etc. etc.?
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será que é o pulso de vida morando no instante aterrador da morte? sei lá, não sei. mas ainda bem que contra as imagens de wojtyla e schiavo existem as da deise, da mãe macumbeira, de dona marisa, de jean, de grazi, de mv bill e celso athayde saindo do gueto da cidade de deus e escrevendo livro sobre violência em trio com o antropólogo e cientista político luiz eduardo soares (chama-se "cabeça de porco", mais um título cruel...). como canta raul seixas, mais vivo do que nunca, "o sol da noite agora está nascendo/ alguma coisa está acontecendo"...
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e eu, o pas, aqui no meu cantinho? bem, eu fui, pela primeira vez na vida, a um show do fábio jr.

quinta-feira, abril 07, 2005

esses caras

putzgrila. eu noticiei as desavenças, na época em que a velha coluna "ruído" ainda existia, pois agora também quero ter a honra de noticiar a reconciliação! é que, parem as máquinas!, recebo por intermédio da biscoito fino (alô, incansável julio moura!) um recado de jards macalé, dando conta de que é encerrada sua animosidade com caetano veloso, que durava desde 1972, quando juntos os dois fizeram "transa", um dos discos mais importantes da história do (não)brasil - e de cujas formas geométricas concretistas o nome do diretor musical macalé veio a misteriosamente, num plim, desaparecer.

é preciso recapitular.

em novembro de 2003, caetano veloso lançou o livro "letra só", em que faz acompanhar as transcrições de alguns de seus poemas musicais de inéditos, reveladores e ainda mal assimilados comentários de autor. ao escrever sobre a linda balada deprimida "esse cara", que inicialmente seria musicada por macalé, caetano diz assim, em "letra só" ("ele" é jards macalé, cê tá entendendo?):

"um dia, de madrugada, ele veio do quarto dele e disse assim: "olha aqui, eu não vou fazer isso, não, porque depois essa letra vai ficar com o meu nome, e eu não me sinto bem". isso porque os amigos dele, cariocas, podiam achar que aquilo era coisa de veado, qualquer coisa assim. (...) bethânia gravou e arrebentou."

no desenlace do drama, e "esse cara" nasceu do ventre de maria bethânia, que a gravou no disco "drama" (mais ou menos ao mesmo tempo caetano também a cantou, mui tristemente, no show-disco "caetano e chico juntos e ao vivo"). 1972 foi o ano de lançamento de que todos esses discos (como também de "transa").

em entrevista com caetano, na ocasião da edição daquele livro "letra só", obviamente perguntei sobre o caso, e a resposta (publicada na "folha" de 15 de novembro de 2003) do tropicalista ex-exilado foi curta e neutra:

"fiz a música que ele não quis fazer e continuamos em londres, tocando juntos, nos divertindo, conversando até de madrugada. ele morava na minha casa. não houve nenhum momento de animosidade por causa disso, não houve briga".

pouco depois entrevistei também macalé, a propósito de uma homenagem a waly salomão que ele anunciava (e que ainda não saiu, mas vai sair em breve, pela mesma biscoito fino que hoje é o castelo real de mana bethânia). saiu assim, na "ruído" de 28 de novembro:

"será um caderno de canções da parceria com waly salomão (1944-2003) o próximo trabalho de jards macalé, 60, com inéditas e revisões de clássicos da estirpe de 'vapor barato'. ele pretende convocar para as gravações grupos jovens do underground, como o carioca vulgue tostoi e o paulista numismata.
e macalé vem a público reagir contra trecho do livro 'letra só', em que caetano veloso menciona sua recusa em musicar a letra de 'esse cara', em 72, porque supostamente traria uma conotação homossexual.
macalé atribui a 'zanga' do colega a uma cena do filme 'o amuleto de ogum' (74), de nelson pereira dos santos, de que ele cuidou da parte musical.
'coloquei 'esse cara' cantado por bethânia numa cena em que anecy rocha, irmã de glauber e ex-namorada de caetano, usava um bigode postiço. deve ser por isso', afirma, sem mais esclarecer sobre a célebre briga que o afastou do círculo da tropicália e tirou seu nome dos créditos de 'transa' (72), de caetano.
por enquanto, o artista relança em cd 'contrastes' (77), cuja capa fora embargada pela escritora ana miranda, sua ex-namorada. abaixo, a capa vetada por ana e a alternativa criada pela gravadora dubas. [a coluna reproduzia as duas capas, do fogoso beijo na boca entre jards e ana em 1977 e da solução encontrada em 2003, de apagar da foto a imagem da moça, simulando que o instantâneo houvesse sido queimado, provavelmente por causa de algum cisma amoroso.]"

pois foi maria bethânia, a cantora de "esse cara" ("ah, esse cara tem me consumido/ com seus olhinhos infantis/ como os olhos de um bandido"), quem acabou quebrando gelos que se cristalizavam desde o século XX. interrompeu o fluxo interrompido entre macalé e o grupo baiano, gravando no disco mais recente uma parceria de vinicius de moraes com o ex-(quase-)tropicalista carioca, que lá no início também dirigira shows da carcará. bethânia não só gravou, como incluiu a dita canção no show agora em cartaz. e macalé foi assistir ao espetáculo (pródigo em citações a brigas e reconciliações e a "esses caras" e a "estranhos rapazes"). no mesmo dia em que caetano também estava lá.

muito mais não sei. mas recebi o recado de macalé (alô, queridíssimo macalé! saudades de itamar assumpção, não?...), que não copio aqui porque não tenho sua autorização. o fato é que ele, brincalhão, comenta o fato de eu ter um blog ("meu deus, o que poderá acontecer...") e, tchararan!!!, conta das pazes seladas.

[para uma aula histórica, im-pres-cin-dí-vel, sobre o que nos dão e o que nos tiram essas convulsões entre parceiros geniais, recomendo vivamente a leitura de "donato vs deodato", texto do blog do (anti)astro pop brasinglês ritchie. é um verdadeiro tratado sobre paranóia & pé no chão, pena que deixe em suspense as dobraduras e desdobraduras do que teria sido/seria/foi/é/será uma parceria entre... ritchie e joão donato (que é ex-parceiro do depois amigo de björk eumir deodato e é atual melhor amigo musical de marcelo d2)! não vejo a hora de ler a (auto)biografia do ritchie..., será que ele vai escrever?]

pode parecer meio fútil tudo isso (até é), mas é que a mítica dessas guerras e armistícios é tão crucial para a compreensão do que é a parene montanha russa de ascensões-e-quedas a que chamamos cultura brasileira... os tapas & beijos entre caetano e macalé passam em minha mente uma tela grande, como num filminho de nelson pereira dos santos, em que se projetam slides de gilberto gil & tom zé, gilberto gil & paulinho da viola, paulinho da viola & caetano veloso, tom zé & jards macalé, joão bosco & aldir blanc, arnaldo baptista & rita lee, tim maia & roberto carlos, roberto carlos & ritchie, roberto carlos & todo mundo... por trás e na superfície da tela de projeção, vislumbro ela, sempre ela: maria modernista (a propósito, um dia ainda havemos de conversar sobre maria bethânia & elis regina & gal costa...).

eta, eta, eta, será que nossos pais ainda são os mesmos e vivem como nós?...

terça-feira, abril 05, 2005

maria modernista

juro que não sei direito o que saiu nos jornais sobre o novo show da maria bethânia, em termos de crítica. mas sei que tenho ouvido horrores sobre esse show. cada comentário é mais destruidor que o outro (pois é, o que se fala sobre a arte aqui no mundo real muitas vezes é muito mais cruel do que qualquer crítica pregada em jornal... mas, como não vem a público, são os "pas" da vida que levam toda a fama de "maus", me engana que eu gosto...). pois dezenas, quase centenas de pessoas me disseram que a coisa desta vez era medonha, horrenda, hedionda, terrível.

pois bem, se está todo mundo xingando eu também quero xingar!, hehehehe. lá fui eu sábado passado para minha sessão de "tempo tempo tempo tempo", pronto para ouvir e ver músicas "erradas", cenários despencando, dona maria caindo da escadinha (com bia lessa na direção sempre há escadinha), a decadência bonita da baiana, enfim...

de fato, fiquei um tanto impassível diante do show (já tenho um bom número de espetáculos de bethânia no currículo, vai ficando difícil encontrar pontos de escora para a surpresa após tantas e tantas bethânias). não me emocionei, a não ser nas passagens de "usina de prata" e do pedido de bênção de "samba da bênção", que ela termina trovejando "a bênção a cada um dos senhores, a bênção, porque eu tô só começando" - ah, se todos fossem iguais a essa quase sessentona que guarda o despudor de se dizer mais moça que uma menina!...

mas, espera aí, o que é que há de tão horrível no tal show, meu deus??? eu fiquei esperando o fiasco até o fim, e... ele não veio. sei lá se ela consertou alguns dos "defeitos de fabricação" insistentemente apontados (aliás, será que ela ouviu falar deles?), mas tudo isso me leva a me perguntar, imediatamente, o que bethânia faz para, aos quase 60, ainda escandalizar tanta gente? hum-rum, vamos palpitar.

a) segundo o falatório, o cenário (de daniela thomas) é um dos tratores da repulsa a "tempo tempo tempo tempo". ali, não acontece muita coisa além de um constante vaivém de formas geométricas, quadrados e retângulos que sobem e descem flutuando no palco ao sabor e ritmo do curso musical do show. mas é tão evidente o propósito: maria enrodilha seu show numa homenagem simbólica a vinicius de moraes, um poeta modernista, mas também aos 40 anos de sua própria (e modernista) carreira. sóbrias e racionais, aquelas formas que vão e vêm não são mais nem menos que a poesia de vinicius (ou mesmo a de ferreira gullar, outro mito para a intérprete que tanto ama poesia) e que a atividade política (mais até que o vozeirão) de bethânia. podemos, tranqüilamente, bradar contra o modernismo anacrônico do show - mas aí a questão está na arte heróica pré-tropicalista/pré-pós-modernista e na própria bethânia, nunca no show de bethânia. o show é bethânia como bethânia sempre foi, sublinhado e ressaltado pelo amadurecimento da mulher. não há retângulo de thomas que desvie a atenção desse foco.

b) o maestro jaime alem, obrigatoriedade de quem acompanha a música de bethânia há já muitos e muitos anos, também desperta manifestações de incômodo, com as quais até tendo a concordar. alem traz mesmice, vagareza, sofisticação superficial (alô, morelenbaum) e emepebice hippie ao universo da matrona. mas nada disso tampouco é novidade, e até acho que nesse show o cara rende dois momentos elevadíssimos (e espelhados um com o outro, no roteiro do show): os arranjos de "oração ao tempo" (1979), de caetano veloso, e de "usina de prata" (1976), de rosinha de valença (sugiro, aqui, visita a outro tópico deste blog, publicado dia 2 de fevereiro, dia de festa no mar; chama-se "dois mil e quatro 3, a terceira margem: rosinha, essa menina").

c) evidentemente, houve quem se escandalizasse com a presença, no show, do iê-iê-iê "vem quente que eu estou fervendo", lançado por erasmo carlos em 1967. pois me escandalizo muito mais com o fato de o programa chiquitíssimo do show creditar o rock à dupla erasmo-roberto carlos, e não a seus verdadeiros autores, carlos imperial e eduardo araujo (soterrar quem já está soterrado é um pouco meio muito, né não?) o mesmo furor horrorizado ouvi ser causado pela cafoníssima "gita", que bethânia já cantava em 1975, quando o hit de raul seixas era recém-nascido - e, mais engraçado, num show em dupla com o sisudo chico buarque. no mais, o que há de novo no flerte com o rock e no flerte com o cafona, se bethânia já causou ondas intermitentes de repulsa (minha inclusive) ao gravar zezé di camargo & luciano, roberto & erasmo etc. etc. etc.? além de não haver nada de surpreendente na conversão pseudo-erasmiana de maria, também "vem quente que eu estou fervendo" integra um bloco divertidíssimo do show, de umas tantas canções que falam, sempre, sobre brigas de casal. é só ver os títulos e a seqüência montado: "soneto de separação", "olhos nos olhos" ("quero ver como suporta me ver tão feliz"...), "você vai ficar na saudade" (de benito di paula!, mais escândalo), "volta por cima", enfim os versos-mito "se você quer brigar/ e acha que com isso estou sofrendo/ se enganou, meu bem/ pode vir quente que eu estou fervendo" (nem sei ao certo por que, mas me lembrei do mano caetano veloso e de paula lavigne, o tempo todo, nesse bloco).

d) o roteiro muito picado de "tempo tempo tempo tempo" é outra fonte de desconforto - eu também me canso às vezes, mas, de novo, quando não foi picado um roteiro de bethânia, essa cantriz sempre tão influenciada pelo diretor teatral fauzi arap? fico pensando se a irritação, desta vez, tem algo a ver com a grande amplitude da revisão histórica que maria tenta fazer, numas de comemorar seus primeiros 40 anos de intérpretação. é difícil, para qualquer espectador, compactuar com ela a montanha russa que pula de caetano a carlos imperial, de tom jobim a benito di paula, de chico buarque a raul seixas, de vinicius de moraes a gonzaguinha. aos mais jovens, parecerá mesmo datado em demasia (e isso é mesmo, é, sim). aos mais véios de guerra, talvez cause a disritmia de um passeio amplo e despreconceituoso demais, que abarca (com igual paixão e sempre evocando implicitamente sua musa inspiradora nara leão) bossa nova, afro-samba, canção de protesto, jovem guarda, tropicália, clube da esquina, mpb engajada à moda de gonzaguinha, sambão jóia, música caipira (o passeio interior de um dos últimos blocos, o que inclui "usina de prata", é para mim indiscutivelmente o mais atordoante do show), samba do recôncavo, rock'n'roll e muita, muita, muitíssima mpb. é compreensível que não dê para acompanhar, é referência demais para cada alma aprisionada em seus próprios cercados e preconceitos (acho que nenhum de nós está a salvo desse desconforto, certo?).

e) mas, e aí, o que há de novo no passeio malucão dos quarent'anos de palco de dona maria? algum dia foi diferente? essa dúvida me remete a outro ponto, que é irmão de minha não-emoção e me faz mais que tudo sair pensativo da encenação. não compositora, essa mulher se torna autora de tudo que canta, porque dá sua feição una a um espectro fenomental de músicas e músicos brasileiros [pausinha: ao não mencionar os nomes de autores das canções se eles não forem chico nem caetano, bethânia me lembra os funkeiros cariocas, que também escandalizam porque inserem em suas músicas, sem citar, trechos que vão de debbie harry a xuxa e de afrika bambaataa a jorge ben jor]. seu jardim de opções é enorme demais, e, ainda assim, conta uma história muito parcial da música popular brasileira. assim como cada espectador que sai do espetáculo com benito di paula, erasmo carlos e/ou gonzaguinha atravessados na garganta, bethânia constrói seu castelo tanto em cima de citações como de omissões. pois eu não me lembro, ao menos em sua obra recente, de ouvir qualquer lembrança explícita a elis regina, paulinho da viola, clara nunes, jorge ben jor, belchior, martinho da vila, joão bosco, aldir blanc, zé ramalho, gal costa, wilson simonal, jair rodrigues, elza soares, raimundo fagner, novos baianos, secos & molhados, mutantes, tim maia, tom zé, wanderléa, geraldo vandré etc. etc. etc. (estou ficando só nesses confins geracionais de sempre, cê tá entendendo?). como qualquer um de nós, nem tudo ela aceita, e eu fico curiosíssimo por entender qual é a dinâmica e o mecanismo das rejeições de bethânia, já que elas não são, nunca, facilmente decodificáveis. o bonito é que não parece ser simplesmente o jogo de simpatias e rivalidades que sempre move o estrelato mpb: bethânia tem voltado a interpretar jards macalé, notório adversário dos tropicalistas; mais ainda, é capaz de rememorar (e pedir a bênção explícita a) paulo vanzolini, mesmo que o irascível sambista paulista viva sempre a espezinhar a "destruição" que bethânia teria promovido em suas "volta por cima" e "ronda". bethânia pede bênção, também pela destruições que edifica.

então, cadê o escândalo (alô, angela ro ro)? sei lá.

eta, ói nós aqui outra vez... ainda sendo os mesmos e vivendo como nossas mães...

domingo, abril 03, 2005

carrão, tatuapé, rebouças, londres, rocinha, cidade de deus...

quer entender em que grau as coisas andam todas se misturando? então tente me acompanhar - admito, é meio complexo, cheio de saliências e reentrâncias...

a dupla tetine nasceu há cerca de uma década, na confluência das influências de bruno verner (antes roqueiro mineiro) e de eliete mejorado (antes atriz paulista de teatro). a partir da formação de um casal que é sui generis sob qualquer ângulo que se queira apalpá-los, edificaram uma parceria musical-performática-visual-poética-comportamental-política-sexual que ganhou esse nome, tetine. a rota discográfica começou em 1996, com o disco "alexander's grave", cultivado no underground paulistano e em doses cavalares de experimentalismo (talvez) antipop.

a hoje já extensa obra que os dois vêm edificando abrange trilha sonora para espetáculo de dança ("creme", 1998), pop rock eletrônico romântico e anti-romântico ("música de amor", 1999), auto-exílio em londres (que perdura até hoje e passou a ganhar tradução em cd em 2001, com "olha ela de novo"), parceria com a multi-artista francesa sophie calle ("samba de monalisa", 2002), sincronias irônicas com o electroclash ("men in uniform", 2003).

tudo já estava amplamente misturado, e, você diria, o afastamento do brasil natal seria progressivo e contínuo (afinal, mesmo desde aqui as letras em português rareavam, ou eram cantadas com fluência menor que a do teatro musical em inglês que mais caracterizava a dupla). pois sim.

deu-se que, não mais que de repente, tetine transbordaram e se apaixonaram por... funk carioca. a curva de volta à origem se dá num ponto parado no ar. de uns tempos para cá, bruno e eliete
a) têm falado sobre (e tocam) música brasileira numa rádio londrina (a resonance fm, no programa "slum dunk")
b) chaparam no som das funkeiras do rio de janeiro,
c) têm discotecado funk carioca em baladas londrinas e européias (e, mais recentemente, até em miami, mãe do miami bass e avó do funk carioca),
d) fizeram a curadoria de uma celebrada coletânea de funk carioca, pelo selo local mr. bongo ("slum dunk presents funk carioca", 2004),
e) e... acabaram lançando um disco pelo selo independente paulista bizarre, dedicando-se prioritariamente ao funk carioca, cantado em português!

"bonde do tetão", recém-lançado (mas mostrado aqui em première no ano passado, durante o festival "sonar", em que eliete causou espécie - acredite - porque cantou sem camisa, com os seios expostos), inverte toda a história do tetine, sob a égide de electrofunks como "safadinha (melô do lingüição)", "betty faria (eu tô aberta)" e "melô do carrão". o conhecido ideário de contestação sexual (em que cabem inversão de papéis, travestismo, múltiplas variáveis sexuais, letras investigativas de temas tabu etc. etc. etc.) cai de bocão na vocação explícita, chula e agressiva de artistas brasileiríssimos como deise tigrona, mr. catra, tati quebra barraco, bonde do tigrão, mc serginho & lacraia, entre muitos outros [embora até hoje nunca absorvido pela indústria fonográfica nacional, o gênero persiste e só faz crescer no brasil, há ao menos 15 anos].

transcrevo a partir daqui uma entrevista por e-mail com bruno e eliete, feita no contexto da reportagem "a vulgaridade em alta", da revista "carta capital", mas que se estendeu e rendeu outros desdobramentos, discussões e promessas de reflexão. eliete e bruno se revezam nas respostas às minhas perguntas, mas em dado momento já não consigo mais saber se quem respondeu foi um ou outro, ou se então foi bruneliete, essa entidade-multitudo-onde-tudo-se-mistura. não me atrevi, até este momento, a traçar alguma análise autoral sobre os significados dessa misturança toda e sobre as implicações de "bonde do tetão", aqui ou além-mar. isso fica, prometo, para os próximos capítulos. eles com a palavra, agora.

*
pas - por que dois brancos brasileiros de classe média de repente se identificam com (e passam a divulgar, em português, na inglaterra e na europa em geral) o funk carioca, um gênero vindo de classes sociais desprivilegiadas e que até há algum tempo ficava em certa medida confinado em seus próprios redutos?

eliete - o funk me pegou na primeira batida, desde a primeira vez que ouvi. a atitude, a abertura, o ritmo, a disposição e o discurso do funk são elementos que nunca ouvi e vi reunidos na musica eletrônica brasileira. arrepiou minha espinha desde a primeira vez. identifiquei imediatamente com meu processo criativo no tetine. me identifiquei com a musica. tinha tudo o que eu estava procurando sonicamente. não sou do morro, sou branca, vim de classe média paulistana da zona leste, bem longe do rio. estudei em escola pública a vida toda. e me identifico completamente. não tem cura.

pas - detratores do funk carioca acusam excessiva vulgaridade e precariedade de suas letras e músicas. o que vocês acham desses aspectos do funk carioca? ele seria veículo de uma vulgarização de costumes no brasil, e, por conseqüência de trabalhos como o do tetine, até mesmo na europa e no mundo?

bruno - na minha opinião o funk não vulgariza a cultura brasileira de modo algum. pelo contrário, produz uma celebração dos nossos costumes, do nosso jeito de namorar, da nossa sexualidade e do nosso senso de humor como raramente foi visto em outro tipo de música. o que acontece, para mim, é que existe um moralismo bravo no brasil, além do fato de ter que ser "chique", branco e erudito para representar o brasil mundialmente. acho que esse tipo de mentalidade faz parte da falta de auto-estima do país e da nossa subserviência em geral. o funk é linguagem de rua, é comportamento, é vivo. não é subserviente. o funk nao precisa de mim, de você ou de nunhum antropólogo para existir como cultura e explicar seus fundamentos. ele já é! eu acho as letras de funk carioca geniais. para mim está tudo ali, de forma simples, na cara, e ao mesmo tempo altamente sofisticada. em bom e alto português. ser direto é algo muito difícil. não tem "small talk" na parada. então, se ser sincero e direto significa ser vulgar, acho que o tetine também se enquadra na mesma parada.

pas - os europeus se identificam com funk carioca apesar das letras "vulgares", ou também por causa delas?

bruno - os europeus não entendem as letras. as pessoas se identificam com o beat, com a crueza, com a energia, com o vocal, com a mixagem. o funk é old school electro de primeira, foi além do miami bass e se transformou em algo muito poderoso, assim como dance hall ou o "grime". é uma forma de música eletrônica que tem muito valor, como qualquer outra! o pessoal que ama 'grime' aqui se identifica na hora quando estamos tocando, é impressionante. o mesmo acontece com o povo do electro que está em busca de uma coisa mais fashion. não deixa nada a dever aos últimos electroclashers ou ao povo do hip hop da pesada.

pas - algo mudou na sociedade brasileira, até mesmo para permitir o interesse de artistas como vocês, que são cultos, intelectualizados, apegados a técnica e tecnologia? por que bruno e eliete não haviam no passado se identificado com músicas populares criados em geral por artistas também excluídos, como, por exemplo, axé music, pagode, sertanejo, iê-iê-iê etc.?

eliete - jesus!!! eu sempre amei a perla. jane & herondy, vanusa, ronnie von, marvin gaye, michael jackson... sinceramente. no meu sangue corre fm. dublo "a estrada do sol" desde que tinha 7 anos... sou do povo, nunca tive esse problema de ter vergonha do que eu gosto. vim do tatuapé, minha mãe é espanhola e ouvia joselito e juanito valderrama quando era pequena. essa foi a minha formação... adoro o exagero! nina hagen, kate bush e suas performances me enloqueceram. assim como eu amo laurie anderson e alison goldfrapp, que são formalistas natas, mas completamente humanas ao mesmo tempo. o tetine sempre esteve em busca do humano. seja na histeria atonal do "alexander's grave" ou no funk do "bonde do tetão". o joelho da goldfrapp treme quando ela solta aquele trovão que é a voz dela. respeito muito!! quando você tem nariz, boca, peito, quadril grande e 1m75, não dá para segurar, deixa o grande sair... e o grande é a minha profunda identificação com os altos brados retumbantes do funk que expressa exatamente o brasil de hoje e as minhas raízes. a garota de ipanema está morta e enterrada. para mim hoje a garota é da cidade de deus, e ela se chama deise tigrona.

pas - como vocês sentem que os funks explícitos do tetine têm sido recebidos, de uma forma geral, por quem já os ouviu na europa? e no brasil?

bruno - aqui em londres temos um publico que já segue a gente. as pessoas não entendem as letras, mas entendem a música completamente. o "bonde do tetão" tem uma energia quase de punk rock, mas com batida de old school electro. quando a gente toca, o povo fica louco, quer participar, quer ficar com a gente. temos tocado em muitos clubes legais aqui e vamos tocar junto com o asian dub foundation, que tem um público ultrafiel e radical. acho que a gente está começando a trafegar por outros universos, o que antigamente nao fazíamos. isso tudo tem sido incrível e muito revelador para a gente. no brasil, achei que foi superlegal quando tocamos no "sonar". mas as pessoas ainda não conheciam as músicas direito, porque o disco não tinha sido lancado. teve muito comentário machista de outros artistas (belive me) sobre o peito da eliete, mas isso não vem ao caso (hhehhhehhe, já vindo). adoramos uma manchete que mandaram aqui: "nua do tetine é alucinada por funk carioca"! olha isso, letra de música de tão bom.

pas - vocês já experimentaram traduzir para os europeus a linguagem do funk carioca? se sim, como eles reagem ao tomar conhecimento do imaginário das letras?

tetine - sim, quando fazemos show cantamos versos em inglês também, e depois o povo sempre pergunta o que significa quando está em português. o bruno, quando tá fazendo mc, fala um monte de coisa em inglês alternando com o português, quando ele tem que cantar. o povo sabe do que a gente está falando. a reação dos europeus é na maioria das vezes ótima, sem pudor e moralismo. a gente deixa claro desde o início que não é bossa nova!!!! os que estranham geralmente não gostam da música e pronto. mas aqui tem o grime, que é tão forte quanto os proibidões, tem dizzy rascal, que está fazendo o maior sucesso. acho que a crueza das músicas faz parte de tudo que a gente está vivendo agora. passamos o filme da denise garcia [o documentário "sou feia, mas tô na moda"] aqui, foi lindo, histórico, estava lotadíssimo! world première de um longa sobre funk carioca em londres, muito bizarro, né??!!! não passou em nenhum lugar antes e merece passar em todos os cinemas aí no brasil, para tirar de vez o estigma do funk como uma música que é menos que o samba ou a bossa nova para a cultura brasileira, entende? o filme da denise traduziu sem firulas a cena de funk, sem nenhum moralismo!

pas - vocês sempre fizeram de sexualidade um dos temas centrais nos discos do tetine, mas ela nunca esteve presente de uma forma tão explícita quanto no "bonde do tetão". vocês diriam que a distância da terra natal os impulsiona a essa postura mais direta e corajosa? o "bonde do tetão" existiria se vocês estivessem no brasil?

tetine - o tempo redimensiona tudo, mais ainda quando você está inserido em outra cultura. o seu grau de questionamento das coisas, do seu background, das suas escolhas na vida etc. fica agucadíssimo, sempre, 24 horas por dia. e claro que isso acontece com a gente morando fora do brasil. acho que o sexo e o discurso todo por trás do "bonde do tetão" é uma conseqüência dos nossos trabalhos anteriores e de coisas que aconteceram com a gente e que nos chamaram atenção como artistas. isso inclui o andamento das nossas vidas pessoais fora e dentro do brasil, nossas escolhas nos últimos cinco anos, nosso envolvimento com funk, electro e black music daqui, nossa profunda admiração pelos artistas do funk carioca... é uma vontade de gritar para o mundo que tem muito mais coisa no brasil do que a vontade de ser "chique" tipo exportação para gringo ver, que é a regra em geral quando se fala em música brasileira no mundo. é difícil dizer se o "bonde" existiria se morássemos no Brasil, não sei nem se o tetine existiria mais... o nosso trabalho sempre foi sobre tirar os nossos próprios tapetes e ver onde a coisa pode dar.

pas - a visita do tetine aos modos mais explícitos do funk carioca é feita com total espontaneidade? ou em algum momento vocês sentem algum pudor, desconforto ou constrangimento de proferir certos termos mais chulos, de abrir tanto questões sexuais, de "balançar o popozão" e "descer até o chão" no palco etc.?

tetine - acho que é feita com espontaneidade, senão não teríamos gravado. se achássemos que era uma coisa forçada não colocaríamos no disco. era tudo urgente. não aparamos o conteúdo hora nenhuma, tipo abaixando na mixagem ou trocando as letras. no "bonde" balançamos o popozão nos nossos termos. é a nossa versão dos fatos, do nosso jeito, no nosso ritmo e com a nossa história. e por isso é um trabalho autoral e não uma paródia do funk carioca. não temos intenção de parodiar o funk porque está na moda. nada contra quem faz isso, mas não é essa a nossa praia. o nosso envolvimento com o funk é de amor, é de admiração, é político no sentido sexual e musical, é pelo beat, é pela relação com kraftwerk, é pela re-invenção, é pelos samplers. o "bonde" é o bruno e a eliete. e o "slum dunk presents funk carioca" é o jeito do tetine ver o funk.

pas - "bonde do tetão" é uma brincadeira, um projeto especial, um momento de transição? ou aponta diretrizes novas para o futuro musical do tetine?

tetine - o "bonde" é um momento de celebração, de declaração de amor. certamente aponta para o futuro do tetine!!!