terça-feira, janeiro 29, 2008

no wonder there's panic in the industry...

"carta capital" 480, 30 de janeiro de 2008.

o título da reportagem, you know, é recolhido de um verso de britney spears.

e, falar nisso, diz que(-diz-que-) o fábio assumpção, da rede globo, também andou indo para o "rehab", para a mesma clínica "rehab" das estrelas de hollywood, por que será, né?...

será que as indústrias, as "firmas", andam desparafusando o dispositivo trágico de enlouquecer as pessoas, às raias da síndrome do pânico? e, sabida a responsabilidade psicopata das indústrias na volta do parafuso, será que elas próprias, as pessoas (que, you know, somos "nozes") não têm sua cota de responsa íntima, particular e intransferível na volta do parafusão, na rebimboca da parafuseta?

não somos racistas? não somos sexistas? não somos capitalistas? não somos canibais? não criamos nossos próprios monstros, monstrinhos e monstrões?


PÂNICO NA INDÚSTRIA
A EMI anuncia que demitirá até 2 mil funcionários, e a greve em Hollywood ameaça se alastrar para gravadoras

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Tradicional casa fonográfica dos Beatles e dos Rolling Stones, a gravadora britânica EMI anunciou em 15 de janeiro uma reestruturação que implicará na demissão de 1,5 mil a 2 mil de seus funcionários nos próximos seis meses. Considerado o total de 5,5 mil contratados no mundo todo, o encolhimento resultante será de cerca de um terço.

Poucos dias antes, a empresa havia sido publicamente ameaçada por um dos líderes de vendagens de discos, o cantor de pop dançante Robbie Williams. Provavelmente inspirado pela greve de roteiristas que há três meses abala Hollywood, Williams se declarou em greve contra a EMI e afirmou que não entregará o álbum que deve à casa, com lançamento previsto para setembro.

Segundo o jornal britânico The Times, um dos grupos de rock mais populares do planeta, o Coldplay, estaria disposto a aderir à greve. "Artistas querem trabalhar com gente de música, não com homens de negócios", afirmou o empresário da banda, Dave Holmes, em referência à recente aquisição da EMI pelo fundo de investimentos britânico Terra Firma, em meio a crise de vendas e denúncias de fraude na gestão anterior.

No dia 17, o anúncio de que os Rolling Stones lançarão um CD por outra gravadora (a norte-americana Universal) forneceu indicação de que não será renovada a parceria de 16 anos com a EMI, que expira em maio. No ano passado, Paul McCartney rompeu uma ligação de quatro décadas e meia com a multinacional, que vive às voltas com litígios judiciais com o espólio dos Beatles. O CD mais recente de Paul foi lançado em parceria com a rede de cafés Starbucks.

"O foco da redução de pessoal é eliminar possíveis áreas de duplicidade de funções dentro do grupo, permitindo mais agilidade nas tomadas de decisão e uma estrutura mais sustentável dentro do novo cenário", ameniza Marcelo Castello Branco, presidente do escritório brasileiro da EMI, que esteve no epicentro das denúncias de fraude em 2006. Segundo ele, a filial local (que tem Marisa Monte e Charlie Brown Jr. entre os nomes mais rentáveis) passou por ajustes recentes e, assim, supostamente não seria colhida pelas novas turbulências na matriz.

Os conflitos na EMI formam a ponta mais estridente de um cenário a cada dia mais grave, o da derrocada das grandes gravadoras de discos frente a pirataria, downloads, circulação virtual de música e inadaptação aos novos tempos.

Parece sintomático que outra das maiores gravadoras, a Sony BMG, busque âncora salvadora no "disco mais vendido de todos os tempos", Thriller, de Michael Jackson, com 105 milhões de cópias desde o lançamento, em 1982, até hoje. Prepara para março uma reedição pomposa, acrescida de DVD, gravações inéditas e novas versões de Billie Jean, Beat It e outras músicas, pilotadas por artistas da moda na black music, como will.i.am, Akon, Fergie e Kanye West. Tão assolado por escândalos quanto a indústria por rombos, Michael em pessoa permanece calado e em constrante crise criativa.

Outra figura-símbolo do atual momento do mundo da música se chama Britney Spears, também da Sony BMG. Ex-atriz mirim do Clube do Mickey, ela colabora com o pão nosso de cada dia da mídia sensacionalista com uma sucessão interminável de dramas pessoais, atitudes descontroladas e ameaças suicidas.

Tratada como piada enquanto se autodestrói em público, Britney faz "sucesso" por razões que nada têm a ver com música. Mas em Blackout, CD ultracomercial lançado no final de 2007, espalha pistas sobre seu estado e o das gravadoras. Não é surpresa este pânico na indústria, canta, entre lamúrias como vocês não vão prestar atenção em mim? e vocês querem um pedaço de mim? Vendeu até agora cerca de 2 milhões de exemplares, contra 22 milhões do recorde da artista, em 1999.

O estado de espírito não é só dela, mas da maioria dos nomes de ponta no atual mercadão musical. Britney, Robbie Williams e as jovens Amy Winehouse e Lily Allen marcam presença menos pela música que pelas incessantes idas a clínicas de reabilitação e desintoxicação. Rehab, interpretada por Amy com vozeirão de cantora antiga de jazz, foi uma das canções mais expressivos de 2007. Querem me levar para a reabilitação/ e eu digo não, não, não, ela canta, entre uma e outra internação.

Outro dos pontos controversos da propalada reestruturação da EMI diz respeito à busca de patrocinadores privados para os artistas sob contrato. "Isso não é novidade. Artistas como Marisa Monte, Caetano Veloso e Ivete Sangalo atuam exemplarmente dentro dessas possibilidades", diz Castello Branco. "Queremos ser um driver dessas alternativas e atuar em parcerias que contribuam para a maior visibilidade de nossos projetos."

Pode não ser novidade, mas o fato é que, pressionadas pela insuficiência de lucro nas lojas, as gravadoras cada vez mais tentam abocanhar outras fontes de receitas dos artistas, como as de shows e contratos publicitários. A Sony BMG, por exemplo, anunciou a criação da subsidiária Day 1 Entertainment, uma "agência de talentos" para gerenciar as carreiras de músicos e, talvez, jogadores de futebol.

"A previsão é de que neste primeiro ano a Day 1 faça de 300 a 400 shows e contrate de três a cinco artistas no Brasil. Só na América Latina já chegamos a 50 artistas", comemora o gerente-geral local da Sony BMG, Alexandre Schiavon. "Apesar de outra grande queda de mercado neste ano, que, creio, deva ficar em 30%, fechamos o segundo ano consecutivo com lucro e 21% acima do ano anterior."

Devem estar relacionadas a esse novo contexto afirmações do empresário de Robbie Williams, Tim Clark, de que o novo todo-poderoso da EMI, Guy Hands, age como um "fazendeiro" que "escraviza" seus contratados. No ano passado, Williams teve de amargar o fato de a EMI usar o relativo fracasso comercial do álbum Rudebox como um dos bodes expiatórios da crise que levou à venda ao fundo de investimentos. Agora, um editorialista financeiro do Times tomou partido da EMI e classificou como "risível" a queixa sobre escravidão. Astros do rock, lembrou, estão entre os seres humanos mais ricos e paparicados do planeta.

Mas não são inéditas acusações como a de Williams. Em 1994, George Michael processou a Sony por um suposto "contrato de escravidão". E perdeu. Em 1993, Prince estampou na bochecha o termo "escravo", em protesto contra sua gravadora na época, Warner. Em 2007, ele distribuiu o CD mais recente gratuitamente, em shows e encartado numa edição do jornal britânico Daily Mail.

Contra o modelo criado pelas gravadoras, insurge-se um novo, capitaneado por outro nome ejetado da constelação da EMI, o Radiohead. No final do ano passado, o grupo alvoroçou a indústria mundial ao lançar o álbum In Rainbows de modo independente e virtual. Inicialmente disponível apenas no site da banda, foi comercializado em download, por um preço a ser definido individualmente por cada consumidor, e que poderia ser igual a zero.

Os resultados concretos do levante do Radiohead ainda são controversos, mas é fato que o grupo conquisou repercussão ímpar e se libertou da faixa média de direitos autorais praticada pela indústria cultural (em regra, cerca de 10% do total das vendas) e ficou com a totalidade do valor arrecadado no sistema "faça você mesmo".

Outro exemplo de mudança de foco nas relações entre a música e a indústria fonográfica foi dado pelo brasileiro Gilberto Gil, que no último dia 21 se despiu das vestes de ministro da Cultura para anunciar, numa entrevista coletiva no escritório brasileiro do Google, a criação de um canal exclusivo dentro do site de compartilhamento de vídeos YouTube.

O endereço www.youtube.com.br/gilbertogil passa a disponibilizar, gratuitamente, a produção audiovisual do músico, o que inclui desde vídeos históricos a gravações inéditas de ensaios, cenas caseiras, bastidores e colaborações de fãs. Em apresentações recentes, o artista tem fugido à praxe proibitiva de casas de espetáculos para pedir que os espectadores filmem os shows em câmeras e celulares e os publiquem eles mesmos na internet.

Segundo Gil, o acordo com o Google não significa o abandono de um contrato de 30 anos com a Warner. "Acho que meu próximo disco, Cordel Banda Larga, será o último no antigo formato. Mas pretendo manter o vínculo com a Warner, até porque é instrutivo para eles, para que possam vivenciar comigo novos modelos de negócio", diz.

O músico-ministro contorna a questão ética por trás da duplicidade de funções que exerce e de um possível uso político do canal exclusivo no site do Google: "Me atenho ao lado artístico e empresarial. Se alguém filmar uma solenidade e publicar, a gerência do canal vai entender se é conveniente ou não manter". A gerência é feita pela equipe que faz o site de Gil, coordenada por sua esposa, Flora.

Como acontece em todo o YouTube, o canal se move na linha tênue entre a oficialidade e a informalidade, já que é farta a quantidade de pirataria em circulação, como em fonogramas pertencentes a gravadoras e editoras ou imagens antigas de propriedade de emissoras de tevê. "Alguém me mostrou um vídeo de Gil com os Mutantes no festival da Record (de 1967). É o caso de conversar com a emissora e legalizar o que ainda não for legal", afirma o presidente do Google Brasil, Alexandre Hohagen, que chefia uma equipe de 200 funcionários, iniciada há 30 meses. Na semana de estréia, o vídeo estava livremente disponível no canal.

A diretora de marketing do Google local, Patrícia Pflaeging, admite a tensão por trás da mudança de modelos, falando do susto da gravadora diante da proposta de liberar a obra de Gil no YouTube: "Na primeira reunião, a Warner queria morrer". O músico afirma: "É um exercício menos para o artista que para a gravadora, que precisa desesperadamente encontrar modelos ágeis, sair daquela coisa mastodôntica das 'majors'’ e entrar um pouco no universo das 'minors'".

Patrícia diz que uma carta-acordo foi assinada pelo Google e por Gil, mas o artista e Hohagen são uníssonos em afirmar que não existe um contrato em termos comerciais, nem geração de receitas para nenhuma das partes. "É uma ação que não visa lucro nenhum. Nesse momento, o objetivo é puramente artístico", diz o presidente do Google.

Se é assim mesmo, nesse ponto os 10% de direitos autorais pagos por gravadoras aos criadores são trocados por um redondo zero via internet. Quanto ao Google e cyber-empresas correlatas, entra-se num território de lucro mais ou menos impalpável. "Se atrair mais usuários, posso expandir o negócio, levar mais visitas ao site do Gil", afirma Hohagen, sem quantificar.

Mas, ao contrário do que Gil sugere, conglomerados de nome Google, Microsoft ou Apple nada têm de "minors". E são eles os adversários posicionados atrás das ruínas das velhas e palpáveis fábricas de discos.

quinta-feira, janeiro 24, 2008

a "sombra" do r...e...i...

esta saiu na "carta capital" 478, de 16 de janeiro de 2008.

boa praça pra caramba, o sujeito...


A SOMBRA DO "REI"
"Roberto Carlos não é o meu ídolo", diz Eduardo Lages, maestro que há 29 anos dirige a orquestra do cantor

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

É quase irreconhecível o homem que chega de calça jeans e camisa de botão de veraneio. Quem o vê nos ternos brancos, nas gravatas berrantes, no cabelo acaju e na postura pomposa que costuma usar na regência dos shows de Roberto Carlos não imagina que o maestro Eduardo Lages possa usar outro tipo de figurino ou se movimentar por outro tipo de cenário.

"Às vezes fico aborrecido quando saio, 'pô, ninguém vai me reconhecer hoje?'. Mas, de chinelo, bermudão, no supermercado, como vão me reconhecer?", comenta, brincalhão, num hotel no Brooklin paulistano, onde se hospeda numa segunda-feira de dezembro em que participará do programa de Hebe Camargo. Escudeiro iluminado e eclipsado pela popularidade do "rei", ele afirma que tem o privilégio de poder desfrutar simultaneamente do melhor da fama e do melhor do anonimato.

Lages trabalha à sombra de Roberto Carlos há quase três décadas, desde 1979, e ultimamente tem tentado deslanchar uma carreira própria como pianista e orquestrador. Desde 2005, lançou três discos solo consecutivos pela Som Livre, a gravadora da Rede Globo, da qual era funcionário fixo antes de se alistar na trupe do cantor mais popular do País. Daqui a poucas horas, apresentará à platéia de Hebe o resultado do recém-lançado CD e DVD Com Amor, que gravou ao vivo no Teatro Municipal da cidade onde nasceu há 60 anos, Niterói (RJ).

Não raro interpretado como um possível bode expiatório por trás do ambiente burocrático e aparentemente estático que envolve há décadas a aura de Roberto Carlos, Eduardo Lages se autodefine como um sujeito "muito normal". "Sempre fui uma pessoa feliz, bem-resolvida, filho de classe média, de médico com professora. Sempre tive muita sorte e oportunidades, meu mérito foi saber aproveitá-las na medida do possível", afirma, com gentileza.

Responde de viés sobre se a firmeza profissional de RC em nunca querer mudar corresponde a uma característica dele, o homem atrás dos arranjos estáveis e imóveis de Emoções, Detalhes, Jesus Cristo... "Às vezes é frustrante", diz, duas vezes seguidas. "Mas estou sempre querendo (hesita) impor o meu ponto de vista. Não impor, mas apresentar para ele. Claro, na maioria das vezes prevalece o que ele acha, porque ele é a estrela, o grande artista. Estou ali para atendê-lo."

Ao se referir ao chefe, pronuncia de preferência o nome duplo, na íntegra, sem afetar maiores intimidades. E conclui o raciocínio: "Procuro levar para Roberto Carlos as coisas que busco aqui fora, num mundo que não é o dele. Ele sabe que estou falando do coração quando digo 'que bonito isso que você fez, Roberto', e não por ele ser o rei".

Assim como sonha gravar um CD com "grandes clássicos da MPB", afirma que pediu "pelo menos umas 20 vezes" para RC gravar a bossa Eu Sei Que Vou Te Amar. Diz que lhe ocorreu pela primeira vez, durante a entrevista, a idéia de querer ouvir Canto Triste, de Edu Lobo, na voz do parceiro.

No disco de clássicos de sonhos, promete enfileirar duas, três ou cinco composições de Edu, Tom Jobim, Ivan Lins, Ary Barroso, Lupicinio Rodrigues, Dolores Duran. "Meus ídolos são em primeiro lugar Luizinho Eça (pausa), em segundo Tom Jobim (pausa), em terceiro Ivan Lins (pausa), em quarto Ary Barroso e em quinto Elis Regina. São esses".

Roberto é hors-concours, ou não entra na lista? "Meus ídolos são esses aí. Roberto Carlos não é meu ídolo musical, não." E torna a sentença mais completa, noutro momento, ao ser instado a refletir sobre que qualidades o cantor viu nele para construir parceria tão longeva: "Talvez eu não seja o ídolo de Roberto Carlos, musicalmente, assim como ele não é o meu. Não sou nenhum fenômeno, mas me empenho, sou fiel, dedicado, atendo ao que ele espera".

De fato, Eduardo Lages não é nenhum fenômeno, mas tem presença extensa, e bem anterior à coligação com o ex-rei do iê-iê-iê ("nunca fui da jovem guarda na minha vida"). Ri ao lembrar o início: "Tocava órgão na igreja católica de dia e em puteiro à noite. Brinco que ia do céu ao inferno em dez minutos, de ônibus. Mas nos puteiros e cabarés se apresentavam os grandes artistas brasileiros. Não existiam os espaços de hoje, Credicard Hall, Olympia".

Pouco anos mais novo que a impositiva geração de Roberto, Chico, Caetano, Gil, Elis e Edu, aterrissou no ambiente dos festivais (e até venceu alguns) quando a curva já era descendente. "Cheguei a fazer música de protesto, mas muito mais por ser algo que estava na onda, e não porque estava engajado. Era muito garoto."

Credita o desinteresse à paixão que nutre sempre pela música, nunca pelas letras das canções. "Tenho 19 músicas gravadas pelo Roberto Carlos. Não sei a letra de nenhuma. Nenhuma." Não cita que são canções que não tiveram maior expressão popular, mas usa o parceiro como escudo para justificar, divertido, a má memória: "Nem ele sabe as letras que fez, canta Detalhes lendo".

Em 1970, o músico marcou presença como arranjador e compositor do então rebelde grupo carioca MAU, o Movimento Artístico Universitário, de onde despontaram Ivan Lins, Gonzaguinha e Aldir Blanc. Com Elis, o grupo foi logo cooptado pela Globo, que lançou o turbulento programa musical Som Livre Exportação. Data daí a incorporação de Lages ao santuário conservador global, onde atuou como arranjador "de tudo", do Chacrinha ao Fantástico. Foi como maestro do Globo de Ouro que se aproximou de RC, líder quase cativo das paradas semanais de sucessos (e até hoje funcionário global).

Antes mesmo de sacramentar a união, estreitava laços com o imaginário mais popular, alheio às muralhas artificiais erguidas nos anos 70 para separar a "MPB" dos "cafonas". Trabalhou com Jorge Ben, Benito di Paula, Moacir Franco, mais tarde com Nelson Gonçalves, Chitãozinho & Xororó. "Não tenho preferência musical nenhuma. Nenhuma. Prefiro o que bate aqui e me emociona, pode ser sinfonia de Beethoven ou samba de pagodeiros", resume o maestro popular.

Lages movimentou o projeto Com Amor num ano adverso para RC, um dos poucos em que não lançou o sagrado CD natalino e em que esteve mais presente no noticiário por obter de um juiz-fã a interdição e o recolhimento do livro Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo César de Araújo. O maestro pisa em ovos ao opinar sobre o assunto.

"Dizer que ele censurou acho mentira, Roberto Carlos não está com essa bola toda. Foi à Justiça brigar pelos direitos que achava que tinha, eu faria o mesmo." Não despista o interesse pelo livro: "Corri para ler a parte que falava de mim, que aliás é bem pouco. Nada que o cara escreveu ali é mentira". E conclui, algo constrangido: "Sou contra a censura".

Um derradeiro tema vem à tona. Aos 60 anos, o que pensa sobre política o ex-garoto que acompanhou a boiada global e o símbolo de RC como o brasileiro típico que não costuma pronunciar com todas as letras a palavra "não"?

"O Brasil economicamente vai bem, né? Mas estou desesperado com a falta de educação das pessoas, do povo. Não é uma coisa popular, mas tenho que dizer, porque é minha vida: o que a gente passa em aeroporto hoje... No Galeão não tem ar condicionado, nem elevador". É o máximo de queixa "ideológica" a que se permite, antes de partir ao encontro de Hebe.

terça-feira, janeiro 22, 2008

quelynah, cindy, leilah

para encerrar mais este ciclo, seguem as entrevistas decupadas com as outras três protagonistas do filme "antônia". a transcrição do encontro com quelynah, de 26 anos, e a jovem cindy mendes, de 19, soa meio acidentada, telegráfica, truncada aqui e ali - até porque o encontro foi tumultuado, incluiu a visita a um projeto social que quelynah apadrinha (ou "amadrinha", como ela diz) em osasco, além de bate-papos informais e trechos malgravados de entrevistas num centro de apoio de idosos (mas repleto de crianças) e no carro no qual as buscamos e levamos de volta.

a entrevista com leilah moreno, de 26 anos, foi telefônica e mais breve, já que ela estava às voltas com gravações globais, de novela "sete pecados" (em que atua como atriz) e do programa "altas horas", de serginho groisman (em que participa da banda de apoio). reunindo fragmentos de umas e de outras, é que se formou o caldo da entrevista na "carta capital", já publicada em tópico mais lá para baixo.

e vamos nós então, do centro à periferia e de volta para o centro (e vice-versa), contraste e movimento.


1
quelynah e cindy mendes

pedro alexandre sanches - "antônia" é uma história sobre a periferia. o que é periferia para vocês, qual é a importância que dão a essa questão?

quelynah - periferia é um lugar longe da cidade. sou da favela. não moro mais lá, mas sou de heliópolis. estou na música desde os 13 anos. tive passagem por igreja, aos 15 ouvi pela primeira vez o hip-hop e me identifiquei. fui finalista do reality show "pop star", do sbt, do qual saiu o grupo rouge. fui backing vocal do alexandre pires por mais de um ano, cantei no disco solo do nasi, do grupo ira!. o trabalho maior foi "antônia", e agora trabalho meu disco solo.

tata amaral foi muito respeitosa com isso, respeitou nosso dialeto, nosso jeito, a cultura hip-hop. e o filme abordou, além do hip-hop, a história da mulher que enfrenta os obstáculos do meio, do machismo e vários outros preconceitos.

cindy mendes - tata amaral trouxe a figura da mulher para a sociedade, e ela procurou dentro do hip-hop, que era um universo que conhecia pouco. ela percebeu que a figura feminina era forte e original no hip-hop. a mulher que, ali, não tem força e originalidade não consegue nem sair do primeiro palquinho, morre ali mesmo. o cenário de "antônia" é uma periferia, mas tata mostrou que lá existem garotas bonitas, que cantam bem...

q - mostrou o talento, não só a violência.

cm - a violência existe, a gente liga a televisão e vê isso o tempo todo. mas cadê a cultura, a parte boa? não tem?

q - o glamour do morro, a favela chique.

cm - hoje em dia se tornou chique falar de periferia. está na moda ser negro e do hip-hop.

pas - "antônia" é um filme feminista? e vocês, são feministas?

cm - será que sou? eu não sei...

q - eu sou muito feminista. dizem que todas as feministas são feias, eu sou bonitinha [risos].

cm - comecei muito nova, contra a vontade da família.
decido tanto pela minha vida, às vezes eu até queria ter um pouco mais de apoio, um pouco mais de opinião. mas por fazer tudo tão sozinha, por aderir a um estilo musical que é tão masculino, acho que a gente acaba criando essa autodefesa feminista.

q - o meio do hip-hop é muito machista. a gente bate de frente com eles com talento e inteligência, em último caso levanta a mão se precisar. porque os manos são tristes, viu?

pas - eles ficam enciumados com o hip-hop feminino de vocês?

q - ah, ficam. eles têm um jeito particular de testar, saber se você é de verdade, como a gente diz. já ouvi falarem "você não pode ficar no mesmo camarim com a gente", dj chutar o vaso de flor e dizer "agora a gente vai trabalhar de verdade".

cm - às vezes me dizem "ah, depois que conversei com você, agora sim". Como assim "agora sim"? agora sim o quê? muitas vezes os próprios integrantes do hip-hop não procuram se informar.

q - e não são só eles. um repórter na bahia me perguntou se sofro muito preconceito no hip-hop por ser branca. olha o tamanho do meu nariz, olha a minha boca! eu sou negra, acho que é porque estava com o cabelo loiro na época. um preconceito puxa o outro, né?

não se tem um mercado black no brasil, temos que fazer esse mercado. falta mulher no hip-hop. a mulher, quando vai na tevê, tem medo de falar, ou muda o discurso para se dar bem. não, vamos dar a cara para bater.

cm - por mais que a televisão tenha aberto espaço para atrizes negras, ainda é tudo muito rotulado. para uma negra, é difícil encontrar um papel fora do da empregada ou da escrava dentro de uma novela.
agora é que está começando a surgir, mas eles ainda não sabem onde encaixar o negro.

pas - em que "antônia" transformou a vida de vocês?

q - me tornou mais conhecida, me trouxe mais reconhecimento e credibilidade. mas o hip-hop brasileiro ainda engatinha.

cm - foi um momento maravilhoso da minha vida, eu queria ser cantora e estava fazendo backing em grupos masculinos. "antônia" me trouxe esse espaço, como cantora e como atriz de uma vez só. depois do filme é que resolvi e fui estudar música mesmo. era um sonho, agora é realidade. se a gente conseguiu fazer um seriado, por que não vai conseguir criar um mercado? muitas meninas pararam por falta de apoio, de oportunidade. faltam meninas, mas faltam meninas qualificadas.

q - o que falta é determinação, e essa é a mensagem de "antônia". a gente tinha um discurso muito estranho, de ficar só sofrendo, sofrendo, sofrendo, reclamando. [alô, moças do samba de rainha!]

cm - falta um pouco de gás, de entender onde está e levar mais a sério. se quer cantar, tem que estudar.

q - mas a gente ainda está aprendendo. a gente tem que estar sempre se lapidando. antes do filme, chegou uma hora em que eu estava cansada, pensava: "será que não sou cantora?". meu sonho era gravar um disco onde eu pudesse ficar livre. mandei para as gravadoras, ninguém apostava, "isso não é vendável", ou seja, "você não é manipulável". a universal tinha o plano de fazer um trio em estilo beyoncé, com elas três. não me convidaram para essa festa pobre [ri].

cm - a universal comprou as masters da gente, a gravadora teve participação na produção do disco da leilah moreno, no meu também. no da negra li principalmente. o que eles fizeram foi lançar nossos discos. não havia um projeto de carreira, mas o que saía nos jornais era "o grande projeto de carreira das divas do r'n'b". isso é papo para causar.

pas - então quelynah passou ao largo disso? por um lado deve ter sido bom, não?

q - acredito que sim. sempre tive um sonho de ir para uma gravadora, mas depois fui vendo que é uma bobeira, que hoje selo independente deixa você livre para o trabalho, para ser quem você é.

cm - vamos lembrar da paula lima, o que aconteceu com ela quando saiu do funk como le gusta e foi para a universal. o que é que deu?

pas - o que é que deu?

cm - o que é que deu? caímos na mesma, eu, leilah... no meu disco fui muito original, fui muito eu. não posso dizer que a gravadora influiu no estilo, isso não. mas aquele lance, né?, você está na universal, e aí? quem paga os shows, quem leva a sua banda? universal só está lá no selinho do disco.

pas - mas inclusive porque as gravadoras estão falidas.

cm - então, cara, valeu...

q - fizeram uma coisa com leilah que achei absurda, saiu uma foto enorme no jornal e em cima o título, "passo a passo para se tornar uma beyoncé". isso não pode acontecer. [uma das empresárias de quelynah, presente à entrevista, comenta que isso não é responsabilidade da artista, mas sim do jornal que direcionou o assunto de tal forma.]

fui casada com [pioneiro do rap brasileiro] thaíde quase dez anos, um dos precursores do hip-hop. ele me ensinou muita coisa, me ensinou o que é hip-hop. "antônia" veio só somar à história, para que eu pudesse continuar minha caminhada. (...) é difícil, o hip-hop no brasil é um manicômio.

pas - por que? é muito desorganizado?

q - hip-hop é uma cultura que fala de respeito, de auto-ajuda. por dentro, nem sempre existe isso de verdade. aqui não existe isso de um ajudar o outro, de aparecer no clipe do outro, como acontece lá fora. nunca ninguém ligou para o thaíde para dizer "como está você?", "como está o trabalho?". aqui não existe isso.

cm - aqui ninguém cumprimenta ninguém.

q - fui no prêmio hutuz [organizado pela cufa - central única das favelas - no rio de janeiro], quando tem uma roda de mano e chega uma mina no meio, eles escapam de você. uma vez perguntei "você tem medo de mulher?". está todo mundo no mesmo barco, porque não se cumprimenta?

pas - e como faz para não ser assim? é possível reverter isso?

q - eu acredito. acredito que o hip-hop é a música do futuro. hip-hop para presidente, já. "antônia" já faz parte da história do hip-hop no Brasil.

pas - como a comunidade hip-hop reagiu ao filme?

q - muito bem. é o público que mais assistiu. todo mundo esperava, ajudou a gente a se impor um pouco mais.

pas - os racionais apoiaram e incentivaram vocês?

q - muito, para caramba. brincam, "quelynah é nossa mc".
assistiram, se identificaram, mano brown veio falar. me ajudou a ter um pouco mais de respeito dentro do hip-hop. (...) eu tenho um sonho de cantar no vmb [da mtv] e dizer assim: "alô, gravadoras, muito obrigada por não terem apostado em mim".

cm - eu também, tenho tanta vontade de cantar naquela droga [ri].

(...) [a conversa adentra por questões de identidade do hip-hop nacional.]

q - meu disco tem sample do chico buarque.

cm - o hip-hop está sendo muito confundido com essas culturas que não têm muita eternização, como o funk. é uma cultura do morro e tudo mais, mas tati quebra bBarraco, por exemplo, daqui a dez anos vai ser a garota que fez músicas, falou sobre o sexo explícito, ganhou dinheiro, nunca vai ser lembrada como uma elis regina. o hip-hip tem que ser visto como um movimento musical, elegante, cultural. as pessoas confundem hip-hop com funk, isso dá medo.

q - [discordando] o público do funk é o público do hip-hop.

(...) [o termo "divas", que as meninas repetem algumas vezes, desvia a conversa, numa seqüência que não consigo decupar ou identificar ou lembrar direito o contexto.]

q - não somos divas, nós somos dívidas. para ser diva tem caminhada, não é só a diana ross.

cm - hoje em dia tem um novo conceito, diva é aquela que é gostosa. e até mesmo diana ross foi um produto na época, lembrando bem.

q - mas cantava, né? o negócio não é cantar mais, é ter um conjunto de coisas, carisma, é outra história.

pas - o funk é a música eletrônica brasileira?

q - é uma história muito peculiar, né? gosto muito da batida do funk.

cm - a batida é maravilhosa, mas, gente...

q - fico meio encabulada com as letras, mas gosto daqueles de afirmação, "é som de preto, de favelado/ mas quando toca ninguém fica parado". mr. catra é um figura.

pas - o funk, assim como o hip-hop, mudou a vida de muita gente da periferia, não?

q - o hip-hop está meio assustado com a chegada do funk a são paulo. até chutei a bola para o brown, vai acabar mudando os sets de balada. vai acabar tocando só funk e meia hora de black. mas, não sei, o hip-hop não está de passagem.

pas - catra é rapper e funkeiro, transita entre as duas coisas. não tem uma coisa de o pessoal do rio achar que o rap de São Paulo só fala de violência, enquanto os de são paulo acham que o funk carioca só fala de sexo, e nenhuma das duas partes aceita muito a outra?

q - a gente precisa dessa levada do rap, que fala diretamente com os políticos, vai na ferida, cutuca, como precisa da outra também. por isso eu defendo o r'n'b, porque mistura tudo isso, prega coisas boas. tem gente que não entende e não aceita o linguajar do rap.

pas - e mesmo nesse sentido "antônia" foi importante por ser um passo de superação no discurso da violência, aqui em são paulo.

cm - mas fico preocupada, porque a música brasileira é riquíssima, e eu encaixo o hip-hop dentro da mpb. nós não somos brasileiras? não cantamos em português? se o funk é encaixado dentro da mpb, ele está acabando com a mpb.

pas - mas, cindy, não tem gente que acha o mesmo do rap?

cm - não, não, a gente não pode dizer que o rap dos racionais não contribuiu para a mpb, desculpa.

pas - a música de vocês faz protesto, quer fazer protesto?

q - faz. eu procuro fazer músicas que tragam informação.
trago no pacote a sensualidade, que eu sabia que era uma coisa que batia de frente. fiquei preocupada com a opinião do pessoal do hip-hop ao trazer o r'n'b para cá. as pessoas tacham muito você pelo jeito de se vestir. sempre cantei de salto, minissaia, top. negra li foi a primeira mulher que vi que fez isso, num meio que se vestia como homem. como bati de frente com isso? mostrando que vim para trabalhar, não para brincar.

pas - inclusive assumindo a sensualidade, não?

q - sim, sou mulher. fui fazer uma palestra no rio grande do sul, falaram "é sensual demais o discurso dela". cheguei lá, fui procurar logo a pessoa que tinha falado isso, "desculpa, mas faz parte do pacote". tenho que segurar no peito, mostrar que também sei conversar, que sei o que estou falando e fazendo. também falo da rua, das minhas vivências em heliópolis. no meu segundo disco não quero deixar de fazer r'n'b, mas quero fazer uma coisa muito mais política. na minha música posso dizer que tem informação.

cm - freestyle [o estilo improvisado em que cindy se especializa] é improviso, comecei a fazer isso para ter um diferencial, que eu não agüentava mais fazer refrão. nas minhas letras procuro falar de protesto sem falar com as palavras nuas e cruas.

q - eu falo sobre auto-estima, que é uma coisa de que a gente precisa muito, muito, muito. e de perspectiva de vida.

pas - o hip-hop masculino não mexe muito com sexo, é durão, não é?

q - é, mas agora estão mudando o discurso. tive um marido rapper, que sempre me cobrou que eu falasse outras coisas, "vocês só falam disso?". hoje ele está aí fazendo a mesma coisa. brinco com eles, "e aí, vocês vão falar disso também?".

pas - tomara, não? porque fica como se a mulher fosse só sensual e o homem só fizesse protesto. não seria possível misturar também?

[as respostas não ficaram audíveis..., de fato foi uma sessão acidentada
- embora prazerosa e esclarecedora.
]


2
leilah moreno

pas - pode contar um pouco da sua história?

leilah moreno - nasci em são josé dos campos, venho de uma família musical. cresci cantando no coral da minha família, e eles tinham um grupo de samba também, conhecido na região, o última hora. fazia dublagens de michael jackson, e quando tinha 9 anos entrei na banda da minha mãe, até os 12. aos 12 montei uma banda de rock de garagem e comecei a fazer teatro. com 14, comecei a estudar música, a me profissionalizar, entrei numa banda profissional de baile, que fazia formaturas. fiquei até mudar para são paulo, há sete anos.

pas - você era uma menina de periferia?

lm - na verdade, não. como vim do interior, em são josé dos campos praticamente não tem periferia. mas venho de uma família humilde. na verdade conheci periferias, visitei favelas e conheci essa realidade quando fui fazer o "antônia" mesmo. foi um aprendizado muito grande. tive mais uma vida interiorana, de roça, que de periferia. vim de uma área rural.

pas - é outro tipo de periferia, não?

lm - é, é bem diferente, uma coisa mais caseira. sempre digo que tive uma infância bem mineira. mMas vim para são paulo, já estudava aqui. fazia a universidade livre de música, no bom retiro, e no último ano vim para cá. acabei participando do programa do raul gil, fiquei dois anos contratada pela record. saí e gravei dois cds, um pela warner e outro pela trama. ano passado lancei o último, pela universal.

pas - se formou na ulm?

lm - não, faltando quatro meses para me formar eu parei, porque não tinha grana para pegar ônibus todos os dias. vinha todos os dias para são paulo de ônibus. tive que parar, tranquei. hoje em dia já não penso em voltar a fazer o mesmo curso, porque acho que aprendei muito mais na vida, à vera, que na faculdade. mas tenho vontade de fazer faculdade de cinema. vontade, não, eu vou fazer.

em são paulo, comecei a fazer baladas, eu e dj. foi a forma que achei de sobreviver aqui, porque não tinha mais banda de baile, todas já tinham cantor. eu não queria fazer barzinho, que é meio sacrificante. em balada é diferente, canto com o dj, levava microfone e cantava na base do dj. acabou virando uma supermoda, comecei a fazer todas as melhores baladas. fiquei seis anos na lótus, cantei na disco, na pacha, na ébano, na mood, tantas... cantei em quase todas. a produção do filme me viu cantando numa dessas baladas e me chamou para fazer o teste.

pas - hoje você está gravando novela?

lm - isso, faço "sete pecados" até janeiro e depois faço um longa-metragem, "condomínio jaqueline", do roberto moreira. termino, gravo o novo cd pela universal e em maio faço outra longa, ainda sem nome definido.

pas - atriz e cantora ao mesmo tempo?

lm - é, e produtora. abri uma produtora de clipes para bandas e artistas independentes, chama im, independent movie. é uma sociedade só de gente supernova que ainda faz faculdade de cinema e publicidade, são quatro sócios, pessoas que eu já conhecia. ajudo a dirigir, produzo, faço publicidade. é um universo que adoro. já dirigi quatro clipes, da graça cunha, que canta comigo no "altas horas", um do rappin’ hood com jair rodrigues e de uma banda chamada na pegada. o próximo é de um grupo de rap, anjos do rap, e vou produzir o do thaíde.

pas - em música, você pretende seguir na linha de black music, ou pode variar?

lm - varia, porque na verdade nunca fui cantora de rap. fui começar a fazer e conheci melhor por causa de "antônia". sou intérprete, sempre cantei de tudo nas bandas de baile e na noite. nas baladas fazia house, black, r’n’b e algumas coisas nacionais. gosto muito desse universo. me julgo mais pop que rap.

pas - você é contratada da globo?

lm - é, sou contratada como funcionária do "altas horas", que faço há quase três anos, e como atriz pela globo do rio.

pas - em que "antônia" mudou sua vida?

lm - descobri com ele que posso fazer muita coisa e que é aqui em são paulo mesmo que tenho que ficar. eu tinha dúvidas. morava sozinha, era mais difícil me situar. depois do filme tive coragem de trazer minha mãe e minha família para morar comigo. estou morando numa casa bacana, antes eu morava de aluguel e tinha medo de trazer minha família. hoje sei que posso continuar e tenho um trabalho bacana para fazer, então não tenho mais o medo que tinha, não tenho medo nenhum. o filme veio para abrir uma porta e mostrar outros horizontes de que estou colhendo os frutos agora.

pas - como você explicou, o hip-hop e a questão da periferia não são exatamente sua realidade. mais indiretamente, ele fala também sobre a questão feminina, sobre racismo, homofobia, preconceito. como você encara essas coisas todas após o filme?

lm - na questão de racismo, nunca fui ligada. sou miscigenada, filha de negra com branco. não defendo nada, não sou militante em relação a isso. respeito tudo e todo mundo e todas as opiniões. sempre pensei a respeito disso, mas acho que o filme mostrou de uma maneira bacana, e para mim não mudou nada.

a questão de machismo, acho muito importante. foi uma sacada muito genial da tata amaral. é um ótimo ponto para a gente pensar. mas minha opinião não mudou nada.

sobre a periferia, acho que só agregou. para quem não conhece, fica uma visão muito diferente do que é a realidade. pensam que é só violência. não é. é um lugar totalmente diferente do que eu achava que fosse, tem uma poesia natural.

sobre o hip-hop, já sou bem próxima, praticamente desde quando nasci. na minha família, a gente ouve desde sempre, quando comecei a mamar já estava ouvindo. sempre fui ligada, não que vá ficar mais ligada, acho que dificilmente agora eu vá me desligar dele.

sobre homofobia, não tenho preconceito nenhum, muito pelo contrário. quando fiquei sabendo que meu irmão no filme seria homossexual, achei o máximo, uma supersacada. queria muito fazer o papel também por isso.

pas - seu personagem é muito forte, também, pela questão de ela passar pela experiência da prisão.

lm - é, gostei muito por isso também. achei bacana de mostrar a realidade da cadeia, também porque eu já conhecia. já trabalhei naquele presídio em que fiz a cena. cantava nas festas de fim de ano, dia das mães, que eles faziam para as detentas. por cinco anos cantei nas festas, as detentas já me conheciam. era muito bacana, elas me respeitavam.

pas - como era a experiência de cantar lá?

lm - era muito diferente, no sentido de que você tem que ter muito cuidado com o que fala. num show normal você fala "até a próxima, galera". ali, não, ninguém quer estar ali no próximo show. nos primeiros shows acabei ficando um pouco mais em silêncio para poder aprender como falar com elas. mas quando você começa a sacar é muito bacana, porque toda palavra de esperança que você dá para elas, de se regenerar, você vê o brilho no olho delas. você passa confiança, e elas guardam isso durante muito tempo, porque não têm muito do que se lembrar ali dentro, não têm muita experiência boa. então qualquer showzinho era uma coisa, mandavam cartas.

pas - emocionalmente deve ser uma experiência forte, não?

lm - muito, muito difícil. para fazer a cena, me deixaram trancada na cela com uma detenta durante muito tempo. depois a detenta saiu e eu fiquei horas sozinha, sem saber que hora eu ia gravar. perdi a noção do tempo, na hora que falaram "ação" saí da cela como se estivesse presa mesmo. e a cena ficou bacana, elas vão me visitar, eu abraço, a gente chora.

pas - é uma das cenas mais bonitas do filme. você disse que o racismo não faz parte de sua realidade, mas nem como vítima de discriminação?

lm - não me sinto porque não dou importância para isso. tudo que vai me fazer mal eu afasto de mim e procuro não processar. racismo é uma coisa que quase não falo sobre, procuro estar sempre colocar a meu favor, de modo positivo para mim.

pas - mas ele existe ao redor, dá para sentir?

lm - é... acho que de repente já senti mais preconceito por classe social. o racial foi o que menos falou comigo.

pas - como é o social?

lm - digamos que você vá a uma festa de gente muito, muito rica, milionária, e você não está vestido adequadamente, e sente esse tipo de preconceito, as pessoas olhando. mas isso foi há muito tempo. depois que fiquei mais adulta e soube me portar e a conversar com as pessoas de igual para igual, elas começam a te tratar de igual para igual.

terça-feira, janeiro 15, 2008

negra li (e samba de rainha)

[este é um p.s. da manhã de quarta-feira 16 de janeiro de 2008. mas, como aqui é a internet e aqui é um blog, um p.s., embora sempre escrito posteriormente, pode muito bem vir antes do que foi escrito antes - abre-te, sésamo! é que, logo após publicar a entrevista com negra li, rumei distraidamente para o sesc pompéia, para assistir ao "prata da casa" de terça-feira 15 de janeiro de 2008. e dei de cara com o surpreendente: as portas do sesc fechadas, uma multidão "presa" do lado de fora, indícios de uma mini-beatlemania com admiradores esmurrando a porta encerrada, na esperança de encontrar o sésamo para o show perdido. o show era do samba de rainha, oito garotas paulistanas que mergulham de cabeça no samba, er, de raiz, tanto o samba clássico quanto o composto por elas próprias. e não se tratava só da lotação esgotada. demorei demais para vê-las ao vivo, mas de fato a qualidade do show se comprovou diretamente proporcional à quantidade e à diversidade de pessoas que ele atraiu. elas são excelentes, maravilhosas. deu para sacar facilmente que existe um culto ao samba de rainha, que estamos dentro de um pré-fenômeno (se não um fenômeno propriamente dito, consumado) que, evidentemente, gravadoras e mídia conservadora (& seus respectivos, er, "fãs") tendem a demorar cem anos para perceber, quinhentos anos para assimilar, novecentos e novena e nove anos para conferir de perto, mil anos para aceitar (eu mesmo, hein?, êita, bechara, quantas vezes você já me chamou para ir ao samba de rainha? e bell marcondes, que há um ano e meio me falou delas com grande entusiasmo, sem que na ocasião eu aceitasse prestar toda a atenção merecida? êita...). mas as mulheres do samba estão ali, faiscantes, fenomenais, 100% prontas para o que quiserem ser e fazer. o aval já está dado por seu público, deliciosamente constituído por um mix de senhoras de idade, negros, gays (de todos os sexos), heteros (idem), hippies, "modernos", nipônicos, estudantes etc., tão pronto e preparado quanto as moças em cima do palco. (por sinal e emblema, uma das músicas autorais de maior impacto do grupo ironiza aquela típica figurinha carimbada - alô, são paulo! - que parece que passa por esta vida com o objetivo exclusivo de... reclamar, reclamar, reclamar, reclamar, reclamar. mora na filosofia?, morou, maria?) foi, em síntese, uma noite feliz. e, agora, de volta ao assunto inicial, que afinal de contas é o mesmo. abre-te, sésamo!:]

dando seqüência à atual levada, segue uma versão mais completa da entrevista com negra li, rapper, cantora e atriz de 28 anos, que aconteceu na casa dela, na granja viana, numa tarde de dezembro.

desde já, peço perdão a quem se desinteressa pelo “tema”, mas é que é tanta, tanta, tanta riqueza nas entrelinhas (e nas linhas também), que chego a ficar zonzo.

a propósito. segue aqui abaixo também uma lista das questões palpitantes que ficam vibrando dos meus olhos e meus ouvidos para o meu cérebro, enquanto releio a entrevista transcrita. só uma simplificação, que é muita coisa, muito mais que só isso:

a) a escola de música, quem canta ella e quem canta elis, a “darling” mariana aydar na sala ao lado

b) o canto-fala do rap aparecendo lado a lado com a realidade evangélica da família na vila brasilândia e com a distância entre a periferia e o império melódico da mpb; a relação com a religião

c) o fenomenal sabotage “colado” na galera do rzo

d) a lealdade a helião, a decisão de retribuir a visibilidade que diz que ele lhe proporcionou no início

e) o reconhecimento posterior de que o hip-hop “é machista, tanto os rappers quanto o público” (só o hip-hop?...); o machismo internalizado na própria negra li, em conflito entre a criação (externa?) de duas imagens opostas (e estereotipadas) de mulher, a “mala” OU a “galinha”

f) a constatação condicional de que “os grandes caras do samba, da mpb, nunca vão respeitar a gente” (e esse “a gente” não incluiria eu e você, meu caro, minha prezada?)

g) a cascata de invisibilidades, glória maria, a ligação entre a cascata de invisibilidades e “riqueza” material, a autofagia entre patamare$ $ociai$

h) o tapa com luva de pelica no repórter, na pergunta sobre ser ou não ser uma porta-voz da periferia

i) a tensão e o conflito no colégio particular, quando menina; a hora da merenda, os professores, os meninos

j) a afirmação-pergunta e o desafio contidos na sentença “sou negra, mulher, da periferia e canto rap, quem vai levar a sério?”

k) a cirurgia plástica; o direito que ela reivindica de fazê-la, e o modo como o justifica; liberdade versus escravidão

l) o mecanismo de espelho entre xuxa, paquitas, adriana bombom, hoje negra li, quelynah, leilah moreno, cindy... (e você, quem são seus espelhos?, quem tem para se espelhar?, quem usa para se espelhar?).

enfim. se alguém desejar discutir qualquer desses tópicos (ou outros além), será um imenso prazer para o (des)governador deste blog. tanta coisa para pensar, tanto tempo para pensar... por ora, à entrevista:

pedro alexandre sanches – em que sua vida mudou desde que você morava na vila brasilândia?

negra li – mudou bastante, graças a deus. muitas tarefas, a experiência de vida foi maravilhosa, tenho meu cd solo, amadureci bastante. O cd ainda não foi feito do jeito que eu queria, foi com pressa, mas peguei bastante experiência de palco e de vida de lá para cá. tive muitas oportunidades boas, como “antônia”, que fez aumentar ainda mais meu público.

pas – “antônia” foi um passo além, ou mudou a direção da sua história?

nl – olha, eu gosto de ter podido fazer parte dessa trilogia da tata amaral, de poder ter feito o papel da preta, que é uma menina supercertinha, batalhadora. de certa forma, representei a mulher negra, a mulher pobre, a periferia, o hip-hop. isso foi importante para mim, porque faz parte de um princípio meu, que é de passar mensagem, tentar dar valor ao dom que deus me deu e retribuir, falar com as pessoas, passar uma coisa positiva. “antônia” é isso, então fico feliz de ter atuado da mesma forma como canto.

pas – houve uma dura batalha para escolher as quatro atrizes, e você era a mais conhecida delas antes do filme. mas como foi a sua chegada ao projeto?

nl – foi meio parecido. tinha tido contato com a tata antes, fiz uma entrevista na casa dela. ela estava pesquisando várias cantoras do hip-hop, e ouviu falar de mim, fiz a entrevista. foi superbacana, ela se emocionou bastante, eu me emocionei.

pas – por quê?

nl – porque ela ia a fundo nas perguntas das dificuldades que a gente viveu, principalmente no grupo [de rap] rzo, onde eu era a única mulher. ela queria abordar o lance do machismo, no filme ela até copiou isso de a gente começar como backing vocal e depois fazer o grupo. quando teve o teste, fui avisada, fui lá, fiz todo o passo a passo. no início era para ser uma protagonista só. ela queria contar meio a história dela, porque ela tinha uma filha e mesmo assim não desistiu da carreira. queria contar a história da antônia, que tem uma filha e mesmo assim não desiste da carreira, quer ser cantora, quer vencer. como cineasta, ela passou por isso. mas aí teve a idéia de fazer o grupo e o grupo se chamar antônia. isso surgiu no ensaio. achei mais interessante, porque ela podia abordar várias histórias com cada uma.

pas – ela teria talvez encontrado tantas meninas legais que não quis desperdiçar?

nl – é verdade, e eu gostei, porque quando ela falou que eu seria a preta, a mãe da menininha, achei uma responsabilidade enorme. quando ela falou que ia ser o grupo, confesso que fiquei aliviada. Fiquei com medo, era novo para mim. por ser o grupo, eu ia me sentir mais segura. não dá para dar conta de protagonizar um filme sozinha, de primeira, né?

pas – quando a entrevistei na vila brasilândia [para a “folha de s. paulo”, em 2004] você já fazia hip-hop fazia tempo, com o rzo, e estava lançando o primeiro disco, com helião. lembro que você estava estudando música...

nl – na groove, ainda estou lá, firme e forte. no final do ano [de 2007] tem apresentação, vou cantar três músicas da elis regina. a groove tem fama do professor ser chamado de louco, tem a melhor técnica de ensino do Brasil, a técnica dos jazzistas, bem parecida com a norte-americana. estudo canto, piano, lá a gente aprende tudo. é um curso livre de música. se eu fosse assídua... mas não dá, quando estou fazendo “antônia” paro porque não dá tempo. no ano passado não fiz, o ano inteirinho. entrei em 2004, era para eu estar com quatro anos e terminar no ano que vem. o professor, em especial, me deixa freqüentar desse modo, podendo faltar, porque sabe que é o modo de eu ganhar minha vida.

pas – há mais alunos conhecidos na escola?

nl – mariana aydar já estudou lá, lembro de ter feito aula com ela. mas acho que saiu antes de terminar.

pas – e você vai cantar que músicas de elis regina na apresentação final?

nl – vou cantar “cai dentro”, “bala com bala” e “amor até o fim”.

pas – como é para uma artista de hip-hop cantar elis regina?

nl – eu acho o máximo. desde que cheguei à escola, o professor só me dá música da elis regina para cantar. e tem umas senhoras, umas brancas, que cantam ella fitzgerald. acho que ele faz de propósito. acho o máximo, porque bem ou mal eu já tenho um estudo, sempre ouvi as divas americanas, jill scott, lauryn hill, erykah badu, mary j. blige, whitney houston, mariah carey, sempre foi essa a minha escola musical. então já tenho um pouco isso, e de mpb, não. nunca ninguém me apresentou nem me ensinou a ouvir, meus pais não tinham bagagem musical, não tinham discos, porque são evangélicos – meu pai era, minha mãe é. então estou aprendendo agora a ouvir baden powell, gilberto gil, jorge bem etc. e tal. e estou adorando, porque elis regina interpretava demais, são muito difíceis as coisas que ela canta.

pas – é como se o professor desse músicas de uma cantora branca para você cantar e das cantoras negras para as alunas brancas cantarem?

nl – não é nem de branca, é estilo de música. bossa nova e mpb são mais brancos, né?, e o soul e o jazz são mais do negro. então ele faz isso, ele nunca falou, mas acho isso. acho bom, prefiro, porque aí eu domino os dois.

pas – com isso você não se arrisca a se afastar das suas influências originais, que eram o hip-hop e o rhythm’n’blues?

nl – então, eu era muito nova quando entrei no hip-hop, tinha 16 anos. se naquela época eu tivesse recebido um convite para cantar como backing num grupo de samba, ou de rock, eu teria ido. eu era da igreja, evangélica, então não ouvia música, fui ter televisão depois dos 10 anos de idade. não lembro de programas e músicas da época, não tinha essa bagagem. e a primeira coisa que me apresentaram foi o hip-hop, veio o rzo. lógico que aprendi o rap, agora está na veia, agora eu amo esse estilo. mas sou eclética, posso cantar qualquer coisa. gosto realmente do r’n’b, do jazz, do blues. mas me identifico muito com a bossa nova e o samba também.

pas – você já está preparando um novo disco?

nl – estou escrevendo. a gravadora [universal] ainda não pediu, mas antes que eles peçam já comecei a fazer, porque quando pedem tem sempre um prazo, dois meses, é sempre uma correria e acaba não saindo do jeito que a gente quer. é uma experiência que adquiri. eu já devia ter feito isso, mas não sabia como era, não estava muito madura, escrevia menos.

pas – dá para ter uma idéia já sobre em que direção o disco vai?

nl – queria fazer música para me divertir mais. acho que beyoncé se diverte muito.

pas – se você cita beyoncé, dá para pensar que é para o lado black mesmo, e não mpb ou elis regina?

nl – é, com certeza. se um dia rolar um projeto, “negra li canta elis” [ri], “negra li canta samba”, quem sabe?

pas – “negra li canta elis” seria uma ousadia, de irritar os puristas da mpb, não?

nl – eu sou ousada. e estudo para isso.

pas – voltando ao passado, queria que você contasse um pouco da sua história.

nl – lembro de viver na vila brasilândia sem muita perspectiva, de ficar na rua o dia inteiro com minhas amigas e de sentir certa agonia porque sempre quis ser cantora, desde criança, em frente do espelho, querendo cantar. e pensava, será que não vou sair daqui?, como vou fazer para começar? quem é da periferia e tem esse sonho não é como ser filha de um artista, que já encaminha você para um lugar. você não sabe por onde começar, onde se oferecer para cantar. então confesso que era um pouco frustrada, desde a adolescência, por não saber por onde começar.minha mãe sempre me deu muito apoio, me levava para fazer desfiles e books quando eu dizia que queria ser modelo.

pas – você queria?

nl – eu queria ser artista. fiz teatro com 15 anos, minha mãe deu apoio, pagou. a música veio depois. cantava muito em rodinha na escola, até que um amigo falou que estava saindo do grupo de rap dele porque ia para o exército e eu podia entrar no lugar. falei “beleza”, era meu vizinho, o denílson. cantei com esse grupo, um dos vocalistas já morreu. morreu de tiro porque saiu com a garota de um cara adolescente, o de menor matou ele numa praça. era ele que escrevia as letras. mas antes de ele falecer eu já tinha saído.

não estava virando, eu meio que pagava para cantar, cantava para meia dúzia de pessoas, o cara estava querendo misturar as coisas. saí. no baile do último show estava o rzo, a gente abriu para eles, eles ouviram, os caras me convidaram. era 1997. fiquei na dúvida, mas eu tinha uma amiga que conhecia muito do rap, me encorajou. fui a um ensaio na casa do helião e fiquei ensaiando a música “paz interior”. no início, o convite era para colocar uma voz no disco e ir embora, mas acabaram convidando para cantar no show também, e fui ficando como backing vocal. o rzo era um dos grupos mais importantes do brasil, depois de racionais era rzo. então tive uma grande escola, um grande começo.

até que o pessoal do charlie brown jr. convidou o rzo para participar do cd deles, eu ia participar de uma música, um rap. mas não me identifiquei, achei muito bravo, tanto que não entrou no disco, foi vetado. e tinha um reggae, pensei, “nossa, que bonitinho”, e fiz aquela parte que tinha criado em cima de um solo de guitarra. chegou no estúdio, perguntaram “e aí, você fez alguma coisa?”. falei “fiz, mas não naquela música”. ele, “como não?”. “fiz nessa daqui, que tinha um espacinho”. ele disse que aquela já estava fechada, masterizada, acabada. “si, meu, canta aí, mostra aí para a gente.” acabaram gostando, acharam da hora, fizeram tudo de novo. o rzo estava com uma equipe muito grande, tinha o sabotage, que estava colando com a gente. a música acabou ficando com muitos caras, helião, sandrão, negro útil, sabotage, o chorão [líder do charlie brown], cinco numa música, não cabia mais. não tinha espaço para mim, então fiquei com outra, que acabou sendo a música de trabalho, teve clipe, depois teve dvd, foi o que fez meu nome ser conhecido fora do rzo.

a mtv começou a me chamar, eu dizia “gente, mas eu não sou solo, não tenho disco”. aí a mtv me convidou para ir no aquecimento do “acústico” do zeca pagodinho no rio, um churrasco que ele deu, iam pagar passagem, aceitei. lá, como zeca era da universal, tinha uns caras lá, uns produtores artísticos. me apresentaram, o produtor falou “interessante você lá no charlie brown, liga aí”, me deu um cartão. nisso o rzo já estava com uns problemas, helião estava brigando com sandrão... o grupo começou a abalar. muita coisa aconteceu para o rzo se desmanchar, e o helião, que era o dono do grupo, falou que não queria mais. e me chamou para cantar. falei “não, helião, claro”, aceitei. aí a gravadora me chamou para ir para lá, eu disse que tinha meu amigo, helião, que tinha me chamado para fazer. disseram, “não, a gente queria fazer solo”, eu disse que, mesmo que eles não quisessem a dupla, eu não me sentia preparada para fazer um solo naquele momento. não tinha muitas músicas, não sabia por onde começar.

então combinamos que ia ser helião & negra li, que íamos fazer só um disco e depois cada um ia fazer o seu. na primeira reunião já era decidido isso, tanto porque eu queria como pela gravadora. fizemos o cd, que ajudou tanto eu como ele a nos tornar conhecidos. era uma dívida que eu tinha com helião, se eu não indicasse ele para entrar na gravadora eu ia ficar até hoje, porque foi através das músicas dele que fui ficando conhecida, que chorão me viu. pelo menos minha parte eu fiz. agora, mesmo que não esteja com o rzo, ele tem um nome, helião, já conhecido, para trabalhar. agora está fazendo o cd solo dele, está praticamente acabado, e eu fiz meu disco no rio, produzido por paul ralphes.

pas – voltando só um pouco: quais eram as dificuldades de trabalhar com um grupo de rapazes do hip-hop?

nl – na verdade, muitas coisas que passei eu só fui enxergar depois, que fui vítima de machismo. e às vezes não era nem porque os caras não eram boas pessoas, é porque a maioria dos homens é machista, principalmente os do hip-hop, tanto os rappers quanto o público. muitas vezes eu agia de uma forma que não era eu quando estava com eles. tentava me vestir com roupas dos meus irmãos. também eu não tinha roupa, e como o estilo de roupas mais largas estava na moda, tinha a opção das dos meus irmãos. falavam também que eu não podia sorrir para os homens, nem podia cumprimentar com beijo, que estaria querendo graça. nem risadinha nem beijo. tinha que dar a mão, ser séria, fazer “e aí, beleza?”, impor um certo respeito. muita gente depois falou que a negra li mudou, mas não é. eu já era assim fora do cenário de rzo, quando estava com os manos ou no palco. fora do palco eu era assim.

pas – eles a influenciavam a ponto de você ficar mais séria, mais sisuda do que é?

nl – isso. mas foi uma forma de eu impor meu respeito, e foi bom, porque muitas mulheres do hip-hop que começaram antes de mim têm outro tipo de fama. as pessoas falavam que eu era mala, séria, e vejo falarem de outras minas que eram fáceis, galinhas, que davam no meio da festa. acho que prefiro ter tido essa fama de mala e preservar minha imagem.

pas – mas isso também é outra forma de machismo, não? os homens podem transar com todo mundo e não são rotulados de “galinhas”.

nl – é, exatamente. mas hoje, para elas, é muito difícil. não sei se foi por isso ou não, pela fama, mas hoje estão sumidas.

pas – o que você acha que um filme como “antônia” mudou não só na vida das protagonistas, mas do próprio hip-hop? a mídia não conhecia referências de meninas cantoras de rap ou de r’n’b. o filme e a série [na tv globo] mudaram isso?

nl – olha, eu me tornei mais conhecida, e com isso aumentou o número de shows e tal. mas o movimento hip-hop ainda está escasso de espaço, as pessoas ainda são muito desacreditadas.

pas – homens e mulheres, você diz?

nl – sim. o hip-hop ainda tem que evoluir mais. por exemplo, a (rádio aberta ao rap) 105 não toca as músicas do meu cd, do da quelynah, da leilah moreno, da cindy. insistem em tocar rap assim... ai, não posso falar, senão vai ficar ruim para mim.

pas – rap mais linha-dura?

nl – mais linha-dura e mais reto, né? não deixa que as pessoas evoluam e se amplifiquem.

pas – posso entender rap mais masculino também? seria outro tipo de machismo?

nl – não sei se é por causa disso ou se porque procuram manter uma coisa de que “quem se vendeu e está na mídia aqui eu não toco”. tem muito isso, vejo as pessoas pedirem sempre as mesmas músicas, porque é o que eles tocam para elas.

pas – mas só a questão da mídia não explica, porque antes do filme e de ficar mais conhecidas vocês já não tocavam na rádio.

nl – o rzo tocava. de helião & negra li tem música que toca, “olha o menino”. Mas do meu cd a faixa “você vai estar na minha” estourou, e eles não tocam. e é um preconceito, entendeu?

pas – não seria também porque vocês quatro, cada uma de um jeito, representam um rap diferente, que mistura com outras coisas, com r’n’b?

nl – mas é o que o brasil e o rap precisam, de musicalidade. senão os grandes caras do samba, da mpb nunca vão respeitar a gente, se a gente continuar cantando em cima de um instrumental quatro por quatro, reto, falando em cima, e não mostrar que você tem uma divisão. tem que estudar música, né?, tem que ser mais musical.

pas – há no rap quem ache que não deve, que tem que continuar daquele jeito?

nl – não sei. os racionais são o grupo mais evoluído do brasil. porém, quando as pessoas querem copiá-los não fica bom. só eles conseguem falar dessas coisas sem parecer bobo ou engraçado. às vezes você ouve uma música, o cara está querendo falar de coisa séria, de crime, mas vejo pessoas darem risada da ingenuidade.

pas – pessoas do hip-hop, ou de fora?

nl – as duas. a gente precisa agradar os que não são do hip-hop também. o axé fez isso, o forró universitário, o samba. por isso o hip-hop precisa se ampliar, não pode ser tão fechado. criticam os americanos pelo que fazem, mas acho que são originais. ali todos têm conhecimento musical, todos, até os mais gangsta, 50 cent. snoop dogg cantava em coral de igreja batista.

pas – você cantou em igreja?

nl – não, eu sou evangélica, mas na minha igreja não tem coral. há hinos que a gente canta, mas uníssono.

pas – uma questão muito importante do filme é a periferia. antes havia filmes muito centrados na violência, como aliás também acontecia com o hip-hop, e hoje vários artistas tentam desassociar periferia de imagens necessariamente violentas. “antônia” faz muito isso, de um modo muito positivo, mas a periferia ainda está no núcleo da questão. você não mora mais lá, está num lugar mais legal – como você vê e se preocupa hoje com essa questão?

nl – minha mãe ainda mora lá, no mesmo lugar onde nasci, na vila brasilândia. tenho certeza que qualquer um ali que ganhasse na mega-sena ou melhorasse de vida procuraria um lugar mais calmo e sossegado para viver. desde antes de eu ser famosa, tive algumas amizades por ali, mas não era com muitas pessoas. sempre fiz as minhas coisas fora dali.

depois as pessoas passaram a exigir de mim uma atitude que eu não tinha. nunca saí na rua falando para todo mundo. acho que minha mãe e minha irmã sofrem muito por morar ali ainda. é chato, às vezes ouve falar “é a negra li ou não é?”, porque ela se parece comigo, “se fosse eu ia chegar junto”. como assim? minha família sempre viveu ali, teve muita necessidade quando eu era mais nova, e um vizinho ou outro emprestava um pouco de açúcar, mas não era a brasilândia que ia lá nos ajudar. eu não devo isso. não é um dever, é um direito que eu tenho. lógico que sou uma pessoa sensibilizada, que gostaria muito de ajudar as pessoas que precisam. mas não é a brasilândia, não sinto com dívida com meu bairro.

pas – quer dizer que as pessoas cobram isso de você?

nl – cobram buracos na rua. olham buracos, “olha aí, negra li, tem que ver isso”. e eu não sou político. já fizeram abaixo-assinado para que não fizessem cenas de “antônia” lá, com motivo que a negra li “é metida”, não tem nexo. eu fico triste por causa disso. quando tem apresentação na brasilândia, com artistas de lá, ninguém lembra de chamar a negra li. o próprio cara que se diz líder comunitário, eu tinha feito uma operação plástica, tinha uma apresentação em telão lá e eu não pude ir, senão teria de ir toda inchada. ia ter muitos fotógrafos, não seria o caso, mas mandei minha mãe, meus irmãos, e escrevi uma carta para que minha mãe lesse. esse líder falou que nunca viu negra li andando na rua, “cadê ela agora aqui?”. acho que não tem motivo de eu ser tão criticada. já fui no “faustão”, já falei que sou da brasilândia, negar eu não nego de onde eu vim, porque tenho orgulho de onde vim. mas as pessoas têm um pré-conceito, se você melhora... quando eu estava no rzo, andando a pé até pirituba todos os dias para ensaiar. isso eu fiz, sempre fui uma neguinha de andar para cima e para baixo. corri atrás para conseguir o que consegui. agora tenho que me levantar, mas é claro que quando ficar melhor quero ajudar muito as pessoas, começando pela minha família. mas isso não é uma dívida, eu não tenho essa dívida. tenho com minha mãe, porque ela me criou, me sustentou. e com minha irmã, que penteava meu cabelo e cuidava de mim. eu tenho dívida com a minha família.

pas – essa história se repete sempre – já percebi entrevistando várias pessoas, seu jorge, netinho –, todos que progridem são muito cobrados disso depois. não é justo, mas por outro lado dá para entender, porque tão poucos progridem.

nl – poucos progridem, mas eu fui atrás. ia a pé até pirituba. para ficar melhor me matriculei no coral da usp, que era gratuito. não tinha dinheiro, mas fui atrás de saber onde davam aula de canto. muitas vezes pedi ao motorista para descer pela frente, para poder freqüentar as aulas e melhorar.

pas – essa cobrança você sente só das pessoas de lá, ou é de quem está de fora também, da mídia? parece que muitas vezes a pessoa que progride é puxada para baixo depois, como se não tivesse o direito, como se fosse errado ter progredido.

nl – existe, eu sou subestimada por ter sido da periferia, por cantar hip-hop.

pas – por quem? pela mídia?

nl – pela mídia, por outros artistas que já estão. tem artistas que dão muita força para mim, que são humildes, como zeca pagodinho, sandra de sá...

pas – não por acaso, artistas com origem parecida?

nl – é, até o nelson motta, martinho da vila. mas tem alguns... glória maria, por exemplo, eu estava num evento da “cidade do samba”, falei “oi” e ela não me respondeu.

pas – como você entende isso?

nl – não sei, simplesmente não sei. antes eu tinha encontrado com ela num carnaval da brahma, pedi para tirar foto com ela, foi muito simpática. dessa outra vez, não tinha como ela não me ver, falei “oi, tudo bom” e não obtive resposta.

pas – quando pediu para tirar foto com ela você já era conhecida como negra li?

nl – já era, menos do que hoje. não tinha “antônia”, mas já tinha charlie brown. ela sabia quem eu era. pedi para tirar a foto, tenho foto com ela, e nesse dia aconteceu isso aí. não é só ela, não, outros já me fizeram isso de eu cumprimentar e não me responderem, não me olharem. vejo muita amizade entre eles, mas comigo não é interessante ser meu amigo, porque ainda sabem que eu não sou rica, que ainda não estou no mesmo patamar.

pas – você acha que se você ficar rica eles vão mudar de atitude?

nl – acho. no dia em que eu estourar e vender muitos discos, tenho certeza de que vão me ver de forma diferente. sinto isso quando vou em festa de gala. é uma babilônia, né? mas eu, mesmo que tivesse que voltar para a brasilândia, voltaria de boa, com a cabeça erguida. o que não quero é fazer parte disso daí.

pas – sua meta não é ficar rica para ser aceita por essas pessoas?

nl – não, não é que eu faça questão. mas vejo isso e andei sentindo. e você perguntou se era só na periferia, não, no meio artístico também.

pas – no fundo, a mensagem subliminar é que você tinha que ter ficado lá de onde veio, que a gente não tem direito de crescer e melhorar?

nl – mas nada do que eles possam pensar ou me ferir vai fazer eu mudar. tenho uma meta de vida e vou cumprir.

pas – você acha que seu progresso se deve a quê? foi a carreira musical, o filme?

nl – o filme não me deu dinheiro, o que me deu esta casa foi a carreira musical. foram propagandas que fiz para a coca-cola, para o “estadão”, foi com publicidade e shows. vendas de disco, não, e o filme também não. fui a atriz que ganhei mais, porque tinha mais números de filmagem, e foi superpouco.

pas – mas o filme deve ter ajudado a chamarem mais para publicidade, ele faz parte dessa engrenagem também, não?

nl – acho que sim, pela aparição. é difícil dizer, porque eu já estava crescendo, já era procurada. na época do “estadão” não tinha “antônia” ainda, era só charlie brown. acho que devo mais à carreira musical. lógico que me tornei mais conhecida com “antônia”, mas acho que não vendi mais discos por conta disso. ainda existe isso de o hip-hop não vender muito. a minha imagem as pessoas já conhecem bastante, mas ainda não compram meus discos.

pas – na vida real você não é mais uma menina de periferia, sua vida mudou. e na música, como faz? imagina que vai continuar falando de periferia, ou vai deixar de falar?

nl – então, não me incomodo. você me perguntou, em todas as entrevistas eles perguntam da periferia, faustão fala “você sofreu tanto preconceito e está aqui”, não me incomodo com isso. só que tenho outras coisas que podem sair de mim e às vezes não tenho oportunidade de falar por conta de ficar só nisso. mas não me incomodo.

pas – mas há uma coisa muito importante na sua geração. jorge ben e tim maia também eram artistas de periferia, mas isso não aparecia, porque não se falava tanto disso na época. na sua geração e de outros antes, como racionais, a periferia virou também uma vitrine, e vocês são importantes por mostrar para todo um país que ela existe e vocês existem.

nl – não sei, gosto de ter tido uma infância assim, de ter sido difícil e muitas vezes não ter nada na geladeira. mas tive uma família maravilhosa, minha mãe é minha musa inspiradora. ela conseguiu botar todos os filhos numa escola particular com bolsa de estudos. estudei até a sétima série em escola particular, eu que pedi para ser transferida na oitava para poder trabalhar. pedi para trabalhar, com 15 anos acordava cinco horas da manhã.

pas – todos os filhos tinham bolsa? quantos eram?

nl – todo mundo. eram cinco, eu fui a quinta.

pas – e como era estudar em escola particular? tinha preconceito?

nl – tinha tudo. começava da merenda, dos professores. esses, por serem pessoas mais inteligentes..., acho que metade deles me tratava até melhor por saber que eu era de origem humilde. mas metade já agradava os riquinhos porque sabia que eram filhos de ricos. mas começava da merenda, que a minha era ki-suco e pão com manteiga. meus irmãos, nossa, eles só tinham sapato, não tinham tênis, e na educação física a professora falava alto “que barulho toc-toc é esse?”, “veio com sapato fazer educação física?”. meus irmãos não agüentavam, saíram antes da escola. eu e minha irmã, quando tinha festa da escola, íamos de uniforme, porque não tínhamos outra roupa. “por que você veio de uniforme?” “ah, estamos fazendo tipinho, a gente gosta assim.” foi bem difícil. mas também são coisas que só depois você vai olhar. algumas atitudes de amigas também foram dolorosas. quando estava pegando amizade com uma que tinha condição melhor, outra foi e falou coisa... negros, dava para contar nos dedos. o rapazinho que gostei da primeira à quarta série nunca olhou para mim, ficava com as outras meninas. era o único negro ali, eu gostei e queria, para mim ele jamais ia olhar. os rapazes também eram assim, naquelas brincadeiras torciam para não sair comigo, para não me pegar. jamais recebi declaração de amor de nenhum menino, nenhum nunca me falou que quis ficar comigo.

pas – você morava na periferia e não mora mais. por outro lado, era negra e continua sendo. o racismo continua, ou ele mudou?

nl – sou cercada, né? negra, mulher, da periferia e canto rap. quem vai levar a sério? ouço muito dos artistas “nossa, gosto muito do seu jeito, da atitude” (gesticula), “legal o seu rap, bonitinho”. você vê que acham bonitinho, mas... (simula uma imitação) “você não me interessa, não”. é complicado.

pas – mas sente que o fato de ter condição melhor diminui o racismo?

nl – sempre tive isso bem claro. minha mãe sempre me passou orgulho do que eu era. mesmo porque sempre achei minha família muito bonita, de traços muito bonitos. a gente tinha muita auto-estima. chegava nervoso, cada um contava a história que tinha passado, “uma menina hoje me chamou disso”, “o cara falou aquilo”.

pas – vocês conversavam isso na mesa? imagino que tenha sido importante.

nl – muito importante. meu pai falava muito “você não pode abrir mão de ser livre, da sua liberdade”. eu entendi claramente o que ele quis dizer com aquilo. e a liberdade é com tudo. por exemplo, eu fiz uma cirurgia plástica, e uma associação dos negros não sei de onde me criticou.

pas – qual foi a cirurgia?

nl – fiz no nariz e coloquei silicone. quando coloquei silicone ninguém falou nada, mas quando fiz no nariz falaram que eu queria ser branca, agradar à sociedade. uma branca faz o nariz e ninguém fala nada, que ela quer ser mais branca, que ela quer agradar ninguém. ela pode. por isso que meu primeiro cd chama “negra livre”, nando reis foi maravilhoso comigo ao fazer essa música. isso quer dizer muito, meu pai falava isso para mim, coloquei na primeira música, “escravidão não me oprime”. acho que as pessoas negras que acham isso, que a gente não pode alisar o cabelo, descolorir, fazer plástica, de certa forma não são livres. para eu ser livre de verdade eu posso fazer o que eu quero, não posso ser cobrada de uma associação de negros. não posso fazer por que sou negra? então não sou livre, continuo sendo escrava. sou escrava, não dos brancos, mas dos próprios negros.

pas – para eu entender, o que eu perguntaria para uma moça branca ou para uma moça negra: por que você quis fazer plástica? por que achou que precisava?

nl – porque sou supervaidosa. quando me vi na primeira temporada de “antônia”, me olhava de perfil e falava: “por que a ponta do meu nariz cai? a da minha irmã não cai”.

pas – [eu rio] só você via isso, não?

nl – a ponta do nariz do meu irmão não cai, ah, não. “doutor, só quero assim, faz assim um pouquinho?”

pas – no filme, então, você ainda está com o nariz original?

nl – e na primeira temporada da série também. vai ver que no filme não pegaram muito perfil, tinha vários momentos que eu estava muito bonita lá, então não tinha do que reclamar.

pas – mas há aquele estigma do michael jackson, todo mundo acha que ele quer ficar branco. não é o seu caso?

nl – encontrei uma vez com paula lima e começamos a conversar sobre isso. ela disse “li, sabe o que eu acho? as primeiras coisas que as pessoas fizeram foi se assustar, ‘para quê?, ela não precisa’”.

pas – sim, é o que me vem à cabeça também...

nl – mas ela disse que o marido viu uma foto minha e disse que eu tive razão, que ficou mais harmonioso.

pas – [não percebo na hora, mas interrompo desvio a linha de raciocínio que ela seguia, sobre a conversa com paula lima] mas não tem nada a ver com você estar embranquecendo, ou querendo deixar de ser negra, ou tem?

nl – não, porque eu sempre tive traços delicados. meu nariz nunca foi grande, só caía a ponta.

pas – ou você achava que ele caía...

nl – não, ele caía mesmo. alguns amigos falavam. e eu achei que ia ficar mais feminina, mais harmonioso com o rosto todo. minha família apoiou. eu queria, eu podia, vamos que vamos. fiz e faria qualquer coisa para me sentir bonita. lógico que michael jackson exagerou, poxa, como ele conseguiu clarear a pele? gente, se eu não gostasse de ser negra jamais teria o nome negra li. se não tivesse orgulho, se quisesse fugir disso..., eu escolhi o nome do meu personagem, e pus preta, sendo que meu nome é negra li. isso para mim é um saco, porque todo mundo me chama de preta gil.

pas – já ouvi preta lee...

nl – preta lee, nega gil, tudo.

pas – me marcou, na outra vez que a entrevistei, que você disse que assistia à xuxa quando era pequena e não encontrava uma xuxa negra para se espelhar.

nl – é, tanto que eu queria ser paquita, mas não dava, né? quando a adriana bombom apareceu, ela revolucionou. não sei se ela faz idéia do que foi ela ter aquele espaço ali. ela não era uma paquita, mas estava ali, era como se fosse. e fez muitas meninas sonharem mais alto, acreditarem, terem mas esperança.

pas – você inclusive.

nl – eu, por exemplo. quando vi a bombom no “planeta xuxa”, falei “eu poderia estar ali”. ela foi uma revolução na minha vida, meu filho.

pas – é bacana você falar que talvez ela não tenha idéia da revolução que ela foi. E você, tem?

nl – (ri.) também não tenho.

pas – muitas meninas negras hoje têm não só você, mas também leilah, cindy e quelynah para se espelharem.

nl – é verdade. é muita responsabilidade. ainda bem que, como você citou que, como você citou, tem leilah, quelynah e cindy para dividir comigo. porque, puxa, que responsabilidade é isso. você alisa o cabelo, as pessoas falam “não, as menininhas se inspiraram em você porque você tinha black power, por que foi alisar?”. ainda bem que tem as outras meninas, cada uma com seu estilo, para as pessoas verem que você pode ser de qualquer jeito.

pas – mas você se preocupa com a noção de que há meninas se espelhando em você?

nl – me preocupo. você pode ver que meu nome nunca está envolvido em grandes escândalos...

pas – nem em pequenos...

nl –nNem pequenos, só esses aí tipo bomba de plástica. mas eu me preservo, sim, porque é da minha personalidade, da minha criação. minha mãe é evangélica, eu sempre fui, até hoje freqüento cultos familiares, trago irmãos da igreja aqui em casa. não sou muito de balada, para mim cantar é um trabalho. não paro de estudar música porque respeito meus fãs, tenho que mostrar que sou boa para merecer que eles comprem meu disco ou paguem o ingresso para me assistir.

pas – a personagem da sandra de sá em “antônia” é um pouco inspirada na sua mãe?

nl – não sei, a tata ouviu muitas histórias, né? uma vez ouvi ela falando que o filme teve muito a ver com minha vida, até me surpreendeu. eu não sabia. meu pai no filme é músico [interpretado por thobias da vai-vai], e meu pai era músico também, mas da igreja, tocava saxofone.

pas – ele já morreu?

nl – já, morreu em 1999. ele nunca ouviu um cd meu, morreu antes de sair o primeiro cd da rzo. mas a minha mãe é mais espevitada. a personagem diz (fala mais baixo) “será, filha, que você vai cantar?”, minha mãe (eleva o tom) é “ah, você vai?, tá bom, depois a gente se fala”. por mais que seja crente, sempre foi muito para cima, muito divertida, faladeira.

pas – morre de orgulho de você?

nl – vixe maria. ela disse “liliane, de tanto me pedirem autógrafo estou começando a dar”. aí escreve assim no autógrafo: “negra li, um salve”. falo “mãe, não é para ficar fingindo que sou eu!”. ela diz: “fazer o quê, ficam pedindo e você não gosta que traga aqui”. e escreve lá, “um salve”.

pas – que é como você faz?

nl – escrevia assim na época do rzo, era o palavreado. agora ponho “beijo”, “com amor”, “com carinho”. e ela com aquele “salve”, ai, mãe, só você mesmo.

pas – outro dia, quando vi quelynah com a filha no colo, lembrei na hora do seu personagem.

nl – é, ela disse que se via muito na minha personagem. eles já tinham desenhado cada personagem, e viam o que se encaixavam mais. tata queria que uma parecesse mais mãe, e fui eu. quelynah, você pode ver, ela é mãe e não parece.

pas – mas ela com a filha pendurada parece tanto...

nl – é, é miniatura dela. chama maya, ela até colocou o nome da filha na personagem.

pas – como é o convívio de vocês quatro? é difícil? não consegui reunir todas para a entrevista...

nl – olha, durante filmagem é terrível. tem momentos muito bons e tem momentos... sei lá, tpm, a outra está com problema e a gente nem sabe, já vem e dá patada, essa aí hoje tá que tá, é difícil, uma convivência comum.

pas – ao mesmo tempo que você diz que gostou de não ficar com a responsabilidade toda, não pinta rivalidade também?

nl – eu sempre fui muito sossegada com isso. sou evangélica, tem coisas que não posso fazer, que digo “isso é pecado, não posso andar assim”. não posso ficar com um monte de homem, né? posso ter um cara. tenho meu jeito de pensar nas coisas. recebi uma proposta da universal em 2000 e não aceitei, recebi uma proposta de ir no programa da xuxa e não aceitei, porque não queria ser conhecida pela primeira vez, com o rock, eu sou do hip-hop, pensei assim. a proposta da gravadora era de r$ 200 mil, não aceitei, porque não me sentia preparada. gravadora grande para mim ainda era aquele monstro que a gente imagina, ia fazer eu ser de um jeito que não sou. ainda não sabia me comunicar direito, era uma menina que não sabia falar direito, não ia saber me impor. nunca fiz nada para ter fama. sossegada, que venham outras para o peso ser quebrado mesmo.

pas – deve ser uma decisão difícil, sua vida podia ter mudado de vida já em 2000, com aquela grana.

nl – acho que não era para ser. não me arrependo. lógico que na época, fora eu ficar com medo, tinha um namorado que era supermachista, roupa curta não, risadinha não, gravadora não.

pas – ele teve peso na decisão também?

nl – teve. mas não sei como seria, talvez eu já viria pop desde lá, e não teria essa coisa que o pessoal gosta de mim, de personalidade forte, de carregar a periferia. eu tenho valor, entendeu? meu primeiro disco já foi cheio de mensagem, com helião, “guerreiro e guerreira”. não era para ser.

pas – entendo você dizer que não se arrepende porque tudo aconteceu depois, mas também podia estar na brasilândia até hoje. de todo modo era uma decisão corajosa, não?

nl – é, mas acredito muito em deus e já recebi dele umas promessas, sabe? tenho fé nessas coisas, sei que o caminho de deus é estreito. era para eu estar muito mais agora, mas às vezes a gente é afetada por pessoas que fazem o mal para a gente. não sei se você acredita nessas coisas...

pas – também não sei se acredito...

nl – então, às vezes a gente é afetado por energias ruins que querem atrasar nosso lado, mas é só durante um período de tempo. acredito num deus, um único deus vivo que eu sigo.

pas – o filme caracterizou vocês como um grupo, que vocês não são, nem existe um grupo daquele jeito no brasil. como lidam com isso?

nl – olha, é muito difícil, é muito ruim. cada vez que alguém me pergunta se voltaria o grupo... o brasil é diferente, cara, como a gente vai lançar um grupo? eu já tinha meu empresário, quem vai empresariar o grupo? que empresário vai abrir mão dos seus artistas para algum outro fazer o grupo? e dinheiro? e gente que cresce os olhos? e produtor bom? e gente para investir? a gente pode acabar com o que tem. tem espaço para as quatro separadas, como lá fora tem. é muito delicado, acho que a gente pode acabar com a oportunidade que tem. as três já quiseram fazer sem mim, eu não queria, chegaram a fazer shows juntas. mas viram que receberam muitas críticas, porque foi feito uma coisa sem estrutura. não pode fazer de qualquer jeito. as músicas de “antônia” pegaram, mas são músicas simples. tem que ter uma outra produção, mais bacana. tem que ser uma coisa bem feita, senão a gente acaba se queimando.

pas – como jornalista de música, para mim é claro que cada uma de vocês tem uma história separada. entendo que o grupo foi criado por causa da ficção, não que é um grupo.

nl – e é linda a história, não é? mas...

pas – mas pelo que você fala existe uma pressão para que seja um grupo.

nl – na primeira temporada prejudicou um pouco, porque as pessoas só pediam show de antônia.

pas – mas vocês podiam ter feito por um período...

nl – as três fizeram. eu não achava bom para mim. tenho história, cara, vim carregando. se aceitasse fazer um, iam vir dez, nunca ia parar. as três ficaram chateadas comigo, não demonstraram, mas depois, na segunda temporada pude explicar uma por uma, e elas me deram razão. e ouvi delas que se arrependeram de ter montado.

pas – foi por isso que você não quis fazer a entrevista junto?

nl – um pouco. acho que tenho que acostumar a galera de que não tem. se começa, o pessoal vai gostando da idéia, vai se acostumando. e são outras coisas envolvidas que não posso falar, são fora de ética.

pas – imagino que há coisas em que vocês concordam e outras em que discordam umas com as outras.

nl – religiões diferentes, princípios diferentes, vontades, desejos, personalidades. eu já quis muito montar o grupo. no meio da segunda temporada eu queria, uma delas falou “eu que não quero cantar com vocês, imagina”. falei “caramba, meu”, não dá para saber, elas me criticaram na época, “quando você não quis fazer o grupo, li, achei que você estava achando que nós três éramos umas idiotas, que você se sentia”, não, “mas agora entendo e até eu me arrependi de ter feito, achava que você tinha que ajudar, mas você não tem o dever, construiu suas coisas sozinha”. falei “obrigada, que bom ouvir isso”. (suspira.) complicado.

pas – será que de algum modo vocês repetem a história do próprio filme, os encontros e desencontros?

nl – ou o filme que imita um pouquinho, né?

pas – sim, primeiro o filme imita totalmente. mas depois não há o risco de a vida querer imitar o filme também?

nl – mas acho que é uma coisa muito óbvia, quando mulheres se juntam tem treta. é como irmãos.

pas – mas isso também se chama machismo, essa lenda de que mulheres brigam mais do que homens. homens guerreiam, matam uns aos outros...

nl – não sei se é lenda, sabe por quê? meu noivo com os amigos, por exemplo, é “vai se foder, vai tomar no cu”, o outro “quê? vai você”, eles já resolvem ali. mulher, não. fica guardando, chega para a outra “você acredita que ela fez aquilo?”. não sei, acho que tem a ver com nosso hormônio, cara. é diferente. claro que cada lado tem seu jeito. a gente se dá, mas é mais sensível. tem a tpm, que existe e está aí.

pas – mas, na verdade, mulher briga com mulher, homem briga com homem, mulher briga com homem e todo mundo briga com todo mundo...

nl – é... e família...

pas – mas mulher leva a fama de ter mais rivalidade...

nl – acho que mulher é mais tititi, é menos prática, mais sensível. por isso deve ser mais difícil de lidar.

pas – outra questão sobre a arte imitar a vida é que, na história do filme, são quatro meninas que sempre foram muito amigas, o que não é o caso da vida real.

nl – é, a gente se encontrou por teste, para fazer teste. o filme criou aquilo, e a gente acreditou também, se empolgou. vai ver que... sei lá. eu jamais faria nada por dinheiro, acho que “antônia” ficção é uma coisa muito verdadeira, e o grupo já não seria. eu jamais faria por dinheiro. faria como no filme, pela mensagem, ou porque a gente é amiga mesmo e não se agüenta, tem que ficar junto. por estar mais conhecida da globo, eu não faria, porque não ia dar certo.

pas – você falou de religiões, personalidades e princípios diferentes, mas você torce por elas? ou por qualquer menina nas mesmas condições, qualquer cantora negra?

nl – muito, principalmente por elas, porque convivi com elas e sei da luta de cada uma, do desejo de cada uma. é que nem eu, elas também são como eu, que desde a periferia me olhava no espelho, queria ser famosa. acho que todas são merecedoras, têm seu espaço e vão ter.

pas – você acha que são muito diferentes umas das outras, musicalmente?

nl – com certeza cada uma de nós tem um estilo diferente. gosto muito do timbre da cindy, por exemplo. o agudo dela é muito bonito. da leilah também, da quelynah. das três, sou muito fã da quelynah musicalmente, das músicas dela. sou muito fã da cindy por ela, tão novinha, fazer freestyle, inventar rap na hora, rimar do jeito que rima. da batalha da leilah, desde o raul gil, de vir lá de são josé, tentar a vida aqui e estar lá no programa do cara, trabalhando, trabalhando. consigo ver em cada uma delas o potencial.

pas – conversando com quelynah, me chamou a atenção o relato dela, que é diferente do seu, não sei se porque você é evangélica, de quantos obstáculos existem por ela querer usar a sensualidade no palco. ela diz que os rapazes são muito preconceituosos com isso, e os rapazes do hip-hop são mais sisudos, e exigem o mesmo das meninas. era assim com você no rzo, não?

nl – é, mas depois soltei a travesti que tem dentro de mim. não adianta você esconder. se eu fosse daquele jeito, seria até hoje, porque você é o que você é, não durou muito tempo. foi eu sair dali, comecei a colocar minhas saias, meus shorts. hoje, se você vir meu show, vai ver que sou superfeminina...

pas – sensual, também?

nl – eu agacho até o chão, subo de novo, dou piscadinha, “que medo é esse?”. não tem essa, você conquista. as pessoas têm preconceito. foi isso que paula lima me falou e equeci de dizer, em vez de esperarem para ver o que a pessoa vai ser, se ela vai dar mancada ou se vai virar michael jackson, já querem falar antes. e depois elas vêem que não é nada daquilo que estão pensando.

pas – conforme o modo de criticarem, podem até empurrar você para um lado que não queria exatamente.

nl – é.

pas – michael jackson é um exemplo clássico. será que há como a pessoa não ficar maluca, sendo criticada o tempo todo daquele modo?

nl – ele teve uma infância, uma história muito difícil. sou muito fã dele, espero que essa história seja mentira e, se for verdade, que ele tenha se arrependido, que tenha melhorado dessa doença. já ouvi uma música nova dele, ele fala “pare de me criticar”, “eu não fiz aquilo, foi você que fez aquilo com seu filho”, fala claramente. espero que essa fase ruim passe.

pas – para terminar, você deve lançar disco novo logo?

nl – queria fazer com bastante calma. quero fazer um clipe do disco anterior ainda. as gravadoras estão quebradas, e isso está prejudicando para caramba. no disco com helião tive dois clipes, neste a gravadora já não pode me dar outro. está bem difícil. a gente tem que fazer as coisas por conta própria. estou tendo muito apoio da minha empresária, rose, da nagoya music. estou na produtora do jorge ben jor. a mulher do jorge é sócia dela, também cuida de mim, pensa as minhas coisas.

pas – jorge não mostra em público, não milita, não fala de periferia, mas está sempre ligado no pessoal do hip-hop, racionais, rappin’ hood, não?

nl – está, está. sempre manda recado para mim, “ah, ela está muito bonita na propaganda”, “está muito bem”, estou sempre ouvindo isso dele. é um apoio. sei que só estou na produtora dele porque ele também quis, né?

sexta-feira, janeiro 11, 2008

as meninas da periferia

minha participação na "carta capital" especial de encerramento de 2007 e início de 2008, uma edição (a 477) que teve como mote e título de capa a expressão "esperanças do brasil".

muitas (ou muitíssimas) dessas esperanças, na minha modesta opinião, levam a falsa alcunha de "minorias" e nasceram e/ou moram nas periferias de são paulo (e de qualquer outro cantinho brasileiro). algumas delas, como quelynah, negra li, leilah moreno e cindy mendes, parecem hillaryobamas em miniatura reunidas numa pessoa só, não é mesmo? êita, feliz mundo novo!


AS MENINAS DA PERIFERIA
Uma conversa com as protagonistas de Antônia sobre racismo, machismo e superação


[dentro da reportagem, a legenda de uma foto com as quatro cantoras-atrizes reunidas prestava informações breves sobre elas: "Negra Li (esq.), nascida na Vila Brasilândia, recebeu CartaCapital em casa, na Granja Viana. Quelynah (a segunda), de Heliópolis, e Cindy (dir.), se reuniram num centro assistencial em Osasco. Em gravação de novela na Globo, Leilah (a terceira), de São José dos Campos, participou por telefone".]

CartaCapital: O filme Antônia fala sobre o dia-a-dia na periferia. Que importância dão a essa questão, e como o filme transformou a vida de vocês? O que é periferia?

Quelynah: Periferia é um lugar longe da cidade. Fala-se periferia, mas sou da favela. Não moro mais lá, mas sou de Heliópolis. Estou na música desde os 13 anos. Tive passagem por igreja, aos 15 ouvi hip-hop pela primeira vez e me identifiquei. Por quase dez anos, fui casada com Thaíde, um dos precursores do hip-hop no Brasil. Ele me ensinou muita coisa, me ensinou o que é hip-hop. Fui finalista do reality show Pop Star, do SBT, do qual saiu o grupo Rouge. Fiz backing vocal para Alexandre Pires. Antônia foi meu maior trabalho até agora. (A cineasta) Tata Amaral foi muito respeitosa com a gente. Respeitou nosso dialeto, nosso jeito, nossa cultura. E o filme abordou, além do hip-hop, a mulher que enfrenta os obstáculos, o machismo e vários outros preconceitos.

Cindy Mendes: A Tata trouxe a figura da mulher na sociedade, mas também dentro do hip-hop. A mulher que não tem força e originalidade não consegue nem sair do primeiro palquinho, morre ali mesmo. O cenário de Antônia é a periferia, e a Tata mostrou que lá existem garotas bonitas, que cantam bem...

Q: Mostrou o talento, não só a violência.

CM: Hoje se tornou chique falar de periferia. Está na moda ser negro e do hip-hop.

Q: O glamour do morro, a favela chique.

Leilah Moreno: Na verdade, só conheci a realidade das periferias e visitei favelas quando fui fazer Antônia. Vim do interior, de São José dos Campos, e lá praticamente não tem periferia. Mas venho de uma família humilde, tive mais uma vida interiorana, de roça, de área rural. Antes de mudar para São Paulo, já estudava aqui. Fazia Universidade Livre de Música, acabei participando do programa do Raul Gil, fiquei dois anos contratada pela Record, gravei dois discos. Não terminei o curso, faltando quatro meses para me formar parei, não tinha grana para pegar ônibus todos os dias de São José para cá. Mas tenho vontade de fazer faculdade de cinema. Vontade, não, eu vou fazer.

Negra Li: Lembro de viver na Vila Brasilândia sem muita perspectiva, de ficar na rua o dia inteiro com minhas amigas e sentir agonia porque sempre quis ser cantora e pensava: "Será que não vou sair daqui?”, “como vou fazer para começar?" Você não sabe por onde começar, onde se oferecer para cantar. Mas tive uma família maravilhosa. Minha mãe conseguiu botar os cinco filhos numa escola particular, com bolsa de estudos. Hoje estudo música na escola Groove. Estou lá firme e forte, no final do ano tem apresentação, vou cantar três músicas da Elis Regina. Nunca ninguém me apresentou nem me ensinou a ouvir MPB, meus pais não tinham bagagem musical, não tinham discos porque são evangélicos. Meu pai era, minha mãe é. Eu sempre fui. Estou aprendendo agora a ouvir Baden Powell, Gilberto Gil, Jorge Ben. E estou adorando.

CC: Como era estudar em escola particular? Tinha preconceito?

NL: Tinha tudo. Alguns professores, por serem pessoas mais inteligentes, me tratavam até melhor por saber que eu era de origem humilde. Mas minha merenda era ki-suco e pão com manteiga. Meus irmãos só tinham sapato, não tinham tênis, e na educação física a professora falava alto: "Que barulho de toc-toc é esse?", "veio com sapato fazer educação física?". Meus irmãos não agüentavam, saíram antes da escola. Eu e minha irmã íamos em festa da escola de uniforme, porque não tínhamos outra roupa. "Por que você veio de uniforme?" "Ah, estamos fazendo tipinho, a gente gosta assim." Mas minha mãe sempre me passou orgulho, a gente tinha auto-estima. Chegava nervoso, cada um contava a história que tinha passado, "uma menina hoje me chamou disso". Meu pai falava muito "você não pode abrir mão de ser livre, da sua liberdade". E eu entendi claramente o que ele quis dizer com aquilo.

CC: Antônia é um filme feminista? E vocês, são feministas?

Q: Sou muito feminista. Dizem que todas as feministas são feias, eu sou bonitinha (risos).

CM: Será que sou? Não sei... Comecei muito nova, contra a vontade da família. Decido tanto pela minha vida, às vezes eu até queria ter um pouco mais de apoio. Mas, por fazer tudo tão sozinha, por aderir a um estilo musical que é tão masculino, acho que a gente acaba criando uma autodefesa feminista.

Q: O meio do hip-hop é muito machista. A gente tem de bater de frente com eles, com talento e inteligência. Os manos são tristes, viu? Mas não são só eles. Um repórter na Bahia me perguntou se sofro preconceito no hip-hop por ser branca. Olha o tamanho do meu nariz, olha a minha boca! Sou negra, acho que é porque estava com o cabelo loiro. Um preconceito puxa o outro, né?

NL: Só mais tarde fui enxergar que fui vítima de machismo. E às vezes não era nem porque os caras não eram boas pessoas, mas porque a maioria dos homens é machista, principalmente os do hip-hop, tanto os rappers quanto o público. Comecei num grupo, um dos vocalistas já morreu. Morreu de tiro porque saiu com a garota de um cara adolescente, o de menor matou ele. Não estava virando, eu meio que pagava para cantar, cantava para meia dúzia de pessoas. Saí. Fui cantar com o (grupo) RZO, e quando estava com eles muitas vezes tinha que agir de uma forma que não era eu. Tentava me vestir com roupas dos meus irmãos. Falavam que eu não podia sorrir para os homens, nem podia cumprimentar com beijo, estaria querendo graça. Tinha que dar a mão, ser séria, fazer "e aí, beleza?", impor respeito. Sou negra, mulher, da periferia e canto rap. Quem vai levar a sério?

CM: Por mais que a televisão tenha aberto espaço para atrizes negras, ainda é tudo muito rotulado. Para uma negra, é difícil encontrar um papel fora do da empregada ou da escrava. Antônia me trouxe esse espaço, como cantora e como atriz. Depois do filme é que resolvi e fui estudar música. Era um sonho, agora é realidade. Muitas meninas pararam por falta de apoio, de oportunidade.

Q: O que falta para a gente é determinação, e essa é a mensagem de Antônia. A gente tinha um discurso estranho, de ficar só sofrendo, reclamando. Sempre tive o sonho de ir para uma gravadora, mas depois vi que é bobeira, que hoje selo independente deixa você livre para o trabalho, para ser quem você é. Lancei meu disco independente. Tenho um sonho de cantar na MTV e dizer assim: "Alô, gravadoras, muito obrigada por não terem apostado em mim".

CC: Negra Li não mora mais na Brasilândia. Como é hoje sua relação com a periferia?

NL: Minha mãe ainda mora lá, no mesmo lugar onde nasci. Tenho certeza que qualquer um ali que ganhasse na mega-sena ou melhorasse de vida procuraria um lugar mais sossegado para viver. Passaram a exigir de mim uma atitude que eu não tinha. Minha família sempre viveu ali, teve muita necessidade quando eu era mais nova, e um vizinho ou outro emprestava um pouco de açúcar, mas não era a Brasilândia que ia lá nos ajudar. Hoje me cobram buracos na rua, "olha aí, Negra Li, tem que ver isso". Eu não devo isso, não sou político. Fico triste por causa disso. Quando foram passar o filme em telão na Brasilândia, eu tinha feito uma operação plástica e não pude ir. O líder comunitário disse que nunca me viu andar na rua ali. Eu andava, ia a pé até Pirituba. Para ficar melhor, me matriculei no coral da USP, que era gratuito. Não tinha dinheiro, mas fui atrás de saber onde davam aula de canto. Muitas vezes pedi ao motorista para descer pela frente, para poder freqüentar as aulas, melhorar.

CC: Que cirurgia você fez, e por quê?

NL: Fiz no nariz, porque sou supervaidosa. Quando me vi na primeira temporada de Antônia na tevê, me olhava de perfil e falava: "Por que a ponta do meu nariz cai? A da minha irmã não cai". Associações de negros me criticaram, mas não posso fazer por que sou negra? Então não sou livre, continuo sendo escrava. Sou escrava, não dos brancos, mas dos próprios negros. Gente, se não gostasse de ser negra jamais teria o nome Negra Li. Escolhi o nome Preta para minha personagem, teria feito isso se não tivesse orgulho?

CC: Você já disse que quando era pequena não encontrava na tevê uma Xuxa negra para se espelhar.

NL: É, eu queria ser Paquita, mas não dava, né? Quando Adriana Bombom apareceu ali, ela revolucionou. Fez muitas meninas sonharem mais alto. Não sei se ela faz idéia do que foi ela ter aquele espaço ali.

CC: E você, faz idéia da responsabilidade que tem?

NL: Também não faço (ri). Ainda bem que tem Leilah, Quelynah e Cindy para dividir comigo. Porque, puxa, que responsabilidade é isso. Você alisa o cabelo, dizem: "As menininhas se inspiraram no seu black power, por que foi alisar?". Ainda bem que são quatro, cada uma com seu estilo, para as pessoas verem que qualquer um pode ser do jeito que quiser.

CC: A personagem de Leilah no filme passa pela experiência da prisão. Como foi fazer aquelas cenas?

LM: Achei bacana mostrar a realidade da cadeia, até porque eu já conhecia. Trabalhei naquele mesmo presídio, por cinco anos cantei nas festas de fim de ano e dia das mães que faziam para as detentas. Você tem que ter muito cuidado com o que fala. Num show normal se fala "até a próxima, galera". Na cadeia, ninguém quer estar ali no próximo show. Nos primeiros shows fiquei um pouco mais em silêncio para poder aprender como falar com elas. Quando você começa a sacar é muito bacana, porque a cada palavra de esperança você vê o brilho no olho delas. Você passa confiança, e elas guardam durante muito tempo, porque não têm muito do que se lembrar ali dentro, não têm experiência boa ali.

CC: O funk carioca tem em comum com o rap o fato de ambos terem modificado a vida de muita gente na periferia. O que pensam do funk carioca?

Q: O hip-hop está meio assustado com a chegada do funk a São Paulo. Até chutei a bola para o Mano Brown. Mas, não sei, o hip-hop não está de passagem. A história do funk carioca é muito peculiar, né? Gosto muito da batida.

CM: A batida é maravilhosa, mas, gente... Fico preocupada, porque a música brasileira é riquíssima, e eu encaixo o hip-hop dentro da MPB. Nós não somos brasileiras? Não cantamos em português? Mas se o funk é encaixado dentro da MPB, ele está acabando com a MPB.

CC: Não tem gente que acha o mesmo do rap?

CM: Não, a gente não pode dizer que o rap dos Racionais não contribuiu para a MPB.

Q: Fico meio encabulada com as letras do funk, mas gosto daqueles de afirmação, é som de preto, de favelado/ mas quando toca ninguém fica parado. Procuro fazer músicas que tragam informação, e trago no pacote a sensualidade, que eu sabia que era uma coisa que batia de frente. Falo sobre auto-estima, que é uma coisa de que a gente precisa muito, muito, muito. E sobre perspectiva de vida.