quinta-feira, setembro 27, 2007

velhonovo

mais um momento de polarização "velhos"-"novos", no livro "a canção do mago - a trajetória musical de paulo coelho", de hérica marmo:

"Além do elenco estelar, a Phonogram se diferenciava das outras companhias por ser uma empresa jovem. Nos anos 70, ainda não era tão comum no meio valorizar a força de trabalho de pessoas que compensavam a pouca experiência com muito gás e profusão de idéias. André Midani apostava suas fichas no novo. Não só na hora de contratar funcionários, mas nos seus lançamentos fonográficos. À frente do seu tempo, Midani achava engraçado, quando ouvia de gerentes das tradicionais companhia que o sucesso de iniciantes como Rita Lee não significava nada. Seguro mesmo era ter em seus quadros figurões como Silvio Caldas, com uma carreira consolidada. Enquanto a concorrência olhava para o passado, a Phonogram, que começara pequena, aumentava cada vez mais sua participação no mercado. Sempre dando espaço pasra os futuros ídolos".

bem, é necessário observar que ao longo das décadas seguintes as gravadoras daqui foram perdendo progressivamente a conexão com esse tipo de ideologia? é necessário ressaltar o nexo entre essa desistência e o rumo que aquela história tomou?

e, pegando agora um atalho, é mesmo necessário que os "velhos" estejam sempre obcedados por anular os "novos"?, e que os "jovens" sonhem dia e noite com o extermínio dos "antigos"?

e se a gente tomar tento do fato de que, necessariamente, o "novo" (de hoje) É o "velho" (de amanhã), e vice-versa? se me permite uma sugestão, ouça o que vovó já dizia..., ouça o que se disse ind'outro dia lá no mangue (bit) pernambucano, que "o que era velho no norte/ se torna novo no sul"...

ah, e por falar em "norte" e "sul", você já ouviu os sons novovelhos que vêm vindo do norte (do brasil)? lá, hoje em dia, há os "novos paraenses", aquela profusão riquíssima de roqueiros repletos de universalidade & florestania, misturados à beira da vertigem a um riozão de tecnobrega e a uma comissão de frente de "velhos" mestres da guitarrada, tipo o impagável verequete (obrigado pela dica, companheiro miranda!). já ouviu?, já pensou ouvir?

e já ouviu, do mangue pernambucano, o crossover brega-chique espetacular da academia da berlinda, do grupo mula manca & fabulosa figura? eu fui travar contato com esses "novos" sons também lá em belém, e não tenho querido ouvir outra coisa. ou melhor, entre um'a euterpia, um norman bates e uma suzana flag, também tenho encontrado "tempo" para dar ouvidos embasbacados a um veterano morador lá de fortaleza, ceará, o velho e nobre waldick soriano, samba carioca de raiz, blues do delta do mississippi, buena vista social club, jazz'n'roll, fandango sulista e soul da motown, tudo junto reunido num "cafona" só.

e isso tudo sem nem mencionar o raul seixas nem a clara nunes, né?

segunda-feira, setembro 24, 2007

os tais guerreiros

olha só que interessante o seguinte trecho, que capturo da (excelente) biografia de clara nunes, "guerreira da utopia" (ediouro, 2007), escrita pelo jornalista vagner fernandes.

é quando ele cita a criação do grêmio recreativo de arte negra escola de samba quilombo, uma dissidência da portela, fundada em 1975 pelo ex-policial (agressivo, como relata o livro) e sambista-poeta (sensibilíssimo, como todo mundo sabe) candeia.

carlinhos maracanã, então diretor da portela, aparece no texto explicando o imbroglio:

"Havia uma resistência tremenda dos veteramos aos compositores novos que chegavam à Portela. Eles mesmos criaram uma espécie de estatuto, por meio do qual pregavam que, para um novato ingressar na ala dos compositores, não bastava ter talento, mas cumprir um estágio de cinco anos dentro da agremiação. Então se o cara fosse excelente e fizesse um samba muito bom não poderia cantá-lo porque era estagiário. Isso causou muita confusão dentro da escola. Por que não abrir espaço para os novos? A turma não admitia. Houve um episódio que acabou sendo a gota d'água. Em um ensaio da Portela (...), David Correa, na época cumprindo o tal período de estágio, quis cantar um samba. Pediu a Candeia, que negou, pois era norma da ala dos compositores. O David ficou mal e foi falar comigo. Eu repassei o caso para o [então presidente da portela] Natal na mesma hora. (...) Pronto: o tumulto se formou. Natal ficou uma fera e decidiu acabar com aquilo. O pessoal da ala dos compositores argumentava: 'Natal, isso é regra'. O Natal bateu o martelo: 'Regra o cacete! A regra aqui sou eu, porra! Ele vai cantar'. David subiu no palco e soltou o vozeirão. O pessoal não gostou. Candeia nem se fala. Como já estava insatisfeito, rompeu com a escola a partir dessa confusão. Mas Clara não se envolvia nessas histórias".

o que fiquei pensando ao ler esse trecho é que, bem, as coisas funcionam meio assim até hoje, seja na escola de samba, na escola da mpb, na escola que for, até mesmo fora da escola, não é mesmo?

não me atrevo a entrar no mérito daquele episódio nem examinar as razões específicas daquela velha guarda e daquela jovem guarda (que eu não teria a menor condição). mas a tendência geral não é mesmo a gente alinhar automaticamente a velha guarda (qualquer velha guarda) a alguma espécie de santidade intocável, e ao mesmo tempo engavetar apressadamente a jovem guarda (qualquer jovem guarda) enxergando nela(s) um tipo de mediocridade compulsiva?

e será que nesse novelo não tem velha guarda sendo pintada demais como "santa", sob nossa discreta cumpliciade?

e, no espelho, será que o olho de quem olha com pressa e desprezo não pode ser tão compulsivamente "medíocre" quanto a avaliação que se faz habitualmente do "novo", e tão automaticamente superficial quanto a santificação compulsiva do "nobre"?, seja na escola do rock, do rap, do funk ou do tecnobrega?

e a clara, e todas as claras (e tins, e bens, e tais), será mesmo que nunca se envolvem "nessas histórias", como o curso da história costuma fazer parecer?

ok, "não deixe o samba (nem a tropicália) morrer", não, claro que não!, mas... será que ele(a) sofre mesmo esse perigo todo de extinção? e as baleias que cruzaram o oceano, dr. roberto?

(em tempo: um viva perene à maravilhosa clara nunes, primor de contradição.)

segunda-feira, setembro 17, 2007

piratas por toda parte

e tu, colega? será que tu também não tem a perna de pau, o olho de vidro, a cara de má(u)?

["carta capital" 361, 12 de setembro de 2007. assunto de máxima, máxima, maximíssima importância!]


PIRATARIA INTESTINA
O vazamento antecipado de Tropa de Elite põe a indústria cultural em xeque

Após cerca de dez anos em que a indústria cultural procurou atirar a camelôs e consumidores toda a culpa sobre a pirataria, a realidade finalmente bate às portas das gravadoras de discos e produtoras de filmes. O motor é o inédito e ruidoso caso do vazamento público do filme Tropa de Elite, que só estrearia em novembro próximo, mas se disseminou em DVDs piratas e pela internet. Uma investigação policial foi aberta, teve de abordar o possível envolvimento de um ator coadjuvante do filme e culminou no indiciamento de um funcionário da empresa de tradução e legendagem Drei Marc.

A conclusão, também inédita em termos oficiais, é de que ao menos desta vez a pirataria começou do lado de dentro da própria indústria. O caso abre um precedente histórico, pois chama os diversos ramos da produção industrial à responsabilidade no processo e tira dos executivos o discurso renitente de repressão aos consumidores e atribuição de culpas somente aos mercadores informais da periferia da engrenagem cultural.

Com o alto orçamento de 10,5 milhões de reais, Tropa de Elite é um filme de ficção inspirado na atuação violenta do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar (o Bope). Sem ter estreado oficialmente, é a produção de maior repercussão do cinema brasileiro atual. A Paramount, distribuidora do filme no Brasil, teve de antecipar o lançamento para 12 de outubro, mas o boca-a-boca se espalha de modo bem mais veloz, sobretudo no Rio de Janeiro.

"O que é inédito no vazamento é que deu origem a um fenômeno mercadológico", afirma o cineasta José Padilha, que estréia no formato de ficção após dirigir documentários como Ônibus 174 (2002). "Mesmo sem ter nenhuma campanha de marketing, virou uma febre nos camelôs e na internet, a ponto de a torcida do Flamengo ter cantado em coro falas do filme durante um jogo no Maracanã", diz.

"É uma tristeza. Intelectuais, jornalistas e acadêmicos estão fazendo debate em cima de um filme pirata. É muito estranha a ética brasileira", lamenta um dos produtores do filme, Marcos Prado, também diretor do documentário Estamira (2006). "Todo mundo que conheço me diz que já assistiu. Se pego táxi, o taxista diz que já viu quatro, cinco vezes", espanta-se.

No dia 24 de agosto, Tropa de Elite foi adicionado anonimamente no site de compartilhamento de vídeos YouTube, na íntegra, em dez partes de quase dez minutos cada. A primeira parte foi visitada cerca de 50 mil vezes em menos de duas semanas, até que fosse retirado do ar, na quarta-feira 5. Em barracas de camelôs, o DVD pirata começou a ser vendido no meio de agosto, a 10 reais. Hoje, é encontrado por até 2 reais a cópia.

Inicialmente, três operadores de som da Drei Marc foram tratados como suspeitos pela Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Propriedade Imaterial (DRCPIM). Um deles, Marcelo dos Santos Lima, de 26 anos, acabou identificado como o autor das primeiras três cópias não-autorizadas, feitas no final de junho, quando a empresa preparava a legendagem para mostrar à distribuidora internacional do filme, Harvey Weinstein. "Marcelo diz que não teve motivação de lucro, que copiou para passar para o amigo ator que trabalhava no filme", afirma o delegado responsável pela investigação, Ângelo Ribeiro de Almeida Jr.

O amigo em questão, Alexandre Mofati, interpreta na tela o capitão Carvalho, um policial do Bope. Recebeu uma cópia do funcionário da Drei Marc, cuja mãe é empregada da família do ator há 30 anos. Em depoimento, Mofati disse que não sabia do conteúdo do DVD até ganhá-lo de presente e que após assisti-lo guardou a cópia em casa e avisou à produtora sobre a pirataria. O diretor e o produtor afirmam que não foram avisados.

A partir das primeiras cópias, segundo o delegado, desenrolou-se o fio da meada que passou por amigos de amigos, fez parada num batalhão da Polícia Militar (onde o filme pirata teria sido assistido) e desaguou no mercado informal de vários estados do País.

Caso se verifique o intuito de lucro, o único indiciado da corrente pode vir a cumprir pena de até quatro anos de prisão, por violação de direitos autorais. O delegado afirma que a investigação "está praticamente encerrada".

Nos vários elos da corrente, o discurso é evasivo quanto aos vínculos entre os crimes de pirataria e setores da própria indústria. "É difícil afirmar isso. Na DRCPIM não temos registro anterior, foi o primeiro caso que tivemos de um filme vazar meses antes da estréia. Não dá para a gente encontrar um só culpado", diz o delegado. E volta à base da pirâmide: "A pirataria está atrelada à questão social, muitas vezes é uma alternativa ao desemprego".

"É achismo meu, mas imagino que, por se tratar de um filme que retrata a realidade do Rio, o cidadão se entusiasmou e fez a cópia achando que não teria maiores conseqüências. E acabou se dando mal", opina o ex-delegado Antônio Borges, hoje diretor-geral da Associação Antipirataria Cinema e Música (APCM). A entidade criada em conjunto pelos setores fonográfico e cinematográfico para tentar estancar a sangria que mina os poderes da indústria.

"Onde existe a mão do ser humano, há a possibilidade de existir algum tipo de fraude. O que se pode é tentar minimizar isso, colocando o máximo possível de segurança nas empresas", completa Borges.

Uma das atuações recentes da APCM foi indicar o caminho para a prisão de dois "piratas" que negociavam em público, pelo site de relacionamento Orkut, a venda e entrega doméstica de cópias de DVDs e CDs. "Detectamos por intermédio dos nossos surfistas de internet", diz o diretor. Um dos presos em flagrante seria estudante da USP.

O caso de Tropa de Elite radicaliza experiência já vivida no lançamento de outro filme de grande popularidade, 2 Filhos de Francisco (2005), de Breno Silveira. Ali, a pirataria se disseminou concomitantemente à estréia, e antes do lançamento oficial em DVD. A distribuidora Columbia estimou, em novembro daquele ano, que 400 mil cópias piratas em DVD tivessem sido vendidas. O presidente da República foi um dos espectadores de cópia pirata.

No último dia 4, o blog do jornalista Mauro Ventura em O Globo noticiou que o governador do Rio, Sérgio Cabral, havia assistido a uma cópia pirata de Tropa de Elite e estudava tomar medidas políticas por influência do filme. Cabral o desmentiu no mesmo dia, no próprio blog, e afirmou que iria ver uma cópia oficial no dia seguinte, em companhia do cineasta.

Todos esses lances mostram que a pirataria na indústria cinematográfica se aproxima de níveis generalizados a que as gravadoras de discos tiveram de se acostumar ao longo desta década. No ambiente fonográfico, é rotina que os CDs mais esperados aportem na internet antes de chegar às lojas, às vezes no mesmo momento em que cópias de amostra são remetidas aos jornalistas especializados em música. Hoje, gravadoras retardam até a entrega de cópias às assessorias de imprensa que fazem o meio-de-campo entre artistas e jornalistas.

No pano de fundo de um dos muitos jogos de espelhos provocados pelo episódio, aparece uma questão que há muito causa desconforto na indústria cultural local. A difusão fora de controle de Tropa de Elite toca no ponto nevrálgico da falta de acesso dos brasileiros à cultura e, conseqüentemente, da meta até aqui não atingida de democratizar esse acesso. Em poucas semanas, o filme causou mais impacto e foi mais visto e comentado que a maioria das outras obras em cartaz, embora à revelia dos interesses comerciais dos produtores.

Num primeiro momento, a equipe privilegia um discurso de indignação contra o "crime" do vazamento e deixa em segundo plano possíveis efeitos benéficos do maior acesso à obra que criaram. "É um momento delicado para dizer qualquer coisa nesse sentido, depois de sofrer na carne o estupro que a gente sofreu", diz Marcos Prado. "Não dá mais, não se entende em que mundo vivemos. É uma crise tão grande que as pessoas acham normal a violência do Bope, que abriga policiais violentos, torturadores", protesta.

Padilha toca de raspão no tema da democratização involuntária que o filme tem proporcionado: "Não sei avaliar o prejuízo para o filme nas bilheterias. Sei que será muito grande, pois constato que muitas pessoas já viram a versão pirata, em todas as classes sociais".

Em 28 de agosto, o cineasta publicou em O Globo um artigo sobre a pirataria, em que repudiava com veemência uma hipótese que costuma rondar casos como esse, de que o vazamento fosse uma jogada de marketing. "Será que alguém pode imaginar, em sã consciência, que eu, a minha empresa, a Universal Pictures, a Harvey Weinstein Co. e a Motion Pictures Association montamos uma farsa com o intuito de usurpar o resultado do nosso próprio trabalho?", perguntou.

O texto não contemplava teor autocrítico nem mencionava responsabilidades do setor de cinema. E se referia de modo contundente à polícia e à mídia: "Podem-se encontrar na imprensa e na internet comentários feitos por jornalistas e policiais a respeito do conteúdo do filme. Ora, cada comentário desses é uma confissão tácita da violação de direitos autorais e patrimoniais. Afinal, eles foram feitos por pessoas que viram o filme, e este só está disponível na sua versão pirata!". Tratou tal postura como "hipocrisia".

Na defesa intransigente do próprio produto comercial, Padilha repudiou "a impressão de que o pirata é um criminoso menor", numa reivindicação direta à repressão policial em prol de trabalhadores que "têm família e também precisam de suas rendas para sobreviver". Contraditoriamente, o discurso prioritariamente repressivo é o mesmo que Padilha coloca em xeque em seu filme, inspirado no livro Elite da Tropa (2006), escrito pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares em parceria com os policiais militares André Batista e Rodrigo Pimentel. Numa narrativa em primeira pessoa que expõe e humaniza um membro do Bope, o livro busca se aprofundar nas raízes amplas da violência e da brutalidade policial.

Um dos pontos exportados dali para a versão em cinema causou discussões acaloradas entre espectadores nos fóruns do filme disponibilizado no YouTube. O centro da discórdia é o modo como o filme se refere a usuários de drogas pertencentes às classes sociais mais elevadas, insinuando sua co-responsabilidade pela violência que explode nas periferias.

Embora contrafeito com a pirataria, Padilha comenta a discussão potencialmente incendiária, na entrevista por e-mail a CartaCapital: "Com as regras atuais, tais como a criminalização das drogas e a má remuneração da polícia, nosso jogo vai resultar inexoravelmente em mortes e perdas elevadas. Isso me parece ser um fato. Montamos um filme com a intenção de chamar atenção para esse fato de uma maneira compreensível, e o debate metalingüístico do YouTube parece indicar que isso está acontecendo".

É outro ponto em que o debate avança, ao mesmo tempo por iniciativa e à revelia da equipe criadora. O filme dialoga com antecessores como Cidade de Deus (2002) e o recém-lançado Cidade dos Homens, de Paulo Morelli, que recolocaram as favelas no mapa do Brasil oficial, mas as retrataram como organismos autônomos cujos problemas não tivessem inter-relações importantes com as camadas mais ricas da sociedade.

Tropa de Elite, em contraponto, integra à lista dos responsáveis pela violência nas favelas o Estado (na figura da polícia), os cidadãos que consomem drogas no asfalto, a sociedade como um todo. O trajeto é intricado, mas em tamanho jogo de espelhos não é de estranhar que a própria indústria cultural seja chamada a assumir responsabilidades inesperadas, por intermédio de um de seus subprodutos mais "malvados", a pirataria. A trama de Tropa da Elite se desenrolará nas telas de cinema, mas também fora delas.

terça-feira, setembro 11, 2007

la mariposa chancletera

o cartaz (gratuito) de hoje no projeto "prata da casa", do sesc pompéia, é a moça marina de la riva, de quem eu absolutamente nada sabia até o dia em que ouvi pela primeira vez o disco de estréia. assim que escutei, senti despertados meu interesse e minha curiosidade. aqueles sons me pareceram novos de alguma forma, e de imediato me fizeram sentir vontade de descobrir mais sobre a fusão que continham, sobre a moça que os criava e a história por trás dela.

o texto que encadeio a seguir é uma versão dilatada do breve perfil de marina que saiu publicado outro dia na "carta capital", fruto daquela curiosidade.

mais abaixo, emendo uma versão ainda mais dilatada, uma transcrição da conversa que tivemos num orquidário paulistano, geradora do perfil interpretativo na revista e de grau eloqüentes de surpresa e elucidação. estão ali, na fala da moça e em histórias que eu nem adivinhava ouvir, as confirmações de que, na hora h da entrevista, foram gostosamente recompensados minha curiosidade intuitiva e meu interesse pelo que ainda não conhecia.

(e tudo isso, cê já entendeu, é também um convite para que, estando em são paulo na noite de terça-feira, 11 de setembro de 2007, você também venha brincar um pouquinho fermentoso de interesse e curiosidade pelo novo e pelo desconhecido. te vejo lá?)


1
interpretação

O CD começa a tocar, e uma rumba cubana invade o ar, em espanhol. É "Tin Tin Deo", do jazzista e percussionista afro-cubano Chano Pozo. De repente, o ritmo de rumba se torna ainda mais exuberante, e a voz feminina inesperadamente se põe a cantar em português: "Ela só quer, só pensa em namorar". o que o "Xote das Meninas", forró pernambucano de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, está fazendo perdido dentro daquela rumba caribenha?

A inusitada mistura conta a história da dona da voz afinada, uma jovem de 33 anos chamada Marina de la Riva, carioca criada numa fazenda em Baixa Grande da Leopoldina, município de Campos dos Goytacazes (RJ), e estabelecida há mais de dez anos em São Paulo. Marina é filha de mãe mineira e de pai cubano, exilado, que aportou no Brasil no emblemático ano de 1964. Uma constatação que ainda hoje espanta Marina é a de que o pai, Fernando, ouvia e tinha discos da cantora capixaba Maysa em Cuba, antes de sonhar conhecer o Brasil.

A filha não conhecia Cuba até o momento de concretizar o projeto do recém-lançado álbum de estréia, "Marina de la Riva", cujas faixas em ritmo de habanera, conga, danzón, canción, afoxé cubano e cool jazz latino foram gravadas em Havana, com o apoio de músicos cubanos. "É um lugar para onde eu nunca tinha ido, e onde sempre tinha estado", define o reencontro com a origem que, paradoxalmente, nunca conhecera ao vivo.

Do lado sul do Equador, latejava outro manancial. "Minha mãe é superbrasileira, tataraneta de índio bororó", documenta. A herança da avó materna casada com um pernambucano justifica a presença, em meio às habaneras, do "Xote das Meninas" e do baião "Adeus, Maria Fulô", do cearense Humberto Teixeira e do paraibano Sivuca, esse último entrelaçado e fundido com a delicada habanera "La Mulata Chancletera", de Ernesto Lecuona. "Meu pai diz 'oye, chica, La Chancletera está muy lenta!'. Falo 'si, pero es la mia Chancletera. Não fiz para agradar ninguém, é a minha visão das músicas."

A identidade fluminense se derrama pela versão delicadíssima do samba de roda "Sonho Meu", de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho, desenhada em parceria com Davi Moraes, filho de Moraes Moreira, dos Novos Baianos. E a ponte Rio-Cuba deságua na presença de Chico Buarque, convidado para um dueto do samba cubano "Ojos Malignos", de Juan Pichardo Cambier. Até mesmo a pré-bossa nova de Tom Jobim e Dolores Duran passa pela colcha de retalhos de Marina, na breve citação a "Estrada do Sol" entremeada a "Si Llego a Besarte", de Luis Casas Romero.

Em meio a temas cubaníssimos de Ernesto Lecuona, Silvio Rodriguez, Enrique Jorrin, Ernesto Grenet, Néstor Mili, Miguel Matamoros, Rafael Gómez "y otros", a vertigem Cuba-Brasil se sedimenta, enfim, numa marcha-frevo do mineiro Joubert de Carvalho. É "Ta-Hi! (Pra Você Gostar de Mim)", imortalizada em 1930 por Carmen Miranda, portuguesa de nascença que primeiro se "acariocou", depois se celebrizou "falsa baiana" e por fim se consumou estrela hollywoodiana "americanizada" (segundo os detratores).

O frêmito nômade que tal roteiro musical desvenda é também o que corre no sangue de Marina de la Riva. A alma cigana que passa de corpo em corpo entre índios bororós e cubanos de origem russa que vieram ter no Brasil em 1964 traduz-se agora em música, numa conformação que soa inédita, embora talvez pertença a muitos saltimbancos famosos antes de Marina. A velha novidade, no caso dela, é a de explicitar origens cruzadas que muitos preferiram esconder, ao longo de várias décadas.

"Não falo por ideologia que os americanos de língua latina e portuguesa são o mesmo povo, mas porque acho que é verdade", explica. "Nós somos. Com esse disco fui descobrindo um monte de coisa, a namorada do violonista da banda que tem mãe colombiana e pai brasileiro, a amiga que tem pai peruano e mãe brasileira. Essa mistura é uma verdade silenciosa."

Emocionada quando relembra o avô cubano, líder do exilados cubanos de 1964, ela discorre sobre os nexos: "É o mesmo inconsciente coletivo. Outro dia, estava na festa de 80 anos de um cara chamado Zé do Rancho, um violeiro brasileiro de que não se fala mais, mas é um dos pilares da música de raiz brasileira, a música sertaneja. Vendo as fotos dele na orquestra de Tupã, falei 'gente, se eu pusesse isto aqui no álbum de fotografias da minha avó, era Cuba'. Mesma linguagem, mesmo jeito de se vestir".

Marina se mostra consciente da superexposição familiar que implica a decisão de revelar (e cantar) as origens híbridas. "Você acha que é fácil ficar falando de família? Não tenho a família perfeita, ninguém tem." Mas a necessidade de reserva só se sobrepõe quando o assunto é político, do exílio dos familiares cubanos, da realidade política da ilha dominada desde 1959 por Fidel Castro.

Faz-se um silêncio, ela toma fôlego: "Na época aconteceu o que a maioria queria, e isso é legal. Existiram famílias dilaceradas? Sim. Existiu o 'paredón'? Sim. Existiram bagunça e baderna, de entrar na casa dos outros, quebrar tudo, estuprar a filha de não sei quem. Sim. Nada disso está certo".

Marina dribla o desconforto diante da pergunta sobre se a família cubana odeia Fidel e o regime. "Não é falado isso em casa. Cada um tem suas mágoas pessoais. Meu pai não é um cara que odeia Fidel. Não é, tanto é que voltei a Cuba. Sabe por que é muito difícil falar desse assunto? Porque a gente não está lá, não esteve lá na época, não estava na pele nem de quem ficou nem de quem saiu, e eu vou ser julgada por um aspecto político, se sou comunista ou não. Isso não importa, estou falando de música."

Mas ela sabe que não será simples falar só sobre música, já que decidiu se expor de modo corajosamente confessional, não só em termos musicais. Se desfia a trajetória, são abundantes os detalhes curiosos, inusitados. Aos 17 anos, tornou-se bubalinocultora, criadora de búfalos, nos charcos da fazenda do avô. Chegou a se alternar entre trabalhar na pecuária de dia e manter à noite um bar em Baixa Grande da Leopoldina, que gerou apreensão e o apelido familiar de "Mariposa", que ela tributa na contundente canção homônima de Ernesto Lecuona.

Formou-se em direito, trabalhou como produtora na multinacional de entretenimento CIE, ciceroneando artistas pop latinos como Alejandro Sanz no Brasil. Cantou na noite, em boates como a Flag, em São Paulo. Estudou e estuda canto lírico com Ula Wolff e Caio Ferraz. Foi vocalista da banda "moderna" de "nu jazz" eletrônico Alta Fidelidade. "Estava tateando um caminho. O problema é que um artista, enquanto está nessa busca, está se expondo, é muito dolorido. Não estava bom, eu não estava feliz."

As soluções surgiram pouco a pouco, ao longo de vários anos. Em fase de ocaso da indústria fonográfica pesada, um dos rumos a tomar foi o auto-investimento, a criação de um selo próprio, Mousike, para lançar o CD de estréia; a "major" Universal acabou encampando, e faz a distribuição do disco. Para conseguir atrair a presença de Chico Buarque, contou com a ajuda de um amigo pessoal, Mario Canivello, que é e/ou foi assessor de imprensa de artistas e instituições "mainstream", como Chico, Maria Bethânia, Daslu, Sandy & Junior e... Marina de la Riva.

"Ouvi o seguinte do cara que masterizou meu disco: 'Marina, já trabalhei muito por um prato de comida, me dou luxo hoje de poder trabalhar para a arte'. Essa é minha resposta para ter Chico Buarque, Mario Canivello e a Universal num disco feito de modo independente", traduz o ambiente de contrastes.

Nesse sentido, Marina de la Riva é representante notável de um novo momento da música local, que sucede os anos recentes em que dezenas de novos artistas se projetaram sob a asa protetora e o peso de serem filhos (e supostamente herdeiros musicais) de Elis Regina, João Gilberto, Caetano Veloso, Djavan, Jair Rodrigues, Baby do Brasil, Zezé di Camargo e outros. Em sua vez de tentar se impor num meio de criatividade e eficácia comercial cada vez mais estranguladas, Marina de la Riva também chega como filha, mas não mais a filha de uma mãe ou um pai famoso, e sim filha de uma idéia, uma mistura, uma cicatriz aberta, um desejo novamente vivo de união. Agora a música híbrida de Marina de la Riva terá de enfrentar a América, as Américas.


2
entrevista

pedro alexandre sanches - você pode contar um pouco sobre a história de sua família, que parece peculiar?

marina de la riva - eu fico falando tanto da minha família, mas... nem tanto para exaltá-la como um grupo, porque acho que toda família tem tantos problemas... é mais no sentido de que a presença da influência da família, ou a ausência dela, afeta o indivíduo.

há muito tempo eu estava me procurando musicalmente. era quase que um sofrimento, porque um chamado, uma vocação, quando não é exercido, é uma dor, um espinho que fica clamando em você. e eu não sabia como canalizar isso. o meu amor pela música estava claro, mas o meu amor pelo show bizz, não, por exemplo. e eu não sabia a forma de materializar isso.

então comecei a procurar, a tocar com bandas de jazz, e procurando repertório, até que descobri que estava olhando na direção errada. estava olhando para fora, e não para dentro. e nesse momento consegui entender qual era o meu caminho musical, talvez porque minha relação com esse repertório fosse tão íntima e profunda que eu não considerava isso música a ser exposta. não como negação, mas como intimidade.
sou muito reservada, é aquela carta da avó você não mostra para qualquer um, é um assunto seu com ela. e na verdade percebi que não, que existia uma relação minha com essa música que podia ser muito interessante, até para preservá-la. e como a música é viva, no momento que eles trouxeram a música para o brasil e ela é ouvida em solo brasileiro, ela já é alterada de alguma forma. existe uma maresia no ouvir, toda a influência da nossa terra na visão daquela obra. então também por isso me permiti fazer isso da minha forma, que era verdadeira.

pas - para eu entender um pouco melhor o que você está dizendo, pode falar sobre sua trajetória com música antes de chegar ao disco de estréia? você disse que tocou com bandas de jazz, e também com o grupo alta fidelidade, não?

mr - alta fidelidade foi a última banda com que toquei, eles fazem nu-jazz eletrônico. é uma banda incrível. minha formação é canto lírico, fiz com ula wolff, e faço até hoje, com caio ferraz, mesmo cantando popular. eu gosto.

pas - como é isso que você falou, de que estava procurando fora, e não dentro?

mr - então, eu pensava que tinha que ser um repertório..., procurava sempre um produtor... isso na minha cabeça, não que eu tenha ido atrás. mas eu não entendia o meu repertório, o meu mesmo. gostava de muitas coisas, mas não encontrava a minha forma de cantar a música.

pas - você cantava solo, também?

mr - cantava. alta fidelidade é uma banda instrumental que, nos últimos anos, convidou cantoras. fiquei fixa por quase dois anos. eu já tinha iniciado meu disco.

pas - mas isso não era autoral, era repertório deles.

mr - repertório deles, exatamente. fiz um monte de coisa. cantei no flag, lembra?, ali na avenida nove de julho. cantava jazz, música brasileira, estava tateando um caminho. o problema é que um artista, enquanto está nessa busca, está se expondo. é muito dolorido isso. e eu sou muito crítica comigo mesma, não estava bom, eu não estava feliz, não era aquilo. e, ao mesmo tempo, fazendo outras coisas.

pas - tipo?...

mr - tipo trabalhar em internet, em produção. trabalhei na cie com os mexicanos, o pessoal do credicard hall.

pas - fazia o quê?

mr - produção, cuidando de artistas latinos no brasil. meu chefe era um mexicano. ia para lá, cuidava do alejandro sanz... sabe que acho que todo esse caminho me ajudou muito a realizar meu disco? tive os dois lados. brinco que estava de artilheira, de goleira e ainda ia para a arquibancada para celebrar o gol. mas foi toda a minha vida pregressa que me ajudou.

pas - de volta à origem, seu pai é cubano e sua mãe é mineira, certo?

mr - sim. eles vieram para o Brasil em 1964, meu pai, meu avô e outros.

pas - exatamente em 1964?

mr - brinco que eles erraram na mosca (ri). meu deus, imagina chegar ao brasil, altíssima pressão no ar... mas, como tudo passa na vida, meu avô foi muito feliz aqui. ele já faleceu, mas uma vez, em tom de confissão, me disse que o único lugar fora de cuba em que realmente poderia ser feliz (se emociona) era o brasil. veio para cá por intuição, e acabou sendo muito bom.

pas - ele fazia o quê?

mr - era agricultor, em cuba.

pas - você nasceu numa cidade pequena, não foi?

mr - é, nasci no rio de janeiro por questões de hospital, só, mas fui criada em baixa grande da leopoldina, no município de campos dos goytacazes, muito próximo da bacia de petróleo de campos. falo isso com muito orgulho. hoje entendo, quando alguma pessoa perguntava para minha mãe "margarida, onde você mora?". ela tinha uma pausa, ela ia explicar, aí falava: "um pouco mais, é áfrica". lá, inclusive, é alto mar. a praia naquela área é de mar muito bravo, e muito fundo, mesmo perto do litoral, tanto que você vê as plataformas da petrobras pertíssimo da costa. fui criada lá, 21 anos, fiz faculdade de direito em campos.

pas - mas como é essa cidade?

mr - não, não é cidade. é um distrito. é campo, mesmo.

pas - seu avô continuou sendo agricultor aqui no brasil?

mr - continuou. muita água rolou debaixo da ponte, continuei lá. eu tinha toda uma relação com a natureza, é por isso que estamos aqui (no orquidário morumby, onde ela sugeriu que acontecesse a entrevista), esta é a marina. eu era criadora de búfalos, por exemplo.

pas - (espantado) você ou a sua família?

mr - eu (risos). tenho uma foto linda com antonio cabrera, na época (governo collor) ele era ministro da agricultura (ri). eu tinha, sei lá, 17 anos. ah, era minha paixão, eu fazia..., é uma história longa, vamos sair fora...

pas - conta?

mr - (hesita, aceita) tinha umas áreas de charco lá na fazenda, e eu era a (pronuncia com sotaque castelhano) "mariposa" da família. meu pai vivia puxando minha orelha, "ah, bien, chica, então você vai trabalhar", nós começamos a trabalhar com 15 anos, "você vai cuidar do que você gosta, do gado, da pecuária". falou: "tive uma idéia, aquela área ali acho que é boa para búfalos". aí corri atrás, comprei meia dúzia, 40 búfalos, e foi um sucesso, foi o que melhor dava ali. e foi minha paixão, porque, imagina, você, com 17, 18 anos, se realizar?

na hora de vender, a parte final do trabalho, descobri que era muito desvalorizado. o búfalo já era vendido a preço de fêmea, que, no gado já é 20% mais barata. depois, eles têm ossos muito pesados e o couro muito largo, então ainda perdem mais, então tinha uma perda de 40% do preço. e era vendido ao consumidor como gado bovino, e não como bubalino. fiquei irritadíssima, porque os búfalos têm mais proteína e menos gordura do que os bovinos. o problema é que eles são muito longevos e, como não têm gordura entremeada, se você não souber cozinhar é um pau de duro. então as pessoas dizem "ah, eu não gosto de carne de búfalo" - claro, você não está sendo apresentado a ela como ela é.

aí comecei a movimentar. abri um bar numa pecuária (eu rio), vai rindo. falei que não queria entrar nesse assunto. meus pais ficavam de cabelo em pé, a louca. à noite era um bar e durante o dia levei gente do Marajó para fazer palestra. e quem me aparece lá, que tinha passado na exposição? o ministro da agricultura, cabrera, que era bubalinocultor. a foto é muito engraçada, com todos eles, cabrera, leonel brizola, anthony garotinho... sempre tive um pouco de aversão a política, por tudo, né? na hora que me dei conta daquela foto, disse "ah, não", a foto saiu no jornal, eu com o cabelo assim (vira o rostom, esconde atrás do cabelo), tipo "tchau, meu negócio é búfalo, não tô a fim". hoje acho interessante, porque eu era muito nova para ter conseguido estar alinhada com um time que, mesmo que eu não curtisse política, estava prestando atenção ao meu movimento.

vejo que isso também veio da minha casa, onde com 15 anos você tinha que estar trabalhando. tinha coisas até feias que eles falavam, "quem não trabalha aqui em casa não come". e não era isso, era que meu avô tinha sido arrimo de família. quando entrou revolução, ele estava numa outra situação, viu que dinheiro vai e volta e o que importa é o que você tem dentro da sua cabeça. o tempo inteiro ele falava isso para a gente: "a única coisa que não te tiram na vida é o que você é, então seja".

só que a música era a água que corria no lençol freático debaixo da casa, sabe? era o vapor de escape, a paixão que estava sempre presente. a música é uma representação da cultura de um povo, e aquilo era também uma forma de ensinar. é como uma placenta, ela não só protege como passa tudo que precisa, passa alimento, informação, protege informação genética. fomos muitas crianças debaixo dessas asas, quatro irmãos mais uma prima que minha mãe criou. cada um entendeu isso de um jeito, claro. minha paixão era a música.

pas - o que significou para você seu avô e seu pai serem exilados? qual é esse mito?

mr - significa que aprendi que nem todo mundo precisa pensar igual. e que existe um desenrolar das coisas, tudo que existe dentro do tempo é finito e você tem que ter coragem para caminhar. eles vieram para cá porque não concordaram com uma série de coisas, e eu acho isso bonito, ter coragem de não concordar. é muito fácil você ficar em cima do muro e estar no meio de uma única voz. difícil é manter uma posição. o que veio disso para minha vida? (silêncio.) existe um resultado de decisões. a decisão de meu avô ter vindo para o brasil resulta no meu disco. fica para mim a responsabilidade de cada passo, de cada passo dado e de cada passo não dado também. aprendi a amar dois povos, duas nações, muito parecidos em algumas coisas, muito diferentes em outras. foi muito bom ter uma segunda língua aprendida de forma natural.

pas - se falava na sua casa?

mr - meu avô nunca falou português, o máximo que ele falava era, quando eu pedia, "bonitinha". falava (faz sotaque) "bonitiña". acho que era até uma forma de rebeldia dele, de preservar o que era dele.

pas - como ele se chamava?

mr - fernando de la riva.

pas - e seu pai?

mr - você não vai esquecer: fernando. e meu irmão, fernando (ri).

pas - e sua mãe, margarida.

mr - margarida, é.

pas - qual é a história dela?

mr - minha mãe, mineirísisma de araguari, morou um tempo em uberaba, depois foi para o rio de janeiro. minha avó ficou viúva muito nova, com 26 anos. bateu o pé e disse que cidade do interior não era lugar para uma mulher viúva, e foi para o rio. ela era educadora, minha avó diva. chegou a ter uma escola super-importante no rio, em nível educacional, não de tamanho. minha mãe conheceu meu pai, teve a ousadia de ir morar em baixa grande.

eu entendo minha avó, era muito preconceito, uma mulher com seus 25 anos sozinha em araguari... graças a deus, porque vejo hoje o esforço que tenho para explicar para meu filho o cheiro do vento, "vai chover", "olha a flor, vai abrir", "essa lua é crescente", tudo que eu aprendi de forma natural.

pas - você tem um filho?

mr - tenho um, paulo.

pas - você falou de preconceito, havia isso quanto à união de um cubano e uma brasileira?

mr - não. nunca percebi isso. ao contrário, nossa casa sempre foi uma casa que aglutinava pessoas de todos os lados. preconceito zero.

pas - as músicas que estão no disco fazem parte do seu imaginário? você as ouvia?

mr - não todas.

pas - em parte foi pesquisar, também?

mr - é. o canal é o imaginário, o resto é trabalho duro. essa é a minha visão das músicas, não é um disco da minha avó, do meu pai, do meu avô. não fiz para agradar ninguém, ao contrário. meu pai diz "oye, chica, 'la chancletera' está muy lenta!". falo "si, pero es la mia 'chancletera'" (ri). digo que, na minha palheta de cores, meu pai é o branco. você não pode misturar o pincel, colocar em outra cor e voltar nela. mas sem o branco não tem luz na sua tela. musicalmente, ele me deu toda a parte purista. ouvia ópera como era ópera, dansón como era dansón, rumba assim, bolero assado, "assim é que canta"... isso foi definitivo para que eu pudesse entender e fazer à minha maneira. se a coisa já tivesse vindo mexida para mim, eu não teria como fazer um trabalho tão de raiz. é um trabalho que tem muitas misturas, mas é um trabalho de raiz. e esse fundamento musical foi meu pai quem me deu. ele ouvia maysa em cuba, você acredita?

pas - antes de virar brasileiro?

mr - antes de vir para cá!

pas - e como ele conheceu maysa?

mr - então!, amigos brasileiros que iam para cuba. eu brinco, "papai, como você comprou esse disco?, não é possível". era aquele primeiro disco, que não tem a cara dela, só uma orquídea, "convite para ouvir maysa" (de 1956), ele até me deu. eu tinha e não sabia que era ele, lendo a biografia dela foi que me dei conta, falei "nossa, que abuso". ele era muito interessado também pela música brasileira. e se ouvia muita música cubana nos anos 60, aqui no brasil.

pas - é uma coisa que depois se perdeu um pouco, não?

mr - sim.

pas - nesse sentido, seu disco é corajoso, ao retomar algo que parece nem pertencer mais à nossa tradição.

mr - não tenha dúvida. parece que nós afastamos toda a latinidade de nós. acho isso uma pena, quando você faz parte de um bloco. nós somos latinos, não somos orientais, europeus, asiáticos. somos latinos. se essa voz fosse uníssona, teríamos mais força. é minha impressão, pode ser que eu seja influenciada porque vivi os dois lados. minha mãe é superbrasileira, tataraneta de índio bororó. e tenho o outro lado, do avô que falava "oye, chica, põe tu moño!". "moño" é um coque, ele detestava que eu ficasse de cabelo solto. eu tinha essas dois contrapontos, e não importa, cada um é de um jeito. a gente é sempre um terceiro resultado.

pas - como o brasil pode assimilar esse retorno, de sons que, ao mesmo tempo, são muito presentes e ausentes, conhecidos e desconhecidos?

mr - exato, o cancioneiro romântico é o mesmo. é a mesma idéia, o mesmo inconsciente coletivo. eu estava na festa de 80 anos de um cara chamado zé do rancho, um violeiro brasileiro que foi superimportante. não se fala mais dele atualmente, zé do rancho, mas é um dos pilares da música de raiz brasileira, a música sertaneja. vendo as fotos dele participando da orquestra de tupã, falei "gente, se eu pusesse isto aqui no álbum de fotografias da minha avó, era cuba". mesma linguagem, mesmo jeito de se vestir. existe um inconsciente coletivo que gira ao mesmo tempo na latinidade, que é apartado por certas coisas, mas se junta em outras. a música une, não é feita para afastar. então tem uma dose de coragem? tem, sim. mas não foi ela que me moveu. o que me moveu, na verdade, foi amor pela música.

pas - você foi gravar em cuba?

mr - a parte cubana gravei lá, a parte brasileira gravei aqui.

pas - você já conhecia Cuba?

mr - não. o "retorno de jedi" (ri).

pas - como foi chegar lá?

mr - foi lindo. emocionalmente, foi como retornar. eu nunca cheguei a cuba pela primeira vez.

pas - um retorno a um lugar onde nunca você tinha ido...

mr - ...e onde eu sempre tinha estado. tudo isso foi muito intenso, porque impregna na música.

pas - de um modo mais objetivo, quais foram suas impressões de cuba, de havana?

mr - que é um povo muito lutador. e que existe um orgulho muito bonito, que acho que é o que faz eles sobreviverem com tanta dignidade. isso é lindo, se brasileiro tivesse metade disso a gente não estava deixando o brasil nesse descaso. as coisas acontecem e desacontecem aqui, parece que não passa de esquecimento. e que eles são muito musicais, isso eu já sabia. e que eles protegem muito a música deles, eu já sabia, mas senti na pele.

pas - como assim?

mr - "oye, chica, pero que tu cantas?” "canto música brasileña y música cubana." "ah, si?...", tipo "lá vem uma estrangeira". aí, quando comecei a cantar, "ah, marina!, você é uma de nós". só que essa proteção cultural é linda, maravilhosa. acho que nós temos isso de uma forma mais delicada, por tudo. basicamente foi isso. fiz grandes amigos.

pas - trabalhou com músicos de lá?

mr - trabalhei com músicos de lá. o que eu fiz? fiz todo o trabalho em midi. toda a parte que era cubana peguei o hd, levei para lá, tchan! por exemplo, a primeira música, "tin tin deo", tinha percussões brasileiras e cubanas. o baixo e toda a percussão gravei lá. tudo que era nosso gravei aqui. (se confunde) ou, a louca, tudo que era nosso gravei lá (ri). foi muito legal, porque através da tecnologia pude ser tão orgânica. isso me permitiu dar a césar o que era de césar, porque não adianta: ninguém toca samba como nós, ninguém toca habanera como eles. essa é a minha referência auditiva. não podia ceder na hora de assumir a minha música.

pas - de onde vem a idéia e qual é a meta de, por exemplo, colocar luiz gonzaga, carmen miranda e dona ivone lara lá no meio das canções cubanas?

mr - não tenho meta, a meta é me realizar em música.

pas - sinto, quando ouço, que você está dizendo que nós somos o mesmo povo.

mr - mas eu falo isso não por ideologia, e sim por verdade. porque nós somos. com esse disco descobri um monte de coisa. a namorada do violonista da minha banda tem mãe colombiana e pai brasileiro. uma amiga tem pai peruano e mãe brasileira. essa é uma verdade silenciosa (enfatiza).

pas - você concorda que essa verdade, a sua, poderia ficar silenciosa pelo resto da vida?

mr - concordo (enfatiza).

pas - por que não ficou?

mr - porque sou uma mulher abençoada e deus permitiu que eu realizasse um chamado meu, graças a deus. esse era um grito dentro de mim. fiz faculdade de direito, cinco anos, o professor de direito constitucional chegava e eu estava desenhando um curral octogonal em que eu queria manejar os búfalos, ou estava escrevendo a letra de uma música. estava cumprindo um caminho que achava que devia ser, mas não era a marina "mariposa", não era. digo "mariposa" porque era uma puxada de orelha que eu recebia sempre. eu era a borboleta da casa.

pas - por que isso era uma puxada de orelha?

mr - (silêncio.) ai, acho que por causa dos traumas deles, né? (ri), que achavam que todo mundo tinha que estar dentro daquela dureza. não é dureza, não. não posso julgar, não vivi a vida deles. com pouca idade o pai do meu avô morreu, e ele teve que trabalhar. acho que estavam tentando preparar a gente para a vida. queriam me dar o melhor, e achavam que o caminho mais ortodoxo era me proteger.

pas - mas como é a "mariposa"? o que é reprovável nela, para eles?

mr - ah, a "mariposa"... é porque enquanto meu irmão era chamado de "von brant", o cientista, todo genial, e minha outra irmã era super-intelectualizada, eu estava dançando, roubando discos da minha avó para dançar na sala, e pintava, e tinha orquídeas, e cuidava dos búfalos. na verdade, existia um espaço para isso. acho que eles viam que isso era tão forte em mim que temiam. eu entendo também. ih, virou sessão de análise? cuidado, não me exponha, por favor, que estou indo muito fundo, não posso, chega, é de música que tenho que falar (ri).

pas - tudo faz parte, as orquídeas também são música...

mr - é, tudo faz parte... ouvi de um amigo, quer dizer, um jornalista tão querido que já posso dizer que é amigo, que fellini dizia que a arte é autobiográfica. é mesmo.

pas - nós não temos esse registro, mas talvez muitos cantores e cantoras antes de você pudessem ter feito esse cruzamento, porque também pertencia a eles, mas esse era um caminho que estava obliterado.

mr - cada um com suas verdades, e com sua coragem de assumir. você acha que é fácil ficar falando de família? não tenho a família perfeita, ninguém tem (ri). é uma exposição muito grande, mas não importa. prefiro a reserva à exposição, mas não é isso, estou falando "gente, vamos falar de verdade, vamos falar de música".

pas - não sei qual é a história, mas você convenceu a universal Music, seu assessor de imprensa é mario canivello, chico buarque está no disco...

mr - que lindo, isso, né? abri um selo, mousike é o meu selo. pedro, há três anos e meio estou correndo atrás disso. faço uma piada que é verdade, que uma amiga francesa, com aquele humor afiado, fez há dois anos: "oi, o que você está fazendo?", "estou gravando um disco", "mas é o mesmo, ainda?". três anos e meio é bastante tempo para você manter uma idéia. é uma gangorra emocional. tinha dias que eu dormia chorando, pensando "o que estou fazendo com meu tempo, com meu dinheiro, com minha energia?". podia estar fazendo outra coisa. no entanto, passa. ninguém tem uma bola de cristal para ver o outro lado, tem que ser intuitivo.

o princípio do meu projeto foi muito duro. primeiro que era só uma idéia, que só existia na minha cabeça. algumas pessoas foram vestindo a camisa, porque gostaram da idéia e, como profissionais, falaram "bem, eu participo disso". isso também foi muito bom para mim, para desenvolver minha capacidade de persuasão em prol de um projeto. foi um exercício, quanto mais eu ganhava mais eu aprendia a fazer. procurei gravadora, você acha que eu queria abrir um selo? não, eu queria ser distribuída pela blue note, queria ter assinado com... deixa eu ficar quieta. mas eu apresentava a idéia, e as pessoas "ah, muito bonito, mas... você sabe como o mercado está". a idéia era essa, não? então tira a mão. não tinha a coisa de ser modificado, a não ser que a pessoa me convencesse que a idéia dela fosse melhor. eu tinha a idéia completa na minha cabeça, sonoridade, arte, microfone, o que não seria feito. a capa é jazzy, sai daquela coisa latina, alegre, cafona..., cafona no sentido de ser "uau!". não, quem falou que o latino tem que ser assim?

pas - estereótipo?

mr - estereótipo, exatamente. tem muito latino muito mais sofisticado que outros. então fui batendo nas portas, fui recebendo muitos nãos, e os sins que ia ganhando me faziam perceber que o meu caminho era aquele mesmo. isso é uma filigrana, pedro. na verdade, os nãos me protegeram de eu ter cedido. e aí, então, tive a liberdade de fazer o disco como eu queria, em todos os sentidos. ouvi o seguinte do cara que mixou e masterizou meu disco: "marina, já trabalhei muito por um prato de comida, me dou luxo hoje de poder trabalhar para a arte". essa é minha resposta para chico buarque estar, para mario canivello estar, num disco feito independente. e no final, 45 minutos do segundo tempo, convenci a universal de me distribuir.

pas - foi bem no final? como foi?

mr - bem (enfatiza) no final. foi porque tenho um amigo espanhol que trabalha na universal, que gostava muito do disco, acompanhou desde o começo. ele me disse muitos nãos, mas não como amigo, falava "você é louca, seu disco tem dois caminhos, ou vai dar muito errado ou você vai estar inaugurando com coragem uma coisa muito única e verdadeira".

pas - ele é espanhol e trabalha na Universal daqui?

mr - não, trabalha na espanha. acho que ele mostrou para a universal daqui.

pas - é um roteiro maluco também, cuba-brasil-espanha...

mr - cuba, brasil, espanha, argentina. tem uns argentinos metidos no disco, o diretor de arte, juan jaureguiberry, gênio. o picky talarico, que também trabalha argentina-brasil. o cara que mixou e masterizou é o sebastian kryss, que é um argentino que mora em miami há 20 anos, tem uma experiência tremenda com música latina e trabalhou com muitos latinos. mas foi assim, acabei conhecendo algumas pessoas de dentro da universal, marquei uma reunião, apresentei e eles me propuseram distribuir. falei "ótimo", eu já tinha chegado até ali, até o final, graças a deus.

pas - hoje em dia, sabemos, as gravadoras fazem o mínimo, a ponta final de distribuição e olhe lá...

mr - eles fazem, porque só estão dando conta de fazer isso. o mundo mudou de cabeça para baixo. eles tinham uma estrutura de dinossauro que foi quebrando. e esse é o caminho, viu?

pas - é curioso que, ainda assim, pouquíssimos têm conseguido atravessar essa barreira. não sei hoje em dia exatamente o que significa ser distribuído pela universal, talvez nem seja...

pas - é muito bom.

mr - ...mas não é o que já foi, e pouquíssimos conseguem furar o bloqueio.

pas - sim. mas é o que eu precisava. fui até onde pude, e continuo indo, mas esse trabalho de distribuição é uma empresa, vem de manaus, não dá. aí eu ia ter que parar de cantar (ri).

pas - como você chegou até chico buarque?

mr - chico? um amigo comum ouviu. fiz o disco em partes, meu marido brinca que ia se chamar "as demo", porque fui fazendo em partes e ia ouvindo. fazia, ouvia, ouvia, ouvia. não adianta gostar da música, a música tem que gostar da intérprete. e ali joguei muita coisa fora. mas esse amigo ouviu no meu carro, chegamos à história do chico, que ele é um cara que se interessa pela música cubana. por essa ponte ele falou "ah, eu posso apresentar para ele, me dá uma demo". falei "pois não", um descrédito, uma descrença... até que um dia ele me ligou e falou que chico tinha gostado muito e tinha aceitado, e era um lance de agenda.

passaram seis meses. foi ótimo, tudo no seu tempo. nesses seis meses meu disco era outro, já tinha ido a cuba, já tinha voltado, já tinha iniciado um documentário.
ele me ligou numa quarta, levei o maior susto. foi engraçado, eu estava numa reunião orçamentária, dizendo aos meninos que foram comigo para cuba fazer o documentário que eu ia parar o documentário. não tinha fôlego para as duas coisas. um deles, aliás, é o décio matos jr. (diretor de "fabricando tom zé"). não quero falar muito ainda disso, porque quero ter espaço para mudar de idéia. punha uma câmera parada durante todo o processo criativo, tem tudo isso, tem a maior parte das gravações, a parte de cuba, a mistura, a explicação do disco em música, e outras coisas, claro, egotrip.

mas, então, aí tocou o telefone, "marina?". "sim", aquele "alô" fino, que incomoda (ri). "é chico." falei "quem?", tipo acabou a reunião, depois a gente fala. acalmei, que estava naquele discurso de "não vamos mais fazer o documentário", ele falou "olha, eu posso sexta". era uma quarta à noite, e eu tinha que fazer alterações na música. falei (determinada) "eu também posso sexta".

pas - por coincidência, né? (risos.)

mr - não, não podia nada. era no rio de janeiro, na quinta ia ter que arrumar os músicos para poder gravar. que coincidência, né? (irônica), a agenda estava aberta na sexta. foi um corre-corre, quinta-feira até de madrugada fazendo a música, sexta fomos para lá. arrumei o mega, que ele queria um estúdio com que estava acostumado, e deu tudo certo, porque chico é um lorde, generoso, delicado. foi rápido, depois ele ouviu o disco. e não pense que é assim, ele realmente ouve, faz intervenções, questiona. uma hora ele disse "não estou entendendo, você está alterando seu conceito?", porque felei que ia começar a gravar músicas em português, que já tinha gravado. falei "deixa eu te mostrar?, cheguei em cuba e fiquei com vontade de cantar minha brasilidade, dá licença?, o disco é meu". não, brincadeira, não falei nada disso. coloquei "sonho meu" para ele, ele olhou para mim e só falou uma coisa: "agora eu entendi". e foi lindo porque além de tudo misturei com josé martí, que é uma figura muito importante na cultura cubana, e ele sabe da profundidade desse link, de cantar "sonho meu", terminar com josé martí e ser uma brasileira. resultado de outros caminhos, né?

pas - por falar disso, de onde vem o baião?

mr - sou apaixonada pelo sertão brasileiro.

pas - um próximo disco pode ter o sertão de São Paulo?...

mr - meu querido, o que eu tenho estudado, se você soubesse (ri). não quero falar do próximo, como já diz jesus cristo, basta o mal de cada dia, como é? (ri), a cada dia basta o seu próprio mal. mas sou apaixonada pelo sertão, por música de raiz. essa verdade me pega de tal forma que quero seguir nela. quando resolvi fazer música brasileira, vou fazer o que gosto. gosto de samba de roda, de baião, de frevo. e aí comecei, luiz gonzaga, humberto teixeira, sivuca... cheguei numa gravação da carmélia alves, que para mim é uma diva, o que aquela mulher canta?, o que era aquele instrumento dela, aquela graciosidade? tenho muitas paixões musicais, mas carmélia alves e carmen miranda... descobri que carmélia está viva, no rio, estou tentando chegar nela. e aí então entra o baião. e, para completar, para ser mais íntima ainda, minha avó se casou, bem mais tarde, com o que chamo de meu avô brasileiro, que é pernambucano, do sertão. Ficou todo (faz sotaque) "féliz" de eu gravar.

pas - como chegou ao davi moraes?

mr - nós éramos amigos.

pas - falando nisso, você mora em são paulo?

mr - sim, de baixa grande da leopoldina direto para são paulo (ri). nós éramos amigos já, e eu gostava e gosto muito de um lado musical muito delicado do davi, que pouco ele demonstra, que é aquela influência do moraes moreira, dos novos baianos. sou fascinada pelos novos baianos, aquele grupo, aquela idéia, aquela piração. os caras foram muito corajosos, né?, pelo amor de deus. e aquele violão do "moraesão"..., acho que davi é uma herança nossa, uma ponte, o que o cara deve ter ouvido e absorvido de coisas... falei "davi...", ele disse "estou dentro". era para fazer uma música, viraram quatro. "sonho meu" foi uma idéia que tive na noite anterior a uma gravação, eu faço fotossíntese, à noite fico muito criativa. no dia seguinte terminamos de gravar, falei "davi, faz uma clave para mim, faz um samba de roda". ele falou "pra quê?", eu falei "não tenho nem coragem de te falar", era tão simples. pedi uma clave para eu cantar à capela. ele pirou, estavam ele e o percussionista leo reis, me ajudaram a construir a música na hora, não tinha nem meia hora de estúdio. por isso tem som de caneta bic, jarra d'água.

pas - por fim, como você chegou ao canivello, que é tido como um profissional caro de assessoria de imprensa? Vvcê tem grana para bancar?

mr - olha, o canivello também pode trabalhar por amor à arte. ele pirou com meu projeto, ele faz o que ele quer.

pas - chico buarque fez essa ponte, ou não?

mr - na verdade, é o contrário. eu era amiga do canivello, foi ele que me apresentou ao chico. ele é mais meu amigo que outra coisa, disse a ele que estou me achando muito chique falando que ele é meu assessor (ri). não dá para trabalhar com quem você não tem afinidade, é o meu produto, tenho muito respeito pelo meu trabalho e por mim mesma. não é dinheiro que compra isso. nem vou dizer que sou uma rebelde, não estou aqui pregando nada, não. estou dizendo que existem pessoas que trabalham por muitos motivos, e é por isso que tenho um time tão incrível, mesmo estando no começo.

pas - mas me ocorre uma pergunta que não sei se é indelicada: você é uma moça rica?

mr - musicalmente? (ri). musicalmente eu sou.

pas - porque na estrutura de classes do brasil, se você tem desenvoltura você consegue mais coisas, e a desenvoltura inclui também acesso maior, mais grana ou não sei o quê.

mr - olha, sou de uma família que teve muitos altos e baixos. meu avô foi arrimo de família, quando saiu de cuba estava muito bem. quer dizer, antes do fidel entrar estava muito bem, depois ficou com uma mão na frente e outra atrás, aí veio para o brasil. isso não importa, importa o que nós somos. o dinheiro vai e vem, não é nada. sou uma menina culta, é isso que importa.

pas - na verdade pergunto isso meio torcendo pelo contrário, que seja possível fazer tudo isso não sendo uma moça rica (rio)...

mr - mas eu não sou uma moça rica. não sou mesmo. senão você perceberia. tem coisas que a gente não esconde. até são armadilhas que acho que o dinheiro faz.

pas - não que seja um defeito, ou qualquer coisa...

mr - não, acho que no Brasil existe, sim, um preconceito muito grande...

pas - de mais pobres contra mais ricos, você diz?

mr - ...é, principalmente no campo da arte. isso não me importa, estou falando de música. senão eu tinha ido trabalhar no campo. o dinheiro dá possibilidades para você caminhar. abrir um selo não é questão de ser gênio, você tem que ter dinheiro para fazer seu contrato social, abrir sua contabilidade, sua empresa, sua pessoa jurídica. tem muito trabalho por trás.

pas - e um investimento, também, na marina de la riva.

mr - tem que investir. é uma empresa. isso é um produto. e, pedro, tem uma outra coisa. é como dizer que quem tem dinheiro tem bom gosto. não é uma máxima verdadeira. como dizer que quem tem dinheiro pode fazer as coisas, (faz sotaque espanhol) "mentira", e quem não tem não pode.

pas - ou, como você disse antes, que quem é latino é "cafona". são estereótipos?

mr - exatamente. tem que correr atrás.

pas - por fim, eu queria perguntar sobre política mesmo, sobre cuba, brasil... qual é a sua nesses termos? o que pensa e sente a respeito do sistema político do país de que seu pai veio exilado, e que é questionável e contestável?

mr - como posso dizer isso, sem...? acho que tanto tempo passou (silêncio). na época aconteceu o que a maioria queria, e isso é muito legal. acho que atrás das decisões políticas existem os seres humanos. existiram grupos que acham que ficaram melhores? sim. existiram famílias dilaceradas? sim. existiu o "paredón"? sim. existiram bagunça e baderna, de entrar na casa dos outros, quebrar tudo, estuprar a filha de não sei quem, por causa de uma ideologia? sim. Nada disso está certo.

pas - queira-se ou não, é uma ditadura.

mr - exatamente, é uma ditadura. existe uma coisa que não sou a favor, que é suprimir o direito do ser humano de ir e vir, da liberdade. isso é inadmissível, é a única coisa que acho absurda. o resto...

pas - para eu entender, seu pai é um cara que odeia fidel castro?

mr - posso te falar, pedro? não é falado isso em casa. e cada um tem suas mágoas pessoais. não é, tanto é que eu voltei a cuba. não é um cara que odeia fidel. a mãe dele morreu, ele teve os melhores amigos... pedro, sabe por que é muito difícil falar desse assunto? porque a gente não está lá, não esteve lá na época, não estava na pele nem de quem ficou nem de quem saiu, e eu vou ser julgada por um aspecto político, se eu sou comunista ou não. isso não importa, estou falando de música. importa a gente falar do nosso país, que a gente não está conseguindo mudar.

pas - mas é que é tão inusitado o que você está fazendo, que é trazer cuba de volta para nós, e pode ser que alguém diga com preconceito "sua comunista".

mr - exatamente, ou "sua outra coisa".

pas - já aconteceu?

mr - não, porque imponho certo respeito sobre esse assunto. sabe o princípio da não-violência, como gandhi? é o princípio da não-política. vamos falar de música, do ser humano? aí eu falo.

pas - mas, marina, à medida que você peitou esse desafio, as coisas se misturam, não é? acredito que todo mundo pergunta isso a você, essa pergunta não existiria se você fosse peruana, e não cubana.

mr - todo mundo me pergunta. e a resposta é essa, estou falando com muita tranqüilidade: não importa. a história pessoal de cada um é muito maior do que a política. vide essa nossa tragédia (a entrevista aconteceu poucos dias depois do acidente da tam), 200 pessoas mortas, imagina as famílias, o que isso não afetou, eram pessoas em ação, produzindo. vamos trazer isso para tantas barbaridades que acontecem no nosso país, que fica por isso mesmo. entendo a pergunta, todo mundo me faz a mesma, e eu respondo: eu quero falar de música.

pas - não sei onde podemos chegar com isso e nem ao certo por que estou falando isso agora, mas estive em Cuba, por uma semana, "a passeio", e voltei chocado, mexido, mesmo sem possuir laços de vínculos diretos que eu saiba reconhecer. mas voltei mexido, e com o passar do tempo, quanto mais pensei, mais cheguei à conclusão de que não era pelas diferenças, mas pela semelhança, pelo quanto cuba me fez lembrar do Brasil o tempo todo.

mr - não tenha dúvida. meu avô falava assim: "mira esse guajiro, chica. es igualito a un cubano". "olha esse cara", guajiro é um cara do campo, "é igualzinho a um cubano". ele ficava até emocionado, quando ficava ele apertava o olho assim, não chorava, mas... nós temos muita semelhança. agora, o povo cubano tem uma coisa que não está aflorada em nós, que é um sentido de luta muito grande.

pas - você acha que nós não temos tanto?

mr - acho que estamos tão preocupados com tantas outras coisas que esquecemos de cuidar do que é ser brasileiro, do que é deixar de ser o país do futuro e ser o país do presente. um país com dimensões continentais como o nosso, tendo um caos aéreo (fica indignada, altera a voz) que é mais que uma palhaçada. é um desaforo absoluto ao brasileiro. é a ponta do iceberg.

pas - (nem havia eclodido ainda o movimento "cansei", mas meu ímpeto é cortar o assunto que me parece de repente resvalar no "marketing da indignação" que tanto me incomodaa.) você acha que pode trazer esse sentido de brasilidade de volta fazendo música cubana?

mr - acho que posso estar trazendo um sentido de ousadia e de coragem.

mr - essa é uma das dimensões do seu projeto?

mr - é, mas até de uma forma humilde. porque que ousadia estou fazendo, empunhando o violão? grande coisa. mas, sim.

pas - coragem, como estávamos falando, de chamar de volta nosso vínculo com cuba, que está esquecido.

mr - de chamar nosso sangue, nosso vínculo com cuba, nossa latinidade que não é dita.

pas - tem gente que tem repulsa por isso...

mr - tem gente que tem repulsa. tem gente que tem repulsa pela família. eu estou falando da família.

pas - como você se vê daqui para frente? essa é uma trajetória que vai se seguir nessa linha?

mr - peço a deus que sim.

pas - você estaria iniciando uma fórmula que vai ter que ser seguida?

mr - não, acho que não. o processo criativo é como se fosse uma maria-fumaça, sabe aqueles trens antigos que demoram muito a pegar energia e movimento para seguir em frente? depois que pega, aquilo não pára, a não ser que seja para pegar mais carvão. é óbvio que pari esse primogênito, mas minha cabeça continua rodando. não quero me atar, isso não é uma fórmula. ao contrário, pode ser que eu cante mais música brasileira e tenha coragem de pôr três músicas latinas, não mais cubanas. por exemplo, duas músicas que tirei, já gravadas... fui dormir um dia, acordei num sobressalto, "tal música não é cubana!". e não era, era mexicana. meu marido, "você é louca", tive esse insight, tive que procurar, e era mexicana. tira.

pas - tudo que ficou é cubano?

mr - tudo que está aí é cuba-brasil. até onde eu sei, né? (ri), vai que tem alguma surpresa que não sei.

pas - pode ter algum cubano filho de brasileiro...

mr - é, alguma loucura. mas acho que, parindo esse primogênito que teve essa vestimenta, posso conquistar liberdade para fazer outras coisas.

segunda-feira, setembro 03, 2007

ossadas a céu aberto

é só impressão minha, ou assuntos como o que vai aqui abaixo causam um silêncio muito mais ruidoso que barulheiras e quebradeiras gritonas recentes como as de avião que caiu (mas não de trem que trombou), "cansaço" que "cansou", "indignação" que se "indignou", blá, blá, blá? por que setores "mobilizados" pelas "200 vidas ceifadas" da tam não dão um pio quando se trata da mais remota possibildade de insurreição contra as não sabemos até hoje quantas "vidas ceifadas" nos ensandecidos porões torturadores da ditadura que fomos até outro dia? (ou ainda somos?...)

reportagem da "carta capital" 459, de 29 de agosto de 2007. você já existia em 1968, 1969, 1970, 1971, 1972, 1973, 1974, 1975...? este aqui abaixo é o seu mundo (ou o dos seus pais, ou o dos seus avós)?


Ossadas a céu aberto
Documento inédito passa a limpo a história de quase 500 vítima dos organismos de repressão da ditadura militar

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Um documento que será apresentado publicamente na quarta-feira 29, no Palácio do Planalto, transformará a relação do Estado brasileiro com esqueletos guardados no armário ao longo da ditadura militar instalada no País entre 1964 e 1985. Em 500 páginas, o livro Direito à Memória e à Verdade descreve e se esforça por solucionar quase 500 casos irresolutos remetidos a partir de 1996 à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), ligada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

De modo inédito, crimes praticados pelo Estado contra militantes oposicionistas durante o regime de exceção são narrados em detalhes num documento oficial produzido pelo próprio Estado, escrito, entre outros, pelo ministro da Secretaria dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. Sem circulação comercial prevista, o livro será distribuído para bibliotecas, órgãos públicos e familiares dos mortos e desaparecidos.

O texto afirma não haver teor revanchista contra os abusos da ditadura. Mas não economiza termos para caracterizar o "terror de Estado" instaurado mais dramaticamente após o Ato Institucional nº 5, de 1968. Guerrilha do Araguaia, ossadas do cemitério Dom Bosco, em Perus (SP), Operação Bandeirante (Oban) e suicídios forjados pelos órgãos de repressão, todos freqüentam à exaustão as páginas de Direito à Memória e à Verdade.

Trata-se de um esboço de reação do governo às críticas constantes a uma suposta inoperância na tarefa de desenterrar os esqueletos da ditadura. E significa um passo adiante no processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes, iniciado com a promulgação da lei nº 9.140, de 1995. O documento consolida o trabalho de 11 anos da CEMDP, que acumula 356 casos analisados, deferidos e indenizados, além de 118 indeferidos em geral por não cumprirem os itens contemplados pela lei.

A radiografia amplifica a documentação sobre um regime militar que quantitativamente não foi o mais sangrento entre os implantados na América Latina nas décadas de 60 e 70, mas tem sido tratado de modo ambíguo pelo Estado e pela sociedade brasileira desde a transição sem ruptura institucional da ditadura à democracia, de 1985 em diante.

Aqui, não se conhecem estimativas objetivas sobre o número de mortos numa luta política que, na vigência da Guerra Fria, fez opor de modo bipolar e sem meios-termos um Estado repressor alinhado com os Estados Unidos e uma resistência que o regime caracterizou como terrorista e alinhada à União Soviética. O documento expõe indiretamente a demora do Brasil em acertar contas com o passado, ao relacionar dados de países vizinhos que têm sido mais determinados em quantificar e julgar os crimes de suas sangrentas ditaduras. O relatório aponta cerca de 30 mil mortos entre os que resistiram à ditadura na Argentina, entre 3 mil e 10 mil no Chile, 400 no Uruguai.

Após relatar tentativas das nações vizinhas em punir seus ditadores, o texto fustiga: "O Brasil é o único país do Cone Sul que não trilhou procedimentos semelhantes para examinar as violações de direitos humanos ocorridas em seu período ditatorial, mesmo tendo oficializado, com a lei nº 9.140, o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e pelos desaparecimentos denunciados".

Aqui, aos quase 500 casos que a CEMDP se empenhou em solucionar, somam-se um número desconhecido de camponeses mortos no Araguaia, a rotina de arquivos militares fechados, destruídos, adulterados e/ou protegidos por períodos de sigilo eventualmente prorrogados (como determinou, por exemplo, a lei nº 11.111, de 2005), a resistência de setores militares e do governo, e assim por diante.

As Forças Armadas participaram do processo de revisão histórica movida pela comissão, que é presidida atualmente pelo advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa. Um representante nomeado pelos militares integra desde o início o grupo completado por representantes de familiares, sociedade civil, Ministério Público Federal, Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e governo federal.

No livro, o militante dos direitos humanos Belisário dos Santos Jr. se refere da seguinte maneira ao coronel João Batista Fagundes, seu colega na atual representação da CEMDP: "É um homem com imenso respeito pelos direitos humanos, cujos votos têm honrado a tradição desta comissão. Ele sabe que as Forças Armadas não se confundem com os torturadores que se esconderam em passado recente atrás de uma farda. E que a tortura, sob qualquer forma, deve ser punida, e suas vítimas devem ser reconhecidas e indenizadas pelo Estado".

Isso não significa que o documento se exima de tocar em pontos de fricção, seja com familiares dos desaparecidos, por um lado, ou com remanescentes da ditadura militar, por outro. Em ao menos dois momentos, o texto atravessa temas controversos e potencialmente incendiários.

Num deles, critica-se a sociedade brasileira por ter se acomodado à tese de que a Lei de Anistia, de agosto de 1979, se estenderia aos torturadores. Tal interpretação foi usada pelos militares como um salvo-conduto para que deixassem o poder sem ser incomodados, situação que persiste até hoje. "Juridicamente é equivocado, pois o conceito de crimes conexos trazido pela Lei de Anistia de 1979 não tem o condão de beneficiar os autores de tortura e outros crimes do mesmo tipo, como desaparecimentos forçados etc.", afirma Belisário dos Santos Jr. em depoimento no livro.

Outra passagem sensível a tocar na impunidade dos agentes repressivos fala do chamado "crime continuado", em relação aos perseguidos políticos ainda tidos como "desaparecidos". O texto observa que, segundo certos juristas, os autores presumidos estariam incorrendo continuadamente em crime ao nada informar sobre a localização dos corpos.

"Na medida em que determinado agente do Estado sabe para onde foram levados muitos desses corpos e nada revela, persiste, pelo silêncio, praticando o crime de ocultação até os dias de hoje, quando a vigência da normalidade democrática retira qualquer justificativa para tanto", escrevem os redatores, sem se comprometer com esse ou aquele posicionamento. Ponto adjacente, não incluído explicitamente, é a interpretação que advoga que a tortura é um crime imprescritível contra a humanidade.

Em apoio e reforço ao trabalho desenvolvido há décadas por grupos como o Tortura Nunca Mais, Direito à Memória e à Verdade agrupa e sistematiza dados abundantes sobre a prática desse crime no Brasil.

Encontram-se ali casos célebres como o de Carlos Lamarca (1937-1971), ruidoso quando da aprovação da indenização à família, em junho passado, ou o do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), que, segundo o regime, "suicidou-se em 25 de outubro de 1975, por enforcamento, no interior da cela que ocupava no DOI-Codi do II Exército, segundo apurado em IPM e laudos elaborados pelos órgãos competentes da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo".

O livro documenta que o caso Lamarca foi deferido com cinco votos favoráveis e dois contrários, um deles o do general Oswaldo Pereira Gomes. O de Herzog é descrito como "último assassinato de um opositor nos porões do regime militar".

Histórias inéditas despontam ao lado de casos bastante esmiuçados, como os citados e os do dirigente comunista Carlos Marighella (1911-1969), da estilista Zuzu Angel (1923-1976) e de Walquíria Afonso Costa (1947-1974), considerada a última guerrilheira alvejada no Araguaia.

É o caso de Higino João Pio (1922-1969), morto quando era prefeito de Balneário Camboriú (SC). Segundo o livro, Pio, amigo pessoal do presidente deposto João Goulart, foi preso por intervenção de adversários políticos, com base em legislação excepcional baixada pelo AI-5, e "encontrado" morto em outra cena forjada de suicídio. "A família fora ameaçada, à época, e optara pelo silêncio."

Por conta de uma ampliação da lei nº 9.140 efetivada em 2004, certos casos de suicídios reais puderam ser contemplados no sistema de indenizações. Um exemplo é o de Massafumi Yoshinaga (1949-1976), que se enforcou com a mangueira do chuveiro em sua casa em São Paulo, após se jogar embaixo de um ônibus e tentar pular de uma janela.

Integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Yoshinaga ficara conhecido seis anos antes como um dos militantes que foram ao ar em cadeia nacional com depoimentos nos quais renegavam as convicções políticas e repudiavam as organizações clandestinas. Após o ato de "arrependimento" (como a ditadura classificou), passou a sofrer distúrbios psicológicos, com alucinações e afirmações repetidas de que a Oban iria matá-lo. Ao decidir pela indenização, a comissão reconheceu a responsabilidade do Estado repressor pelo suicídio real do jovem de 27 anos.

É notável a alta incidência de jovens no relatório, entre eles a baiana Nilda Carvalho Cunha (1954-1971), presa no mesmo cerco que capturou Iara Iavelberg (1944-1971), companheira de Carlos Lamarca. Nilda, que acabara de completar 17 anos, foi torturada e depois libertada. Começou a apresentar sintomas de cegueira, alucinação, depressão e desmaios, e morreu três meses depois, de "edema cerebral a esclarecer", segundo o atestado de óbito.

A mãe de Nilda, Esmeraldina Carvalho Cunha (1922-1972), é outro verbete do livro. Após a morte da filha, pôs-se a pedir auxílio para esclarecer o acontecido, percorreu as ruas de Salvador gritando que "eles mataram a minha filha", enfrentou internações em sanatório. Recebeu um recado de que "o major mandou avisar à senhora que, se não se calar, nós seremos obrigados a fazê-lo". Foi encontrada em casa, 11 anos após a morte da filha, aparentemente enforcada, com marcas de sangue no chão.

História ilustrativa das manipulações conduzidas pelo regime é a de Eduardo Collen Leite (1945-1970), o "Bacuri", simbolicamente eleito pela comissão, em 1996, como o primeiro caso a ser colocado em julgamento. Militante mineiro da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Bacuri foi preso em 1970 pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Em 25 de outubro, a imprensa, como de costume, deu ampla divulgação a notas oficiais que afirmavam que o militante teria fugido durante a operação de prisão (e morte, no mesmo dia) do principal líder da ALN, Joaquim Câmara Ferreira (1913-1970). A falsa notícia tornou evidente para ele e os companheiros de prisão que se montava uma farsa para encobrir o que aconteceria a seguir. Duas semanas depois, o corpo foi abandonado num cemitério em Santos (SP), com dois tiros no peito, um na têmpora e outro no olho direito.

A publicação de Direito à Memória e à Verdade descortina o início de uma nova fase nas relações entre o Estado brasileiro e seu passado recente. De acordo com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o próximo esforço será a intensificação da busca e identificação de ossadas em diversos locais do País, com foco especial na região do Araguaia. Até hoje, os únicos restos mortais identificados entre os lá resgatados são os de Maria Lúcia Petit da Silva (1950-1972), enfim sepultada pela família em 1996.

Outra ossada encontrada na região, no cemitério de Xambioá (TO), deu origem ao pedido de um exame de DNA, para determinar se pertencia ou não ao gaúcho João Carlos Haas Sobrinho (1941-1972). O resultado foi negativo, mas antecedeu a adoção de uma rotina estabelecida no ano passado, de coleta de amostras de material genético das famílias para construir um banco de DNA capaz de identificar desaparecidos para a montagem. Caso se confirme a vontade política de encontrar as ossadas, o banco genético estará disponível para uma identificação precisa e menos morosa.

Se consolidadas, as iniciativas recentes abrirão caminho para um Estado enfim disposto a começar a fechar feridas e dissipar antigas ambigüidades. A ambição, o próprio texto de Direito à Memória e à Verdade traduz: "Ao ingressar no século XXI, o Brasil se revela portador de todos os ingredientes de uma verdadeira democracia política. Reúne, portanto, condições plenas para superar os desafios ainda restantes à efetivação de um robusto sistema de proteção aos direitos humanos. Não pode temer o conhecimento mais profundo a respeito de seu próprio passado".

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na edição seguinte, 460, ora nas bancas, um desdobramento apareceu na forma do seguinte editorial:

As palavras no devido lugar

Sem a retórica capaz de irritar os sempre irritadiços setores militares, ainda assim com exata firmeza, o presidente Lula afirmou que as investigações do governo sobre os crimes da ditadura vão continuar e defendeu o direito dos familiares de desaparecidos políticos de enterrarem seus mortos. "É um direito de todos, independentemente de credo religioso ou político. É esse direito que queremos resgatar sem rancor, sem revanchismo de qualquer ordem", afirmou na quarta-feira 19, durante o lançamento do livro-documento Direito à Memória e à Verdade, em que o Estado brasileiro pela primeira vez descreve oficialmente em detalhes os crimes e torturas praticados pela ditadura militar.

Convidados para a cerimônia, os comandantes das Forças Armadas não compareceram. Em respeito à disciplina e à hierarquia, os militares não se pronunciaram publicamente, mas nos bastidores houve quem se queixasse de que o livro é extemporâneo e não traz novidades. À Agência Brasil, Jarbas Passarinho, ministro dos governos militares, queixou-se do livro: "Ele está escrevendo a história de um ponto de vista unilateral, absolutamente unilateral". "Não vejo razão para ser contra o livro, se representar a verdade", afirmou na Folha outro ex-ministro do período, Delfim Netto. Para ele, no entanto, uma "indústria formidável" corre por conta dos pedidos de indenização pelas famílias dos mortos e desaparecidos.

No lançamento, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, classificou o trabalho da Secretaria Especial dos Direitos Humanos de "um processo efetivo de conciliação", mas lançou um recado aos setores militares: "Não haverá um indivíduo que possa a isso reagir e, se houver, terá resposta".

Por ora, a imagem que resiste é a de Elzita Santa Cruz, que discursou em nome dos familiares e pediu de volta, antes de morrer, o corpo do filho desaparecido aos 24 anos, em 1974. Ela tem 94 anos.