sábado, outubro 30, 2010

para pedro pedro para (pra pensar)

Há um texto que estava guardado e represado aqui dentro fazia tempo - talvez uma vida inteira. Ontem, 29 de outubro de 2010, ele saiu daqui de dentro, e hoje, 30 de outubro de 2010, foi publicado, eba.

Saiu daqui de dentro instigado pela Carol Patrocínio (@carolpatrocinio) e pelo pessoal do incrível blog-site Per Raps (@per_raps). O Per Raps trata (principalmente) de rap, mas esta semana eles dedicaram inteira a escrever sobre política e eleições presidenciais, e me pediram um texto sobre esse assunto, eba.

Carol surgiu com a proposta de que eu escrevesse, livremente, algo sobre as relações entre a política e o dia-a-dia de todos nós, sobre como as escolhas políticas refletem quem a gente é no cotidiano, e vice-versa. Antes mesmo de começar, fiquei pensando: tenho 16 anos de profissão como jornalista e até hoje nunca, nunca, nunca um editor de jornal ou revista ou quem quer que seja jamais havia me pedido um texto sequer parecido com isso. E quem me pediu foi, olha só, um pessoal ligado ao rap, ao hip-hop, eba.

Por essas e por outras, eu não consigo vislumbrar uma véspera de eleição mais feliz para mim que isso. E então, pronto, o que saiu foi este texto (extremamente pessoal) que estava escondido e guardado desde sempre. Ah, e ainda ganhei o novo apelido de "Pedro Alex Sanches", eba!

Enfim, vai ele aí. O lugar mais exato e justo para lê-lo é o Per Raps, mas também não dava para eu não querer deixar registrado e guardado para sempre aqui no meu próprio blog - que, por essas e por outras, tem voltado a ficar movimentado ultimamente, eba.


(Meu muito obrigado ao pessoal do Per Raps!)

Política e educação: conceitos complementares

por Pedro Alex Sanches

Meu pai nasceu numa família pobre, à beira do rio Uruguai, na zona rural de Santa Catarina. Mais tarde, conseguiu estudar se formar em ciências contábeis. Minha mãe, nascida no interior do Rio Grande do Sul, teve menos sorte (se é que se pode chamar de “sorte” a abissal diferença de condições que a sociedade dá a homens e mulheres): foi criada num orfanato de freiras que deixavam suas alunas passarem fome e as torturavam psicologicamente, e só conseguiu estudar até a quarta série.

O casal se radicou em Maringá, interior do Paraná, onde nascemos os três filhos. Meu pai virou dono de casa lotérica, seguindo o exemplo do pai dele, e pôde sustentar a família com tranquilidade. Sempre incutiu conceitos rígidos de honestidade nos filhos, mas depois de adulto eu, o caçula, não pude deixar de pensar inúmeras vezes que recebi alimento e conforto às custas da exploração do sistema lotérico mantido pelo regime militar (meu pai, embora nunca tenha sido um homem violento, era adepto entusiasmado da ditadura civil-militar brasileira). O público preferencial das casas lotéricas, nem preciso dizer, era a parte mais pobre da população, aquela que só conseguia vislumbrar chance de melhorar na vida ganhando fortunas na loto ou na mega-sena.

A vida inteira estudei em escolas públicas. Do primeiro ano primário até a idade de entrar na faculdade, estudei no Instituto Estadual de Educação de Maringá. Depois, me formei em farmácia-bioquímica pela Universidade Estadual de Maringá e, depois, em jornalismo pela Universidade de São Paulo.

A rigor, minha formação foi paga pelos governos dos estados do Paraná e de São Paulo, mais complementos bancados pelo meu pai (uniformes, material escolar, livros, xerox, aluguel de quitinete paulistana). Mas acho que posso afirmar, simbolicamente, que fui subsidiado pelos generais da ditadura, depois pelos presidentes José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e, no último ano do curso de jornalismo, Fernando Henrique Cardoso.

Estou dizendo, em outras palavras, que ganhei desses governantes a minha cota de “bolsa esmola” – que é como a playboyzada mais ignorante e socialmente insensível costuma se referir ao Bolsa-Família de Lula, que pede a permanência das crianças na escola em troca de uma ajuda de custo mensal. Vejo que hoje as escolas estão povoadas por crianças muito mais pobres do que eu fui, e isso me dá um arrepio de alegria.

Dizem que o ensino público brasileiro é fraco, e concordo em parte. Tive que complementar minha formação por aí, muitas vezes por conta própria, e muitas deficiências carrego até hoje. Nem mesmo na conceituada, cobiçada e elitizada USP, por exemplo, jamais tive aulas de cidadania, racismo, misoginia, homofobia, direitos humanos, direitos civis…

Mesmo assim, minha formação foi suficiente para eu conseguir emprego na Folha de São Paulo, antes mesmo de me formar jornalista (nossa “grande” mídia sempre criticou a falta de diploma do presidente Lula, mas em geral nunca exigiu diploma de seus funcionários, como não exige os diplomas dos vários cursos e cargos não-concluídos de seu atual candidato a presidente, José Serra).

No meu caso, ir para a Folha significou que indiretamente continuei a ser financiado pelos governos (tucanos) do estado e do país. É o que acontece até hoje com quem trabalha em veículos como Folha, Veja, O Estado de São Paulo e amplos setores da Rede Globo, todos atualmente divididos entre a “bolsa-esmola” das polpudas publicidades do governo petista de Lula (que combateram raivosamente durante oito anos) e dos governos tucanos de São Paulo (aos quais são amplamente subservientes, a ponto de parecerem seus sócios, ou no mínimo empregados regiamente remunerados).

No balanço disso tudo aí fui sempre, não sei bem por quê (ou será que sei?), um fã ferrenho dos partidos políticos de esquerda, especialmente o PT. Em 1989, quando eu tinha 21 anos, o Brasil promoveu sua primeira eleição direta para presidente após 29 anos sob a tirania de ditadores e semiditadores. Nesse intervalo, os militares de extrema-direita prenderam, expulsaram do país, torturaram e assassinaram milhares de cidadãos e cidadãs (inclusive a atual candidata petista a presidente, Dilma Rousseff, que dessas coisas todas “só” não foi exilada nem assassinada).

Vivi do nascimento à maioridade sob esse clima irrespirável, altamente repressivo, mas a maioria avassaladora dessas notícias não chegava a Maringá, nem eu tinha o hábito de ler jornais. Mesmo assim, alguma coisa inexplicável (ou será que explicável?) sempre me puxou para votar à esquerda, e desde então tenho votado em Luiz Inácio Lula da Silva – em 1989, 1994, 1998, 2002 e 2006. Em 3 de outubro votei pela primeira vez num candidato que não é Lula, e repetirei o mesmo voto amanhã: vou votar em Dilma Rousseff, é óbvio. A propósito, festejo esse privilégio de que usufruo desde os 21 anos: que bom poder votar!!!

Pois bem, assim fui seguindo e sigo a vida, sempre com dificuldade de ligar todos os pontos que a constituem, muitas vezes sem conseguir muito explicar os porquês das minhas opções, dos meus erros, das causas que me movem à luta. Depois de dez anos na Folha e quatro na revista CartaCapital (que foi minha pós-graduação informal em jornalismo, como costumo dizer), resolvi tentar viver como jornalista autônomo, sem vínculo empregatício direto com nenhuma empresa jornalística – tenho me virado legal, mas a real é que há quase dois anos vivo em regime de subemprego (sem férias remuneradas, décimo-terceiro, aquelas coisas), por ironia num tempo em que o governo Lula cria 200 mil novos empregos por mês.

Como disse, é difícil juntar os pontos dos significados de tantos dados espalhados, mas eu cheguei perto de algum entendimento maior quando fui ler Lula – O Filho do Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2002), da jornalista e doutora em ciências humanas Denise Paraná (esse livro, bem acadêmico, originou o filme de mesmo nome, embora um pouco tenha a ver com o outro). Alguns trechos ali me impressionaram profundamente, em especial os que interpretavam como a condição de operário de Lula ajudou a moldá-lo do modo como o conhecemos hoje. Peço licença para copiar alguns deles aqui:

“Lula e Frei Chico (...) contam também por que aspiravam a trabalhar em empresas multinacionais: eram elas que ofereciam os mais altos salários e – aqui aparece novamente a questão da auto-estima – participar de seu quadro de funcionários era um orgulho não só pessoal como também familiar”;

“(…) pertencer ao quadro de funcionários de uma grande empresa, uma indústria que encarnasse progresso e pujança econômica, era para o trabalhador um símbolo de que ele também passava a encarnar tais qualidades, representando a figura do vencedor dentro da mais genuína lógica capitalista”;

“Ao mesmo tempo em que reconhece a existência de salários privilegiados em relação à média do mercado, Sader aponta para o alto grau de controle disciplinar, para os sistemas repressivos e o tratamento despótico dispensado aos trabalhadores pelos empresários das grandes indústrias automobilísticas que tendiam a criar um clima de tensão e competição entre os trabalhadores, minando os movimentos de solidariedade e possíveis formas de organização”;

“(…) o grande sonho dos operários era assumir uma função bem remunerada e valorizada socialmente no interior das grandes empresas; assim, o caminho para a melhoria de vida e a ascensão social fazia-se através de um percurso individualista. A famosa e tão repetida expressão popular ‘vencer na vida’ traduzia-se aqui em tornar-se finalista numa corrida individual por melhor emprego, isto é, melhor condição de vida, deixando os colegas para trás”
.

Imagino que o jornalismo possa parecer a você uma profissão legal, privilegiada, bem-remunerada (nem tanto, viu?, nem tanto…), glamurosa (no meu caso, fui ser jornalista musical, o legal dentro do legal). É meio assim mesmo, não nego, mas, nossa!, como eu me identifiquei com as palavras acima quando as li. Parecia que Denise Paraná estava descrevendo a minha vida profissional

Foi só a partir dessa leitura (ou seja, há pouco mais de um ano) que comecei a entender um pouco melhor a minha posição de operário dentro da grande fábrica de notícias (e ficções nada científicas) que é a nossa “grande” mídia. Certo, não lido com tijolo e cimento, e sim com tinta e papel, ou melhor, neurônios, dedos e computador. Mas, meu amigo, minha amiga, se eu fosse falar o quanto conheço, de dentro de ambientes supostamente “educados”, sobre maus tratos, assédio moral, homofobia, bullying (aliás, essas são outras “matérias” que jamais aprendi em escola nenhuma, e você?)...

Até de racismo conheço um pouco, apesar de ser branco como papel – meu, se você soubesse quanto é difícil emplacar reportagens sobre rap nacional na “grande” imprensa brasileira…

Estou querendo dizer que, à parte a atmosfera “civilizada” e o tal glamour, a vida de um jornalista assalariado guarda elementos hereditários, eu diria, de servidão, humilhação e escravidão, tanto quanto inúmertas outras profissões – ator de TV, cantora, operário, empregada doméstica, trabalhador de construção, babá de filhotes riquinhos, porteiro, diarista, catador de papel, taxista, secretária-executiva, bancário, professora de escola pública (ou particular), segurança, policial…

Foi aí que deu o clique, que me veio a explicação lógica para eu ter votado tantas vezes em Lula e já ansiar, um ano atrás, pela hora de votar em Dilma. Mesmo sem carteirinha de sindicato ou ficha de filiação partidária, eu saí da barra da saia do meu pai em 1991 para virar um operário, um integrante do partido dos trabalhadores (uso em minúsculas, porque até no PSDB e no DEM existem trabalhadores), pô!

Ainda não tenho certeza se a minha vida em particular melhorou ou piorou nos últimos oito anos (ah, quer saber?, acho que melhorou, sim, à beça!). Mas, concluído mais este ciclo, tenho uma certeza: sou muito, muito, muito orgulhoso dos votos que emprestei a Lula, esse meu irmão.

Nesses anos todos, enquanto pelejava para cá e para lá com meus tijolos de palavras, vi muita coisa acontecer. O pré-sal e o respeito à estatal Petrobras começaram a enriquecer o Brasil como um todo, e há leis garantindo que seus lucros não sejam entregues aos Estados Unidos a preço de espelhinhos e miçangas. O Brasil, antes desprezado e humilhado na chamada comunidade internacional, goza de um respeito externo que jamais havia possuído – não era à toa, pois até pouco mais de um século atrás éramos um país oficialmente escravocrata, e só há 26 anos encerramos uma ditadura sangrenta bancada pelos supostamente “cultos” Estados Unidos. Mas qualquer hora dessas vão dizer que não somos mais um país “subdesenvolvido”, quer apostar?

Este Brasil hoje goza de respeito e admiração internacional porque tem Lula, que lidera a decisão de não baixar mais a cabeça para os países “ricos”, mas também respeita os países da África, o Haiti, Cuba, o Irã (e não só regimes tirânicos “amigos” dos EUA, como Israel, Itália – e os próprios EUA). Respeita para ser respeitado, em resumo.

Nesses oito anos, o Bolsa-Família (e não “bolsa-esmola”, como diz quem teve estudo e parece não tê-lo aproveitado para maiores aprendizados) começou a democratizar o ensino. O ProUni tem levado às universidades uma população crescente de estudantes mais pobres, para tomar posse das vagas que deviam ser deles desde sempre, mas eram quase sempre ocupadas por garotos como eu e por garotos muito mais ricos que eu. Universidades novas têm sido construídas, inclusive em regiões como o Nordeste, e não só no universo-umbigo chamado São Paulo e vizinhanças. As cotas raciais vêm sendo implantadas (a USP, gerida por governos tucanos, até agora não o fez, olha que curioso).

Assim como o Brasil cresce aos olhos do mundo, aqui empregadas domésticas, porteiros e pedreiros têm comprado carros, viajado de avião e frequentado universidades, e existe muita madame e muito marmanjo incomodados com a “inesperada” dificuldade de contratar serviçais. O fato de seus cidadãos menos favorecidos se desenvolverem aqui dentro é o que faz o Brasil crescer lá fora (e passar incólume de crises financeiras ditas “mundiais”), muito mais que o contrário. A autoestima precisa sempre vir antes da estima dos outros, senão nunca vem. Os mais ignorantes e estúpidos entre nossos patrões e patroas ficam enlouquecidos quando intuem essa profunda transformação – eles gostam mesmo é de escravidão, sem nem perceberem que também são escravos, ainda que forrados de ouro e papel-moeda.

Enquanto o Brasil atravessava essas mudanças, aqui em São Paulo o então governador Serra e seus asseclas deixavam gente sem nenhuma perspectiva de futuro estufar a cracolândia no centro da cidade – segundo línguas más e sordidamente mudas, para desvalorizar o mercado imobiliário daquela região e preparar o “futuro” (futuro de quem, caras-pálidas?) para a edificação de um pomposo centro empresarial, ou coisa que o valha. Como que perdido no tempo, o então governador Serra tratava policiais e professores do ensino público à base de cassetete e gás lacrimogênio, como se ainda estivéssemos em plena ditadura militar. Como muita gente já sabe, o modo mais eficaz de manter escrava uma população é negar-lhe condições de educação e emprego pleno. Bingo (ou eu devia dizer loto, sena, jogo do bicho?).

Há muita coisa acontecendo no Brasil, mas a grande revolução que Lula tem promovido acontece nesse binômio, emprego-e-educação. E, curiosamente, a “grande” mídia que sustenta minha sobrevivência simplesmente ODEIA tocar nesse assunto. Em pleno processo eleitoral, prefere falar (sempre preconceituosamente) sobre religião, aborto, casamento homossexual, bolinha de papel, “terrorismo” da candidata que foi torturada pela ditadura sustentada por ela, mídia, com mão de ferro.

E cá estou eu, ligando pontinhos, tentando somar essas coisas todas. Por falar em somar, escrevi e publiquei um livro chamado Como Dois e Dois São Cinco (Boitempo, 2004), sobre Roberto Carlos, o cantor mais popular da história do Brasil – olha só, até livros o meu “bolsa-esmola” me permitiu escrever.

A conclusão à que chego é que às vezes parece até que nem sei em quem voto ou por que voto nessa e naquele. Mas, olha, acho que eu sei, sim. Sei com quem me identifico. Sei que carrego sentimentos de culpa, mas também de injustiça, que me causam raiva, por mim mesmo e por outros muitos irmãos (neste ponto, posso chamá-lo de irmão, ou irmã?).

Sei que busco minha felicidade individual nesta vida, mas sei também que só sou feliz quando estou interagindo com um monte de gente, e que quanto mais gente feliz existe ao meu redor (ou mesmo longe de mim), maior é a minha probabilidade de ser mais feliz. Dito tudo isso, você já sabe qual é o apelido que vou dar à minha felicidade na urna amanhã. Temos uma noite inteira pela frente, pensa bastante aí que nome você quer dar à sua felicidade.

sexta-feira, outubro 29, 2010

um homem deste tamanho com tanto medo da Dilma???

Tensão pré-eleitoral é fogo, e pelo que sei ainda não se inventaram remédios eficazes para combatê-la.

Ou será que inventaram?

Tenho usado um remedinho aqui para a minha TPE (pensa que homem também não tem, é?!). E sabe que está ajudando imensamente, pelo menos para aliviar os sintomas externos?

Estou me referindo à coisa mais genial que apareceu nos meios culturais, em relação aos últimos dias da campanha. É o samba de partido alto "Bolinha de Papel, você sabe do que estou falando, não sabe?



Faço questão de, além de ouvir, transcrever a deliciosa letra (destaque total para as duas últimas estrofes, sutis em não mencionar explicitamente aquilo que não deve ser nomeado):

Deixa de ser enganador
Pois bolinha de papel
Não fere nem causa dor

Um homem forte
De tamanho natural
Como pode uma bolinha lhe mandar pro hospital?

O factoide
Ao perceber que perdeu
Entra logo em desespero
Foi o que aconteceu

Cara-de-pau
Sempre existiu por aí
Uma bola de papel
Lhe mandar pro CTI

Me engana
Já diz a rapaziada
Foi sentir 20 minutos
Após levar a bolada

É bom que saibam
Que não estamos em guerra
Que em 31 de outubro esta história se encerra

Pra aparecer
Pede que a turma te filma
Um homem deste tamanho
Com tanto medo da Dilma

Ah, e no final do clipe ainda vem o texto-manifesto curto e direto, assinado por Martinho da Vila, Wilson Moreira, Monarco, Nelson Sargento, Delcio Carvalho, Gisa Nogueira, Noca da Portela, Tantinho da Mangueira, Moacyr Luz, Paulão Sete Cordas, Ze da Velha, Silvério Pontes, Cláudio Jorge e Wanderley Monteiro. É mole ou quer mais? O tempo passa, os anos voam, o Bamerindus muda de nome, mas o samba continua sendo um dos maiores orgulhos deste Brasilzão.

(P.S.: este texto foi publicado ao som de "Tudo Bem (Big Ben)", nova do Bebeto, gênio do samba-rock, brasileiríssimo: "Mas tudo bem/ ah, tudo bem/ eles não têm Jorge Ben/ o deles é big/ o nosso é Jorge/ mas tá tudo bem/ estamos bem." Manhã feliz!)

quinta-feira, outubro 28, 2010

...e se você fecha o olho a MENINA ainda dança

Tudo começou porque dei vazão, no Twitter, a uma fofoca que ouvi semanas atrás (e que não tenho a menor ideia se tem algum fundo de verdade). Ouvi dizer que Dilma Rousseff, eleita, pararia de tingir os cabelos e os deixaria naturalmente grisalhos. Além de ser a primeira presidente brasileira, passaria também uma presidenta grisalha.

Eu acho o máximo, e externei isso via @pdralex.

Para quê. Criou-se uma pequena celeuma lá, com uma maioria de manifestações de que mulher "não pode" deixar de cabelos sem tintura (ao contrário dos homens, que não só podem como são elogiados por serem grisalhos). Logo entrou também o tema da depilação feminina, em registro parecido: basta alguém tocar nesse assunto que, invariavelmente, um monte de gente grita de imediato, indignada pelo temor (fobia, eu diria) de sequer imaginar uma dama de sovacos cabeludos.

Defendi lá no Twitter, e sigo defendendo aqui, que tratam-se de manifestações arraigadamente misóginas. Se o ódio à mulher é moeda corrente, que dirá o ódio à mulher grisalha, o ódio à mulher cabeluda. A geral, composta indistintamente por homens e por mulheres, repete os mesmos clichês de sempre ("não pode!", "que nojo!"), sem nem pensar sobre o assunto, sem refletir minimamente no quanto de regra, norma, prisão, discriminação, tortura psicológica e misoginia há nessas simples e amplamente obedecidas proposições.

Diz o senso comum: mulher TEM QUE tingir os cabelos. Homem NÃO PODE usar esmalte nas unhas nem batom nos lábios. Mulher que não depila pernas e axilas é NOJENTA. Homem de saia é ASQUEROSO (além de frouxo e bicha, obviamente). Mulher É OBRIGADA a furar as orelhas (não sei por quê, isso me faz pensar em cachorros com os rabos amputados, por razões "estéticas") para "poder" vesti-las de brincos, argolas e miçangas que tais.

(Em geral não aprecio escrever em MAIÚSCULAS, mas fiz isso agora para ACENTUAR o caráter AUTORITÁRIO e DITATORIAL de tais proposições - ou de ORDENS, prefiro afirmar.)

(Outra coisa que não aprecio fazer, e da qual fugi durante toda a campanha eleitoral, é ficar me detendo às roupas e aos cabelos da candidata Dilma - me parece um modo misógino de tergiversar, de deixar sem discussão as ideias e os pensamentos daquela mulher, de qualquer mulher, algo que nunca se faz com o candidato homem. Hoje baixei a guarda, pelos motivos especiais que você há de entender.)

Pois bem, Dilma Rousseff vem aí, e toco aqui nesses tabus por considerá-los questões quentes e candentes do momento, assim como aborto, casamento gay e toda essa série de temas comportamentais que a campanha presidencial de 2010 tem trazido à tona - de modo bestial, mas paradoxalmente também benéfico, palpito. E se a presidenta Dilma ficar grisalha, quem aí vai fazer mimimi e trololó? O monstro de mil caras da misoginia vai arreganhar também esses dentes, se ela o fizer?

Mas então, volto a tocar no tabu por isso, mas também por uma outra razão, mais que nada, mas que tudo. A discussão no Twitter rapidamente me fez lembrar que em julho passado, quando a revista "Trip" propôs e eu ajudei a executar um reencontro parcial dos velhos Novos Baianos, houve um trecho de entrevista muito emocionante para mim, e que ficou inédito até agora porque eu não soube como encaixar naquele material.

Ali eu estava começando a encaficar um pouco mais com temas como esses, e quem incendiou minha imaginação foi, mais uma vez, uma cantora (e pastora evangélica) absolutamente fenomenal, antes chamada Baby Consuelo, hoje rebatizada Baby do BRASIL (este usado em maiúsculas pela grandeza, não por nostalgias de ditaduras semi-inacabadas). Finalmente achei o pretexto e a motivação para voltar a eles e ao partir agora para a transcrição me deparei, para meu espanto, com uma fileira de alguns dos mesmos assuntos que, meses mais tarde, viriam a frequentar dramaticamente a campanha presidencial.

Sendo assim, convido você agora a passear comigo na van que nos levava de volta à vida real, após a breve visita de Baby, Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor e Dadi Carvalho ao Sítio do Vovô dos Novos Baianos, velhos cariocas. Falávamos, naqueles trechos, sobre o fato de Baby ser uma única mulher ao redor de quase uma dezena de homens no grupo. Sobre religiosidade. Mais adiante, sobre o rock-samba-frevo-etc. "O Mal É o Que Sai da Boca do Homem", que Baby Consuelo e Pepeu Gomes defenderam no festival MPB 80 da Rede Globo - e que bateu de frente com a Censura da já agonizante ditadura civil-militar, por conta de versos como "você pode fumar baseado/ baseado em que você pode fazer quase tudo/ contanto que você possua/ mas não seja possuído/ porque o mal nunca entra pela boca do homem/ porque o mal é o que sai da boca do homem". E sobre Branca de Neve, e sobre cabelos coloridos, e sobre... sovacos cabeludos.

Entrarão aí abaixo uns tantos temas, a meu ver todos apetitosíssimos, e todos aperitivos da sabedoria altamente caótica dessa artista excepcional. Fala, dona Baby do BRASIL.

(Antes, uma última observação, à parte: dedico esse texto, com a maior admiração, ao também excepcional cartunista Laerte, tão maravilhosamente doidão hoje quanto sempre foram Baby & os Novos Baianos.)

*

PAS - Como era ser mulher ali naquela comunidade? Era mais difícil por isso?

BB - É porque eu sou muito macho também, entendeu? Eu sou muito macho. Sou muito menino, e menina, "se Deus é menina ou menino", né?, somos "masculino e feminino" [faz referência à canção homônima dela, de Pepeu Gomes e de Didi Gomes, gravada em 1983 por Pepeu]. Nunca fui de laço de fita invisível na cabeça. Sempre fui um ser, um ser casualmente feminino. Não gosto de determinadas frescuras femininas e não gosto de certos comportamentos femininos, e também dos masculinos. Acho que nós somos iguais em muitas coisas, e nas nossas diferenças [faz voz charmosa, alongando a letra "a"] nós nos completaaaaamos. (...)

PAS - Baby, como você se relaciona hoje com a sua fase solo, pop, de "Cósmica" [1982], "Telúrica", "Todo Dia Era Dia de Índio" [ambas 1981]?

BB - Ai... Olha, que delícia isso, sabe por quê? Há muito tempo eu já não estava visitando essa área, porque comecei a compor pro gospel, e muito ligada com esse meu lado "popstora". Mas alguns convites foram feitos, eu analisei e topei fazer. E aí começa todo mundo a gritar: "'Cósmica'!", "'Telúrica'!"..., e músicas campeãs nisso, que são "Brasileirinho" [1976], "A Menina Dança" [1972], "Menino do Rio" [1979]... O pessoal fica louco. E achei muito gostoso, porque, quando compus muitas dessas músicas, com Pepeu na parceria, eram coisas muito pessoais minhas. A letra de "Masculino e Feminino", por exemplo, na verdade era "ser uma mulher masculina não fere o meu lado feminino", que era essa coisa de a Baby ser igual a qualquer um dos Novos Baianos. Mas aí dei pro Pepeu, porque o disco dele ia sair primeiro. Pensei: vai ser um escândalo esse negócio do Pepeu, tá dizendo que ele é gay?, não, não é isso, ele tá falando de um homem feminino. Essas letras todas eram parecidas comigo, falei: "Pô, não sei se esse povo vai entender". Aí foram entendendo, sempre teve um lado Baby meio brejeira...

Mas quando chegou agora... Tenho encontrado fã que tinha nove anos de idade, apareceu um no show com Elza Soares e Ademilde Fonseca, sei lá com quantos anos, 39, dizendo: "Eu até me converti por causa de você, sou louco por você", querido, lindo, trouxe todos os discos. Tá vindo coisa de todo lado, tá tudo aparecendo, pra mim tá sendo muito gostoso. Neguinho fala: "Quero 'Cósmica'!". "Você conhece?" "Conheço, amo aquela música", olha que coisa engraçada! Porque é completamente diferente do que todo mundo tá ouvindo...

PAS - É uma fase sua que está sendo revalorizada de um tempo pra cá, como já tinha acontecido com a fase dos Novos Baianos.

BB - Você já sacou isso?

PAS - Sim.

BB - Então não sou só eu que tô sacando, né?

PAS - "Todo Dia Era Dia de Índio" faz o maior sucesso em qualquer festa. (...) Aquelas letras todas soavam esquisitas, talvez não fosse algo que as pessoas estivessem esperando na época, mas a sonoridade era fenomenal.

BB - Marav... [interrompe-se] O disco "Canceriana Telúrica" [1981] tem oito músicas, e das oito quatro foram sucesso total, não sei se você lembra [ô, se lembro, Baby!...]. (...) "Telúrica" e "Cósmica" foram duas palavras que encontrei, achei "Telúrica" uma palavra maravilhosa e tomei a liberdade, como poeta, de usar "telúrica" para ser o "terrestre", com luz. Ou seja, terrestre é terrestre, vende a mãe por um saco de dinheiro, mas telúrico não vende. Era isso que eu queria dizer. Lembro que uma vez Chico Buarque se encontrou comigo e falou: "Foi maravilhoso você ter encontrado essa palavra e a maneira que você tá usando". E em "Cósmica" eu falei: "É sintonia espiritual pra ser transcendental". Era a minha definição, completamente fora do misticismo comum da época. Eu passei por muitas fases, mergulhei em muitas religiões, busquei muito, mas sempre detestei altares fora, isso sempre me deu mal estar, me incomoda. Acho que o altar é dentro, você tem que estar santa por dentro, não é ficar falando da boca pra fora.

PAS - A fase do guru Thomas Green Morton foi um equívoco?

BB - Na fase do Thomas Green me parecia que eu tinha encontrado definitivamente uma porta, uma porta estreita até, e que Deus ia se materializar pra mim a qualquer hora. Porque tudo se materializava, água transformava em óleo e perfume, papel em ouro, os metais entortavam, tudo acontecia. Demorou dez anos pra eu descobrir que aquela energia não era o que eu buscava. Imagina, você tá no meio de materialização e desmaterialização... Quando descobri que não era...

PAS - Essas transformações eram simulações dele?

BB - Não, aquilo acontecia. É uma outra energia, Rá é um principado do Egito, é Lúcifer, que tá amarrado e reconhecido em nome de Jesus - já que perguntou tem que dizer, vai fazer o quê, né? Mas isso é bíblico, conheço porque estudei e sei, está lá na escritura, cada um é um.

PAS - "O Mal É o Que Sai da Boca do Homem" você nunca mais vai cantar?

BB - Não, isso é maravilhoso, é de Jesus...

PAS - A música fala de baseado [na fase evangélica, Baby faz restrições veementes ao tema drogas]...

BB - Essa frase é de Jesus.

PAS - Nessa música você dizia "você pode fumar baseado, baseado em que você pode fazer quase tudo", isso você não cantaria hoje?

BB - É, eu não quero falar desse negócio. Não falo dessa música, a gente não pode falar dela agora.

PAS - Preciso dizer, eu descobri você em 1980, por causa dela...

BB - É, mas não é pela música, é aonde chega... [Galvão conta que hoje não autoriza mais gravações dessa música, e Baby acaba falando sobre ela] A música falava de fumar, comer e beber, que eram coisas que estavam acontecendo normalmente na nação. Tudo que você fizer, você pode fazer, baseado, baseado em quê? Você pode fazer quase tudo, contanto que você possua, mas não seja possuído. O trocadilho entrou, e entrou muito bem. Fui ao Supremo Tribunal Federal com Pepeu, e quase pegamos uma cadeia de 15 anos, então não quero falar dessa música. Essa frase "contanto que você possua, mas não seja possuído, porque o mal é o que sai da boca do homem", eu peguei da Bíblia. A ideia era que a juventude entendesse o seguinte: ninguém vai ser babá de você, não. mas se você for possuído por cada droga, que é o que aconteceu, você vai dançar [ela e Galvão divergem, discutem a letra].

Galvão - Essa música ganhou o festival. Um cara do júri chegou pra mim: "Vocês ganharam o festival, mas aí uma pessoa lá disse que essa música tá falando de maconha, na Globo" [o vencedor anunciado foi Oswaldo Montenegro, cantando "Agonia"]. (...)

BB - Você tá falando uma coisa que eu, como autora também [a canção é assinada por Pepeu, Baby e Galvão], não vejo. Não vejo essa música mandando ninguém fumar maconha.

PAS - Posso te contar uma coisa? Eu tinha 12 anos quando "O Mal É o Que Sai da Boca do Homem" apareceu na Globo, morava no interior do Paraná, nunca tinha ouvido falar ou prestado atenção nos Novos Baianos. Descobri Baby e Pepeu naquela ocasião...

BB - Que delícia.

PAS - ...e uma coisa que me marcou muito é que você tinha o...

BB - O cabelo debaixo do braço!

PAS - ...o sovaco peludo. Isso era muito libertário, não era?

BB - Maravilhoso, maravilhoso.

PAS - Até hoje mulher não pode deixar de raspar...

BB - Pode, poder pode... Eu não raspo debaixo do braço até hoje.

PAS - É? Não era uma coisa pra provocar?

BB - Não, isso é o seguinte: se você pode, por que eu não posso? Eu tinha que ficar raspando todo dia, todo dia, que saco!

PAS - Uma mulher masculina...

BB - Toda hora tem que raspar debaixo do braço, a perna, eu quero música! Eu tenho muito pouco pelo debaixo do braço, e esqueço o tempo todo disso, esqueço de unha, esqueço de tudo. Eu tô doida por guitarra, meu Deus do céu, chega! Agora, acho uma delícia quem tá sem pelo, "ai, que gracinha", "uma gracinha ela". Mas isso não muda nada pra mim.

PAS - Não é um machismo da sociedade, que a mulher é obrigada a raspar aqueles pelos e o homem não?

BB - Mas é o seguinte, agora vamos falar o lado bom disso: o pelo debaixo do braço geralmente dá cecê aquele cabeeeelo. Porque tem mulher que não é um cabelo, é um chumaço [risos]. Aí descobriram tirar o cabelo, olha que maravilha, ficou sem cabelo nenhum. Acho maravilhoso também, mas acho que tem que ser livre. Acho maravilhoso a perna lisinha, mais bonito que ela cheia de cabelo, embaralhando, fazendo trança. Agora, o homem fica bem, né?...

PAS - Isso causou falatório em 1980, e se aparecesse hoje uma mulher de braço cabeludo na TV ia causar o mesmo falatório que 30 anos atrás, não?

BB - É, teve uma época que eu pintei o cabelo debaixo de um braço de rosa e o do outro de azul. Não consegui ficar porque começaram a manchar as camisas todas [risos]. As camisas ficaram azuis e rosa debaixo do braço.

PAS - Fez shows assim?

BB - Fiz, falei: "Vou pintar o cabelo colorido, esse povo vai enlouquecer quando eu tirar a primeira foto assim". Eu já tava curtindo adoidado, né?

PAS - Os cabelos coloridos começaram por quê?

BB - Porque eu era fã da Branca de Neve quando era criança, e ela tinha um cabelo azulão. Tudo que na minha infância eu quis fazer quando fosse grande, eu fiz. A primeira coisa era comer uma panela de brigadeiro. A outra era lamber e comer todo o bolo sem cozinhar ainda - a gente nunca podia comer o bolo antes, então preparei um bolo como tinha que ser e comi ele inteiro, devagarzinho. Deu uma dor de barriga! Essas duas coisas eu consegui, e a outra foi o cabelo da Branca de Neve. [Nos Estados Unidos] Passou uma mulher com um cabelo meio violetado, quando ela passou debaixo do sol eu agarrei ela e falei: "Where?". Eu não sabia falar inglês, ela tomou o maior susto, eu falei: "Your hair! I'm brazilian, singer, singer!". Aí ela, meio assim, escreveu, Manic Panic era o nome da tinta. E eu comecei a trazer pro Brasil. Agora consigo comprar aqui mesmo uma que é italiana, mas vende aqui, violeta.

PAS - Nunca mais deixou de pintar desde então?

BB - Não. Já pintei de várias cores, já fiz aquela coisa de arara...

PAS - Tinha uma que era rosa...

BB - É, e essa violeta tem uns cinco anos. [o roadie Zeca lembra da tinta vermelha] Vermelha, não, era "rose red", ficou um tempão. Era um rosa avermelhado.

PAS - Mas peraí, foi primeiro por causa da Branca de Neve, aí você gostou e manteve?

BB - É, aí eu queria ficar com o cabelo colorido...

PAS - E aí o Pepeu ficou também...

BB - O Pepeu sempre gostou das coisas que eu gosto, tem uma coisa meio de irmão ali, né? E, como ele também fica superbem de cabelo colorido, não vacilou e botou também. Depois ele ficou de louro e preto. A gente geralmente tem que descolorir o cabelo pra pintar, tinha muito isso. Teve uma época que eu pintei de preto, foi quando preto pra mim era coloridíssimo. Pra pintar de preto, é quando o preto entra como uma coisa supermaravilhosa, não como "volte ao normal" - normal onde? Eu não tenho normal. Tudo meu é anormal, graças a Deus.

PAS - Qual é a cor original?

BB - É preto. Mas eu não tenho nada normal, graças a Deus. É tudo fora do normal. Normal?, eu não sei o que é normal. Normal é você ser criativo, livre, com responsabilidade, sabendo amar ao próximo como a ti mesmo. Isso seria o normal.

PAS - Vocês, de cabelo colorido, cantando essas músicas, eram vistos como os doidões da época, assim como os Novos Baianos tinham sido na década anterior?

BB - É, é... É fruto, né?

PAS - Essa imagem continuou, não?

BB - Continua...

PAS - Hoje não sei... Talvez sim, por você ser religiosa e manifestar isso...

BB - É, no meu caso, apesar de falar muito das coisas de Deus, o povo acha hoje isso a maior loucura. E eu fico feliz, porque isso antigamente era a maior caretice. Virou uma loucura bacana...

PAS - É uma coerência sua ao longo do tempo?

BB - Se a gente buscar ser espiritual, sempre tem que estar envolvido com alguma coisa, com algum altar. Não tem altar, vai direto pro Pai. Agora, pra fazer isso você tem que andar com ele. Esse lado eu acho o mais louco de todos, porque envolve você não perder sua identidade, não perder sua criatividade, não ficar religioso, não ficar chato careta. Pô, é um exercício.

PAS - Corda bamba...

BB - É. Mas dá. [Nesse instante, a van chega ao endereço onde vai deixar Baby. Ela distribui beijos a todos, desce e volta para sua vida.]

*

E aí, me conta? Conseguiu ler SEM preconceitos o que Baby Consuelo do BRASIL tem a dizer? Vamos passear nos Estados Unidos do BRASIL?

domingo, outubro 17, 2010

vamos passear nos Estados Unidos do Brasil

Há alguns dias, falei no Twitter que estava indo entrevistar uma artista muito especial - para uma reportagem que acaba de ser publicada pelo iG. Era Gal Costa, uma das artistas mais importantes da história deste Brasil.

A certa altura da entrevista, Gal contou um episódio que não vou detalhar aqui (estará nos links acima), sobre uma briga em que se envolveu no trânsito, no auge do frêmito tropicalista, 1968, 1969, não sei exatamente. Ornada com o cabelo black power e o figurino exuberante da época, Gal (que afirma ser exímia motorista) entrou em conflito com um homem que, a partir de um gesto (obsceno) dela, desceu do carro, perseguiu a cantora, deu um tapa na cara dela e arrematou: "Ponha-se no seu lugar de mulher!".

Era 1968, 1969.

Como já cantou à mesma época outro tropicalista (negro, por vezes black power), muita coisa sucedeu daquele tempo pra cá. O Brasil aconteceu, é o maior, que é que há?

Hoje é 2010. Vivemos num outro século, no qual descendentes de árabes proclamam que não somos racistas, neodefensores (defensores?) dos direitos humanos denunciam o advento da "heterofobia", neopregadores antiaborto brotam dos esgotos, neofeministas (feministas?) vencem eleições defendendo a integridade física das mulheres contra candidatos (negros) que já praticaram violência contra mulheres. Não somos mais misóginos. Em uma mulher como Gal Costa não bateríamos nem com uma for. Agredir Dilma Rousseff?, Marina Silva?, nem pensar!

Mas aí acontece uma campanha eleitoral e de repente minhas vistas ficam turvas.

Na televisão, vejo a cervejaria Brahma fazer gracinha com o fato consumado (fato?, consumado?) de que homens (machos, daqueles que coçam o saco) gostam muito mais de futebol (e de outros homens) - e de cerveja, é óbvio - do que de mulheres.

Na "grande" mídia, leio uma famosa e formosa atriz convocando esses mesmos machos (que gostam de coçar o saco) a arrasar Dilma Rousseff nas urnas, quiçá violentamente.

No Twitter, por fim e não menos chocante, ouço um chapa dizer que viu "uma patricinha imbecil" fazer "uma conversão tão estúpida com sua Pajero que merecia uma surra". Uma surra, entendeu? Um chapa esclarecido, percebeu? É 2010, e há gente disposta, ao menos retoricamente, a fazer com uma "patricinha estúpida" o mesmo que velhos pitbulls faziam com Gal Costa em 1969, 1968.

O monstro da misoginia mudou de cara, mudou mil caras, mas ele segue habitando o mesmo pântano em que sempre morou, e está disposto a arreganhar os dentes diante do primeiro indício de se sentir ameaçado. O monstro da misoginia odeia o sexo feminino mais que tudo na vida dele (talvez odeie ainda mais o sexo masculino, mas essa é outra parte do assunto) - e o monstro da misoginia, por ter mil caras, ocorre em forma de homem heterossexual, de mulher heterossexual, de homossexuais em geral, de minorias sexuais as mais variadas. Ocorre em todos os formatos, cores e tamanhos.

No início de 2010, homens e mulheres elegeram Marcelo Dourado o herói (ignorante, tosco, misógino, homofóbico) do Big Brother Brasil. Em outubro de 2010, mulheres (e homens) tomam, nas ruas brasileiras em campanha ensandecida, o mesmo tapa na cara que Gal tomou em 1968, 1969, multiplicado por milhões.

O monstro da misoginia tem mil faces - às vezes se disfarça de bicho-papão da homofobia, outras de dragão da xenofobia, depois de jaguadarte do racismo. O mostro de mil caras é um torturador nato, manja tudo de choque elétrico, pau-de-arara, telefone, bastão introduzido na vagina e/ou no ânus de quem ele diz mais detestar (há sempre algo de sexual no ódio do monstro de mil caras).

O jaguadarte que venceu a Alice de Lewis Carroll (mas foi vencido pela Alice de Tim Burton) é pedófilo, mas nunca ninguém vai ficar sabendo disso. Misturando-se com a paisagem de cada ocasião, ele se traveste de fanático religioso, beata castiça, padre ou pastor que usa e abusa de Deus para cuspir no mundo seus ódios internos e segredos guardados. Ele é a favor da vida, desde que não seja a vida da mãe que acabou de abortar um pedaço de si própria - o jaguadarte é sempre, sempre, sempre misógino.

Há poucos dias, disse a brava psicanalista Maria Rita Kehl, em entrevista à revista "CartaCapital": "A ONG Católicas pelo Direito de Decidir me convidou para debater, e elas pensam assim: a criminalização do aborto é uma questão contra a liberdade sexual da mulher, ponto. Não pode usar camisinha, porque a Igreja também é contra. Então é uma questão de dizer: sexo só dentro do casamento e só para ter filho. É isso, que não está escrito assim, mas é o que está dito. Se não pode usar preservativo, não pode evitar filho, não pode nem evitar infecções, epidemias como o HIV que mata milhões na África, que 'a favor da vida' é esse?".

Mas, ora, se é preciso ceder à pauta do monstro de mil caras e começar pelo beabá, façamos: todo bebê é concebido por uma mulher em associação com um homem. Todo aborto é feito por uma mulher com a participação (e/ou omissão) de pelo menos um homem. Bebês abortados são utilizados para demonizar e inculcar toneladas de culpa nas mentes femininas - exclusivamente das mentes femininas, como se os homens não participassem da concepção e do nascimento, ou do aborto. O abominável homem das florestas demoniza o aborto, mas não é porque queira defender a vida - ele quer é atentar contra ela, por intermédio do controle dos corpos (e das mentes) das mulheres.

Os homens da cervejaria Brahma que gostam mais de cerveja e de futebol que de mulher são os homens que não assumem o pedaço de gente que injetam no corpo de "suas" mulheres - e preferem ir ao futebol com uma cervejinha na mão a acompanhá-las até a clínica clandestina de abortos.

O dragão da misoginia (ele é macho, mas por vezes se disfarça sob o apelido de Mônica, Sônia ou, mais exótico, Weslian) não quer que ninguém saiba disto, mas todo ser humano carrega sua cota de responsabilidade pelos abortos que a humanidade comete, os físicos, ou políticos e os ecológicos. A mulher arranca um pedaço do seu corpo. O homem se omite, nos mais variados estágios: não assume o bebê, rotula de "vaca", "vagabunda", "puta" e "exploradora" a mulher que abortou, vez ou outra assassina e retalha o corpo da mulher que pariu. No mínimo, simula que o assunto não é com ele.

O religioso celibatário, que para todos os efeitos nunca entrou no corpo de uma mulher (embora tenha saído de um, de uma) nem nunca concebeu nenhum bebê (e quantas mulheres do padre e quantos rebentos-bastardos-errantes de religiosos há por aí, Nossa Senhora Desaparecida!), tenta enlouquecidamente controlar o corpo feminino e a mente feminina, demonizando a mulher que abortou, supostamente sozinha. O monstro de mil caras da misoginia adora o disfarece da batina do padre, do hábito da freira, da bíblia do pastor.

O(a) homossexual, frequentemente misógino(a), sente-se, ele(a) próprio(a), um aborto.

O dragão da homofobia é irmão gêmeo da garatuja da misoginia, e os homossexuais são, por sinal, tanto quanto as mulheres, espezinhados e refugados por diversas religiões, mesmo por sobre a evidência simplória de que TODO homosseuxal (exceto os de proveta) foi concebido por uma relação sexual, heterossexual - por um homem (geralmente homofóbico) e por uma mulher (muitas vezes misógina). Diariamente, heterossexuais concebem homossexuais, apenas para no futuro abandoná-los à deriva.

Se esses homossexuais ficarem mais propensos ao suicídio e levarem a cabo o desespero, religiosos pisarão em seus caixões, vociferando feito cães raivosos contra o "pecado" do suicídio, a infâmia da sodomia, o horror ateu do amor homossexual. Para todos os efeitos, nenhum religioso jamais tocou sexualmente o corpo de outro homem - nem o corpo de um menino (ou menina) que, menos forte do que ele, não conseguiria jamais contar lá fora o que se passou nas alcovas de território "sagrado". A cruzada antiaborto e anticasamento gay jamais aceita o desafio de debater a pedofilia e o abuso sexual.

Uma brasileira candidata a presidente tem sido apedrejada em praça pública, acusada de todos os vilipêndios - "abortista!", "lésbica!", "corrupta!", "bígama!", "assexuada!", "homofóbica!", "terrorista!", "assassina!", "inimiga da ditadura civil-militar!"... 99,99% de seus não-eleitores nem sequer suspeitam (ou será que fingem que não, qual cabeças de um monstro de milhões de bocas arreganhadas?) que são misógino(a)s praticantes, do dia da concepção até a noite que morrerão.

Nalgum momento da década de 1970, essa mulher foi "barbaramente torturada" por aquela ditadura, como ela mesma já atirou no rosto liso de um político do partido que se autobatizou DEM, tantando se travestir de "democratas", mas aproximando-se em ato falho freudiano do "demo". José Serra é do bem (ou do dem, do DEM, do demo?). À fogueira, quem deve ser remetida é a BRUXA que espelha nela todas as nossas mazelas e algumas mais.

Talvez ela seja uma ou algumas ou muitas daquelas coisas que os apedrejadores a acusam de ser. Talvez nem seja.

(A propósito, aqui no Brasil artistas empenham prestígio ligando para Lula quando querem evitar o apedrejamento de uma mulher iraniana, mas não exibem nem longinquamente a mesma indignação quando o apedrejamento é na esquina ao lado, ou dentro da própria casa. Aqui e agora, onde há fumaça, não há fogo - no máximo há fogo-de-palha. Como cantava Gal Costa em 1968, 1969, atenção, menina, precisa ter olhos firmes para esta escuridão. Porque tudo é perigoso. Tudo é divino. Maravilhoso. É preciso estar atenta e forte. Não temos tempo de temer a morte.)

Talvez Dilma seja uma ou algumas ou várias das coisas de que os apedrejadores a acusam de ser. Mas não é só ela. Eu também sou. Você também é (mesmo que seu nome seja Reinaldo Azevedo ou Otavio Frias Filho). Um mundo onde os indivíduos não encaram e menos ainda enfrentam suas próprias idiossincrasias e suas próprias responsabilidades é o mundo de indivíduos que vão buscar "abrigo" nos diversos fanatismos religiosos (ou no fanatismo ateu, futebolístico, musical, televisivo, jornalístico, cinéfilo, corruptor, ladrão, matador-de-aluguel, acumulador de dinheiro - tanto faz).

O desafio que aguarda Dilma Rousseff é gigantesco. Assim como Weslian Roriz, Mônica Serra e Soninha Francine despontam como paradigmas lastimáveis da submissão feminina aos humores machistas e misóginos de "seus" homens, maridos, patrões e chefes, cá entre nós, o mesmo perigo ronda a própria Dilma Rousseff, em relação a Luiz Inácio Lula da Silva. A postura e a atitude que ela tiver ao cabo deste magnífico (embora escabroso) segundo turno norteará seu futuro de independência (ou não) em relação ao(s) seu(s) mentor(es). E em relação a nós. E a ela mesma, Alice brasileira de 2010, acima de qualquer outro indivíduo.

Eu votarei em Dilma Rousseff, com o mais profundo dos meus entusiasmos e das minhas convicções. E aposto todas as minhas fichas em que, ao cabo de tanta luta, tanto esforço, tanto sangue, tantas lágrimas, teremos o, ou melhor, A presidente da república mais INDEPENDENTE da história deste país. E saberemos honrar a independência dela com a nossa própria, como já começamos a fazer em relação ao seu antecessor.

Abolição de escravatura é um negócio formidável, que não tem retorno. Ao futuro (e obrigado, dona Gal, pela bela, triste e violenta história que a senhora desenterrou de seu armário de ossos, e que a ajudou a ser quem é como artista; não se canse nunca, por favor, dona Gal, nós precisamos de você).

sábado, outubro 16, 2010

eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz

"80% dos brasileiros, pelas pesquisas, consideram o governo Lula bom ou ótimo. Não é curiosíssimo que a mídia não faça outra coisa senão dizer que este é o pior governo do mundo? Então que valor tem a opinião pública? Que valor têm esses 80% de opinião pública? Nenhum. A mídia não tem nenhum respeito pela verdadeira opinião pública, que é a opinião dos cidadãos." Assim falou a filósofa Marilena Chauí, num dos manifestos que tornou públicos - coerentemente, não pela mídia tradicional, mas por intermédio do anárquico e caótico YouTube.

Entre várias das falas dela, esta foi a que calou mais fundo dentro de mim - apesar de esse tema, a manipulação por parte dos controladores daquela que é a minha profissão (o jornalismo), frequentar obsessivamente meus pensamentos e sentimentos e reflexões nos últimos muitos anos (oito, no mínimo).

Calou fundo em mim porque o raciocínio que ela faz é muito, muito, muito simples. Essa fala de Marilena demonstra que a sanha sanguinária da "grande" mídia a que ela se refere contra Lula não é dirigida especificamente a Lula, a ao cidadão-presidente Lula. A espuma antilulista que baba da boca da "grande" mídia vem cuspida contra 80% dos brasileiros (me incluo entre eles). Dirige-se, em última instância, ao Brasil como um todo. É, pois, uma fúria suicida.

Exemplo quente e eloquente é o desenlace recente da relação entre Maria Rita Kehl e o "Estado de São Paulo", logo depois de ela ter publicado naquele jornal o texto "Dois pesos...". Lúcido, sóbrio e oposicionista (quero dizer oposicionista ao Partido da Imprensa, atualmente travestido de demotucanato), o
artigo deflagrou todo um processo freudiano no seio da "grande" imprensa paulista.

Não à toa, Maria Rita Kehl é psicanalista, e não jornalista - fez por nós, jornalistas, o que não tínhamos coragem e força, sozinhos, para fazer, intimidados que somos cotidianamente diante de nossos patrões. O processo psicanalítico (sim, o Brasil está deitado no divã, se é que ainda cabe essa imagem-clichê) é tão interessante que trouxe notoriedade merecida à formidável profissional que é Maria Rita. "O que tem de legal é que, por exemplo, este meu artigo foi mais lido que qualquer outra coisa que eu jamais tenha escrito. Se ele tivesse ficado apenas no 'Estadão', ele teria sido lido, mas jamais deste jeito. Isso é uma coisa muito legal", afirmou ela em entrevista à minha querida (e dissidente) "CartaCapital", num texto denominado "A campanha eleitoral assumiu um tom fascistóide, diz Maria Rita Kehl".

O bonito nesse imbroglio todo é que o "Estadão" acabou por ser honesto, mesmo em querer, quando trouxe à tona, via desligamento da colunista, a ditadura que segue em vigência no interior da "grande" mídia brasileira em pleno 2010, nada menos que 25 anos após o término oficial do regime autoritário/repressivo civil/militar instalado no Brasil em 1964.

Não sou nenhum especialista em Freud, mas não seria esse vacilo do "Estadão" o famosíssimo expediente do "ato falho", o mesmo que levou José Serra a cometer outro dia um "eu nunca disse que sou contra o aborto, porque eu sou favor ", quando queria dizer exatamente o oposto? O ato falho se aprofundou nos dias seguintes, porque a exposição maciça do artigo via internet levou o texto de Maria Rita (e do "Estadão") ao conhecimento de gente que se considera "informada", mas por outros expedientes jamais teria tido acesso às ideias (simplíssimas, assim como as de Marilena Chauí) nele contidas.

O caso expôs nu e cru, em síntese, o estrangulamento ditatorial e a falta dramática de liberdade em que se encontra todo e qualquer jornalista, de qualquer coloração ideológica, que se encontre hoje trabalhando no conglomerado para-oficial GloboVejaFolhaEstado.

Mas quem milita no "Estadão" sabe que o corte sumário de Maria Rita após a publicação (e repercussão) do artigo deu origem a uma avalanche de cancelamentos de assinaturas. E quem trabalha no "Estadão" sabe o clima de caça às bruxas que vigora lá dentro por esse caso, mas também além e independentemente dele.

Em 2006, por causa da chamada "crise do 'mensalão'", eu havia feito o mesmo com minha querida "Folha", meu ninho de nascimento, desenvolvimento e ascensão como jornalista. Eu já havia saído da "Folha" para a "CartaCapital" em dezembro de 2004. Em 2006, cancelei minha assinatura após 16 anos de leitura e devoção consecutivas e ininterruptas - por muitos motivos, mas inclusive pela teimosia de não querer desembarcar, diante das primeiras adversidades, do presidente no qual eu havia votado, também ininterruptamente, desde 1989. Todo mundo sabe que o processo de cancelamento de assinaturas tem sido uma sangria constante, e maciça, desde pelo menos o malfadado "mensalão". Quem trabalha na "Folha" hoje sabe o que é viver o constrangimento de se identificar como jornalista de lá e, não poucas vezes, ser xingado de "reacionário" ou "fascista". Funcionários do antigo sonho dourado de todo jornalista hoje têm de conviver com a vergonha de trabalhar na "Folha", coisa impensável até, pelo menos, os anos tucanos de FHC.

Quem trabalha na "Veja" vive os mesmos dissabores, de forma mais dramática e há muito mais tempo, a ponto de às vezes não ser possível dissociar a "Veja" (e sua editora, a Abril) de quem trabalha como jornalista lá dentro.

Sobre a(o) Globo nem me atrevo a lançar palpite, tão distante é a (ex-)"vênus platinada" do meu dia-a-dia. Mas Hildegard Angel (colunista social, ex-global, mas também irmã e filha de gente assassinada pela ditadura civil-militar) falou, dia desses, algo sobre funcionários da rede terem de assinar contrato com cláusula impedindo-os de se pronunciarem politicamente - não posso afirmar que é verdade, mas, supondo que seja, alguém conhece forma mais explícita de ditadura que a mordaça político-ideológica?

São, todos esses, casos exemplares de comportamento suicida. Tudo isso é suicídio. Ou, no mínimo (e aí não se espante nem se diga surpreso quem anda sangrando e perdendo assinantes por segundo), há aquela frase de Joseph Pulitzer (1847-1911), inúmeras vezes reproduzida no Twitter ultimamente: "Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma".

Mas não entremos nesse mérito apavorante, prefiramos acreditar que essa grande tragédia se trata mais de suicídio que de mercenarismo. Se for assim, o que temos assistido no Brasil nestes anos 2000 é resultado do ódio dirigido pela "grande" mídia a si própria, espelhada em (no mínimo) 80% do Brasil, rebatida na figura-ícone de Lula.

Quero dizer com isso que a "grande" mídia deveria pular para dentro do barco de Lula, tornar-se adesista, jogar a toalha, ser submissa a Lula como a imprensa paulista é subserviente a José Serra e a imprensa mineira é capacha de Aécio Neves? Não (até porque, admito meio maquiavelicamente, esse ódio todo tem sido responsável por parcela interessante do desabrochar, do desenvolvimento e do bom desempenho de Lula - e de no mínimo 80% de nós, e do Brasil perante o Brasil e perante o mundo). Bastava não espumar ódio. Bastava criticar e combater (se era mesmo o caso de a "grande" mídia ser, em peso, partido de oposição, como chegou a defender publicamente a atual presidente da Associação Nacional de Jornais, Judith Brito, egressa da "Folha") com comportamento racional, sóbrio, equilibrado, justo, coerente.

O ódio contra 80% do Brasil é um ódio suicida. Os poderosos-chefões que acreditam, esúupida e ignorantemente, combater a figura de Lula estão combatendo o país que pariu a eles próprios (ou seriam esses poderosos-chefões estrangeiros camuflados, ou agentes-laranja de estrangeiros clandestinos enciumados do Brasil, ou temerosos de perder os royalties bilionários do pré-sal?). Se são brasileiros, estão combatendo a eles mesmos. Suicídio.

Faço todo esse passeio para chegar a concluir o que calou fundo em mim na fala de Marilena Chauí, essa nobre filósofa não por acaso detestada apaixonadamente (ódio É amor?) por nove entre dez poderosos-chefões (misóginos, eu ouso acrescentar) da "grande" - e envelhecida - mídia.

Nós, brasileiros (e especialmente nós, jornalistas), não queremos a sua morte, senhora dona persona. Não queremos o seu fim, senhora "grande", tradicional e cerimoniosa mídia. Há tempo hábil para que a senhora desperte desse sono narcotizado e entenda que não está lutando contra Lula e a candidata dele (nossa) - mas sim contra o país que pariu a senhora (ou devo excluir desse rol a poderosa-chefona Globo, fundada sob capital oculto da Time-Warner, sobre alicerces norte-americanos clandestinos?). Nós precisamos da senhora, senhora dona "grande" mídia, e não vemos a hora em que venha a merecer novamente o adjetivo, sem aspas, de Grande, quiçá nossas assinaturas de volta. Até daqui a pouco.

P.S.: Não é por mera coincidência que Marilena Chauí e Maria Rita Kehl são mulheres, assim como a candidata Dilma Rousseff. A "grande" mídia, apesar dessa denominação feminina travestida, tem sido exclusivamente do sexo masculino, do descobrimento do Brasil até o dia de hoje. Amanhã, ninguém sabe.

sexta-feira, outubro 15, 2010

escrevendo a nossa história com neon

Quando entrevistei o rapper Emicida para o iG, menos de um mês atrás, optei por produzir um texto corrido, mais um complemento em que ele comentava, faixa-a-faixa, sua mixtape "Emicídio".

Entre os muitos detalhes que ficaram de fora da edição extraída de uma conversa de 2h48min, há um trecho de diálogo que permaneceu inédito, porque expunha o entrevistador (eu), e eu (o entrevistador) não sabia como encaixá-lo no texto corrido. E eu quero agora tirá-lo do ineditismo, no formato pingue-pongue, tal qual aconteceu no aqui-e-agora da entrevista.

É o seguinte:

Emicida - Quando escrevi essa música ("Você Não Faz Ideia") eu tava sentado na calçada do metrô, esperando alguém. Levantei pra atravessar a rua, e aconteceu um bagulho muito louco que sempre acontece, cara: você vai atravessar uma rua, quem tá no farol já olha pra você e já começa, de uma forma sutil - os caras acham que a gente não percebe -, a fechar o vidro, tipo rezando pro farol abrir, tá ligado? Você pega um táxi e o cara te faz milhares de perguntas, e dependendo do lugar que você tá indo o cara fala que não vai. O Fióti (irmão de Emicida) acabou de passar por um bagulho desses, o taxista falou que não levava o cara. Por quê? Porque o cara é preto. "Não leva por quê?" O cara não responde.

PAS - O cara não responde nada?

Emicida - Não responde. Tipo, "ah, não, não dá pra eu levar duas pessoas". É um bagulho bem comum, embora tenha uma parada que a gente brinca até, mas é bem séria: os pretos, na sociedade, eles são vistos como se fossem ratos. Você vê que tem vários ratos que são famosos, tipo Mickey Mouse (risos), o Tom & Jerry, o Pink & Cérebro - as pessoas andam com camisa dessas coisas. Só que, se as pessoas veem um rato na rua, a primeira coisa que elas pensam é em matar e sair de perto. Com os pretos rola uma coisa muito parecida. As pessoas escutam Jimi Hendrix, andam com camisa do Bob Marley, vão a shows de rap, e quando elas encontram com a empregada, com o porteiro, com um preto na rua, a primeira coisa que fazem é pensar "mano, esse maluco vai me roubar" e atravessar a rua pro outro lado.

PAS - Qual é o sentimento do preto quando ele tá nessa situação? Não só de ver o cara se afastando, mas... Digo, o desencontro é das duas partes, não é?

Emicida - É, já teve momentos de eu ficar muito mais puto. Obviamente eu fico puto, tá ligado?, acho uma situação ridícula. Mas eu fico, tipo, que idiota, se eu quisesse roubar ele eu não ia vir de frente, saca? Eu me pergunto mais por quê, pô, e quando essa porra vai mudar? O Brasil vai mudar em 50, 100 anos? Tem muitas ideias pra ser quebradas, a gente tá no começo dessa briga ainda.

PAS - O que eu queria te perguntar, na verdade, é outra coisa. Vou me expor um pouco. A coisa que mais odeio na vida é racismo, mas um momento muito difícil e sofrido da minha vida, recente, foi um dia que eu descobri que, se eu descuidar, eu posso ser o cara que atravessa a rua...

Emicida - Sim.

PAS - ...Eu vejo alguém lá longe e a reação automática é atravessar a rua... Aí, como eu posso dizer que não sou racista se intuitivamente eu ajo assim? Mas, quando percebo isso, o que eu fico pensando é o seguinte: e aquele cara lá do outro lado da rua, o que será que ele pensou de mim nessa hora?

Emicida - Total.

PAS - É isso que eu quero perguntar na verdade: o que você pensa quando o branco vem vindo do outro lado e... começa a se afastar? O que você pensa do branco?

Emicida - Cara, tem uma música do Tio Fresh, do SP Funk, que ele fala: "Desde a época da balança já havia uma matança/ olho para os brancos e às vezes eu penso em vingança". É um bagulho muito pesado, é muito ruim quando você percebeque aquela pessoa tá com medo de você, e você não é ameaça nenhuma pra aquela pessoa. Várias vezes você nem notou a presença daquela pessoa, e só nota quando tem um gesto desse tipo, sabe?

Tudo isso ainda se soma ao fato de a gente viver numa cidade muito violenta, você não sabe quem é quem, quem é o quê. Somando tudo, fortalece vários estereótipos, e aí as pessoas ficam reféns desse tipo de atitude. A minha sensação é bem mais de tristeza, sabe? Fico puto, porque, por exemplo, eu quero pegar um táxi e os taxistas não param pra mim. Fico puto mais porque eu deveria chegar num lugar em tal horário e não vou conseguir por causa desses filhos da puta que tão pensando que eu vou roubar eles, tá ligado? É uma coisa assustadora, mas a situação em si eu já começo a encarar como uma extremamente comum, "essa porra não vai mudar hoje".

*

O trecho que eu queria mostrar era esse, mas a conversa prosseguiu depois disso, e transcorreu maravilhosamente, como todas as vezes em que já entrevistei esse jovem artista paulistano. A mãe dele, Jacira, chegou ao estúdio vinda da hemodiálise e passou a assistir e a participar do papo. Já tínhamos falado sobre os negros e sobre o racismo, em seguida conversamos também sobre as mulheres e a misoginia, a propósito do rap "Rua Augusta". Foi assim:

Emicida - Cara, essa aí cê vai ver, a gente vai fazer um vídeo dessa música que vai ser foda. A gente vai falar lá com aquelas minas da Daspu pra elas participarem, sabe? Vamos fazer um documentário. Boa parte dos shows que eu fiz em São Paulo nesses últimos tempos foi na rua Augusta, e eu fico olhando os detalhes assim calado, fico vendo as minas lá, e fico imaginando como é a vida das putas durante o dia. Imagino as minas se preparando pra ir pra lá, ficando ali, o tanto de coisa que elas tão sujeitas ali. Todo mundo tem isso aí como se fosse uma vida fácil, mas, pô, não é fácil, não. Já vi várias vezes os caras passarem zoando mesmo, jogando bagulho nas minas, ovo, pedra.

PAS - É muito preconceito também, né?

Emicida - Porra, mano, pra caralho. E eu fiz uma música que fala disso, tem um verso que fala essa parada, que todo mundo fala que é errado, mas foda-se se é erro, "quem fez o certo foi Jesus, e cês agradeceram pregando ele numa cruz".

PAS - Muitas vezes quem fala que é errado usa também, né?

Emicida - É, então, a música fala disso também, "o homem bom que não aguentou ser solitário". Fala bem disso, mas com uma visão bem minha, não de "elas são putas", mas, tipo, de prestar atenção em todos os detalhes.

PAS - Também ali você é um cara que tem identidade na periferia passeando pelo centro...

Emicida - Passando pra lá, é, porque, vindo de lá, eu conheço várias minas que são putas.

PAS - Você diz daqui (a entrevista acontece na zona norte de São Paulo), ou de lá mesmo?

Emicida - Conheço de vários lugares, mas eu conheço da quebrada mesmo. Aí você vê os bastidores da coisa, sabe? Cê não vê a prostituição..., eu não consigo ver uma puta como vê, sei lá, um cara que realmente come as putas. Mano, quando eu vejo uma puta eu penso em tanta coisa, tá ligado? Penso nos filhos que ela tem pra criar, na casa de onde ela veio, se ela tá com frio. Eu penso em todos esses bagulho. A imagem de uma prostituta pra mim é um bagulho muito mais vasto. É muito simplista você ligar aquilo só ao sexo, que é um detalhe.

PAS - Quem vê uma puta só como uma puta não tá enxergando nada...

Emicida - Não tá enxergando nada, é isso aí. Então, por ter visto essas minas fora dali, eu consigo ter essa visão, da mina que o marido abandonou e ela teve que se virar de alguma forma e o que encontrou foi isso... Porque a rua abraça, né? Elas têm que ganhar dinheiro e tão ali no meio de qualquer jeito. Muitas vezes é uma vida zoada... Porque ninguém sonha em ser prostituta com oito anos de idade, tá ligado? É uma profissão que realmente você vai parar lá dentro.

PAS - Nessa idade, certamente chega levada por outras pessoas.

Emicida - Sim.

*

Nesse embalo, quase imediatamente o espelho refletiu para o lado que faltava naquele triângulo: os homossexuais, a homofobia. E eu tenho certeza que todo mundo entendeu o que estava falando, mesmo que eu não tenha tido coragem de declarar ali, cândida e textualmente, que, sim, eu sou homossexual. Foi o seguinte:

Emicida - Se você abrir o leque, mano, tem tanto tipo de preconceito. Eu fico lutando, igual essa parada que você falou, "eu fico me policiando porque, se eu moscar, viro racista", e eu fico na mesma coisa comigo, porque se eu vacilar eu trato alguém diferente. Cê tem que ficar se policiando, isso aí é bem comum. Num momento tem o bagulho da proteção, puta, a gente nunca teve nada, a gente morou numa favela a vida inteira, não tinha comida, não tinha tênis, não tinha nada, e de repente você vê as coisas acontecendo. Um tênis, na favela, é a maior conquista que um cara pode ter, mano. Por isso cê vê todo mundo de tênis branco, limpinho - se é branco, limpinho, "mano, esse tênis é novo!". E com um tênis novo você é tipo Antônio Ermírio de Moraes, tá ligado?

Então as pessoas se apegam muito a isso, mas expõe de uma forma simples uma conquista, e, se você olhar com atenção, é uma pobreza de espírito muito grande sua maior conquista ser um tênis, uma garrafa de champanhe. Isso realmente muda a sua vida? Os caras se escondem atrás disso, e é mais uma forma de preconceito: cê tá começando a ir pro lado das coisas que combatia. Embora você chame as minas de "vagabunda" ou "vadia", você não gostaria que falassem assim com a sua mãe e com sua irmã.

PAS - E nisso a gente acaba descobrindo que todo mundo tem preconceito, né? A diferença é que uns policiam os seus e outros não.

Emicida - Sim, não sei quem falou pra nós uma vez, que é prova do preconceito... Acho que foi talvez minha mãe que perguntou: sabe a diferença do homossexual e do viado? Os caras falam que viado é o filho dos outros.

Jacira - Acho que fui eu...

Emicida - É, minha mãe que falou.

Jacira - Eu disse, lembro que tava preocupada com a sua irmã, e um dia eu disse assim: será que ela tá vivendo lá no meio dos veado, meu Deus do céu? Aí você falou: "Mas a senhora não disse que é preconceito?". Acabou de descobrir que eu tenho preconceito... Só porque até então eles não tinham adentrado a minha casa, puta que pariu, olha, eu também penso do mesmo jeito: tem que respeitar e tudo, desde que eles se mantenham da minha porta pra fora.

PAS - Esse é o funcionamento do preconceito, seja qual for...

Emicida - Total, cê vê como que o bagulho entra?

PAS - E a gente só tem preconceito contra o que não conhece (Jacira ri)... Você não sabe como vive uma puta, ou um gay, ou um negro, e aí não tem jeito.

Emicida - Tem a ideia assim: puta dá, viado é promíscuo e preto rouba. Já era. A ideia simples é essa. E aí é bem isso, cê vê como o preconceito tá ali. Quando é próximo a você, você tenta cuidar. Por exemplo, eu tenho um primo que é gay, e a mãe dele fala que ele é deficiente mental, mano.

Jacira - Ela trata ele.

Emicida - Ela trata ele com remédio!, tá ligado?

PAS - Como se fosse doença...

Emicida - Puta, mano, e ninguém assume que o cara é gay. É só falar. É só deixar o cara. O cara é gay, mano. E pior, que quanto mais cê tenta esconder mais fica aparente. Pô, todo mundo sabe, se você ficar 15 minutos na casa dele você vai se ligar que, pô, o cara é gay.

PAS - De deficiente mental não tem nada?

Emicida - Não tem nada, ele é normal, tá ligado? Mas a mãe dele vai ficar te explicando, te dá milhares de explicações inúteis. Cê vê o receio dela de assumir pro mundo que tem um filho gay, que é um receio que o filho dela não tem, tipo "foda-se, sou gay".

*

Então, é mais ou menos isso que eu queria dizer, nada mais é preciso acrescentar. Aliás, sim, só uma coisa, ou duas: não é maravilhoso descobrir como mulheres, negro(a)s, homossexuais (e outras tantas ditas "minorias") podem se sentar numa mesma mesa e conversar de modo aberto, pacífico e harmonioso, se assim quiserem? A quem mesmo interessava desesperadamente nos separar e nos desunir?

quinta-feira, outubro 14, 2010

osso duro de roer

Algumas coisas que eu (acho que) entendi sobre "Tropa de Elite 2":

a) No primeiro filme, gostei da dubiedade com que era desenhado o Capitão Nascimento. Era sempre possível dizer que o público que se identificava com ele o fazia por conta própria, de suas próprias perversidades. Agora, não, me parece óbvio que Capitão Nascimento é o herói particular de José Padilha. O cineasta defende com unhas e dentes seu sanguinário personagem. É uma postura corajosa (é preciso muito peito para defender de peito aberto e cara limpa alguém que represente a direita mais sanguinolenta). E uma postura perigosa (porque a direita é sanguinolenta, ainda que sob o pretexto repetido mil vezes por Padilha, de que a direita sanguinolenta é a direita sanguinolenta por "culpa" do "sistema"). Para variar, é uma postura catártica.

b) Acho curioso notar, pelos comentários que tenho ouvido por aí, que "Tropa 2" se insinua bem mais unânime que "Tropa 1" - "um puta filme", já ouvi murmurar até quem dizia odiar o primeiro anos atrás. Isso me faz me indagar sobre a relação que nós, espectadores, mantemos com esse perturbador Capitão Nascimento. No primeiro filme, era possível classificar de "fascista" o vizinho do andar de baixo, caso ele vibrasse com a "ultraviolence" do personagem sufocando "bandidos" em sacos plásticos. Mas e agora, que o Capitão Nascimento volta aparentemente mais sutil, embora tão feroz e tão assassino quanto sempre? Conseguiremos gostar de alguns gestos do Capitão Nascimento, e mesmo assim reconhecer nos atos fascistas dele pedaços dos nossos próprios atos fascistas cotidianos, subterrâneos, clandestinos - e quase nunca nomeados? O Capitão Nascimento, esse espécime nada raro da direita sanguinolenta, somos nós mesmos?

c) Acho graça das inúmeras vezes que ouvi falar que o "2" é um filme "sobre a corrupção dos policiais e dos políticos" - alôôôô, tem alguém aí?! "Tropa 2" é um filme sobre a corrupção de TODOS NÓS. Quem paga as milícias somos nós, quem elege os políticos somos nós. Milícia, polícia e político apertam o gatilho que NÓS determinamos que seja apertado, mas não temos coragem de apertar com nossos próprios dedos - assim como o fato de alguém fatiar por nós o boi que a gente come não nos faz menos assassinos de bois (e frangos, porcos, coelhos, codornas, alfaces, carvalhos, eucaliptos, cabreúvas). Quem tá na selva é para se alimentar, quem tiver de sapato não sobra.

d) Nosso "espaço público" raramente mistura esfera pública e esfera privada com propriedade e lucidez, e José Padilha é um dos que sabem fazê-lo brilhantemente. Em "Tropa 2", ele demonstra que o imbroglio político-policial que provoca uma insuportável carnificina no Rio de Janeiro tem, como uma de suas origens centrais, um drama da vida privada - um triângulo amoroso, simples assim. Prédios, máquinas, cédulas de dinheiro, metralhadoras e instrumentos de tortura foram e são TODOS fabricados por nós. Mesmo na esfera pública, somos William Shakespeare e Nelson Rodrigues. Se Lula for o "nosso" rei Lear, Cordélia, Goneril e Regan poderiam ser Marina Silva, Dilma Rousseff e Erenice Guerra, não sei se necessariamente nessa ordem.

e) Não entro em detalhes para não estragar o filme de quem ainda não viu, mas o mais bonito e audacioso de "Tropa 2", na minha opinião, é a aliança firmada entre a esquerda e a direita para detonar o "centro" - o verdadeiro inimigo comum, o monstro de mil caras que não ousa vir à luz nem muito menos declinar seu nome e sobrenome. Não sei em quem o Padilha vota, mas seja em quem for me parece uma aposta tudo-ou-nada, arriscada, um salto talvez suicida. Do meu ponto de vista, se for eleito o "centro" - o monstro de mil caras, José Serra, & seus demistas-fundamentalistas de esgoto -, a quadrilha disfarçada de cordeira estará de volta ao poder central de que sempre desfrutou no Brasil, e Padilha terá perdido sua alta aposta, fragorosamente. Por outro lado, se vencer Dilma Rousseff, o "centro" que não ousa dizer seu nome estará exposto nu e cru à luz do dia, na vice-presidência e em seu partido, PMDB, que até agora eu não consegui decifrar em que banda toca. Nesse caso, quem sabe, o Padilha até ajuda o PT a enquadrar seus próprios monstros-de-mil-caras, e sai empatado do truco.

f) O Padilha é bacana porque arrisca, arrisca alto, arrisca tudo. O final romântico do filme me faz não conseguir decidir se o Padilha é simplesmente um pirado romântico ou se é alguém que já enxergou uma luz no fim do túnel. A gente, Brasil, precisa se arriscar mais, não temos tempo de temer a morte, é preciso estarmos atentos e fortes.

g) O Padilha não é bacana, porque estiliza a favela como qualquer tem feito para ganhar seus tostões qualquer cineasta tipo "estética da fome" (ó, que oásis continua sendo "Cinco Vezes Favela", esse lindíssimo filme espontaneamente nacional). O Padilha não é bacana, porque estiliza a violência como o faz qualquer filme vagabundo de Hollywood. A chuva de balas e o rio de sangue em "Tropa 2" me desestruturam, são insuportáveis para mim. Nunca assisto a filmes violentos de Hollywood, porque detesto a indústria de guerra, chumbo e sangue que os Estados Unidos vendem como "cultura" e/ou "entretenimento" supostamente inofensivo. Já está evidente que José Padilha almeja o trono de imperador da "nossa" Hollywood, de rei Lear da Renascença do cinema brasileiro - e vai ser um saco para mim ter que ficar vendo às dezenas seus filmes de carnificina - só porque sei que há conteúdo do mais massudo por baixo do vendaval de vísceras que ele exibe com prazer sadomasoquista.

h) Não aguento mais esse papo de "sistema". Para com essa lengalenga de "sistema", seu Padilha - ou será que estou confundindo você com seu personagem-(anti-)herói, o Capitão Nascimento? Pois então, Coronel José Nascimento Padilha, o "sistema" é o teu (e o meu) sistema neuronal. O "sistema" é nervoso, é psíquico (e por vezes psicopata). Vem de dentro e sai vomitado para fora, e não vice-versa. Cidadãos corruptos elegem políticos corruptos e delegam a policiais corruptos o extermínio daqueles que eles acreditam ser o "mal" - curiosamente, o "mal" está sempre lá fora, lá longe, lá no prostíbulo, lá na boate gay, lá na favela, lá no Nordeste - nunca está aqui dentro de casa, dentro do cérebro. 99% de nós acreditam que não somos racistas, e 99% de nós conhecemos gente que já sofreu racismo (só para ficar no exemplo mais óbvio). Na contramão, cidadãos honestos elegem políticos (que delegam policiais) honestos, que se empenham por melhorar as condições de vida de todos nós (e não só da nossa #patotinha, de nossa #panelinha - ei, você aí, leitor!, conhece alguém que empobreceu durante o governo Lula? Se conhece, me apresente, por favor). Às vezes, o cidadão corrupto que faz tudo isso convive no mesmo corpo com o cidadão honesto que faz tudo isso ("Clube da Luta", Hollywood, misoginia, manja?) O inferno não somos os outros, o inferno é nóis, tá ligado? Starts with u, tudo começa por nós mesmos.

P.S. (em 15 de outubro de 2010): Segundo me conta no Twitter @jumontflores, José Padilha afirmou ontem num debate que votará nulo. Só consigo pensar que é o incrível caso do cineasta que não entendeu os próprios filmes. O diretor faturou R$ 28 milhões com "Tropa de Elite 2", em apenas uma semana. Para ele, que ganhou notoriedade internacional com o documentário "Garapa", sobre a miséria extrema no Nordeste brasileiro, não parece ser significativo o fato de 28 milhões de conterrâneos terem saído da miséria extrema nestes últimos oito anos. Tiremos nossas próprias conclusões, começa pela gente.

terça-feira, outubro 12, 2010

sem lenço, sem documento (ou: a vida não se resume a festivais)

O Brasil caminha para frente a passos largos, e essa é uma constatação que os não-tolos já encampam com facilidade, sem resistências e com júbilo. No Brasil de 2010, um festival de rock que procura beliscar a mitologia de Woodstock o faz sob os discursos da ecologia e da sustentabilidade - eis um ganho indelével, indubitável. O SWU trouxe em sua embalagem um mundo de materiais recicláveis, telhados verdes, banhos de sete minutos e cápsulas para coletar cinzas de cigarro - é um imaginário sedutor, fascinante mesmo, e não há de causar mal nenhum a uma juventude na qual não há descamisados nem caras-pintadas.

Eu estive lá, e aqui nos meus labirintos passei o tempo todo confrontando o SWU com o Woodstock que não conheci, e, também, com o maravilhoso filme "Aconteceu em Woodstock", do maravilhoso cineasta Ang Lee, que me fez quase morrer de nostalgia pelo que não vivi. E, tenho de confessar, na maior parte do tempo me senti mais longe de Woodstock que jamais estive. Mas tampouco posso negar: foi uma experiência perturbadora, a começar mesmo pelo termo "sustentabilidade", que esteve em todas as bocas na Itu de 9, 10 e 11 de outubro, mesmo quando em tom de zombaria salpicada de desconforto (e orégano, outro condimento onipresente no SWU).

De volta ao começo: o Brasil avança em passos firmes rumo ao futuro, mas por isso mesmo é preciso estar atento e forte (não temos tempo de temer a morte), é preciso processar joios e trigos (e recolher cada bago do trigo, e decepar a cana, e conhecer os desejos da terra...). É preciso (e prazeroso) reconhecer os progressos e reconhecer também os retrocessos que procuram puxar os pés dos progressos da superfície para os subterrâneos. É preciso tentar (ao menos tentar) separar o que é "novo" nesse dia que vem vindo do que é slogan, marketing, disfarce, fundamentalismo, obscurantismo, conservadorismo pintado em verniz verde-água.

Na "Revista Sustentabilidade", Silvia Dias demarcou brilhantemente o que está em jogo, no texto "SWU expõe as contradições de quem vê sustentabilidade como oportunidade de marketing". Vou tentar não repetir os argumentos de Silvia, mas acho que, sim, também tenho algumas observações a acrescentar.

Inclinado a certo grau de messianismo religioso, como costuma acontecer em qualquer festival (e em quase todo show) de rock, o SWU foi um espetáculo de alma branca, mesmo quando vestida sob os uniformes-padrão da multidão de camisas-pretas que cultuam as bandas mais "pauleira". Para um jornalista trabalhando na cobertura do evento, foi duro ter de passar, a cada minuto, por cordões de isolamento e paredes de segurança compostos quase sempre e quase integralmente por homens (e umas tantas mulheres de porte masculino) negros. Fernando Anitelli, d'O Teatro Mágico, declarou, perante um descampado verde, imenso e aparentemente improdutivo, que é impossível falar sobre sustentabilidade sem falar sobre agricultura familiar e reforma agrária - e eu, embriagado pelos bastidores e pelas muralhas de serviços, acrescento: é impossível falar sobre sustentabilidade sem sequer arranhar o tema da desigualdade racial brasileira. O discurso pode até ser verde, mas nós somos brancos-amarelos-negros-etc. - nós somos cor de carne.

Verde é a moda, e no SWU nem parecia que estamos no meio de uma campanha eleitoral neste país habitado por Rainhas (barbudas) da Idade da Pedra e pela Fúria Contra o Sistema (filmada pela Globo, desde que sem rebelião e, principalmente, sem o boné do Movimento dos Sem-Terra - "quem é MST?", perguntou pelo Twitter um neoverde mais afoito). Recordei minha irmã mais velha, que me repreendia quando eu tinha 16 anos, por ficar vidrado na tela global do primeiro Rock in Rio, poucos dias antes da (des)aprovação da emenda pelas eleições diretas. Em 2010, à beira da alternância de poder no Brasil, esse foi um tema-tabu no SWU - pouco ou nada se falou sobre eleição, não houve camisetas de Dilma Rousseff (eu trouxe a minha, mas não tive coragem de usar), nem de José Serra (existem camisetas de José Serra?), nem de voto nulo, nem nada. Nem da verdejante Marina Silva.

Mas, ah, sim, nós somos cor de carne - negra, amarela ou branca. O rock'n'roll é um fenômeno pálido, louro e atlético, se tomarmos como parâmetro a escalação ideológica do SWU - longe vai o tempo em que Jimi Hendrix, negro como as noites que não têm luar, se despedia do rock e da vida lambendo as guitarras lamacentas de Woodstock. O ecopopcapitalismo autossustentável ensaia um "novo" discurso, mas no backstage (e mesmo sob os holofotes) flerta, namora e trepa com o velho status quo de sempre - aquele que clama que bolsa-família é esmola assistencialista, que cotas universitárias para negros são racismo ao contrário, que a mulher presidenciável é reencarnação abortiva do satanás, que homossexuais assacam heterofobicamente o pobre Marcelo Dourado.

O status quo pode vociferar contra as cotas, mas é praticamente contumaz das cotas. No panteão de estrelas do SWU, houve cotas mínimas para negros (BNegão - quem mais?), mulheres (a "doce" Regina Spektor, a "sensual" Joss Stone), minorias sexuais (Cansei de Ser Sexy - quem mais?), nordestinos (Mombojó), minorias etárias e/ou de porte físico (Pixies), gente "independente" (O Teatro Mágico, o palco Oi - oi? - praticamente inteiro).

Existe algo mais selvagemente capitalista que um festival feito por e para machos-adultos-brancos-sempre-no-comando? O que significa à vera o verniz verde-Marina (mulher, negra, nortista, evangélica), diante de tanto hambúrguer, tanta latinha, tanto copinho de plástico, tanta "very important people", tanto óleo diesel na estradinha vicinal de poeira, tanta mais-valia? No camping "premium", as mulheres tinham oito chuveiros, dos quais quatro funcionavam; no camping "ralé", o self-service do refeitório começou custando R$ 40 e terminou custando R$ 20), e assim a roda-gigante girava...

Mas o que significa à vera o "movimento" liderado por Eduardo Fischer se, como bem lembrou Flávia Durante, o megaempresário ultracapitalista autossustentável atende também pela conta transgênica da Monsanto? O que aqui é Marina Silva (o que em Marina Silva é Marina Silva?), o que aqui é "Avatar"? Quanto do discurso verde é verde mesmo, quanto é cobertor para mais e mais autoritarismo, capitalismo, clientelismo, patrimonialismo, TFPismo?

São perguntas complexas à espera de ser respondidas, e certamente serão intrincadas e estratificadas as respostas. Sob graus maiores ou menores de cinismo e pragmatismo, é preciso voltar ao ponto de início: pode até parecer que não, mas temos avançado, crescido e amadurecido, sim, a passos fortes. Se você chegou até o último parágrafo deste texto, mesmo depois de se rebelar contra a chatice desse discursinho "politicamente correto" pró-negro/mulher/homossexual/nordestino/sem-teto/sem-terra, acrescento umas últimas afirmações. Uma nação fraca, enrustida, é feita por cidadãos mal-assumidos - por serem índios, negros, mulheres, homossexuais, gordos, magros, viralatas etc. etc. etc. Uma nação que se ama e se respeita é construção de um festival de indivíduos que se (auto)amam e se (auto)respeitam, se (auto)aceitam e se (auto)sustentam. Começa por nós mesmos. Ou, como disse BNegão, você é parecido com aquilo que critica. Ou, mais ou menos como disse Fernando Anitelli: Com você... Você mesmo!!! Ou ainda, como disse eu outro dia ali no Twitter, eu sou sempre parte daquilo que critico.

(P.S.: Dedico este texto a mim mesmo e a muitas pessoas que saberão se reconhecer - entre elas, à educadora @GabiDioguardi.)