quarta-feira, setembro 01, 2010

triste cuíca, saudosa maloca

Cacilda, tem mais teia de aranha aqui no blog que na minha coleção de CDs... Mas tentemos reanimar o moribundo, já que tenho recebido pedidos nesse sentido - e porque, na real, nunca foi minha intenção abandoná-lo (é a luta diária pela sobrevivência autônoma, que se choca com o prazer - gratuito - de escrever blog).

Mas é isso aí. Reportagem recém-saída dos miolos, da "CartaCapital" 611, de 1 de setembro de 2010 (hoje!):

A encruzilhada dos batutas

Entre o túmulo e a celebração do morro, o samba dos centenários Noel Rosa e Adoniran Barbosa forjou uma identidade para o País


POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Ambos eram sambistas. E completariam 100 anos neste 2010, se estivessem vivos. Terminam aí as semelhanças entre dois dos mais importantes edificadores da música brasileira, o carioca Noel Rosa e o paulista Adoniran Barbosa.

Filho de migrantes italianos, Adoniran nasceu em Valinhos, no interior paulista, em 6 de agosto de 1910. Só aos 41 anos conquistou o primeiro êxito como compositor, quando Saudosa Maloca ficou popular na gravação dos Demônios da Garoa. Morreu em 1982, aos 72 anos, após sucessivas ondas de ostracismo e sem adquirir plena notoriedade como intérprete dos próprios sambas.

Noel nasceu poucos meses depois de Adoniran, em 11 de dezembro de 1910. E morreu muito antes, em 1937, aos 26 anos. Carioca do bairro de Vila Isabel e descendente de portugueses migrados para o interior fluminense, começou a se firmar como autor aos 19 anos, quando lançou em sua própria voz o samba Com Que Roupa? (1930). Foi logo adotado como fornecedor crucial de composições para os cantores Francisco Alves e Mário Reis, mas também traçou trajetória de intérprete, num tempo em que a própria música nacional ainda lutava por forjar sua identidade.

A história do samba carioca é tão perene quanto foi breve a vida de Noel, e ele é reconhecidamente um dos definidores da solidez do gênero. As dificuldades que Adoniran sofreu para se consolidar como músico de respeito são as mesmas que fustigam até hoje o “túmulo do samba”, para adotar os dizeres jocosos do bossanovista carioca Vinicius de Moraes.

O Rio vivia, ao final da década de 1920, a efervescência da linhagem de samba amaxixado de Sinhô e do bairro proletário da Cidade Nova. Moço branco de classe média baixa, Noel preferiu subir os morros para conhecer e absorver outros saberes, da Mangueira de Cartola ou especialmente do samba percussivo do Estácio de Sá de Ismael Silva.

A parceria Noel-Ismael floresceria. Francisco Alves passou a lhes comprar sambas e a se inserir nos rótulos dos discos como suposto coautor. Assim nasceram Adeus, Gosto mas Não É Muito (1931), A Razão Dá-Se a Quem Tem e Assim, Sim! (1932), esta uma das poucas canções de Noel gravadas pela maior estrela feminina de então, Carmen Miranda. Segundo relatam João Máximo e Carlos Didier em Noel Rosa – Uma Biografia (Linha Gráfica/UNB, 1990), ele não apreciava a cantora, porque ela preferia as marchinhas aos sambas.

O jovem Noel conviveu com Francisco Alves, Carmen Miranda, Mário Reis, Pixinguinha (orquestrador de boa parte de suas gravações), Cartola (que passaria quatro décadas desaparecido, após essa fase), Ismael Silva, Orestes Barbosa (autor da letra de Positivismo, de 1933). No Rio, os fundadores escreviam em conjunto a história do samba, que ganhava corpo pelo interesse de amalgamar uma identidade brasileira, instigado pelo governo Getúlio Vargas, plantado no Palácio do Catete.

Não aconteceria o mesmo com Adoniran, nem com os músicos de São Paulo de modo geral. João Rubinato (seu nome de batismo) precisou primeiro radicar-se na capital do estado, militar em empregos subalternos, participar de programas de calouros (um dos sambas que tentou cantar foi Filosofia, de André Filho e... Noel Rosa) e ouvir de diretor de rádio que sua voz era “boa para acompanhar defunto”. Até hoje se disputa se Vinicius falou ou não que São Paulo era o túmulo do samba, mas de todo modo a expressão tinha antecedentes bem mais próximos.

Dona Boa foi a primeira composição gravada de Adoniran. Aos 25 anos, ele venceu com essa marchinha um concurso para o carnaval paulistano de 1935, participando do trio Mosqueteiros da Garoa, com Alvarenga e Ranchinho. A canção sairia em disco na voz de Raul Torres, paulista de Botucatu, mais identificado com cateretês e modas de viola que com o samba. Não se tem notícia de que Noel tenha tomado conhecimento da existência de Adoniran. Se tivesse, provavalmente implicaria com o colega, do mesmo modo como implicava com Carmen Miranda.

As canções compostas por Adoniran na década de 1930 não foram conhecidas por Noel nem por mais ninguém. Viraram insucessos de um músico que não conseguia crescer e aparecer. Mambembe qual artista circense, ele não desistiu do cobiçado ambiente do rádio. Enquanto a elite paulista tentava apear Getúlio do poder e transformava a Rádio Record na “voz da revolução” (no Movimento Constitucionalista de 1932), o aprendiz de artista foi se virando entre locutores, radioatores e humoristas, vários deles de fato egressos do ambiente do circo, que fora a mídia dos tempos em que a mídia não existia.

Celso de Campos Jr. conta no relançado Adoniran – Uma Biografia (Globo, 2003) que Alvarenga e Ranchinho almejavam ser intérpretes sérios de tangos e valsas, “mas bastava eles abrirem a boca para o público cair na gargalhada”. O jeitão caipira da dupla soava como engraçado para seus patrícios, e o mesmo aconteceu com Adoniran. Sob a pena do roteirista (e futuro parceiro musical, e futuro suicida) Osvaldo Moles, ele foi encarnar tipos cômicos na Record. Com personagens como Zé Conversa, Giuseppe Pernafina e Barbosinha Mal-Educado da Silva, o humorista virou coqueluche nos anos 1940 por zombar daquilo que realmente era, um moço interiorano de falar acaipirado.

Noel já era morto quando Adoniran encontrou sucesso na autodepreciação. Sambas forrados de sátira e crítica social, como São Coisas Nossas, Fita Amarela (1932), Três Apitos, Feitio de Oração, Não Tem Tradução, O Orvalho Vem Caindo e Onde Está a Honestidade? (1933), haviam feito mais que lhe dar fama e abastecer a garganta e os bolsos de Francisco Alves. Ajudaram a moldar intérpretes de excelência, como as duas cantoras favoritas de Noel, a doce Marília Baptista e a indomável Aracy de Almeida, futura jurada rabugenta dos programas (paulistas) de calouros de Silvio Santos. E deram combustível até mesmo de desafetos, como o sambista Wilson Baptista.

Jovem brilhante e à procura de reconhecimento, esse último entabulou em 1934 uma polêmica musical com seu influenciador, da qual nasceram Rapaz Folgado, Feitiço da Vila, Palpite Infeliz e João Ninguém, por parte de Noel, e Mocinho da Vila, Conversa Fiada e Frankenstein da Vila, por Wilson. Essa referia-se a uma pronunciada deformação no queixo adquirida por Noel durante o parto, de implicações psicológicas provavelmente subestimadas por seus biógrafos. A briga musical se encerraria de modo surpreeendente, com Terra de Cego, assinada por ambos em parceria.

Noel foi um jovem boêmio e desregrado. O diagnóstico de tuberculose aconteceu em 1934, pouco antes do casamento forçado com a namorada Lindaura, do suicídio do pai e do fracasso do romance com Ceci, tida como seu grande amor. Atormentado pelo medo de loucura e suicídio serem hereditários, Noel viveria dali em diante como um romântico típico, à moda de Lord Byron.

Sua caudalosa produção diminuiu bastante. A fase final até somou alguns temas mais vibrantes, como O X do Problema (1936), mas rendeu sobretudo sambas rasgados, autopiedosos, de fibra autodestrutiva, como Triste Cuíca (1934), Conversa de Botequim, Pierrô Apaixonado, Silêncio de Um Minuto (1935), Eu Sei Sofrer, Pra Que Mentir? e Último Desejo (1937). Todas atravessariam as décadas e romperiam o século XXI sem perder o charme.

Em 1945, Adoniran virou ator em filmes-chanchada da Cinédia. O máximo de seriedade que conquistou foi interpretar na Vera Cruz um integrante do bando do personagem-título de O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto. A veia cômica prevaleceu, inclusive em paralelo algo tenso com o caipira por excelência inventado por um Mazzaroppi em plena ascensão de popularidade.

Só voltou a tentar a lida de compositor no final dos anos 1940. Em 1951 aconteceu Saudosa Maloca, que nada guardava de carnavalesco ou humorístico. Era a história de três paulistanos que viam seus barracos serem demolidos para a construção de um edifício e concluíam que os homes tá com a razão, nós arranja outro lugar. Conseguiu gravá-la, e de novo nada aconteceu. Só seria notada quando relançada pelos Demônios da Garoa, no ano seguinte.

A veia humorística contagiaria a música naquele mesmo 1952, com O Samba do Arnesto, conhecido só em 1955, outra vez na interpretação clássica (e sublinhada na pronúncia acaipirada) dos Demônios. Devagar, o sucesso esquentava a chama do autor, que se sentiu mais seguro para moldar um samba à paulista, entristecido mesmo quando puxado na graça, e sempre movido por referências interioranas e/ou caipiras.

Surgiram Joga a Chave (1952), As Mariposas (1955), Apaga o Fogo Mané, Iracema (1956), Abrigo de Vagabudo (1958), No Morro da Casa Verde (1959), Tiro ao Álvaro e Prova de Carinho (1960). O mais melancólico dos sambas, Bom-Dia, Tristeza, foi lançado por Aracy de Almeida em 1957. Tinha letra de outro carioca, o poeta e diplomata Vinicius de Moraes, em momento pré-bossa nova e pré-túmulo do samba.

O início de êxito musical não alterou a rota. Em 1956, surgiu o programa de rádio Histórias das Malocas, dedicado a transformar em graça a tragédia narrada na Saudosa Maloca. Ali nasceu seu personagem mais famoso, o matuto Charutinho, em dupla com a Pafunça da comediante Mariamélia. O músico Adoniran voltaria ao pódio no fatídico 1964, quando os Demônios da Garoa emplacaram seu Trem das Onze.

À melancolia e ao humor acrescentava-se outra característica que tornaria perenes Adoniran e o samba paulista. A letra citava o distante bairro do Jaçanã e fortificava a vocação do autor em circular por sua cidade e fazer a crônica musical de suas paisagens, de Jaçanã ao Bexiga, da Casa Verde ao viaduto Santa Ifigênia. A gaúcha Elis Regina encantou-se com Adoniran e levou-o ao seu O Fino da Bossa, na TV Record (em 1980, registraria com ele um antológico dueto de Tiro ao Álvaro).

A locomotiva dos Demônios produzia mais sucessos de sua lavra, mas Adoniran, bom paulista, se dedicava a remoer mágoas e sofrer de inadaptação. Egresso do rádio, não se encontrava na televisão. Em 1966, compôs Já Fui uma Brasa, de queixa algo conformada pela voga da jovem guarda: Lembro que o rádio que hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro/ tocava Saudosa Maloca/ eu gosto dos meninos desse tal de iê-iê-iê/ porque eles cantam a voz do povo/ e eu, que já fui uma brasa,/ se assoprar eu posso acender de novo.

No início dos anos 1970, Adoniran afinal aportou no novo destino preferencial de circenses, mambembes e errantes. Virou ator de novelas da TV Record. Em 1972, o produtor Fernando Faro levou a seu programa MPB Especial, da TV Cultura, o Adoniran compositor, e cantor. Em 1974, 37 anos após a morte de Noel, Adoniran Barbosa chegou ao mercado para ser o primeiro LP da história do humorista que queria cantar.

Nesse e no disco seguinte, fez um apanhado da própria história, em versões sentidas de seus sambas, de Saudosa Maloca a Já Fui uma Brasa. Em 1980, Faro lhe propiciou nova homenagem, na forma do terceiro e derradeiro LP, feito de duetos com fãs então em evidência, como Elis, Clara Nunes (numa versão matadora da trágica Iracema), Roberto Ribeiro, Clementina de Jesus, Djavan, Gonzaguinha. Dentro de três anos, às vésperas da redemocratização do país, estariam mortos Adoniran, Elis e Clara (os dois primeiros, no túmulo do samba).

Havia mesmo mais diferenças que semelhanças entre “o poeta da Vila” e “o poeta do Bexiga”. O carioca expectorou com pressa o orgulho que tinha de sua “modernidade”, cidade e país, e ajudou a construí-los. O paulista ruminou por décadas antes de sussurrar, quase para si mesmo, a vergonha que tinha de ser quem era e a vontade represada de se orgulhar da dita “caipirice”, e mesmo assim ajudou a construir sua cidade, seu estado, seu país.

Mas, não, tinham mais duas coisas em comum, que explicam sua importância equânime e colossal. Criavam mobilizados por um desejo nunca consumado de liberdade, um buscando e fugindo do xis do problema, outro seguindo o exemplo das mariposas e dando “vortas” em terno da “lâmpida”, enquanto o sol brilhava lá fora. E, sobretudo, exprimiam os sentimentos dos estratos subalternos aos quais nunca deixaram de pertencer. Afinal, eram sambistas, ambos.