sábado, fevereiro 27, 2010

zumbi é o senhor das demandas

Estava aqui lendo na (excelente) revista "Fórum" uma entrevista com o antropólogo Kabengele Munanga. Como o nome pode sugerir, ele é negro, nigérrimo, veio do antigo Zaire e milita na branquíssima USP desde 1975.

Muitos trechos da fala do Kabengele (que nome mais lindo, meu Zeus!) me fizeram remeteram à polêmica recente sobre o(s) homofóbico(s) do "Big Brother Brasil", que muito me agrediu e ofendeu.

Copio esses trechos abaixo, e proponho sua cumplicidade de lê-los não só sob a ótica crucial do racismo e da discriminação racial, mas também sob as óticas-irmãs-gêmeas da homofobia e da discriminação por orientação sexual, da misoginia e da discriminação por gênero. Quase sempre bate, é tudo muito semelhante.

Levando Kabengele ao BBB (onde ele já está, via USP ou o que for), "racismo" pode virar "homofobia". Onde se lê "negro" pode-se
ler "homossexual" ou "bissexual", onde se vê "branco (macho adulto sempre no comando)" pode-se ver "heterossexual (homem e mulher)". A insinuação de que racistas são os que se queixam de racismo você pode substituir por esse papo furado tétrico sobre "heterofobia".

Mas, onde o Kabengele fala "educação", pode ler "educação" mesmo, em qualquer caso.

1
"Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estavam no porta-luvas, senão podiam pensar que ele ia sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão... A geografia do seu corpo não indica isso. Então essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas."

2
"Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança, vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou aqui no Nrasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola públca mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. 'Ah, é só mudar a escola pública.' Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como autoridades, dar melhor exmplo e colocar os filhos deles em escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas a coisa fica só na retórica."

3 (e aqui entra o "BBB")
"O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. (...) Há negros que introjetaram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. (...) A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos. (...) O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda. Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-ló, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda em casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: 'Não vou alugar minha casa para um negro'. No Brasil, vai dizer: 'Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar'. Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita. (...) Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: 'Você que é complexado, o problema está na sua cabeça'."

4
"Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade. Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades para casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo. (...) São seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a essas pessoas foi negada sua humanidade. Pra poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do pocesso de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. (...) O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer."

5
"Em outros países, não teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro... Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino [por racismo] no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita e a violência física é punida?"

6
"A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do negro na escola. Houve (...) a II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio."

terça-feira, fevereiro 23, 2010

caminhando e cantando e carregando caixa

Esta foi a estreia da minha coluna "Paçoca" na "Caros Amigos", na edição 154, de janeiro de 2010. A segunda já está nas bancas, a terceira já está escrita. E eu confesso que estou adorando essa história!!!


PAÇOCA
Pedro Alexandre Sanches

"Caminhando e cantando e carregando caixa"


O palco está montado sob uma lona de circo, e a estrutura de picadeiro borra a distinção entre palco e plateia. O palco ainda fica um nível acima (seriam semideuses os astros pop?), mas a plateia a todo momento parece que vai subir, tomar de assalto a ribalta, raptar a esposa do palhaço, roubar o show.

Uma moça de pele escura, aspecto hippie e graciosos gestos de bailarina oriental dança concentrada diante do palco, um degrau abaixo, não importa que estilo musical esteja passando ali por cima. Tece evoluções com o auxílio de uma canga, e na canga que dança mais que a moça está inscrita em letras garrafais a palavra Brasil.

*

O circo está armado na cidade de Vitória, e o que evolui no palco é um festival de rock, integrado à programação do II Fórum de Mídia Livre. No picadeiro e nos auditórios da Universidade Federal do Espírito Santo, onde acontece o encontro, alternam-se músicos sem-gravadora, jornalistas sem-jornalão, fazedores de mídia sem Globo. Um globo da morte faria as vezes de cabine para os DJs, mas, que pena, os circenses donos da lona precisaram dele para outro evento.

Jards Macalé sobe ao palco para se apresentar com um jovem grupo capixaba, Sol na Garganta do Futuro. Macalé gosta da molecada, é daqueles artistas que preferem atravessar fronteiras geracionais a morar isolados em globos blindados no centésimo andar. Põe seu clássico “Vapor Barato” na garganta do futuro e retribui com uma versão bem peculiar de “Diz Que Fui por Aí”, sucesso antigo na voz da carioca nascida no Espírito Santo Nara Leão. Para espanto de meus ouvidos e olhos acostumados com São Paulo, a plateia, formada majoritariamente por jovens, canta em coro os versos do samba de 1964.

*

“Anti-arte” é o negócio da banda Vitrola de 3, segundo um de seus integrantes, Felipe Costa.

“Sempre ouvi música árabe na casa do meu pai e da minha avó, porque eles são libaneses. A percussão é quebrada, é uma música nômade, de cigano, essa coisa toda de circo”, afirma o músico, esmiuçando o número circense-musical de sua trupe.

A Vitrola de 3 vem do interior do Espírito Santo, mais precisamente de Cachoeiro do Itapemirim. É a cidade onde nasceu um tal de Roberto Carlos – que, a propósito, cantava em circos no início de sua mais tarde platinada carreira. Também capixaba, de Alegre, era o ex-alfaiate Paulo Sérgio, que se tornou ídolo seguindo os passos bregapop de Roberto e morreu precocemente em 1980, aos 36 anos, após um derrame sofrido durante um show num... circo.

Ao final da apresentaçao da Vitrola de 3, pergunto a Felipe sobre o fantasma de Roberto Carlos. "Eu esculacho ele um pouquinho... Mas é bom saber que ele é de Cachoeiro." "Esculacha por que, em quê?", "não sei, isso mesmo de o cara... se acovardar talvez... de repente começa a achar que está bom, que vai pro céu, o cansaço que deve dar... Mas acho o som dele gostoso, quando ouço".

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Rock e homofobia costumam ser primos em primeiro grau, mas cá em Vitória uma travesti subirá ao palco e conquistará no muque um público rock’n’roll. Angela Jackson canta no duro, em geral paródias do tipo transformar o refrão de “A Lua Me Traiu”, da excelente Banda Calypso, em “a peruca caiiiiiiu”. “Eu nunca vi ainda uma travesti médica”, dispara a loirísisma cantora, ensaiando breve atitude de protesto em meio a um show de gargalhadas e aplausos.

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No auditório, o debate é sobre “a morte do pop star”. À mesa (da qual eu também participo), o produtor Pablo Capilé elabora belas imagens sobre os artistas “midialivristas” espalhados em rizomas horizontais, contra a árvore centenária e decadente chamada indústria musical. E eu penso nas Torres Gêmeas quando o vejo desenhar com as mãos a estrutura vertical caduca, demolida, pisoteada pelo presente efervescente que vivemos. Pablo, tez de índio mato-grossense, celebra o “artista-pedreiro” (“o artista-pedreiro entende que sucesso é pagar as contas”) e rega sua fala com uma frase genial: "Hoje o engajamento não é mais 'caminhando e cantando e seguindo a canção'. É 'caminhando e cantando e carregando caixa'”.

*

Paranaense radicado em São Paulo há 18 anos, me assombro com a constatação recorrente de que lugares que tenho visitado, como Vitória e Belém, respiram um vigor cultural esquecido pelo eixão Rio-São Paulo. Quando um roqueiro do Sol na Garganta do Futuro empunha de repente um violão, entendo que o pop e o rock, em Vitória, são moldados em MPB. Romperam diques e preconceitos que certas capitais tentam atravessar ainda constrangidas.

Entendo em Vitória e em Belém que a adversidade é a grande riqueza brasileira. E torço para que, por isso, a cultura paulista volte em breve a ficar interessante. Afinal, São Paulo se isola cada vez mais e é vista de fora com desprezo e pena, e essas são as condições adversas de que terá de se safar, se não quiser submergir de vez no leito imundo do pobre rico rio Tietê.

*

Um garoto de 18 anos de idade quebra o barraco no picadeiro dos DJs. André Paste é um mestre precoce na arte do mashup – justaposição caótica de estilos, batidas e músicas que, em meia hora de som, se desenvolvem como se tudo fosse uma música só, feita de um milhão de deliciosos farelos. André recombina referências tão diversas quanto Djavu, Michael Jackson, funk carioca, kuduro africano, tecnobrega paraense, Cansei de Ser Sexy, Daniela Mercury, Novos Baianos, Fábio Jr. (a melô “Só Você”, dentro da qual se ouve o grito funkeiro “pau no cu do mundo!”), o hoje cult Luiz Caldas (“Haja Amor”), Wando, Olodum misturado com Guns n’Roses... Nenhuma toca do modo ortodoxo, começo-meio-fim; todas deixam gosto de quero-mais, no refrão que não chega ou passa rápido demais. O espetáculo não pode parar: depois do palhaço virão a trapezista, o domador, a cabra ciclista, a girafa seresteira.

Converso com André ao final de sua sensacional aparição. Seu sorriso se estende de orelha a orelha quando explica que, sem exagero, gosta de tudo, de todo tipo de música. Mas ele acha que, não, não tem futuro na música, não. Eu duvido, mas deixo-o partir na velocidade da luz – afinal é madrugada e amanhã André tem de acordar cedo para as provas do Enem.

O mais surpreendente é que a música para esse menino já não se divide em brasileira e estrangeira, “brega” e “chique”, binômios assim. André desliza numa explosão simultânea de excesso de liberdade e completa ausência de preconceitos. E esta, acredite, é a receita infalível para a grande música brasileira que virá nestes promissores anos 2010.

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

céu vermelho é o sangue das cores vistas nos arredores salpicadas de sol (*)

Estávamos aqui discutindo Luiz Gonzaga versus João Gilberto, então veio o carnaval e o Arnaud Rodrigues morreu afogado lá em Tocantins. Nada mais longe, mas repare só se não podemos continuar mais ou menos dentro de um mesmo macroassunto.

Pelo que pude ver, "o humorista" Arnaud Rodrigues até que foi bem pranteado na "grande" mídia, mas em geral sobraram notas discretas para "o músico", "o compositor", "o cantor" Arnaud Rodrigues. O inverso parece acontecer na internet - é só você conferir, o blogspot está um jardim florido de lembranças musicais do Arnaud.

Eu fico com a blogosfera: ok, o humorista, mas Arnaud, pernambucano de Serra Talhada, foi um músico, compositor e cantor desconcertantemente original, em especial ao longo dos anos 1970.

Com seu conterrâneo nordestino (do Ceará) Chico Anysio, atravessou boa parte daquela década inventando música no conjunto de araque Baiano & Os Novos Caetanos. Empenhados em tirar um barato de Caetano Veloso & Gilberto Gil, Baiano (Chico) e Paulinho (Arnaud) faziam chanchada pura, mas a musicalidade por trás da chanchada, meu Deus do céu.

Houve um sujeito chamado Durval Ferreira, um carioca integrado às fileiras da bossa nova nos anos 1960. Liderou o conjunto samba-jazz Os Gatos, tocou com o Tamba Trio, acompanhou Leny Andrade, compôs com Maurício Einhorn e Bebeto Castilho, foi gravado por Claudette Soares. Participou da controversa apresentação da bossa nova no Carnegie Hall, em 1962.

Nos anos 1970, trabalhou com Aloysio de Oliveira no disco "O Som Brasileiro de Sarah Vaughan" e foi diretor criativo de LPs de Nana Caymmi e do primeiro encontro discográfico entre Tom Jobim e Miúcha. É que tinha passado para o lado de trás das cortinas da criação musical - virou um diretor artístico de extração popular e orientou discos de "cafonas" (Odair José, Diana), emepebistas (Joanna), sambistas "puros" (Zé Keti, Aparecida, Beth Carvalho, Cartola, Martinho da Vila), sambistas "impuros" (Antonio Carlos & Jocafi, Cesar Costa Filho, Eliana Pittman, Emílio Santiago), samba-soulzeiros (Silvio Cesar, Banda Black Rio) e forrozeiros (sim, ele mesmo, Luiz Gonzaga).

Durval foi diretor artístico e produtor do espetacular LP de estreia de Baiano & Os Novos Caetanos, "E?" (1974). A primeira faixa era "Vô Batê pa Tu", de Arnaud e Orlandivo (outro bossa-novista de pernas quebradas pelo excesso de identificação com a música mais popular). À época, era citação cifrada aos episódios policiais protagonizados por Wilson Simonal ("deduração/ um cara que louco que dançou com tudo/ entregação do dedo de veludo"). Hoje, é clássico do samba-rock.

O "humor" ficou em primeiro plano, mas musicalmente o disco recombinava, de modo brilhante, forró, soul, funk, samba, samba-rock, samba-jazz, ciranda, folia de rei, toada, música caipira, canção cafona, modinha, MPB, faroeste, oração, rock, rock psicodélico... "Tributo ao Regional" fazia o que o título sugeria, sob a carpintaria de profundo lirismo. "Dendalei" encerrava o disco entre o cangaço e o faroeste, totalmente fora das leis (da bossa e da MPB universitária).

Sua sequência, "2" (1975), era tão brilhante quanto o primeiro, ou mais ainda. Era nova fornada de híbridas e suingadas canções (não-)nordestinas, como "Yo No Quiero Saber", "Sete Luas", "Entardecer na Fazenda", "Ciranda", "Violamania" e a faixa de abertura, a supostamente humorística (e altamente samba-roqueira) "Perereca". Em "Ameriqueiro", o hibridismo musical se casava com seu oposto, o conservadorismo nacionalista, em versos como "não sou americano/ com meu pouco dinheiro/ eu sou brasiliano e se não me engano sou ameriqueiro", e "ave, ave, ave, música brasileira!".

Os discos dos B&NC ficam devendo no quesito informativo, mas a lista de músicos acompanhantes na contracapa do subproduto "Azambuja & Cia" (1975) dá pistas sobre quem fazia o sustentáculo musical do "humorístico" conjunto. Trata-se de um verdadeiro quem-é-quem do lado mais suingado e suingueiro da pós-bossa nova: Durval Ferreira, Vitor Assis Brasil, Maurício Einhorn, o trio Azymuth (José Roberto Bertrami, Alex Malheiros e Mamão)...

Bertrami é um dos arranjadores desse LP - o outro, José Menezes, fez história como herói modesto do frevo pernambucano. Ou seja, sem maiores ambições ou pretensões, os B&NC buscavam reconciliar a bossa e o baião, 15 anos após "Bim Bom".

O embate amoroso, por sinal, se estilhaçava em uma porção de outros equivalentes, Nesse "Azambuja & Cia", uma faixa como "Negra Brechó", de Arnaud & Anysio, faz-se elo improvável entre a psicodelia, a bossa nova, o samba-joia, a canção caipira e o candomblé. Sob as asas do Azymuth, ergue-se a ponte sobre-humana entre João Donato, Marcos Valle, Hyldon e Odair José. João Gilberto? Em algum lugar ele deve estar.

A proposta musical de Anysio & Arnaud jamais se concretizou, e uma das imagens musicais derradeiras do futuro professor Raimundo talvez seja a dele indo à prisão, desconsolado, consolar Wilson Simonal (descendente improvável de africanos e judeus, como demonstra Ricardo Alexandre no livro "Nem Vem Que Não Tem", esse era o híbrido dos híbridos).

Os discos com Chico Anysio deram asas à criatividade de Arnaud Rodrigues como nunca antes ou depois ele voaria, mas nas duas pontas ele construiu trabalhos solo no mínimo intrigantes.

Estreou solo em 1970, num disco de nome enigmático ("Sound & Pyla ou Homenagem do 'A' ao 'Z'), todo trabalhado na influência da pilantragem de Simonal. Aí mesmo ele talvez definisse, desde o princípio, uma posição à margem da MPB "vencedora". Dizem que Tom Jobim era fã de Simonal, mas durante décadas pareceu que ele fosse talvez o único.

Em seguida veio "Murituri" (1974), de capa altamente psicodélica, conteúdo aveludado em black music indígena e parceria com outro quase-bossa-novista favorito da blogosfera, Arthur Verocai, em "Conscachá, Fimará (Magnífico)".

No pós-B&NC, vieram "Som do Paulinho" (1976), em que Arnaud se declarava "Índio do Uraguai", e ""Redescobrimento" (1979), em que a Banda Black Rio comandava os metais e os Azymuth ganhavam a companhia samba-funk sintetizada de Lincoln Olivetti & Robson Jorge, antiJobins espetados de vodu dos anos 1980. Os B&NC ainda voltaram e fizeram dois discos menos reluzentes, em 1982 e 1985, mas é muita história pra dar conta aqui.

Aqueles que não apreciam mirar a música popular pela ótica da briga dirão que resta aí, provada nos discos do duo Anysio & Arnaud, a tese da harmonia entre gêneros musicais diferentes como água & óleo. De fato, na obra de gente como Arnaud Rodrigues, óleo & água se misturaram e desceram redondos pelas gargantas de quem bebadosamba. Mas, repito, a proposta de ambos jamais se concretizou, ou pelo menos não se traduziu em aceitação de suas qualidades, muito pelo contrário.

Como se sabe, um muro de Berlim ergueu-se bem no meio do ofício que Arnaud dominava como quem masca um trevo de quatro folhas (tal muro foi, diga-se, em grande medida cimentado pela minha classe, a dos jornalistas plantados no coração - ou nos calcanhares e nas botas - da "grande" mídia). Até hoje, Antonio Brasileiro Jobim é maestro soberano. E Arnaud Rodrigues é mais lembrado como humorista cearense (embora nascido em Pernambuco), ou como o cantor cego (o assum preto) que pedia esmola na porta da igreja global de "Roque Santeiro".

(*) O título deste tópico é um verso de "Entardecer na Fazenda" (1975), tudo a ver com um índio mestiço que um dia iria morrer nas águas do Tocantins, bem longe do concreto bandeirante que matou por asfixia o Anhangabaú, o Tietê e o Aricanduva.

P.S. em 20 de fevereiro de 2010: acaba de surgir um P.S. no tópico lá de baixo, furaro os óio do assum preto, espia.

sinal fechado, fio maravilha 2: quem é do mar não enjoa

P.S. de 22 de fevereiro de 2010: o Lauro levantou a lebre, eu fiquei aqui batendo cabeça sobre como emendar e o óbvio logo ficou ululante. Não tem remendo, o jeito é dizer que, abaixo, onde você lê "Paulinho da Viola", o que deveria estar escrito era "Martinho da Vila". Não foi o PdaV, mas sim o MdaV, que disse o que disse sobre o governo Lula. (Já a frase "não quero ser aceito, eu sou o que sou, negro", está certa, foi dita mesmo pelo Paulinho da Viola.)

A escorregada no sabão está dada, não há perdão, e onde os jornais diriam "erramos" eu digo "ERREI!!!". E o erro não diminui com o "ERREI", mas pelo menos o "ERREI" fica na cabeça do texto, e não no pé da página, como os "erramos" tradicionais. E eu já começo a lembrar o canto de Ataulfo Alves: "Venho ao tribunal da minha consciência/ como réu confesso, peço clemência/ o meu erro é bem humano, é um crime que não evitamos/ esse princípio alguém jamais destrói/ errei, erramos".

(fim do P.S.)



E olha só, não é que um e outro artista da música brasileira andam saindo da toca e demonstrando em público pitadas daquilo que pensam politicamente?

No jornal "Brasil Econômico" de 6 de fevereiro de 2010, a Phydia de Athayde conduziu um encontro histórico entre Paulinho da Viola e Martinho da Vila - não me lembro de ter lido isso antes em qualquer lugar que seja. E Paulinho, não só formulou uma formidável frase: "Não quero ser aceito, eu sou o que eu sou, negro". Como também respondeu o seguinte à Phydia, quando ela perguntou se o Brasil melhorou com Lula:

"O Brasil deu um salto histórico que nunca havia dado. O Lula é tão forte que ninguém consegue bater. Pegam uma história aqui, outra alli, mas a verdade e que a pobreza diminuiu, o Brasil avançou e, internacionalmente, hoje é outra coisa. Antes, não havia ministro negro no Brasil. Com o Lula, já tivemos o Gilberto Gil, o Orlando Silva, mulheres ministras. Fizemos uma revolução, como também os Estados Unidos ao colocar um negro na Presidência, só que a nossa foi tão grande ou maior: colocamos um operário nordestino na Presidência. Acho, inclusive, que ele foi grande ao não aceitar o terceiro mandato. Adorei - até porque, se ele quisesse, teria -, mas, se eu fosse ele, não interfifiria na eleição. Deixaria a campanha correr".

E ontem em seu blog o Renato Rovai, editor da revista "Fórum", contou a seguinte historinha:

"Na sexta à noite, Jorge Ben Jor vai fazer um show para os petistas que participam do Congresso do partido, que acontece desde hoje pela manhã no auditório Ulisses Guimarães, em Brasília. A negociação que o levou a aceitar o convite foi bastante inusitada. Alguns músicos recusaram a 'distinção' porque não queriam ter seus nomes associados a um partido político. Com Ben Jor foi diferente. Ele aceitou, mas impôs uma condição: ter 15 minutos de prosa a sós com o presidente Lula".

E aquele chavão velho como Matusalém e repetido à náusea, de que engajamento na arte é igual a arte panfletária, chata, sorumbática? Não me engana que eu não gosto.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

furaro os óio do assum preto

Ultimamente, não há nada que eu ouça mais e com maior prazer que Luiz Gonzaga. Graças à internet (e ao roubo, diria a Sony, que guarda e não reedita o baú do Gonzagão), sua obra completa voltou à ampla, geral e irrestrita circulação para quem se interesse por ela. E ouvir Gonzagão de fiá pavi só tem feito me maravilhar, espantar e deixar boquiaberto.

Mas o que me traz até aqui agora é que se abriu uma controvérsia lá no blog do Luis Nassif, sobre a relevância ou não do "Bim Bom" do João Gilberto, aquele tum-tum que diz assim que "é só isso meu baião/ e não tem mais nada, não..." Acabou que dei pitaco no "Bim Bom" do Nassif, e quero trazer a história aqui pra casa também.

O texto do Nassif me fez sedimentar algo que andava boiando meio perdido por aqui: eu apostaria, com razoável chance de errar, que a voz macia de João Gilberto em "Bim Bom" estava mais era espetando uma farpa bem pontuda no coração do Luiz Gonzaga, com esse negócio de "é só isso meu baião/ e não tem mais nada, não" batucado em seu discreto e depois mitológico violão.

Quase nunca se fala isto abertamente, mas a bossa nova ODIAVA o baião personificado à perfeição na figura de "rei" Gonzagão. Ruy Castro, na biografia da bossa "Chega de Saudade", vem em meu socorro para demonstrá-lo, como se não houvesse milhares de outros indícios.

Primeiro, Ruy afirma que o baião era "aquele ritmo que, para alguns, só servia como coreografia para se matar uma barata no canto da sala". Esse "para alguns", se você não sabe, é cacoete muito utilizado por jornalistas quando querem(os) defender uma posição, mas não podem(os) ou não tem(os) coragem de afirmar pela própria boca. Daí até Tom Jobim, João Gilberto, Bden Powell, Johnny Alf e João Donato concordarem, vai longa distância, mas não dá pra negar que o livro do Ruy Castro exprime bastante bem um conjunto de sensos comuns sobre a bossa nova.

Páginas depois, ele volta à carga e ataca, dessa vez frontalmente, o pobre baião. E começa por celebrar "Chega de Saudade" como o disco que, "de passagem, acabou também com aquela infernal mania nacional pelo acordeão".

(É verdade: se você viu "O Homem Que Engarrafava Nuvens", filme do Lírio Ferreira sobre Humberto Teixeira, certamente notou aquela cena impagável em que uma pequena multidão de senhoritas do café soçaite se apresenta em grupo, cada uma delas empunhando uma garbosa sanfoninha.)

E Ruy Castro dá a martelada final: "Hoje parece difícil de acreditar, mas vivia-se sob o império daquele instrumento. E o pior é que não era o acordeão de Chiquinho, Sivuca e muito menos o de Donato - mas as sanfonas cafonas de Luiz Gonzaga, Zé Gonzaga, Velho Januário, Mário Zan, Dilu Melo, Adelaide Chiozzo, Lurdinha Maia, Mário Gennari Filho e Pedro Raimundo, num festival de rancheiras e xaxados que parecia transformar o Brasil numa permanente festa junina".

Como comentei lá no Nassif, os "cafonas" citados por ele são gente do, er, povo, fazendo música do e para o povo. E, de fato, suas sanfonas foram erradicadas como baratas pelo detefon chamado bossa nova. Na mesma borrifada foram triângulos e zabumbas, e quase se foi também Gonzagão em pessoa. Ele, no entanto, perdurou mais três décadas, lançando um milhão de discos até morrer em 1989.

Taí, alguém ainda vai algum dia estudar a sério esse cisma de classes sociais que a bossa instalou (ou aprofundou?) na música brasileira, e que persistiu longas e cansativas décadas (ainda persiste?).

Era um movimento essencialmente carioca, de apartamento, como todo mundo sempre repete. Mas a bossa trazia em seu fulcro João Gilberto, um baiano (há quem diga - ops, olha eu usando o cacoete! - que o nome "baião" era uma corruptela de "baiano"), um baiano do sertão, de Juazeiro, quase Pernambuco. Lula Gonzaga, é notório, nasceu sertanejo pernambucano (quase no Ceará, mas ainda pernambucano).

E foi esse João, baiano do interior entrosado entre civilizados cariocas, quem intensificou a guerra de classes sociais naquilo que ainda viria a se chamar MPB - para designar a música "fina" e bem menos popular que o pop de baiões, sambas, rancheiras, guarânias, xaxados, cocos, bregas, cafonas etc. etc. etc.

Pois se um dia alguém ainda vai ou não vai estudar essa estranha história a fundo é questão de aguardar (ou quem sabe faz a hora?). Mas, hoje mesmo, no presente, tem gente enfrentando na prática essa pinimba. Temos aqui o Marcelo Jeneci se esbaldando com muita elegância na sanfona, mas, só pra variar, o grosso tem vindo de dentro pra fora, com David Byrne cantando "Asa Branca" em inglês, paramentado com chapéu gonzaguiano de cangaceiro.

É lá em Niuorque que se formou o grupo Forró in the Dark, de brasileiros exilados que se dedicam exclusivamente a reler o baião (mas sem sanfona, por razões que tento beliscar num texto escrito para a revista da "Gol"; em breve colo ele aqui) - é em companhia deles que Byrne desempenha o cangaceiro primeiro-mundista.

E, mais, Bebel Gilberto também participa do levante do Forró in the Dark, cantando uma versão meio bossa de "Juazeiro", em português e em inglês. "Juazeiro, meu destino tá ligado junto ao teu", diz a letra de Humberto Teixeira que se refere à árvore, e não à cidade natal do pai de Bebel.

E ainda por cima ela canta, em seu disco mais recente (o excelente "All in One"), o (não-)baião "Bim Bom" de pai João. Estaria a filha do enlace da bossa com a MPB tentando reconciliar o pai e vovô Gonzagão?

Eita, que tem assunto pra mode Freud se refestelar aí!

P.S. em 20 de fevereiro de 2010: para apimentar um pouco mais o debate, olha só o que chegou até aqui!, trazido pelo Airthon:

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

o divã

Na madrugada de despedida do cruzeiro "Emoções em Alto Mar", eu tive um baita pesadelo.

Não foi o mais bonito que eu tive em toda a minha vida, mas foi um desses sonhos transparentes feito água, daqueles que Freud explica tintim por tintim (oba, tenho assunto à beça pra conversar com minha terapeuta na próxima sessão!).

Sonhei que estava sozinho no convés e avistava na popa do navio, lá longe..., em osso e osso..., Ela..., a Morte.

A Famigerada me aparecia no figurino pop-clássico, de animador de crianças na Disney fanstasiado em túnica preta da cabeça aos pés, mais a célebre máscara tipo "Pânico" ("Pânico na TV", não "Pânico" no cinema).

Eu olhava na cara branca dEla, Ela olhava na minha, mais pálida que nunca apesar do sol escaldante no convés. Ela virava de costas e subia as escadas para o deck de cima. Me vinha a certeza de que Ela ia me alcançar, e eu morria de pânico. Mas ia atrás dela mesmo assim.

Subia as escadas, a cena se repetia, eu via a Moléstia lá de longe, a Peste outra vez me encarava ameaçadora, eu ao mesmo tempo congelava, me sentia atraído e esboçava o gesto de fugir.

Mas agora Ela falava, sei lá eu com que voz: "Desta vez não é a Gal C. Desta vez é a Elis R.".

(Gal C. e Elis R., no caso, são pseudônimos de duas pessoas - mulheres - da minha família, muito amadas e importantíssimas para mim.)

Vinha um corte hollywoodiano e eu via, qual num cinemão drive-in a bordo, minha adorada Elis R. tendo um ataque cardíaco e morrendo fulminada pelo poder da sentença da Dona da Foice. E eu me punha a correr pelas ruas (uai, mas eu não estava num navio?), chorando feito menino correndo que via o tempo.

Nem preciso contar que acordei de imediato, coração descompassado, suando e assustado, preciso?

Afora o toque histriônico da morte com máscara de "Pânico", esse parque de diversões em forma de pesadelo foi o que bastou pra tombar as máscaras de tudo que eu não estava querendo ver nos dias todos de emoções à beira-mar.

São muitas, as imagens da Morte, dentro de um cruzeiro atlântico ou transatlântico.

Desde os naufrágios cinematográficos no infame "Titanic", com a trilha sonora tumular de Whitney H., e no fantasmagórico "O Destino do Posseidon", mito total da minha infância. Até o fato de ser uma representação de tumba em si propriamente dita a experiência de estar confinado num navio, ainda que seja um de 14 andares, gigantesco, feérico e habitado por quase 4 mil almas, como era o caso desse Costa Concordia. O conforto e o glamour são consideráveis, mas a gente não esquece um só minuto que pode afundar a qualquer segundo.

(Parece até o planeta Terra, um navio, não parece?)

Fazendo lé com cré deitado na cama macia, fui vendo que mais imagens mortíferas me perseguiram aos bandos nesses dias de quase-férias. Coincidência ou subconsciência, levei a bordo para ler nas horas vagas a biografia de uma morta, Clarice Lispector (essa nova, do genial título "Clarice," - Clarice-vírgula-sem-continuação), e uma edição compacta do Teatro Completo de Nelson Rodrigues, todo ele repleto de falecidas, natimortas, mórbidas, anjas negras e mulheres penadas.

(Afinal, por que é que a Morte, do modo como a mitificamos, é invariavelmente uma Mulher, hein? Não somos machistas?)

Chegando mais perto dos motivos e arabescos da viagem, ribombava também atrás dos olhos a parcela preponderante de passageiros: mulheres (e alguns homens) de meia ou alta idade unida(o)s pela paixão avassaladora por seu ídolo, Roberto Carlos.

Sabe aquele muxoxo meio de escárnio que as pessoas esboçam (eu próprio acalento esse preconceito, tenho de admitir) quando se fala num show do "Rei", pela presença maciça de senhorinhas e velhinhas? Pois no navio era isso promovido à décima terceira potência e acrescido do vasto repertório de trajes de gala empunhados por idosas, jovens senhoras e mocinhas (além de um e outro mancebo).

Na cereja do bolo, muitos tititis sobre saúde: cadeiras de roda, mal-estares, palpitações, artroses, esposas falecidas, paralisias, cirurgias, cânceres etc. Por esse ângulo quase me senti numa novela de Manoel Carlos (com a breve diferença de que o cruzeiro era divertido e não se passava dentro de um hospital).

Diante do pesadelo da Morte, fui forçado a reconhecer quão escandalizado eu tinha estado, o tempo todo, pela simples presença de tantas e tantas e tantas personagens rodrigueanas que desfilvam seus cabelos brancos, amarelos e acajus diante de mim. Aqui fora, é fácil a gente se segregar por critérios de faixa etária; lá dentro, a boate Lisbona era triste e solitário reduto onde se asilavam "jovens" assustadiços, daqueles que "não gostam" de velhos pelo prosaico fato de não saberem que serão iguais a eles depois de amanhã (nos meus indecisos 41 anos, me vejo na pinguela de não me adaptar nem ali, nem acolá, o que pode ser mais indigesto e causar mais pesadelo que comer bacon na ceia...).

Logo vi que o detonador imediato do sonho aparentemente ruim foi uma cena que tinha ficado admirando pouco antes de ir dormir, num parapeito do alto do pátio da piscina onde se aguardava a presença carnavalesca da Beija-Flor. Esquentando os tamborins, uma jovem negra cantava (bem) sambas de Zeca P., Clara N. e Beth C. E, no chão, uma única senhora idosa sambava, as costas levemente encurvadas, o vestido longo roxo (e discreto, e elegante, e bonito), uma bolsinha prateada pendendo numa das mãos. Dançava e rodava, nem aí pra saber se tinha ou não mais alguém sambando ao redor. Sambava do jeitinho dela, mas a dancinha dela era das coisas mais fofas que já vi nesta Vida.

Não sei se sei explicar, mas foi ela que me despertou do "país de maravilhas" em que eu, Alice C., estava vivendo até então no navio.

Mas, voltando à última madrugada. O sonho da Desgraçada acabou, e com ele também o sono. Rolei na cama até decidir, ora bolas, ir dar umas últimas voltas pelo navio. Como seria o navio às 3 horas da madrugada da noite de despedida?

Saí zonzo zanzando feito zumbi pelos muitos espaços do navio. Senti o vento frio da madrugada marítima paulista (engraçado, em alto mar não choveu uma vez sequer, por que será que chove tanto no túmulo-do-samba?). Escorreguei pelo chão pastoso do pátio da piscina, agora quase vazio. Me diverti com os bêbados e bêbadas que sassaricavam cambaleando rumo às últimas horas de sono nas cabines. Encontrei as passistas e os ritmistas da Beija-Flor reunidos em torno do rango tardio do restaurante Milano. Vi empenhados na limpeza alguns dos mesmos muitos filipinos que trabalham como camelos no casco da Concordia (aterrorizante como os navios negreiros continuam a existir e como os africanos embarcados têm, hoje em dia, olhos puxadinhos, senão feições indianas ou outras que tais). Ainda no Milano, senti a plenos pulmões o cheiro de pano de chão cujos resquícios me acompanharam a cada viçoso café da manhã.

A essa altura, quase zumbizei de vez e voltei para o quarto, mas então me perguntei: e o quinto andar, região do cassino e das boates, como estará a estas horas? Zarpei no primeiro elevador panorâmico que encontrei e fui conferir.

Vi a parafernália do show de RC sendo desmontada no teatro, o show já terminou... vamos voltar à realidade... Mas não é que, dos bares em diante, me encontrei no ambiente mais cheio de Vida de todo o navio?!

Casais zanzando daqui pra lá e de lá pra cá. Senhorinhas e senhoronas empetecadas vibrando suas notas de dólar à boca dos caça-níqueis. Gatos pingados "jovens" rebolando na Lisbona. Senhores empedernidos tilintando potes de pipoca cheios não de pipocas, mas de moedas. Velhinhas sorridentes, risonhas, hiperativas, sedentas de Vida (Vida, aliás, foi o que mais vi nesses dias todos, com a módica diferença de que era outro tipo de Vida, não a Vida sovina que acostumei a consumir nos rostos e corpos malhados de Giselle B., Ronaldo F., Ivete S., Ayrton S., Adriane G. etc. e tal). Luzes, cores, exageros. Máquinas fotográficas disparando flashs frenéticos.

Opa...

...Máquinas fotográficas disparando flashs frenéticos?... Sim.

É que, última coisa que eu esperava encontrar no meu giro insone, eis que me vejo frente a frente com Ele, Roberto Carlos, em carne e osso (e, pela primeira e única vez em toda a viagem, a pouquíssimos metros de distância).

Cercado de senhoras radiantes que balbuciavam "deixa eu falar com você, Roberto" e faiscavam olhares apaixonados, Ele apostava na roleta do cassino, de semblante bonachão, sereno, divertido e satisfeito. Tava na cara dEle o quanto Ele adora esses indescritíveis cruzeiros.

Então. Resumindo a epopeia, do sonho à realidade? Foi uma experiência imensa, ótima pra eu tentar me convencer de que, como dizem os sábios, a Morte só existe onde a gente não deixa a Vida entrar (o que pode acontecer... dentro... da gente... mesmo...). E pra eu parar de moleza e peitar a tarefa filipina de começar a quebrar alguns dos 4 mil preconceitos e tabus que continuam morando dentro de mim.

(Por falar em preconceito - essa coisinha estúpida que não existe -, não comentei aqui neste diário de bordo o show do grupo Calcinha Preta, até porque meio me desanimei com um clima de choque cultural entre eles e a moçada vivíssima da plateia. Mas sabe que seus forrós bisnetos de Luiz Gonzaga são pra lá de interessantes? Acho que o "Rei" sabe muito bem quem coloca nas suas redondezas.)

E foi mais ou menos isso. E esquece aquele papo do outro tópico, de que não havia lençóis macios no transatlântico de RC. Era engano, mentira, miragem, ou ilusão.

(P.S.: minha querida Madeleine L., eu infelizmente não consegui trazer aquilo que você me pediu... continuo envergonhado demais pra ter coragem de erguer as mãos e pedir uma rosa ao Comandante dos Nossos Corações pan-Brasileiros...)

domingo, fevereiro 07, 2010

e até os erros do meu português ruim...

E assistimos ao show (falarei mais sobre isso em situação e lugar mais apropriados), e então houve o surreal "karaokê do Rei", no mesmo teatro, er, "grego" que abrigara antes o espetáculo principal.

Por duas horas senhorinhas e senhorzinhos de sotaques vários desafinaram ao microfone, acompanhados pela banda de RC e animados pelo eterno Miéle. Ao meu lado, dona Zilka S. suava frio e torcia fervorosamente para não ser chamada, enquanto decorava num trêmulo caderninho de notas a letra de "Despedida" ("já está chegando a hora de ir... venho aqui me despedir e dizer..."). Não foi chamada.

O terceiro lugar foi conquistado pela jovem senhorinha Elke M., talvez nordestina, quem sabe mineira ou capixaba. No segundo lugar ficou um angolano, Luiz Inácio da S., que cantou "Detalhes" sem conseguir terminar a letra, tão emocionado estava.

A propósito, não houve frase mais repetida nesses dias que "são muitas emoções..." e suas variáveis. Você senta ao lado de dona Hebe C., e ela imediatamente olha pra você, abre o maior sorriso da eurásia, suspira fundo e manda: "Aaaaah... É muita emoção, né?...".

Voltando ao karaokê. Em primeiro lugar ficou Erasmo C., um jovem senhor de cabelos levemente grisalhos e feições orientais, segundo Miéle misto (quente) de japonês, alemão, italiano, austríaco etc. Cantou uma versão realmente abrasiva, verdadeiramente segura, de "Canzone per Te", uma das mais lindas canções jamais interpretada por RC.

Ah, só pra não dizer que não falei de canções: nesta madrugada, quando saí zanzando insone pelo convés, tocava pomposa nos alto-falantes a clássica "O Show Já Terminou", outra das mais belas criações musicais do cara. "O show já terminou... vamos voltar à realidade..." (uma vez Miriam Batucada fez uma lindíssima versão dessa, você já viu?". Agora há pouco, no café da manhá, RC deu um refresco. O que tocava nas caixinhas de som era "Romaria", com Elis R.

E, lógico, ele, Robert C., veio em pessoa fazer as premiações. Pois você acredita que depois de tudo o mestre-de-cerimônias ainda deu cancha e interpretou, pela enésima quinta vez, "Emoções" e "Como É Grande o Meu Amor por Você", para delírio dos embarcados?).

Então. RC, em mais uma aparição, distribuiu medalhas, abraços fartos e beijocas à morena senhorinha panamericana, ao negro africano de belíssimo português, ao japonês italiano de trovejante vozeirão. Eu não digo sempre que Roberto Carlos é o mais brasileiro de todos os brasileiros?, seja no céu, no mar, na terra ou num navio italiano de Las Vegas que respira "Canzone per Te"? É, ele é.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

o que foi que aconteceu com a música popular brasileira?

E então hoje 65 jornalistas brasileiros (mais uma moçambicana) subiram a bordo para a já tradicional entrevista coletiva de Roberto Carlos em ritmo de mar aberto.

O que ele falou você vai ver, ouvir e ler em todo canto, mas só umas poucas coisas que me chamaram atenção:

A jornalista Greta G. perguntou o que ele pensa sobre a MPB. E ele: "MPB pra mim é tudo que é popular e que é brasileiro. Acho que MPB não se restringe simplesmente... [pausa, hesitação ...Embora não seja muito visto assim, né?... Mas, na minha cabeça, MPB é tudo que é popular e que é brasileiro".

Pode parecer uma declaração meio pro vazio, sem conteúdo, mas vê bem. Algum grupo puxou pra si, só pra si, o rótulo todo, e não foi o grupo mais popular. E não é nessa turma que RC se vê.

Ele já tinha explicitado isso no início, quando o jornalista Michael J. (ou foi a Marilyn M.?) perguntou sobre a música sertaneja e os músicos sertanejos: "As nossas músicas se entendem. Porque elas são diretas ao povo". Populares. Brasileiras. Portanto.

E citou, da época dele, Alvarenga & Ranchinho, Tonico & Tinoco. E arrematou, gênio direto, musical, popular & brasileiro que é: "Certamente o cenário da música sertaneja era bastante diferente de hoje. Luiz Gonzaga, o Gonzagão, eras grande referência de músico sertanejo".

Luiz Gonzaga é o rei do baião. Roberto Carlos é o rei do iê-iê-iê. (E Chico Science é o rei do manguebit.)

E então o jornalista Elvis P. perguntou o que Roberto C. anda achando da economia brasileira. A plateia (sim, havia plateia) chiou, e Roberto C. gaguejou - mas respondeu:

"Com certeza Sou otimista, e confio no Brasil, e vejo que o Brasil tá numa situação que deixa a gente muito contente. Muitas coisas tão acontecendo, o Brasil lá fora tem tido uma importância e um respeito cada vez maior pelos estrangeiros. No meu entender de compositor e cantor, acho que a gente estamos... [pausa, risada envergonhada] 'A gente estamos' é besteira, né? [risos], a gente está numa situação boa. Com certeza a gente vai melhorar mais ainda, pelo otimismo que eu tenho".

De novo, a resposta parece prosaica, previsível. Mas, de novo, vê bem.

(p.s.: dia de celular sem serviço nos mares de Búzios e Angra, eu queria twittar o show logo mais, mas acho que não vai dar...)

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

eu te amo, meu brasil, eu te amo

Ontem, fui dormir quando o Exaltasamba exaltava a plateia à beira da piscina. Hoje, à tarde, o Exaltasamba cantava à beira da piscina. Como trabalham, esses rapazes!

Cantaram uma versão batuqueira de "Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar)", e poucas coisas teriam mais a ver com um cruzeiro temático sobre Roberto Carlos que uma homenagem samba-funk a... Tim Maia!

Hoje é a vez do Calcinha Preta, sensacional, e do Tom Cavalcanti -desse, eu estava sonolento, mas juro que ouvi o speaker do navio, Clint E., gritar: "Você não pode deixar de perder!". De fato, eu perdi. Mas que interessante esse séquito cearense ao redor de RC (Tom, Calcinha Preta).

Por falar no speaker, um microfone entra com tudo no quarto da gente, bem invasivo, anunciando as próximas atrações. Nos vários canais de TV, é onipresente o diretor de cruzeiro e repórter de bordo Naim José Ayub, Naim, não o Nahim, do "Melô do Tacka-Tacka), entrevistando fãs e sósias do "Rei".

Num dos meus delírios mareosos, juro que vi o Silvio Santos zanzando de calção acaju pelo convés.

Mas, não, esse cruzeiro é de outro rei da popularidade. E também à tarde, diante da praia de Copacabana, Arnold S., outro porta-voz em forma de alto-falante, celebrava aos berros o "nosso Cristo Redentor", a "nossa Copacabana", o "nosso Corcovado", o "nosso Roberto Carlos". Eu não vivo falando que RC é o brasileiro mais brasileiro de todos os brasileiros? mais brasileiro que banana, Copacabana e o Cristo. Pessoal aqui também acha.

E eu duvido que alguém esteja aqui sem ser fã contumaz de RC, mas confesso que a onipresença (não em carne e osso) dele volta e meia chega a oprimir um tico. Em todo canto - TV, convés, som ambiente de bares e restaurantes, até no gogó dos passageiros -, toca Roberto Carlos o tempo inteiro.

Prevalece o RC baladão, romântico, ronanticão, mas de vez em quando escapa um iê-iê-iê ou uma "Ana".

Só que não tem jeito: o verso que mais ouço, o tempo todo, no meu grilo falante interno e nas gargantas dos colegas, é "nos lençóis macios amantes se dão...". Ironicamente, na cabine é tão frio que não tem lençol, só edredon.

O show, no duro, "real",  é amanhã. A janelinha ex-vermelha do blog, por custo nenhum, consigo fazer funcionar aqui no celular - portanto, não consigo ver o que vocês estão falando daí. Daqui, só consigo mesmo ouvir "nosso Rei",e uma ou outra Dusty Springfield, via iPod.

E aqui dentro é uma multidão tão, tão, mas tão grande. Dá até medo.

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

lá nesse lugar o entardecer é lindo

Barra limpa, o porto de Santos.

O Costa Concordia é um navio italiano.

Os tripulantes falam com sotaque italiano, espanhol, português (do Brasil), português (de Portugal).

A comissária Christiane F., simpaticíssima, contou que até hoje não viu Roberto Carlos de perto. Só viu na chegada (no triciclo, será?), e num trechinho de show. "Não é permitido, mas eu sou brasileira, nós fomos dar uma espiada mesmo assim."

hoje tem show dele, ele está a bordo. Não é meu dia, meu dia é sexta. Eu vou mais é no show do Exaltasamba à beira da piscina. Chance única, não perco por nada.

E o sol começa a se pôr na baía. Será que só da água (saudades máximas de Belém) que a gente vê direito o pôr-do-sol?

terça-feira, fevereiro 02, 2010

entrei de gaiato no navio

Pois então. Soa mais ou menos surreal aos meus próprios ouvidos dizer isso, mas dentro de poucas horas estarei embarcando no navio Costa Concórdia, para participar pela primeiríssima vez de uma experiência que muitos conhecem como "Projeto Emoções em Alto Mar". É, o cruzeiro do Roberto Carlos, isso mesmo.

Entrarei de gaiato no navio, mas sob convite direto da Léa Penteado, que trabalha com RC em pessoa (além de ser autora de uma interessantíssima biografia do Flávio Cavalcanti - com quem também trabalhou -, até onde eu sei totalmente desaparecida do mercado editorial). O convite é honroso por si só, mas Léa me deixou feliz como pinto no lixo ao dizer que me chamava não como jornalista, mas como "robertólogo". Preciso falar mais nada, né?

Mas o diabo é que onde eu vou o jornalista vai junto... E então a comichão maior do momento é fazer um diário de bordo em formato de blog, twittar, inventar sei lá o que para descrever o (...aposto...) indescritível. Não é uma promessa juramentada, porque vai depender das condições telefônicas e internéticas do bonde do rolê, mas pode saber: só não vai acontecer algo por aqui (e por acolá) se os deuses da informática e da telefonia fizerem greve.

Então fui, quase fui.

(Mas, ah, não: e o Roberto Carlos, hein? Chegando de triciclo ao navio? E passando o dia devotado a Iemanjá embarcado em alto-mar? Hein?)

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

um mundo novo é possível?

Lula não foi a Davos. Mas o discurso (em agradecimento ao prêmio Estadista Global) que faria foi lido lá no fórum dos tubarões por seu (nosso) chanceler, Celso Amorim.

E, lendo agora o dito cujo, concluo que a crise hipertensiva do presidente foi uma crise de auto-sabotagem. Porque, em crise, não pôde ir. E,não tendo ido, tirou peso e simbolismo das palavras que foram lidas de todo modo. Se tivesse ido, esse discurso fenomenal, em sua boca, soaria bem mais significativo. E ainda mais supimpa.

Segue aí o discurso, só para adicionar a minha (nossa) cotinha minúscula na tarefa de sabotar a auto-sabotagem dele (nossa). Dá-lhe que dá:


“Minhas senhoras e meus senhores,

Em primeiro lugar, agradeço o prêmio “Estadista Global” que vocês estão me concedendo. Nos últimos meses, tenho recebido alguns dos prêmios e títulos mais importantes da minha vida. Com toda sinceridade, sei que não é exatamente a mim que estão premiando – mas ao Brasil e ao esforço do povo brasileiro. Isso me deixa ainda mais feliz e honrado. Recebo este prêmio, portanto, em nome do Brasil e do povo do meu país. Este prêmio nos alegra, mas, especialmente, nos alerta para a grande responsabilidade que temos.

Ele aumenta minha responsabilidade como governante, e a responsabilidade do meu país como ator cada vez mais ativo e presente no cenário mundial. Tenho visto, em várias publicações internacionais, que o Brasil está na moda. Permitam-me dizer que se trata de um termo simpático, porém inapropriado.

O modismo é coisa fugaz, passageira. E o Brasil quer e será ator permanente no cenário do novo mundo. O Brasil, porém, não quer ser um destaque novo em um mundo velho.
A voz brasileira quer proclamar, em alto e bom som, que é possível construir um mundo novo. O Brasil quer ajudar a construir este novo mundo, que todos nós sabemos, não apenas é possível, mas dramaticamente necessário, como ficou claro, na recente crise financeira internacional – mesmo para os que não gostam de mudanças.

Meus senhores e minhas senhoras,

O olhar do mundo hoje, para o Brasil, é muito diferente daquele, de sete anos atrás, quando estive pela primeira vez em Davos. Naquela época, sentíamos que o mundo nos olhava mais com dúvida do que esperança. O mundo temia pelo futuro do Brasil, porque não sabia o rumo exato que nosso país tomaria sob a liderança de um operário, sem diploma universitário, nascido politicamente no seio da esquerda sindical. Meu olhar para o mundo, na época, era o contrário do que o mundo tinha para o Brasil. Eu acreditava, que assim como o Brasil estava mudando, o mundo também pudesse mudar.

No meu discurso de 2003, eu disse, aqui em Davos, que o Brasil iria trabalhar para reduzir as disparidades econômicas e sociais, aprofundar a democracia política, garantir as liberdades públicas e promover, ativamente, os direitos humanos. Iria, ao mesmo tempo, lutar para acabar sua dependência das instituições internacionais de crédito e buscar uma inserção mais ativa e soberana na comunidade das nações. Frisei, entre outras coisas, a necessidade de construção de uma nova ordem econômica internacional, mais justa e democrática. E comentei que a construção desta nova ordem não seria apenas um ato de generosidade, mas, principalmente, uma atitude de inteligência política.

Ponderei ainda que a paz não era só um objetivo moral, mas um imperativo de racionalidade. E que não bastava apenas proclamar os valores do humanismo. Era necessário fazer com que eles prevalecessem, verdadeiramente, nas relações entre os países e os povos. Sete anos depois, eu posso olhar nos olhos de cada um de vocês – e, mais que isso, nos olhos do meu povo – e dizer que o Brasil, mesmo com todas as dificuldades, fez a sua parte. Fez o que prometeu. Neste período, 31 milhões de brasileiros entraram na classe média e 20 milhões saíram do estágio de pobreza absoluta. Pagamos toda nossa dívida externa e hoje, em lugar de sermos devedores, somos credores do FMI.

Nossas reservas internacionais pularam de 38 bilhões para cerca de 240 bilhões de dólares. Temos fronteiras com 10 países e não nos envolvemos em um só conflito com nossos vizinhos. Diminuímos, consideravelmente, as agressões ao meio ambiente. Temos e estamos consolidando uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, e estamos caminhando para nos tornar a quinta economia mundial. Posso dizer, com humildade e realismo, que ainda precisamos avançar muito. Mas ninguém pode negar que o Brasil melhorou.

O fato é que Brasil não apenas venceu o desafio de crescer economicamente e incluir socialmente, como provou, aos céticos, que a melhor política de desenvolvimento é o combate à pobreza. Historicamente, quase todos governantes brasileiros governaram apenas para um terço da população. Para eles, o resto era peso, estorvo, carga. Falavam em arrumar a casa. Mas como é possível arrumar um país deixando dois terços de sua população fora dos benefícios do progresso e da civilização?

Alguma casa fica de pé, se o pai e a mãe relegam ao abandono os filhos mais fracos, e concentram toda atenção nos filhos mais fortes e mais bem aquinhoados pela sorte? É claro que não. Uma casa assim será uma casa frágil, dividida pelo ressentimento e pela insegurança, onde os irmãos se vêem como inimigos e não como membros da mesma família. Nós concluímos o contrário: que só havia sentido em governar, se fosse governar para todos. E mostramos que aquilo que, tradicionalmente, era considerado estorvo, era, na verdade, força, reserva, energia para crescer.

Incorporar os mais fracos e os mais necessitados à economia e às políticas públicas não era apenas algo moralmente correto. Era, também, politicamente indispensável e economicamente acertado. Porque só arrumam a casa, o pai e a mãe que olham para todos, não deixam que os mais fortes esbulhem os mais fracos, nem aceitam que os mais fracos conformem-se com a submissão e com a injustiça. Uma casa só é forte quando é de todos – e nela todos encontram abrigo, oportunidades e esperanças.

Por isso, apostamos na ampliação do mercado interno e no aproveitamento de todas as nossas potencialidades. Hoje, há mais Brasil para mais brasileiros. Com isso, fortalecemos a economia, ampliamos a qualidade de vida do nosso povo, reforçamos a democracia, aumentamos nossa auto-estima e amplificamos nossa voz no mundo.

Minhas senhoras e meus senhores,

O que aconteceu com o mundo nos últimos sete anos? Podemos dizer que o mundo, igual ao Brasil, também melhorou? Não faço esta pergunta com soberba. Nem para provocar comparações vantajosas em favor do Brasil. Faço esta pergunta com humildade, como cidadão do mundo, que tem sua parcela de responsabilidade no que sucedeu – e no que possa vir a suceder com a humanidade e com o nosso planeta. Pergunto: podemos dizer que, nos últimos sete anos, o mundo caminhou no rumo da diminuição das desigualdades, das guerras, dos conflitos, das tragédias e da pobreza?

Podemos dizer que caminhou, mais vigorosamente, em direção a um modelo de respeito ao ser humano e ao meio ambiente? Podemos dizer que interrompeu a marcha da insensatez, que tantas vezes parece nos encaminhar para o abismo social, para o abismo ambiental, para o abismo político e para o abismo moral? Posso imaginar a resposta sincera que sai do coração de cada um de vocês, porque sinto a mesma perplexidade e a mesma frustração com o mundo em que vivemos. E nós todos, sem exceção, temos uma parcela de responsabilidade nisso tudo.

Nos últimos anos, continuamos sacudidos por guerras absurdas. Continuamos destruindo o meio-ambiente. Continuamos assistindo, com compaixão hipócrita, a miséria e a morte assumirem proporções dantescas na África. Continuamos vendo, passivamente, aumentar os campos de refugiados pelo mundo afora. E vimos, com susto e medo, mas sem que a lição tenha sido corretamente aprendida, para onde a especulação financeira pode nos levar.

Sim, porque continuam muitos dos terríveis efeitos da crise financeira internacional, e não vemos nenhum sinal, mais concreto, de que esta crise tenha servido para que repensássemos a ordem econômica mundial, seus métodos, sua pobre ética e seus processos anacrônicos.

Pergunto: quantas crises serão necessárias para mudarmos de atitude? Quantas hecatombes financeiras teremos condições de suportar até que decidamos fazer o óbvio e o mais correto? Quantos graus de aquecimento global, quanto degelo, quanto desmatamento e desequilíbrios ecológicos serão necessários para que tomemos a firme decisão de salvar o planeta?
Meus senhores e minhas senhoras,

Vendo os efeitos pavorosos da tragédia do Haiti, também pergunto: quantos Haitis serão necessários para que deixemos de buscar remédios tardios e soluções improvisadas, ao calor do remorso? Todos nós sabemos que a tragédia do Haiti foi causada por dois tipos de terremotos: o que sacudiu Porto Príncipe, no início deste mês, com a força de 30 bombas atômicas, e o outro, lento e silencioso, que vem corroendo suas entranhas há alguns séculos.

Para este outro terremoto, o mundo fechou os olhos e os ouvidos. Como continua de olhos e ouvidos fechados para o terremoto silencioso que destrói comunidades inteiras na África, na Ásia, na Europa Oriental e nos países mais pobres das Américas. Será necessário que o terremoto social traga seu epicentro para as grandes metrópoles européias e norte-americanas para que possamos tomar soluções mais definitivas?

Um antigo presidente brasileiro dizia, do alto de sua aristocrática arrogância, que a questão social era uma questão de polícia. Será que não é isso que, de forma sutil e sofisticada, muitos países ricos dizem até hoje, quando perseguem, reprimem e discriminam os imigrantes, quando insistem num jogo em que tantos perdem e só poucos ganham? Por que não fazermos um jogo em que todos possam ganhar, mesmo que em quantidades diversas, mas que ninguém perca no essencial?

O que existe de impossível nisso? Por que não caminharmos nessa direção, de forma consciente e deliberada e não empurrados por crises, por guerras e por tragédias? Será que a humanidade só pode aprender pelo caminho do sofrimento e do rugir de forças descontroladas? Outro mundo e outro caminho são possíveis. Basta que queiramos. E precisamos fazer isso enquanto é tempo.

Meus senhores e minhas senhoras,

Gostaria de repetir que a melhor política de desenvolvimento é o combate à pobreza. Esta também é uma das melhores receitas para a paz. E aprendemos, no ano passado, que é também um poderoso escudo contra crise. Esta lição que o Brasil aprendeu, vale para qualquer parte do mundo, rica ou pobre. Isso significa ampliar oportunidades, aumentar a produtividade, ampliar mercado e fortalecer a economia. Isso significa mudar as mentalidades e as relações. Isso significa criar fábricas de emprego e de cidadania.

Só fomos bem sucedidos nessas tarefas porque recuperamos o papel do Estado como indutor do desenvolvimento e não nos deixamos aprisionar em armadilhas teóricas – ou políticas – equivocadas sobre o verdadeiro papel do estado. Nos últimos sete anos, o Brasil criou quase 12 milhões de empregos formais. Em 2009, quando a maioria dos países viu diminuir os postos de trabalhos, tivemos um saldo positivo de cerca de um milhão de novos empregos.

O Brasil foi um dos últimos países a entrar na crise e um dos primeiros a sair. Por que? Porque tínhamos reorganizado a economia com fundamentos sólidos, com base no crescimento, na estabilidade, na produtividade, num sistema financeiro saudável, no acesso ao crédito e na inclusão social. E quando os efeitos da crise começaram a nos alcançar, reforçamos, sem titubear, os fundamentos do nosso modelo e demos ênfase à ampliação do crédito, à redução de impostos e ao estímulo do consumo.

Na crise ficou provado, mais uma vez, que são os pequenos que estão construindo a economia de gigante do Brasil. Este talvez seja o principal motivo do sucesso do Brasil: acreditar e apoiar o povo, os mais fracos e os pequenos. Na verdade, não estamos inventando a roda. Foi com esta força motriz que Roosevelt recuperou a economia americana depois da grande crise de 1929. E foi com ela que o Brasil venceu preventivamente a última crise internacional.

Mas, nos últimos sete anos, nunca agimos de forma improvisada. A gente sabia para onde queria caminhar. Organizamos a economia sem bravatas e sem sustos, mas com um foco muito claro: crescer com estabilidade e com inclusão. Implantamos o maior programa de transferência de renda do mundo, o Bolsa Família, que hoje beneficia mais de 12 milhões de famílias. E lançamos, ao mesmo tempo, o Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, maior conjunto de obras simultâneas nas áreas de infra-estrutura e logística da história do país, no qual já foram investidos 213 bilhões de dólares e que alcançará, no final do ano de 2010, um montante de 343 bilhões.

Volto ao ponto central: estivemos sempre atentos às politicas macro-econômicas, mas jamais nos limitamos às grandes linhas. Tivemos a obsessão de destravar a máquina da economia, sempre olhando para os mais necessitados, aumentando o poder de compra e o acesso ao crédito da maioria dos brasileiros. Criamos, por exemplo, grandes programas de infra-estrutura social voltados exclusivamente para as camadas mais pobres. É o caso do programa Luz para Todos, que levou energia elétrica, no campo, para 12 milhões de pessoas e se mostrou um grande propulsor de bem estar e um forte ativador da economia.

Por exemplo: para levar energia elétrica a 2 milhões e 200 mil residências rurais, utilizamos 906 mil quilômetros de cabo, o suficiente para dar 21 voltas em torno do planeta Terra. Em contrapartida, estas famílias que passaram a ter energia elétrica em suas casas, compraram 1,5 milhão de televisores, 1,4 milhão de geladeiras e quantidades enormes de outros equipamentos.

As diversas linhas de microcrédito que criamos, seja para a produção, seja para o consumo, tiveram igualmente grande efeito multiplicador. E ensinaram aos capitalistas brasileiros que não existe capitalismo sem crédito. Para que vocês tenham uma idéia, apenas com a modalidade de “crédito consignado”, que tem como garantia o contracheque dos trabalhadores e aposentados, chegamos a fazer girar na economia mais 100 bilhões de reais por mês. As pessoas tomam empréstimos de 50 dólares, 80 dólares para comprar roupas, material escolar, etc, e isto ajuda ativar profundamente a economia.

Minhas senhoras e meus senhores,

Os desafios enfrentados, agora, pelo mundo são muito maiores do que os enfrentados pelo Brasil. Com mudanças de prioridades e rearranjos de modelos, o governo brasileiro está conseguindo impor um novo ritmo de desenvolvimento ao nosso país. O mundo, porém, necessita de mudanças mais profundas e mais complexas. E elas ficarão ainda mais difíceis quanto mais tempo deixarmos passar e quanto mais oportunidades jogarmos fora. O encontro do clima, em Copenhague, é um exemplo disso. Ali a humanidade perdeu uma grande oportunidade de avançar, com rapidez, em defesa do meio-ambiente.

Por isso cobramos que cheguemos com o espírito desarmado, no próximo encontro, no México, e que encontremos saídas concretas para o grave problema do aquecimento global. A crise financeira também mostrou que é preciso uma mudança profunda na ordem econômica, que privilegie a produção e não a especulação. Um modelo, como todos sabem, onde o sistema financeiro esteja a serviço do setor produtivo e onde haja regulações claras para evitar riscos absurdos e excessivos.

Mas tudo isso são sintomas de uma crise mais profunda, e da necessidade de o mundo encontrar um novo caminho, livre dos velhos modelos e das velhas ideologias. É hora de re-inventarmos o mundo e suas instituições. Por que ficarmos atrelados a modelos gestados em tempos e realidades tão diversas das que vivemos? O mundo tem que recuperar sua capacidade de criar e de sonhar. Não podemos retardar soluções que apontam para uma melhor governança mundial, onde governos e nações trabalhem em favor de toda a humanidade.

Precisamos de um novo papel para os governos. E digo que, paradoxalmente, este novo papel é o mais antigo deles: é a recuperação do papel de governar. Nós fomos eleitos para governar e temos que governar. Mas temos que governar com criatividade e justiça. E fazer isso já, antes que seja tarde. Não sou apocalíptico, nem estou anunciando o fim do mundo. Estou lançando um brado de otimismo. E dizendo que, mais que nunca, temos nossos destinos em nossas mãos. E toda vez que mãos humanas misturam sonho, criatividade, amor, coragem e justiça elas conseguem realizar a tarefa divina de construir um novo mundo e uma nova humanidade.

Muito obrigado.”