segunda-feira, novembro 26, 2007

perdidos (& achados) na tradução

segue um apanhado de textos publicados recentemente na "carta capital", para fazer um liquidificado desses temas todos aí, "da atualidade".

primeiro, dois da edição 471 (21 de novembro de 2007), o segundo "quase" rebobinado do tópico retrasado, mas o primeiro "quase" inédito, e um daqueles com os quais a gente se envolve bastante intensamente para produzir.

a segur, um da 470 (14 de novembro de 2007), fruto de uma entrevista no mesmo dia da coletiva da sra. yoko ono, um dia que me pareceu assim "quase" lost in translation (mas acho que não foi, não).

por fim, um da 469 (7 de novembro de 2007), "quase" redundante com o que já andou rolando por aqui, mas quiçá útil para algum exercício de antes-e-depois, a quem interessar possa.


1
Lost in translation
Equívocos e ruídos no passeio de Yoko Ono

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

"Ela está aqui, a Yoko?", pergunta uma senhora ao segurança. Outra senhora, que acompanha a primeira, inverte o eixo para repetir quase a mesma pergunta: "A Yoko, onde é que está?". Nestes dias, Yoko Ono está em todos os lugares. Esparrama-se pelos vários andares do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no centro histórico de São Paulo, na inauguração da mostra Yoko Ono – Uma Retrospectiva, no sábado 10.

Yoko está no Brasil por uma semana. Nesse dia, ela circula ladeada por seguranças e se mistura às próprias obras e à multidão que também se espalha por cinco andares (lotados) do CCBB. Uma revoada de fotógrafos a persegue sem trégua, num pelotão que irmana profissionais dos veículos ditos mais "sérios" aos mais "fofoqueiros".

No térreo, um grupo de adolescentes entra em estado de comoção quando Yoko faz a primeira aparição e acena da sacada interna do mezanino. A menina pré-adolescente se banha em pranto e grita "eu vi a Yoko!", mais para si que para os colegas. O corpo do garoto de uns 16 anos treme enquanto ele estende para o alto um velho disco de vinil. Na capa, aparecem a artista japonesa que viveu Hiroshima e Nagasaki de dentro do país natal e seu famoso ex-marido britânico (você sabe quem, não é preciso declinar o nome), assassinado por um fã na entrada do Dakota Building, em Nova York, em 1980.

Como cantora, compositora ou artista plástica, Yoko é pouquíssimo conhecida e assimilada no Brasil, como atesta até o curador que intermediou a vinda da retrospectiva, Emilio Kalil: "Confesso que aprendi a gostar dela agora. Na primeira vez que a encontrei, morri de medo, achei que vinha um dragão pela frente. Mas descobri uma pessoa deliciosa de quem eu nem tinha idéia".

As manifestações de idolatria soam surpreendentes, diante da constatação de que Yoko é a mulher que boa parte do mundo ama odiar. O processo começou no final dos anos 60, quando o senso comum a apontou como bode expiatório da separação do conjunto de rock do ex-marido, provavelmente o mais famoso do mundo (tampouco se faz necessário explicitar o nome). Em guerra permanente com esse tipo de opinião pública, Yoko lançou neste ano um disco chamado Yes I’m a Witch, ou, em português, Sim, Eu Sou uma Bruxa.

Em São Paulo, a fricção se estabelece no primeiro contato com jornalistas de tevês, jornais, revistas e sites, numa entrevista coletiva armada na manhã da quarta-feira 7. Tenso, o encontro produz momentos em que todos parecem lost in translation, ou melhor, perdidos na tradução. Após uma resposta sobre a imigração japonesa ao Brasil, Yoko duvida do tradutor e pergunta em voz alta se ele foi fiel a suas palavras, pois se trata de uma "questão delicada".

Um repórter travestido de fã (ou vice-versa) exibe elogios e capas de LPs dela e do ex-marido, talvez na esperança de ganhar um autógrafo. Aparentemente experiente, o tradutor se embaralha quando alguém quer saber se a obra do "prego" veio ao Brasil. Ele entende "prédio" em vez de "prego", e Yoko faz cara de espanto pela pergunta sobre se trouxe o "building" a São Paulo.

Outra pergunta mistura a vida privada dos colegas dos anos 60 e o fato de Yoko ser uma eterna "perseguida pela mídia". Ela se fecha. Poucos minutos depois, encerra rispidamente a sessão, em mais um round da relação conflituosa com o olho público. "Yoko vive permanentemente cercada de uma tietagem agressiva, e se sentiu um pouco atacada pelos fotógrafos, que estavam muito invasivos", justifica Kalil.

Flagrantes lost in translation ecoam na quinta-feira 8, quando o palco nobre do Teatro Municipal abriga Uma Noite com Yoko, para uma amostra expressiva da comunidade cultural local, de artistas plásticos como Tomie Ohtake a roqueiros como Supla. Yoko engalfinha-se com uma cadeira, imita ruídos de vômito, rasteja dentro de um saco, geme. Alguns saem indignados, outros pedem bis como se performance fosse show de rock.

Convidado a participar da performance, Osvaldinho da Cuíca, do histórico grupo paulista Demônios da Garoa, expõe uma aproximação receosa. "Confesso que no primeiro ensaio não gostei, não. Falei 'pô, em que fria eu entrei'", diz, depois de contar que costuma ser chamado por artistas internacionais, "quando querem uma coisa autêntica, de terreiro". "Quando viu a batucada, ela falou logo que não era isso que queria."

Osvaldinho conta que chegou pronto para tocar na cuíca algo do imaginário do ex-marido de Yoko, talvez Ob-la-di Ob-la-da, quem sabe Imagine. "Fiquei decepcionado comigo, porque pensei que ia arrebentar. Mas os empresários disseram que não queriam nem que tocasse no nome da banda."

Na hora H, Yoko imita a cuíca com a voz e acaba por se jogar, aos 74 anos, à batucada do samba. E Osvaldinho se emociona ao falar do abraço e do beijo recebidos da quase sempre contida artista ao final da apresentação.

Curiosamente, é no contato com um público heterogêneo, na inauguração da mostra, que o efeito lost in translation parece começar a ceder. Ali a "bruxa" e o "dragão" dão lugar a um outro signo, da artista plástica demolidora de fronteiras e de dogmas, em ação desde meados dos anos 50, inicialmente com a arte conceitual do grupo Fluxus.

Kalil tenta traduzir o ponto de vista que Yoko traz ao Brasil: "Se não queremos ter medo de falar do assunto, ela é das poucas artistas que mexem hoje com sentimento, com paz e amor. Ela ainda acredita e pratica isso o tempo todo, às vezes de modo até irritante".

O ideário hippie parece mesmo presente, mas não é só ele. Com a mostra em cartaz até fevereiro próximo, o CCBB está invadido pelo discurso feminista, étnico, sociopolítico de Yoko. As Blood Series reúnem objetos banais do dia-a-dia, mas manchados de sangue, e entre eles há um chamado Sacola com Bebê. Árvores verdes brotam das tampas de um aglomerado de caixões de madeira, sob a inscrição de que "os porões do inferno são apenas um jogo de luz". Numa instalação em que os espectadores são convidados a rabiscar memórias sobre suas mães na parede, alguém inscreve uma máxima dos Racionais MC's, "vida loca".

Uma escultura exibe quatro personagens negros nus sentados num banco de bronze, sob o título Espécies em Extinção. Durante a vernissage, o espaço é interditado ("ela está aqui, a Yoko?", suplica a senhora do lado de fora do cordão de isolamento) para que Yoko passeie pelo ambiente. Ono se deixa fotografar sentada no banco, entre as "espécies em extinção".

O garoto que antes tremia consegue chegar até ela e chora copiosamente. Yoko cede ao assédio e chora também. Como muitos dos presentes, o adolescente veio em busca da figura pop remanescente dos heróicos anos 60, mas no caminho se encontrou com arte interativa, metáforas sobre estupro, raios de sol feitos de cordas, objetos de sangue, espécies em extinção.


2
A TRAGÉDIA DE JIMI

A autora de A Dramática História de uma Lenda do Rock (Zahar, 348 págs., R$ 40) até ameaça traçar um retrato glamouroso e deslumbrado de Jimi Hendrix, mas a leitura da biografia demonstra que, pela figura em questão, a tarefa não é simples assim. A jornalista Sharon Lawrence relata os acontecimentos de dentro, pois foi próxima de Hendrix durante os efêmeros anos de fama como astro do rock, entre 1967 e 1970. Detalhes terríveis não param de sair do baú, mesmo que ela os tente suavizar.

Egresso de uma infância de abandono, Hendrix rodopia para as entranhas da indústria cultural, entre produtores musicais mafiosos, contas em paraísos fiscais e contato contínuo com um séqüito de fãs e fornecedores de drogas. Sharon o retrata invariavelmente como vítima indefesa de um círculo voraz de aproveitadores, numa distinção que não chega a ser de todo convincente (e faz o leitor se perguntar se ela própria não seria mais uma integrante do séqüito macabro). Fica a cargo do leitor eleger o que é mais ou menos plausível na imagem maniqueísta de showbizz composta pela narrativa.

De todo modo, fica demonstrado que Hendrix pagou drasticamente pelo clichê. Morreu aos 27 anos, sem que ninguém o socorresse, após a ingestão de uma grande quantidade de barbitúricos. Segundo Sharon, menos de dois meses antes o pai do artista o havia pressionado a providenciar um testamento e incluí-lo como beneficiário. O livro descreve longamente o agouro que se perpetuou pelas décadas seguintes, em grotescas disputas judiciais entre familiares e pelo espólio milionário e pelo legado musical impalpável de Jimi Hendrix. – POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES


3
A BABEL DE BROWN

Um dos rumores que se espalham sempre que Carlinhos Brown lança um disco é o de que as letras do cantor, compositor e ritmista baiano não fazem sentido, não dizem coisa com coisa. Ele, de fato, gosta de usar onomatopéias, dialetos, expressões em iorubá, idiomas misturados, signos do candomblé, nada facilmente decifrável. Concebido numa babel simbólica e geográfica, o novo A Gente Ainda Não Sonhou foi bancado pela Sony BMG espanhola, e chega ao Brasil com alguns meses de atraso, pela Som Livre.

O repórter pergunta de que fala a canção Aroma da Vida, que mistura signos católicos, muçulmanos, africanos. "Fiz para minha mãe, Madalena. 'Aromadá'. O apelido dela é Madá", explica, de seu jeito peculiar. Sobre Te Amo Família, revela quem é tia Nazaré ("ela trabalha com Marisa Monte, é a segunda mãe dela, é muito tia"), mas mantém segredo sobre os outros personagens citados na letra, tio João José e tia Salomé.

Marina dos Mares não foi feita para Dorival Caymmi, mas, quando Brown descobriu que foi feita no dia do aniversário do patrono baiano, converteu-se em homenagem automática. "O mar gera o samba, a nação e a comida", espreita uma explicação. E fala sobre o uso da "língua" do candomblé: "A única herança ancestral que nós, negros, temos é a dos orixás. Fora isso, não temos nenhuma. Se alguém não tem herança aqui no Brasil somos nós".

Conta que, para lançar o disco no Brasil, teve que passar por "disciplinas": "Fiz media training, instruído pelas lideranças das gravadoras, que são muito sérias. Rapaz, os caras estão ajudando, é legal". A quem interessar possa, media training é uma espécie de breve curso em que jornalistas "ensinam" o entrevistado a enfrentar a imprensa.

Aparentemente, o tiro saiu pela culatra dos treinadores, pois Brown está mais Carlinhos do que nunca. Responde assim sobre a ligação umbilical entre a música baiana mais populista e a era Antônio Carlos Magalhães: "A mídia está toda no Rio e em São Paulo. Quando um baiano defende um dos nossos, o ACM ou outro qualquer, é mais cultural, familiar. Em São Paulo, o cara defende o Maluf".

Seja compreendido ou não, caracteriza as letras que cria como essencialmente afetivas. Ali, a língua é apenas detalhe, efeito rítmico, "um instrumento sonoro". "Vou juntando, pode dar momentos emocionais fortes ou pode ninguém entender nada. O que gosto muito é que as músicas mais tontas são as que o pessoal mais canta. E cada um canta do jeito que quer, é tão legal, tão dadaísta."

Um assessor intercepta a ligação telefônica, à moda habitual entre astros pop planetários, e avisa que o tempo está esgotado. Brown finaliza, bem particular: "Sugiro férias coletivas para músicos no Brasil. Para fazerem letras e músicas lindas. Negócio de show e disco está muito... diferente, né?". POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES


4
VIVO, NA CONTRAMÃO
Ney Matogrosso relembra preconceitos e afrontas à ditadura e ganha um novo público masculino em show inédito

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Um dia, no início dos anos 70, o jovem Ney foi fazer uma visita à tia, calçado com um par de sandálias havaianas. Ela passou um recado curto e grosso: "Você nunca mais volte aqui com seus pés de fora". No futuro, freqüentaria muitos shows do sobrinho, então transformado em cantor famoso. Mas ele nunca voltou a pisar na casa da tia.

"Na época só se podia andar de sapato. Quando lançaram as havaianas eu disse 'meu Deus do céu, que felicidade, libertaram os pés da gente'", relembra Ney Matogrosso. "Não podia voltar à casa de uma pessoa que me escorraçou porque eu estava com o pé de fora, isso é absurdo."

Muita coisa aconteceu daquele tempo para cá. As havaianas, por exemplo, se tornaram uma espécie de calçado oficial do Brasil. Homens usam livremente camisetas tipo regata, que traziam dissabores para o Ney dos anos 70, como ele recorda durante a entrevista em seu apartamento carioca, no Leblon: "Me xingavam na rua porque eu estava de camiseta, dessas sem mangas, fuleiras, que hoje todo mundo usa. Em São Paulo, fui morar no Bixiga, e já era hippie, cabeludo. Passava pela rua e as pessoas batiam as janelas na minha cara. Ficavam indignadas com a minha presença".

À frente do conjunto Secos & Molhados, Ney construía à época uma figura masculina ímpar, ao mesmo tempo agressiva e fortemente sexualizada. Na estréia do novo show, Inclassificáveis, em outubro passado, ele mostrou que, aos 66 anos, mantém preservada a voz aguda de grande extensão, bem como a persona sexual vestida de nudez e fantasias provocadoras de signos indígenas, ciganos, mouros, hollywoodianos, umbandistas, homossexuais, fronteiriços. Descendente de paulistas, argentinos e indígenas mato-grossenses nascido em Bela Vista, fronteira com o Paraguai, ele responde se as atitudes libertárias tinham desde o início o objetivo consciente de provocar. "Não era provocação, não tinha intenção. Sei lá se tinha, em que grau. Talvez, né?"

Do enfrentamento comportamental exercido nas ruas, nascia o homem público (e inicialmente mascarado) que trouxe a androginia para os palcos brasileiros em pleno 1973, sob reinado de terror e tortura do presidente Emílio Garrastazu Médici. Com Sangue Latino, O Vira e Rosa de Hiroshima, os Secos & Molhados viravam sucesso popular avassalador (e efêmero), à margem e ao largo da ditadura militar.

Reações contrárias partiam da própria comunidade cultural, como na primeira temporada dos S&M, no teatro de Ruth Escobar. "No último dia, Ruth foi ver, e eu disse: 'Hoje vou caprichar'. Usei uma pele de jacaré presa ao corpo todo, o rabo enorme balançando no chão. Ela disse que não queria aquela gente ali, que eram uns maconheiros que atraíam só gente doidona".

Sob o jugo da censura implantada nas redações e tevês, Ney teimava contra tentativas explícitas de reprimir maquiagens, rabos-de-cavalo e até mesmo olhares. "Na primeira vez que fomos à Globo, existia uma regra lá dentro que ninguém podia olhar para a câmera, porque não podia se comunicar com quem estava em casa. Disseram isso na minha cara. Eu disse: 'Mas vou olhar'. E olhei." E aí? "Aí, nada. Olhei a vida inteira."

As reações dos militares, por incrível que pareça, não eram tão frontais. "Só recentemente eu soube que ouviram dizer, na Censura, que eu não tinha mais jeito, que meu caso era 'só matando mesmo'. Chico Buarque me contou que quando ia lá eles ficavam perguntando se ele me conhecia, falando mal de mim. Mas nunca me chamaram. E eu me fazia de morto."

Militar era também o pai de Ney de Souza Pereira, de quem ele "roubou" o sobrenome Matogrosso. "Eu ignorava a ditadura, porque o máximo de autoridade da minha vida era meu pai, que eu já tinha contestado lá atrás, quando saímos na porrada, ele disse 'fora daqui', e eu fui."

As pazes com o pai não tardaram. Ele se tornou freqüentador dos shows a partir de 1975, data da estréia-solo de Ney. Na ocasião, o filho se vestia com couros e chifres de carneiro e segurava uma ameaçadora queixada de boi, que usava como arma enquanto cantava desperta, América do Sul! Tratava-se de provocação política explícita, diz. "Era para dizer 'acorda!'. Os militares fizeram exatamente a coisa certa, do ponto de vista deles, que era nos desagregar, para que não fôssemos um bloco. E conseguiram."

Curiosamente, o início da formulação da figura que viria a ser Ney Matogrosso se deu na recém-nascida Brasília, para onde ele se mudou em 1961. A convite de um primo médico, virou funcionário do hospital distrital, trabalhou no laboratório de anatomia patológica, cuidou de crianças em estado terminal. O instante fundador para o artista se dava numa cidade em construção, que persiste na memória como um lugar onde "valia tudo".

"Todos vinham de outro lugar, ninguém tinha raízes ali. Tudo que quisesse fazer você podia, tudo podia. Você ouvia falar dos deputados que davam festas nos sítios e enchiam de travesti. Era tão liberado que de tarde todo mundo fumava maconha nos jardins das casas, acendia um baseado e fumava. Ninguém prendia ninguém, porque a polícia não sabia quem era quem. Podia ser o filho de um senador, ou o próprio senador..."

Em Inclassificáveis, Ney adota uma atitude que notabilizou artistas como Elis Regina, de apresentar um repertório majoritariamente inédito diante da platéia, sem disco que preceda o show. E reúne mais um bloco de novos compositores e/ou canções, como sempre fez, à diferença da maioria de seus pares. Desde os anos 80, tem dado visibilidade a autores tão diversos como Itamar Assumpção, Cazuza (que foi seu namorado), Pedro Luís e, no novo show, o jovem Dan Nakagawa.

"Fui a um ensaio ouvir a versão que ele fez para Um Pouco de Calor. Eu estava nervoso, queria gostar. E ele me disse que também estava apreensivo. Enfim, gostei muito", descreve Nakagawa. "Vê-lo acontecer ao vivo refresca a nossa caretice."

Ao vivo, Ney volta mais uma vez aos figurinos expressionistas e à postura sexual ostensiva, após uma fase longa em que se dedicou a reinterpretar clássicos do cancioneiro nacional, não raro vestido sobriamente, de terno. "Eu ouvia falar: 'Ah, ele só faz sucesso porque fica nu, porque exibe o corpo'. Também fiquei na dúvida", justifica aquela guinada.

Agora, um novo fenômeno acontece ao redor do artista, como se pôde perceber na temporada paulistana. Conhecido como pólo de atração preferencial sobre o público feminino, notadamente senhoras de meia-idade para cima, Ney testemunha um inédito afluxo de homens.

"O público dele sempre foi de mulheres de classe mais popular, acompanhadas de maridos e namorados constrangidos e mudos. Eu nunca tinha visto uma reação jovem e masculina tão forte como agora", afirma do DJ Zé Pedro, que assiste aos shows desde o final dos anos 70.

De fato, na sexta-feira 19, o espetáculo de moças e senhoras em delírio era complementado por vozes masculinas aos gritos de "gostoso" e "me leva para o seu harém" ("que harém?, cadê o harém?", ele pergunta, divertido). Rapazes jovens pediam autógrafo à beira do palco ou subiam à cena para roubar um beijo do artista. "Isso não vem de hoje, e não acho que determine nada. Estão ali de farra, em turma. Mas acho precoce. A internet evidencia uma revolução enorme no comportamento sexual dos adolescentes."

Se houver uma revolução em curso, o veterano Ney ocupa o holofote central no front masculino, como tem ocupado quase solitariamente há mais de 40 anos. Na geração passada, tentativas de transgressão como as de Cazuza, Renato Russo e Cássia Eller se colaram ao imaginário como passíveis de punição e morte precoce. Mas o respeitável senhor se insurge contra tal imagem: "Não é verdade. Estou aqui para dar provas de que é possível ser transgressor e ser feliz".

sexta-feira, novembro 23, 2007

o inferno são tim maia?

na recém-lançada biografia "vale tudo - o som e a fúria de tim maia" (objetiva), o companheiro (não-)global nelson motta a alturas tantas nos relata generosamente as incríveis peripécias do protagonista com a editora seroma, que tim pioneiramente montou para administrar seus próprios direitos autorais e composições (se-ro-ma significa "sebastião-rodrigues-maia", ou seja, ele mesmo).

seguem-se trechos curtos dessa passagem, cuja transcrição sei que o autor aprovará, uma vez que o próprio nelson motta se manifesta em favor da livre circulação de textos pela internet e disponibilizou alguns (poucos) capítulos de sua biografia para download gratuito no site oficial da editora. os grifos são meus.

"Tim foi dos primeiros compositores brasileiros a perceber a exploração indecorosa, que enriqueceu muitos editores e levou à miséria muitos compositores. Decidiu tomar providências e criou a Seroma Edições Musicais, não só para editar as suas músicas, mas para também ter os direitos de todas as canções que gravasse: quando escolhia uma música, avisava logo ao compositor que tinha que editá-la na Seroma, do contrário não gravaria.

Se as editoras 'tradicionais' levavam quatro meses para pagar, pode-se imaginar como funcionava, sob a administração de Tim, a contabilidade da Seroma. Em princípio, os critérios de pagamento dos direitos eram imperiais: ele pagava a quem queria, ou por generosidade ou sob pressão, mas sempre pelos seus critérios. (...)

Os pagamentos eram sempre em dinheiro vivo, em montinhos, pacotinhos, distribuídos de acordo com as circunstâncias e o humor de Tim: quem estava precisando mais, quem reclamava mais, quem tinha vacilado, quem tinha ajudado, quem merecia mais ou menos. As distribuições não guardavam muita relação com o sucesso das músicas ou com a vendagem dos discos; muitas vezes um compositor recebia muito mais do que deveria, enquanto outros recebim muito menos por músicas que tocavam mais no rádio e vendiam mais discos. (...)

Como editor musical, Tim prosperava, não tinha quase despesas e, como jamais pagou impostos, tudo era lucro. Ao longo do tempo foi formando uma carteira com dezenas de títulos, entre eles muitos grandes sucessos, que davam ao seu catálogo um valor respeitável no rico mercado editorial. (...)

Se, como editora, a Seroma era uma empresa muito rentável, graças à sua peculiar administração, como gravadora foi um desastre absoluto e deu incalculáveis prejuízos a Tim com seus primeiros lançamentos: os dois LPs do Racional Superior e o obscuro disco em inglês de 1978. Gastou o que tinha e o que não tinha com estúdio, músicos, prensagem e capas, vendeu muito pouco e algumas lojas não pagaram. Mas, com as portas das gravadoras fechadas e o caixa vazio, não lhe restava outro caminho senão fazer seus discos em seu próprio selo: era independência ou morte."

sendo o jimi hendrix de si mesmo, tim maia teria sido também o michael jeffery, o chad chandler, o john hillman, a yameta company limited e o inferno de si mesmo? [obs.: este tópico é uma quase-continuação do anterior, o inferno são jimi hendrix?.]

e o tim maia, nos representou defronte da televisão?, o tim maia fomos nós?

terça-feira, novembro 20, 2007

o inferno são jimi hendrix?

como assim? super-heróis muuuuuuuito bonzinhos do mundo pop acumulando contas e empresas-fantasmas em paraísos fiscais nas bahamas? ué, mas, no rol dos papéis dedicados a cada um de nós, a caricatura do vilão fazedor de caixa 2 não pertence somente aos políticos (do "terceiro mundo")?

segue um trecho extraído do livro "jimi hendrix - a dramática história de uma lenda do rock" (jorge zahar editor), escrito por uma "amigona" do jimi, a (jornalista e assessora de astros do rock) sharon lawrence.

"(...) Mike [michael jeffery, um dos empresários-feitores de jimi] acompanhou Hendrix até o escritório da Mayfair, do procurador John Hillman, o idealizador da empresa de Jeffery no paraíso fiscal das Bahamas, a Yameta Company Limited. 'Jeffery já tinha me falado que estava montando um escritório de Nova York', recordou Jimi. 'Ele também falou de um Rolls Royce. Fiquei muito impressionado. Ele e Chas [chandler, ex-integrante da banda the animals e co-empresário de hendrix] me faziam crer que aquele escritório seria meu, e também do grupo. Depois de nos apresentarmos em Paris, Mike ficou muito excitado com as boas notícias que ouviu. Disse que estava inspirado, com várias idéias sobre o que se poderia fazer por mim em Los Angeles, inclusive filmes. Mas, para começar, ele concentrava forças num grande contrato de gravação com os norte-americanos.

Naquela tarde, Hillman e Jeffery apresentaram a Jimi um outro contrato legal, agora relacionado apenas a ele como artista, em todas as modalidades. Segundo o documento, Jeffery receberia colossais 40% dos ganhos totais de Jimi em suas apresentações, soma extraordinária para qualquer padrão do show business. Jeffery explicou que parte daquela percentagem seria para pagar possíveis despesas com viagens. Hillman disse a Hendrix que aquelas 'deduções de taxas poderiam ser muito boas para a Yameta' e mencionou o nome de sir Guy Henderson. 'Mike me faloy que sir Guy ajudara a começar a Yameta. ... Também falaram como, se eu me saísse bem nos Estados Unidos, as diversas contas das Bahamas evitariam que eu pagasse impostos excessivos e me sustentariam pelo resto da vida. [sabe aquele treco que o djavan anda rimando, de que quem cobra imposto "é o impostor"? pois é, alô, dona fiesp, alô, dona cpmf, alô, seu jatene...]."

pois então, a biógrafa (e amiga) é cuidadosamente zelosa quanto a tratar jimi hendrix como "vítima" de tudo e de todos 100% do tempo, e a isentá-lo de toda e qualquer responsabilidade sobre todo e qualquer detalhe de sua própria vida (e morte), mas...

será?, será que qualquer pessoa (ou hendrix, ou eu, ou você) poderia mesmo se isentar e se ausentar dos contratos reais ou simbólicos que ela própria firma ou deixa empresários predadores muuuuuuuuuuito malvados firmarem em seu nome? será que o inferno são mesmo os outros, será?

terça-feira, novembro 06, 2007

o ney

numa tarde de ponte aérea, fui até o rio de janeiro entrevistar ney matogrosso, poucos dias depois de ele ter estreado em são paulo o show inédito (inédito, mesmo, para lá da mera retórica) "inclassificáveis".

foi uma tarde importante, reveladora. na ida e na volta, no avião, borbulharam reflexões e conclusões sobre quem foi, é e será esse cara, esse homem peculiaríssimo que há 30 e tantos anos vem sendo recebido e assimilado por seu país natal numa cornucópia de sentimentos que misturam preconceito, paixão, temor, admiração, aversão, respeito, desrespeito, cobiça, desprezo, amor...

borbulhava no avião, e borbulha até agora, a visão e o sentido do papel descomunal que ele tem exercido, não raro quase solitariamente, no cenário popular brasileiro. a bandeira de desopressão e liberdade, de liberação e desrepressão sexual exercida a partir do complicadíssimo front masculino tem sido a de ney desde sempre.

muito(a)s (inclusive eu) já olharam com muito susto (pavor?) para aquela imagem esguia (no espelho?). e ele lá, forte, ereto, altivo, elegante, sem pudor nenhum de soar ora "chique", ora "cafona", ora "kitschic". mas, depois da entrevista e, antes ainda, de ter testemunhado um aroma de desrecalque masculino bafejando espectadores de várias idades no show recente, fico pensando, nas borbulhas, que quando se for escrever a história do vindouro movimento "masculinista" brasileiro, ney matogrosso terá necessária e prazerosamente de ser desde logo entronizado, entre poucos (alô, sr. joão silvério trevisan!), como patrono, pioneiro, precursor e figura de proa - e nunca como mártir, o que é sensacional.

a seguir, uma versão sem medo de ser comprida da conversa franca com que ney me (nos) presenteou. e um viva ao "masculinismo", esse eterno oprimido (logo, opressor) cujo enrustimento tanto mal e dissabor sempre nos causou, independentemente de sexos e sexualidades. desperta, américa do sul!


pedro alexandre sanches – existe aquela história clássica, não sei até que ponto verdadeira, de que show de ney matogrosso é mais freqüentado por mulheres, em especial senhoras. no novo show, no dia em que fui, sexta-feira [19 de outubro], havia uma grande quantidade de homens, entusiasmadíssimos...

ney matogrosso – eu acho misturado, sempre achei muito heterogêneo mesmo, não só em relação a homens e mulheres como com idade também. mas você viu na sexta? que pena, porque só ficou pronto no domingo.

pas – é? como assim?

nm – é, foram quatro dias, e eu fui ajustando, ajustando, ajustando, ajustando. no domingo eu já tinha tirado duas músicas, já tinha diminuído algumas introduções e meus tempos de troca de roupa. porque isso você só vai entender mesmo fazendo, não adianta ensaiar. tem que ver a coisa funcionando diante do público. domingo eu entendi, domingo ficou pronto. a última coisa que faltava era a introdução de "coragem, coração" [de cláudio monjope e carlos rennó], que estava muito grande. ficava aquela coisa enorme já no final do show, sem necessidade. pedi para diminuir radicalmente, dois acordes depois já estou cantando a letra. e aí foi isso, está resolvida minha questão, não tem mais nada, agora está pronto.

pas – como é que se sabe que tem que tirar uma música ou duas?

nm – porque você sente que tem barriga.

pas – pode falar quais eram?

nm – pode, pode. eram músicas de que eu até gosto. independe de gostar ou não, é uma questão de no roteiro funcionar melhor. tirei "imoral, ilegal ou engorda", do roberto [e erasmo] carlos...

pas – era no começo do show?

nm – não, era no fim. mas você não viu, na sexta já não tinha.

pas – é que eu perdi as primeiras músicas...

nm – [espantado] você perdeu?

pas – [rio, constragido] é o trânsito de são paulo...

nm – aaah... você perdeu o impacto que é "o tempo não pára" [de cazuza e arnaldo brandão] e "mal necessário" [de mauro kwitko]...

pas – [consulto a lista com o roteiro, que tenho em mãos] acho que não conheço "mal necessário"...

nm – ah, é uma música que gravei na década de 80 , "sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher...".

pas – ah, sim, sim [na verdade, ele a gravou no disco "feitiço", de 1978].

nm – essas duas músicas já estabelecem um clima no show.

pas – e tirou "imoral, ilegal ou engorda" porque dava barriga?

nm – dava.

pas – é tão legal...

nm – é, é. como proposta era engraçada, interessante, mas não funcionava, porque ficava rodando ao redor de si mesma, sabe? e tirei "de novo", a outra música de fred martins [e marcelo diniz]. eu cantava duas dele, "de novo" e "novamente" [com alexandre lemos]. aí observei, experimentei, era um bloco só de inéditas. acelerei a aproximação com alguma coisa mais conhecida, e funcionou melhor.

pas – há muitas músicas que você nunca havia cantando no roteiro, não?

nm – sim, a metade, mais ou menos.

pas – não sei se vou fazer uma comparação descabida, mas isso me lembrou de elis regina, dos shows em que ela apresentava as músicas antes de lançá-las em disco. é difícil fazer um show com muitas músicas novas, que o público não vai reconhecer?

nm – olha, seria mais fácil se tivesse um disco. mas acho que a gente não pode se prender a isso e só fazer o que é mais fácil. se eu tinha idealizado uma história e pretendia fazer um show primeiro, eu não podia titubear, me prender a isso de facilitar para o público. apenas avisei antes que a única coisa que eu esperava era que entendessem a minha viagem, que era uma coisa nova para mim também.

pas – em que medida isso era novo para você?

nm – ah, o show é radical, é muito mais radical que tudo que já fiz, em termos de assunto.

pas – explica um pouco isso?

nm – começar com "o tempo não pára" já define. em seguida, boto "mal necessário", no meio do show tem lá aquele "lema" [de carlos rennó e lokua kanza], que fala da idade daquela forma que ninguém nunca falou. aí faço "ode aos ratos" [de chico buarque e edu lobo, lançada em 2001, na trilha da peça "cambaio"], faço "inclassificáveis" [de arnaldo antunes, gravada pelo autor em 1996]. encerro com "divino, maravilhoso" [de 1968, de caetano veloso e gilberto gil, lançada por gal costa], que também se refere ao mesmo assunto. há uma firmeza de intenção, embora não seja um show panfletário. mas tem uma intenção muito nítida, eu gostaria que as pessoas entendessem meu pensamento, aonde eu queria chegar com aquilo.

pas – é impertinente eu pedir que você explicasse onde queria chegar? não sei se um artista gosta de explicar em palavras as intenções...

nm – é isso que estou te dizendo, eu tinha algumas músicas que inevitavelmente entrariam, porque me interessava falar essas palavras neste momento, e fui montando um roteiro. claro, por mais sérias que sejam as palavras, não quero fazer um show panfletário, não me interessa fazer um show de protesto, não é isso. longe de mim uma coisa chata dessa. mas eu queria falar essas coisas, e a espinha são essas músicas que te falei aí.

pas – "inclassificáveis" é o fio condutor?

nm – sim, é o que dá nome ao show. quer dizer, já é o carimbo.

pas – e tem um discurso bastante forte... [assim diz "inclassificáveis": "que preto, que branco, que índio o quê?/ (...) aqui somos mestiços mulatos/ cafuzos pardos mamelucos sararás/ crilouros guaranisseis e judárabes/ orientupis orientupis/ ameriquítalos luso nipo caboclos/ iberibárbaros indo ciganagôs/ (...) não tem lei, tem leis/ não tem vez, tem vezes/ não tem deus, tem deuses”].

nm – sim. "ode aos ratos" também. quando ouvi pela primeira vez, fiquei chapado, com o fechamento da música . só uma pessoa com um espírito muito grandioso para se referir a essas pessoas dessa maneira. são as pessoas que escaparam da chacina, e que todo mundo execra, mas são "meus semelhantes, filhos de deus, meus irmãos". pô, tiro meu chapéu mais uma vez para chico buarque. e tirarei sempre [assim diz "ode aos ratos": "saqueador da metrópole, tenaz roedor de toda esperança/ estuporador da ilusão/ ó, meu semelhante, filho de deus, meu irmão"].

pas – não sei se é descuido meu, mas, quando ouvi essa música com chico não percebi toda a força dela. parece que fica mais evidente na sua versão.

nm – ah, eu percebi.

pas – parece haver um significado a mais em você cantar "são meus semelhantes", a força parece ficar redobrada.

nm – e coloquei um símbolo muito forte encerrando isso, aquela cruz lá no fim.

pas – que quer dizer...?

nm – ué, o que ela quer dizer?

pas – "sai da cruz, jesus" [cito a letra de "jesus", de pedro luís e a parede, que ney gravou com o grupo no disco "vagabundo", de 2004]?

nm – e jesus foi a única pessoa que fez essa afirmação, né? ele foi o único, então achei que falar aquelas palavras e colocar aquele símbolo lá atrás imediatamente após dizer "ó, meu semelhante, filho de deus, meu irmão" era uma ênfase, e uma ênfase estética, espiritual, humana, transcendental. acredito nisso, acredito nessas palavras.

pas – até mesmo como uma religiosidade?

nm – não, não sou religioso. não tenho nenhuma religião.

pas – é que muitas religiosidades passam pelo seu show. não digo necessariamente como religião, mas como mito...

nm – sim, crenças, mitos.

pas – ...mas variadas, e todas juntas.

nm – todas juntas, porque não somos isso [ri]? não sou de santo, de candomblé, mas faz parte do nosso inconsciente. falo de oxóssi com naturalidade, não estou falando nenhum absurdo. oxóssi é um arquétipo nosso.

pas – você está falando de "cavaleiro de aruanda" [de tony osanah, gravada em 1972], é interessante pensar que foi ronnie von que lançou...

nm – sim, e pensar que foi um argentino que fez.

pas – e é um ponto de umbanda, não?

nm – não é um ponto. é tratado como, mas não é. é uma inspiração numa idéia de um ponto. e aquele cenário que eu canto só nela, você percebeu que tem um cenário só dela, que cai junto quando a música acaba?

pas – confesso que não lembro como é.

nm – é cinza, um tecido cinza com umas listas amareladas e esverdeadas, e tem uns símbolos, uns triângulos que se cruzam nas pontas. é um símbolo indígena. quer dizer, não é, é o formato de umas peneiras indígenas, de que peguei só as linhas. não reproduzi as peneiras, só o grafismo delas.

pas – aproveitando que falou isso, queria que você falasse sobre sua relação com os símbolos indígenas, sempre muito presentes no seu imaginário.

nm – eu sou descendente, isso faz parte de mim.

pas – mas como assim, você sabe a hereditariedade?

nm – sei, sei. minha bisavó por parte de mãe era índia lá de mato grosso, laçada. foi laçada.

pas – como assim?

nm – laçada, jogaram um laço nela, não era assim que faziam? não era assim que exterminavam?

pas – mas aí aconteceu o que com ela?

nm – aí meu bisavô casou com ela. ele não era brasileiro, era de corrientes.

pas – desculpe, não sei onde é...

nm – na argentina, ele era corrientino. falo corrientes porque eles não se dizem argentinos, dizem que são corrientinos, uma coisa à parte, como se fosse... [pensa] os galegos lá da galícia, que não são espanhóis.

pas – fico curioso sobre as histórias familiares. há ciganos também?

nm – não.

pas – é que é tão presente no seu imaginário...

nm – é, mas é presente em mim, independente. é um arquétipo muito atraente para mim.

pas – havia uma bisavó índia que casou com um bisavô argentino, e do outro lado?

nm – do outro lado eram paulistas. meu avô era paulista que casou com uma cuiabana. me lembro dessa avó, era uma mulher de cabelos lisos, que devia ter também lá um ancestral indígena.

pas – você nasceu em que cidade?

nm – nasci em bela vista, fronteira com o paraguai. minha avó materna era paraguaia, e meu avô argentino também.

pas – como era o lugar onde você nasceu?

nm – fronteira.

pas – uma cidade?

nm – uma cidadezinha onde todo mundo andava armado, até as crianças. todos têm revólveres e facas, e a bandidagem come solta. os bandidos de lá matam, roubam, fazem o que querem do lado de lá, vêm para o lado de cá e ninguém pode vir atrás. os daqui faziam a mesma coisa aqui e iam para o lado de lá e ninguém ia atrás, porque não podia, porque é fronteira e ninguém pode atravessar.

pas – você está falando de hoje, ou dos anos 40?

nm – não, na minha infância e adolescência, ainda.

pas – você usava arma quando pequeno?

nm – quando eu ia para lá, sim. andava com uma faquinha, uma coisa assim.

pas – e isso era normal?

nm – isso era normal, todo mundo andava armado.

pas – como você encara isso, simbolicamente? não é algo violento?

nm – não sei, é muito típico de regiões de fronteira, sabe? ainda mais ali, que era uma fronteira que você atravessava e não ia para uma grande cidade no paraguai, nem para uma grande cidade no brasil. e você atravessava um rio com água pela cintura. hoje em dia não deve ser mais assim, porque aquilo lá foi tomado por gaúchos e paulistas. destruíram o estado e plantaram soja. não existe mais uma floresta de pé. na última vez que fui lá, fiquei transtornado, porque do que eu conhecia como enormes cerrados e enormes florestas não existe mais nada de pé. você vê um horizonte só de soja. é chocante.

pas – você não manteve laços com essa cidade ao longo da vida?

nm – mantive enquanto meu avô foi vivo. quando gravei o disco "mato grosso" [de 1982], aquele em que estou deitado debaixo da água, foi a última vez que vi meu avô. fui fazer essas fotos em mato grosso, passei na fazenda dele, ele estava doente, tinha câncer. depois que morreu, minha avó vendeu a parte que era dela e veio embora morar com minha mãe aqui no rio de janeiro. e aí nunca mais voltei lá.

pas – você falou de cerrado e floresta, esse era o habitat?

nm – sim.

pas – ...que ajuda a explicar muito de sua música, não?

nm – sim, e de mim. explica de mim.

pas – conta um pouco como era a paisagem?

nm – lá é misturado. tem uma parte muito grande de cerrado e uma parte de florestas altas. onde eu morava, em campo grande, na adolescência (meu avô morava em bela vista, na fazenda dele, e eu morava em campo grande), eu chegava em casa ao meio-dia, pegava 11 cachorros que eu tinha e me embrenhava dentro desse mato, desse cerrado. isso foi a coisa mais importante, acho, que aconteceu na minha vida, porque estabeleceu um contato dentro de mim com a natureza. eu tinha o quê?, 12, 13 anos. ficava a tarde inteira, e ia muito longe, porque havia rios, e muito longe havia um lago a que eu ia sozinho com meus cachorros, ia tomar banho. e comecei a entender os ciclos da natureza. como eu me embrenhava e ficava, comecei a entender as estações, os ciclos, o momento em que dava fruta, os momentos em que os passarinhos e os animais procriavam. era todo muito acessível, era eu sozinho no meio do mato. prestava muita atenção a todas essas coisas, e entendi, e isso é uma coisa muito forte ainda dentro de mim, esse contato que foi estabelecido e jamais será rompido, e esse entendimento profundo de ciclos que a gente que mora em cidade não tem. eu tenho, dentro de mim.

pas – eu não saberia explicar, mas isso é visível no seu show, aparece a todo momento. não é que o roteiro esteja falando de natureza, mas ela está lá.

nm – é visível? eu não sei.

pas – não sei explicar, mas é.

nm – não sei se é visível, não sei onde, mas deve estar, né? porque, se faz parte de mim, vai fazer parte de tudo que eu realizar na minha vida, é inerente.

pas – de algum modo, é como se existisse uma floresta no show.

nm – é?

pas – em parte também pelos figurinos...

nm – é, os figurinos também evocam todo meu lado inconsciente. não é feito indiscriminadamente, ocimar versolato não vai lá e faz um desenho para mim. em tudo eu opino, tudo que estou vestindo ali é meu, em última instância. quem decide o que vai ficar mesmo no meu corpo sou eu. e, claro, tem que haver uma correspondência com meu eu mais oculto. tento que tudo seja verdadeiro. não estou fazendo isso [faz pausas entre cada palavra] só para ganhar dinheiro. quero que isso me corresponda de verdade. sempre foi essa minha intenção no meu trabalho. não estou brincando de fazer. faço verdadeiramente, faço alguma coisa que me corresponda 100%. se não, não tem graça, vai virar o quê? é minha vida, não é meu trabalho.

pas – e é algo que você tem conseguido preservar e renovar sempre?

nm – sim, tenho conseguido preservar. é renovado, e sempre, mas claro que em cada coisa que faço coloco uma faceta disso. por exemplo, no show com os violões ["pescador de pérolas", lançado em disco em 1987; ou melhor, segundo correção posterior enviadada por daniel f.: "canto em qualquer canto", lançado em cd e dvd em 2005] existia isso, mas era mais contido, porque o formato não me permitia extrapolar. esse permite.

pas – partindo das descrições que você fez da paisagem, onde é que estava a música? como o menino descrito por você cumpriu a trajetória que cumpriu, de astro da música? onde ela estava, naquele começo?

nm – sempre gostei de cantar, desde pequenininho, mas não imaginava que seria um cantor. por muito tempo esqueci isso, mas um dia lembrei que, quando era criança, falei que queria ser cantor. e sabe o que eu fazia? morava numa casa que tinha uma janela enorme, e ficava em cima dessa janela cantando para o quintal, me apresentando para o pé de goiabeira, para os cachorros. esqueci isso, só vim me lembrar há pouco tempo. não sei por que apaguei. e cantava num parque de diversões lá, que tinha um programa de calouros aos domingos. depois me afastei disso. achava que queria ser ator. e sabia que cantava, e achava que cantar era útil a um ator, que um ator tinha que cantar, dançar..., até que recebi uma proposta. mas eu já tinha cantado, em brasília, música popular brasileira. já tinha tido um grupo, fizemos um programa para a tv brasília. a gente entrava à meia-noite e saía às seis da manhã, porque era o único horário disponível. fazíamos um programa semanal, que chamava "dimensão". éramos quatro cantores.

pas – isso era quando?

nm – na década de 60, dois cantores e duas cantoras.

pas – os outros não ficaram conhecidos?

nm – tião morreu, glorinha veio para o rio e cantava na noite, e lena desistiu. teria sido uma grande cantora, mas não fez uma carreira. geraldo vandré conheceu lena e chamou para ela vir para o rio, gostou tanto que queria lançá-la. mas foi quando houve o golpe militar. ela chegou a vir, mas aquilo tudo que estava combinado não aconteceu, e aí ela desistiu, casou.

pas – então nessa época você morava em brasília?

nm – sim, morei sete anos.

pas – foi para lá por quê?

nm – fui porque tinha um primo que era médico, e o hospital distrital de brasília tinha acabado de ser inaugurado. brasília tinha sido inaugurada em 1960, fui em 1961.

pas – você é um pioneiro de brasília?

nm – sou. a cidade não estava pronta. eles precisavam de alguém para trabalhar no laboratório de anatomia patológica do hospital, fazer lâminas de biópsia [risos]. eu não tinha a menor idéia do que era isso. meu primo mandou eu e o irmão dele irmos para lá, arranjou esse emprego para a gente. uma pessoa do rio nos deu um curso de três meses, e nós viramos técnicos de laboratório. naquela época, laçavam as pessoas na rua para trabalhar. não tinha mão-de-obra, especializada então... tinha peão. fiquei lá, trabalhando nesse hospital.

pas – e cantando já nas horas vagas?

nm – no começo, não. mas depois comecei a cantar no coral, porque não tinha o que fazer em brasília. imagina, para você entender melhor a situação: no brasil, o salário mínimo era 11 não-sei-o-quê, reais, cruzeiros, não sei. em brasília, era 33, três vezes mais, sendo que em brasília você não tinha onde gastar dinheiro, não tinha onde comprar um par de meias. tinha que ir a goiânia para comprar um par de meias. chegava o final do mês, eu pegava 33 não-sei-o-quê e jogava para cima, porque não valia nada, não tinha o que fazer, era muito dinheiro.

pas – economizou?

nm – nada, que economizou... guardava, e vinha uma vez, nas minhas férias, para o rio de janeiro. economizava à força, né?, porque não tinha como.

pas – conta um pouco sobre brasília em 1961? você tinha menos de 20 anos de idade, não?

nm – tinha 20 anos.

pas – o que era brasília em 1961?

nm – valia tudo [risos]. valia tudo.

pas – dizem que até hoje é assim...

nm – sim, mas estou falando num sentido melhor. era uma cidade em que ninguém era dali, todos vinham de outro lugar, ninguém tinha um passado ou raízes ali dentro. tudo que quisesse fazer você podia, porque tudo podia. era uma cidade muito louca, brasília sempre foi uma cidade maluca. você ouvia falar dos deputados que davam festas nos sítios e enchiam as festas de travesti. mas isso tudo era comum, era normal. e tinha aquela coisa que era maravilhosa lá, que num prédio moravam um deputado, um contínuo, meu primo médico, isso tudo no mesmo prédio. brasília foi feita com essa intenção, né?

pas – oscar niemeyer...

nm – existia realmente esse convívio entre todas as classes sociais. logo deixou de ser assim, depois do golpe militar deixou de ser. aí começou a ser elitista mesmo e a expulsar os contínuos e os porteiros para morar na periferia. não existia periferia em brasília. meu primeiro contato com droga foi lá. mas o contato era tão liberado que de tarde a gente fumava nos jardins das casas, todo mundo. acendia um baseado e fumava. ninguém prendia ninguém, porque a polícia não sabia quem era quem. podia ser qualquer um.

pas – podia ser o filho de um senador...

nm – pois é.

pas – você faz um retrato de imensa liberdade, era um lugar libertário?

nm – sim. sabe como é que se comprava maconha? você não comprava. vinha uma pessoa com uma mala cheia na cidade, ia passando pelas superquadras, todo mundo sabia o que era. se você queria comprar e não tinha dinheiro, dava um par de tênis e eles te davam uma mão cheia. era assim.

pas – foi um lugar formador para você?

nm – era um lugar maravilhoso, com total liberdade, total liberdade. e fui aplicado por uma turma do itamaraty.

pas – como assim?

nm – o primeiro baseado que fumei na minha vida.

pas – "turma" você quer dizer diplomatas?

nm – sim [ri]. o que estou querendo dizer é que não havia uma criminalidade envolvida. tudo era experiência de vida, experimento, o que logo depois se tornou uma coisa do movimento hippie. a gente já vivia isso em brasília antes do movimento hippie. tudo era uma experiência, tudo era possível, tudo era permitido.

pas – você está dizendo, de algum modo, que o movimento hippie no brasil começou em brasília, dez anos antes?

nm – não, ainda não era o movimento hippie, a gente não sabia o que era isso...

pas – um precursor?

nm – ...mas a gente tinha essa liberdade de expressão, e o grande causador era que, por ser uma cidade onde estava todo mundo misturado, a polícia não reprimia ninguém, porque não sabia quem era quem. era muito pouca gente na cidade ainda. podia ser o filho de um senador, podia ser o próprio senador, um deputado...

pas – talvez também pelo que você falou antes, de que não havia pessoas nascidas em brasília – era uma cidade de estrangeiros...

nm – de estrangeiros, é. tudo podia.

pas – ...de exilados.

nm – de exilados, era mais esse o termo, porque muita gente enlouqueceu em brasília. não seguravam aquela amplidão, não seguravam se voltar para dentro e se ver, o que era obrigatório. você era obrigado a se voltar e se olhar. e muita gente não segurou isso, não.

pas – e juscelino kubitschek, nesse caso, o maluco-mor, o que inventou tudo isso?

nm – mas cabeça feita, né? era cabeça feita.

pas – você chegou a ter algum contato com ele?

nm – não. eu era um mero funcionário público.

pas – você estava dizendo que todas as classes sociais conviviam...

nm – sim, mas ele não, né? ele, nunca.

pas – aí, bem, trabalhando em laboratório, querendo ser ator e cantando, aí começava a nascer o ney matogrosso?

nm – sim, eu era artista, sabia que era. só me interessava a arte, não me interessava mais nada. sabia que aquilo ali era um trânsito na minha vida. estava passando por ali. porque, na verdade, meu pai reprimiu essa coisa de filho artista, e brasília foi o lugar onde tive oportunidade de experimentar todas as coisas. aí eu já era dono do meu nariz, não precisava pedir autorização a ninguém. me envolvi com música, coral, teatro. estava ensaiando uma peça de dias gomes quando aconteceu o golpe militar, e nossa peça foi proibida. seria minha primeira experiência em teatro, "a invasão". era história de favelados que invadiram o lugar e são assassinados. foi proibida 15 dias antes da estréia.

pas – você ficou lá até que ano?

nm – não fiquei direto. depois que teve o tal do golpe militar, achei que ficou tudo chato. meus amigos sumiram, muita gente fugiu de lá, muitos desapareceram, muitos foram torturados, aquela confusão toda. em 1966 saí, pedi uma licença de dois anos. voltei em 1968, trabalhei mais um ano, pedi outra licença. em 1970 voltei e pedi demissão. me disseram que eu era louco. [imposta a voz] como é que podia abrir mão da minha aposentadoria? eu disse: vem cá, acho que louco não sou eu, não, acho que são vocês que estão abrindo mão de viver em função de 25 anos à frente, que ninguém sabe nem se chega lá.

pas – nos hiatos em que saía, você ia para onde, fazia o quê?

nm – era hippie [risos].

pas – outra história que sempre se fala é que ney matogrosso vendia artesanato na praça...

nm – não, não cheguei a vender em praça.

pas – é mito?

nm – é, um pouco. tentei vender uma vez lá em são paulo, e prenderam tudo que era meu. uma única vez tentei isso, ali naquela praça...

pas – ...da república?

nm – da república, é. prenderam tudo que eu tinha. aí eu não vendia assim, vendia para butiques. me encomendavam, só que eu era hippie, minha mentalidade era essa. eu levava seis cintos, adoravam, diziam "quero 200", e eu: "não faço 200, e não vou fazer um igual ao outro. se quiser esses seis, vendo os seis”. não queria virar uma indústria, não era isso. era o prazer de fazer um por um.

pas – nesse momento você poderia ter enveredado por outro caminho, o da indústria da moda, talvez?

nm – sim, poderia. teve uma americana que conheci que queria me carregar para para nova york. gostou tanto do que eu fazia, nessa época eu fazia umas bijuterias com aquelas bolinhas, você vai furando o couro e vão fazendo aquelas bolinhas. percebi que, fazendo um couro grosso, ficava uma coisa alta, um tubinho. fazendo menos grosso, era uma bolinha mais baixa. comecei a fazer pulseiras, anéis, umas coisas para pescoço. trabalhava tudo com essas bolinhas, depois passava uma cola especial, pingava uma tinta em cima dessa cola e a tinta se transformava, dependendo da reação com a cola. depois passava um verniz de barco, ficava parecendo uma coisa de vidro. e tinha umas coisas que eu enrolava antes de fazer, molhava o couro e enrolava. quando fazia todo esse trabalho, você podia enrolar no pescoço e ele ficava enrolado, feito uma coisa de vidro. essa mulher ficou louca, queria que eu fosse morar, fosse embora para os estados unidos com ela. mas não confiei, não, essa mulher é doida, me larga pelo meio do caminho. e eu não queria ir embora daqui, o que eu ia fazer nos estados unidos?

pas – nesse momento onde é que estava a música?

nm – nesse momento não tinha a música. eu estava solto no mundo. a música era um adendo ao meu sonho de ser ator.

pas – é curioso que você tem a mesma idade de caetano veloso, chico buarque e toda aquela geração, mas apareceu depois.

nm – surgi mais tarde, é, mas somos da mesma geração. só que eles surgiram com 20 anos, e eu surgi com 30. não acho ruim, não, viu?

pas – por que você só surgiu com 30 para a música?

nm – eu estava vivendo, estava vivendo a minha vida. não sei, porque também eu não estava buscando nada. estava solto. imaginava que seria ator, tentava isso, mas também eu não era uma pessoa que vivesse fazendo testes. fiz três testes apenas para peças de teatro. uma era um musical e eu tinha que cantar. me pediram para cantar "meu limão, meu limoeiro", e fui recusado, tá? [risos.]

pas – ainda bem, num certo sentido?

nm – não, era uma peça que chegou a fazer sucesso, era chamada "missa leiga". você é muito novo, não deve ter chegado a ver "a viagem", uma adaptação de "os lusíadas", no teatro ruth escobar.

pas – não.

nm – era maravilhoso, foi o último espetáculo de teatro que fiz, foi de onde saí já para cantar com os secos & molhados. foi o ano que fiquei ensaiando com os secos & molhados em são paulo.

pas – falei "ainda bem" porque "meu limão, meu limoeiro" evoca outra praia, de carlos imperial, wilson simonal...

nm – sim, mas foram eles que pegaram, essa música é anterior a eles.

pas – sim, é folclórica.

nm – pois é, e eu não passei no teste. mas acho que não passei porque perguntaram se eu tinha religião, e eu disse que não. não devem ter gostado. eu achava que não tinha nada a ver, trabalhar numa peça chamada "missa leiga", eu necessariamente não devia ter uma religião para trabalhar como ator, né? portanto não menti, falei a verdade. também, se tivesse que mentir, não ia, que obrigação é essa?

pas – esse foi um teste, quais foram os outros dois?

nm – a primeira peça que fiz mesmo como profissional foi um infantil com regina duarte, aqui no rio de janeiro, chamava-se "dom quixote mula manca e seu fiel companheiro zé chupança". fazia três papéis, um mercador, um espantalho e um secretário do rei. depois fiz outro musical infantil em são paulo, chamado "rosinha no túnel do tempo", com lucélia santos. quando a gente estava preparando a peça ela apareceu, era uma criancinha. todo mundo a adorou, e não tinha papel para ela, então inventaram. eu fazia um cientista louco, desgrenhado, descabelado, e fazia dom pedro, com peruca e tudo. e depois fiz "a viagem".

pas – nos intervalos de brasília você ia só para são paulo?

nm – ia para são paulo, para o rio, ficava circulando.

pas – em que momento fincou parada no rio?

nm – olha, fui criado aqui, fui para mato grosso com 12 anos, voltei para o rio com 17 para servir a aeronáutica, e daqui fui para brasília. toda hora voltava ao rio, e, quando pedi licença pela primeira vez, fui para são paulo. fui morar no bixiga, numa rua que hoje não existe mais, é um viaduto agora. não me lembro o nome da rua, tinha uma ladeira, era um bairro que só tinha italianos e espanhóis, e eu já era hippie, cabeludo. passava pela rua, as pessoas batiam as janelas na minha cara. ficavam indignados com a minha presença.

pas – e você se sentia como?

nm – eu achava que eles eram [pausa] bobos. não estava fazendo nada demais, só porque eu tinha cabelo comprido? nisso, aluguei dois cômodos na casa de uma espanhola ali, que era um ateliê de um pintor amigo meu que ia sair. fui para lá, era um aluguel baratinho, dois cômodos, um era onde eu dormia e o outro, onde eu trabalhava, e tinha um banheiro fora, que era o banheiro da família. era muito engraçado, porque a espanhola era muito louca, chamava ângela. nos dias que fazia muito sol, eu botava uma sunga, você imagina, eu vinha do rio de janeiro, botava sunga e ia para o quintal tomar sol. os vizinhos só faltavam me jogar pedra.

pas – uma sunga já no estilo ney matogrosso?

nm – não, sunga normal, que todo mundo usava. mas era sunga, não era um calção. era uma coisa que no rio se usava, mas em são paulo não tinha nem onde usar, né? e os vizinhos, que eram todos sobrados ao redor, me enxergavam ali e ficavam putos da vida. só que ângela [ri] se enrolava num lençol e vinha deitar comigo no quintal para tomar sol. com mais ódio aquelas pessoas ficavam, né? a vizinhança odiava.

pas – essa sensação das janelas que se fecham é constante na sua vida?

nm – sempre, sempre, sempre.

pas – até hoje?

nm – não, agora não, mas antes sempre foi. o brasil era um país muito careta. nas primeiras vezes que eu ia a santa tereza, na casa da [compositora] luli, de camiseta, essas sem mangas, fuleiras, que todo mundo usa, as pessoas me xingavam na rua porque eu estava de camiseta.

pas – falavam o quê?

nm – viado para baixo, era de viado para baixo. em são paulo uma vez quase me bateram, porque eu não tinha dinheiro para comprar sapato e comprei um tamanco de português, esse tamanco de dois reais. e saí na rua com ele. neguinho foi me xingando onde eu passava. e eu não conseguia entender, porque, imagina, estava com aquele tamanco porque não tinha dinheiro para comprar um sapato, não ia andar descalço. qual era a diferença?, todo mundo podia usar aquele tamanco dentro dos bares, os portugueses podiam usar dentro dos seus estabelecimentos, por que eu não podia usar na rua?

pas – como você reagia a essas agressões, se posso chamar assim?

nm – não reagia. achava aquela gente idiota. não achava nada, achava "ah, coitados, que gente burra". não me ofendia, nem quando me chamavam de viado porque eu estava de camiseta. dizia assim "ah, essa gente é muito ignorante". uma coisa que é um conforto, né?, no rio você poder vestir uma camiseta sem manga... hoje todo mundo faz isso, mas estamos falando nesses idos dos anos 60.

pas – provavelmente sem saber, você estava trabalhando na distensão dos costumes?

nm – sim, certamente. lembro que, quando lançaram as sandálias havaianas, comprei uma. nesse tempo você só podia andar de sapato, eu disse: "meu deus do céu, que felicidade, libertaram os pés da gente" [risos]. aí fui visitar uma tia minha assim, de sandália havaiana, feliz da vida com meus pés de fora. cheguei lá, ela disse [fala com tom de voz enfático]: "olha, você nunca mais volte aqui com seus pés de fora". sabe?, o pé, não podia mostrar o pé. hoje qualquer pau-de-arara usa, você vê a inversão...

pas – é o calçado oficial do brasil.

nm – pois é, o calçado oficial do brasil.

pas – agora você conta com o distanciamento do tempo, mas não são cenas felizes nem fáceis de viver, não?

nm – não. eram chocantes para mim, por eu sentir que havia um preconceito contra a liberdade, qualquer que fosse. isso tudo para mim era liberdade. andar sem manga no rio naquele calor de 40 graus era uma liberdade. andar de sandália havaiana era uma liberdade.

pas – não era uma provocação, ao mesmo tempo?

nm – não, não era uma provocação, não tinha intenção de provocar. sei lá se, em que grau, talvez, né? eu não sabia que haveria essa reação, mas quando via dizia: "ah, é? vão se foder, vou continuar usando. vai gritar, e vai estrebuchar, e eu vou continuar usando". sabe o que fiz com minha tia? nunca mais fui à casa dela. se não posso ir assim, não posso ir de jeito nenhum, ora.

pas – depois a situação se resolveu, ou ficou assim para sempre?

nm – não, nunca mais eu fui à casa dela.

pas – não teve mais relação com ela?

nm – depois, quando virei cantor, ela foi assistir a tudo que fiz, e eu a tratava muito bem, mas nunca mais voltei à casa dela. não podia voltar à casa de uma pessoa que me escorraçou porque eu estava com o pé de fora, isso é absurdo.

pas – é dessas experiências todas que nasce aquele cantor com aquele visual e aquele comportamento?

nm – acho que sim, que aquilo tudo foi uma conseqüência. no momento em que pude, disse "então agora nós vamos testar quais são os limites, tá?, tanto de vocês quanto os meus, e vamos ver o que vai acontecer". mas não era pensado dessa maneira. só fui percebendo que era essa a questão durante os acontecimentos. aí eu testava cada vez mais o limite.

pas – só uma coisa, que eu trouxe e ia propor uma brincadeira mais para o final [tiro da mochila uma porção de capas de vinis antigos dos secos & molhados e de ney matogrosso; o fotógrafo que me acompanha, ismar ingber, espalha os discos pelo chão], de você ir vendo as capas dos seus discos e falar o que eles lhe suscitam. acho que já é o momento, estamos falando dessa época [mostro o primeiro "secos & molhados", de 1973, com as quatro cabeças servidas à mesa de jantar], não é isso?

nm – é.

pas – como? como esses malucos fazem isso, em 1973, o presidente médici prendendo e torturando todo mundo? de onde tiraram essa...

nm – essa idéia?

pas – ...essa coragem?

nm – a idéia da capa?

pas – tudo, os figurinos, o comportamento.

nm – os shows foram depois, essa capa foi quando a gente só tinha feito um show no teatro ruth escobar. os produtores dela sabiam que eu ensaiava num grupo musical, e eles tinham aquele primeiro andar do teatro, que se chamava casa de badalação e tédio.

pas – um nome incrível.

nm – é. e nós éramos 70 atores no elenco. o produtor veio falar comigo, se eu não queria fazer três shows ali com meu grupo. falei com eles, fomos, fizemos três dias. e aí, já no dia seguinte, josé márcio penido, que era um jornalista do "jornal da tarde", muito influente na época, já chamou a gente para ir no jornal fazer uma matéria. fui fazer essa matéria vestido como me vestia.

pas – como era?

nm – era uma camisetinha de criança aqui [aponta na altura do esôfago; risos], uma calça aqui embaixo...

pas – havaianas?

nm – não, não de havaianas. um tênis, uma calça aqui embaixo e uma camisetinha aqui em cima. era como eu me vestia, mas isso era como a gente andava aqui no rio, não era uma coisa de são paulo. e ele começou a matéria já dizendo que entraram três pessoas, um com uma camisetinha não sei o quê, descrevendo como eu estava vestido. eu disse "ué, isso chamou atenção?".

pas – surpreendeu você?

nm – é. na primeira apresentação perguntei: o que é que vai sobrar de espaço aqui para mim? a gente tinha ensaiado um ano, diariamente.

pas – os quatro [aponto para as fotos de gerson conrad, marcelo frias, ele e joão ricardo, na capa de "secos & molhados"]?


nm – nós três, marcelo foi depois. nós três tínhamos ensaiado os vocais, as músicas, estávamos super-ensaiados. eu adorava aquele repertório, tinha o maior prazer em fazer aquilo. quando me disseram "sobra esse metro quadrado aqui", falei "vou fazer o que eu quiser aqui, tá?". não sabia nem o que era, mas eu não ia ser crooner. mandei fazer uma calça de cetim branco, fui num brechó, comprei uma grinalda de noiva, aquelas flores para pôr na cabeça da noiva. uma amiga do rio me mandou um vidro de pó de purpurina, não era nem purpurina naquela época. era um pó, uma coisa que você passava e sua pele ficava daquela cor.

pas – assim [mostro a capa de "destino de aventureiro", de 1984]?


nm – não, era mais fino que isso. você ficava inteiro de uma cor, cor de ouro. ninguém conhecia a gente, convidei o elenco todo, 70 pessoas, a casa era pequena, deu um bom público. no dia seguinte, os malucos começaram a me dar coisas: estrelas, fitas, panos, meia-lua, não sei o que lá. todo mundo andava de broche, enfeite, eu tinha uma jaqueta que eu mesmo fiz, bordava, prendia. comecei a ganhar coisas, e comecei a entrar a cada dia de um jeito diferente. fizemos os três dias, fizemos a tal da matéria, convidaram a gente para voltar e fazer mais 15 dias, no final do ano. esses 15 dias, na metade já era uma multidão que chegava lá nesse teatro. no último dia, ruth escobar foi ver. eu disse: ah, hoje é último dia?, então hoje vou caprichar. eu tinha uma pele de jacaré inteira, com o rabo, inteira. peguei aquela pele de jacaré, botei no meu pescoço por trás, fui amarrando ela inteira no meu corpo. daqui [aponta para a bunda] saía um rabo enorme.

pas – tem fotos disso?

nm – não, não tenho.

pas – devia ser incrível.

nm – aí eu me abaixava assim [fica de pé, mostra com gestos], aquele rabo de jacaré ficava balançando no chão. ruth foi ver e disse que não queria aquela gente ali, que eram uns maconheiros, que estávamos atraindo só gente doidona. bom, antes, na peça, que se chamava "a viagem", eu via que já tinha um monte de gente viajando de ácido [risos]. eu fazia coro, cantava, e era um português, a última coisa que a gente fazia antes de a peça começar, quando descia a nave em que nós todos subíamos, eu via um monte de gente viajando. a gente cantava "boa viagem, boa viagem", e eu ficava [ri] cantando para eles, "boa viagem", porque eu via, estava todo mundo doidão. era uma época em que essa coisa era presente mesmo, e não adiantava ela querer ou não querer. imagine que prato cheio para essa gente aquele grupo com aquele homem maluco com um couro de jacaré arrastando o rabo.

pas – era "o homem de neanderthal", já?

nm – já era o prenúncio, né?

pas – mas e a ditadura, não estava nem se tocando do que estava acontecendo?

nm – se tocava. aí, não, aí nem se tocou, mas quando a gente começou a lotar teatro...

pas – e o maracanã...

nm – mas, não, isso foi depois de gravar o disco. acho sabe o quê? a gente não tinha um engajamento político. não tinha isso, eu estava cagando para a política. o medo deles era de "abaixo a ditadura!", isso era palavra-chave. e eu não estava nem aí, ignorava, como se ela não existisse. e te digo mais: ignorava ela porque o máximo de autoridade da minha vida eu já tinha contestado lá atrás, que era meu pai, no dia em que saí na porrada com ele dentro de casa. ele me disse "fora daqui" e eu disse "vou, vou feliz, porque nunca mais vou ver sua cara". depois ele foi atrás de mim para eu voltar para casa, eu disse "não estou a fim de voltar". aí voltei, porque ele, aquela história, "sua mãe"... disse "tá bom, volto". voltei e já me alistei na aeronáutica, já disse "estou rapando fora".

pas – e na aeronáutica, foi legal?

nm – foi, foi. só que me alistei lá e servi aqui no galeão. foi uma experiência de vida também, eu era um garoto, com 17 anos, em 1959, completamente diferente de um garoto com 17 anos hoje. não sabia nada. e tive que conviver. até então meu universo era o núcleo familiar, não tinha além disso, e tive que conviver com o mundo exclusivamente masculino. entendi muita coisa desse mundo exclusivamente masculino. tudo.

pas – não deve ter sido muito fácil...

nm – olha, tinha tudo. era agressivo, você tinha que o tempo inteiro estar determinando quais eram os limites. ao mesmo tempo existia uma liberalidade sexual, porque, imagina, você bota um monte de adolescentes dentro de um lugar, vai rolar sacanagem, né? não rolou comigo, porque eu não admitia. mas eu via, eu via. e foi uma coisa, porque eu tinha muito problema com relação a esse assunto. uma vez estava um calor danado, eu não conseguia dormir, saí. quando servi, servi na polícia da aeronáutica.

pas – era na polícia, ainda por cima?

nm – sim, que era a elite da aeronáutica, e o comandante tinha sido comandante do meu pai lá em mato grosso, ele me levou para lá porque era uma maneira de me proteger lá dentro. e aí saí numa varanda ao redor do nosso alojamento, fui lá fora e dei de cara com dois... eu tinha um estereótipo na minha cabeça, que homem tinha que ser efeminado, uma coisa que eu via lá em mato grosso, uma única pessoa da cidade, e eu tinha horror daquilo.

pas – você está falando de um homem que fosse homossexual, é isso?

nm – sim, sim, aquele que passa na rua e todo mundo achincalha. eu tinha horror disso. mas aí eu saio nessa varanda e vejo dois remadores [risos] dessa largura [faz gesto largo]...

pas – remando...

nm – ...um sentado, o outro no meio das pernas dele, os dois abraçados. e você não sabe, descobri que existia uma coisa ali que ultrapassava as palavras, ultrapassava o que eu estava vendo. existia uma coisa invisível, que era um sentimento. e não eram dois viadinhos, eram dois homens másculos. aquilo para mim foi assim... um véu se rompeu naquele momento, e me mostrou a possibilidade. sabe, você não precisa ser nada, você não tem que ser nada, você não precisa ser... [silencia.]

pas – "inclassificáveis".

nm – é.

pas – a aeronáutica também ajudou a formar esse cara que viria a ser ney matogrosso?

nm – sim, foi muito interessante, porque lá exercitei a amizade. eu não tinha amigos, e exercitei uma amizade com pessoas do mesmo sexo, amizade mesmo, pela primeira vez tive amigos, gente que quando acabaram os dois anos e a gente se separou eu senti a maior falta. a minha turma era toda do espírito santo, eu era o único que estava aqui no rio. pela primeira vez me permiti pensar sobre esse assunto sem que fosse um monstro de sete cabeças. [pausa] e lá dentro rolava, tá?, de tudo. como qualquer lugar que você bote ou só homem ou só mulher, vai rolar.

pas – ou homem e mulher...

nm – é, todo mundo isolado, rola, vai rolar, não tem como não rolar. hormônios aos borbotões, é impossível. a hipocrisia diz que não rola, tudo bem, mas eu sei que rola, porque eu vi.

pas – deve ser o mesmo em conventos, mosteiros.

nm – sim, todos esses lugares. imagina, todo mundo com 17 aninhos, os mais velhos tinham 20, 21.

pas – você fala de exercitar a amizade com pessoas do mesmo sexo naquele momento, e faço um pulo para o presente, com essa fascinação que você exerce com o sexo oposto, nos shows, com as mulheres e as senhoras. o que é isso? você se preocupa em entender, explicar?

nm – não. durante muito tempo não entendia. hoje acho que é exatamente isso, eles percebem que sou uma pessoa do sexo masculino, um homem que gosta de ser homem, e que não tem medo de se expor de nenhuma maneira para eles. nem de expor minha sexualidade, nem de expor meu corpo. e isso para mim, agora, não tem mais nenhuma conotação de agressividade. nos secos & molhados era agressivo. se eu não fosse, eles seriam comigo. hoje, nenhuma agressividade de minha parte, nenhuma da parte deles. acho que as mulheres devem gostar de ver um homem se exibindo para elas. e eu me exibo para todos, né? não estou nem aí se é homem, mulher, papagaio, periquito. estou liberando apenas uma coisa que faz parte de mim e que não quero conter, não quero ocultar. não tem por quê.

pas – se pensarmos em termos da música nacional, são muito poucos os homens que se expressam desse modo mais livre. você diz que as mulheres devem gostar de ver um homem se exibindo para elas, mas muito poucos se arriscam a ultrapassar as barreiras e fazer isso.

nm – acho que tão radicalmente quanto eu faço, não tem. mas abri um precedente. você vê que hoje em dia todos os homens se requebram, dançam, até no pagode, no axé. todo mundo requebra, né? acho normal que requebrem, só que naquela época não era. nós somos assim mesmo, nós e os cubanos somos assim, iguaizinhos.

pas – não sei se você leu o livro "eu não sou cachorro, não", do paulo césar de araújo, ali ele fala muito sobre como os artistas que eram chamados "cafonas" foram muito reprimidos pela ditadura, embora não tanto pelo lado político, mas pelo aspecto moral, de costumes. havia uma instância de repressão moral também, não?

nm – sim, mas nós também passamos por isso. eu nunca tive que ir à censura.

pas – nunca? eles é que deviam ter medo de você...

nm – nunca. soube um dia desses, me contaram, não lembro qual compositor teria contado numa reportagem que foi a brasília na época responder por uma letra e ouviu da censura que eu não tinha mais jeito, não, que meu caso era só me matando mesmo.

pas – não contaram para você na época?

nm – não, soube agora, recentemente. chico buarque me contou que em várias vezes que foi à censura ficavam falando de mim lá, perguntando se ele me conhecia e falando mal de mim. mas nunca me chamaram. e eu também me fazia de morto, de desentendido. o único problema mais evidente foi a primeira vez que fizemos uma televisão, bem no comecinho.

pas – na globo?

nm – não, em são paulo, antes de vir para a globo. implicaram com tudo, até com o rabo de cavalo que eu usava. o cabelo era uma coisa muito glorificada, eu não queria isso, prendia, dizia "não tem cabelo, vou prender o cabelo, vou pintar minha cara, e não tem cabelo". aí cismaram com o cabelo.

pas – isso era o pessoal da tv, ou a censura?

nm – não, a censura dentro da tv, porque a censura era em toda parte. disse, "bom, mas ando assim na rua". expliquei que não queria valorizar o cabelo, aí disseram "mas não pode se requebrar desse jeito", eu disse "não precisa me mostrar, mostra só a cabeça, não tem problema". outra coisa que reclamaram era da maquiagem, eu dizia "mas não existe uma mulher com a cara pintada de branco desse jeito, com o olho pintado de preto [risos], isso não existe, não é uma maquiagem de mulher, é uma maquiagem inspirada no teatro kabuki". então disseram uma coisa que eu entendi tudo: "e este olhar?" [olha para mim, com olhar penetrante]. sabe que na primeira vez que fomos à tv globo existia uma regra lá dentro que ninguém podia olhar para a câmera, porque não podia se comunicar com quem estava em casa?

pas – disseram isso para você?

nm – disseram na minha cara, que eu não podia olhar. eu disse "mas eu vou olhar". "mas não pode." "mas vou olhar. como, eu não vim aqui para ser assistido? quero me comunicar com quem está me vendo. vou olhar, sim." e olhei.

pas – e aí?

nm – nada, aí nada. olhei a vida inteira.

pas – mas então existia essa regra...

nm – a regra era que você podia ser visto, mas não podia se comunicar. claro, eu entendia a questão do olhar. porque quando eu olhava para a lente da câmera não estava olhando para ela, estava olhando para você que estava na sua casa.

pas – para milhões de pessoas.

nm – sim. entendi perfeitamente, e disse: "ah, não sei do que vocês estão falando, isso para mim já é ficção científica".

pas – em 1975 [mostro a capa de "água do céu – pássaro", o primeiro disco solo de ney], eu tinha 7 anos de idade, e é absolutamente marcante para mim a imagem do clipe de "américa do sul" no "fantástico". tudo aquilo passava na boa, na globo?


nm – eu me vestia desse jeito. me chamaram para ir lá gravar um programa para o "fantástico", e fui com a roupa que usava. era essa roupa aí, toda de crina de cavalo embaixo.

pas – não houve nenhum incidente?

nm – não, nenhum. a coisa engraçada foi eu trocar de roupa no aeroporto santos dumont. eles me pegaram lá num helicóptero, cheguei normal no aeroporto, entrei no banheiro e comecei a vestir essa roupa. as pessoas entravam, era 1975, repressão pesada, os homens entravam no banheiro, me viam e fingiam que não me viam.

pas – como se isso fosse possível [risos]...

nm – fingiam que não me viam. eu me arrumando no espelho, seminu, só com peles. entravam, passavam reto por mim e não me enxergavam, olha que loucura. isso é que deveria ter sido o clipe, as pessoas entrarem e não me verem [ri].

pas – além de questões de roupa e sexualidade, o que "américa do sul" falava, "desperta, américa do sul/ deus salve essa américa central", era altamente subversivo também, não era?

nm – sim, sim, sim.

pas – sabidamente? você sabia o que estava fazendo?

nm – sim, eu fazia isso. no clipe não tinha, mas eu cantava essa música com uma queixada de boi na mão, ameaçador. dizia "desperta, américa do sul" e levantava aquela queixada ameaçadoramente. uma vez, no teatro 13 de maio, foi até o dia em que meu pai assistiu – ele não me viu antes, foi ver só esse show -, tinha um camarada, um artista plástico, que na hora que eu estava encerrando o show com "américa do sul" colocou uma melancia no meu pé, no palco, viagem dele. peguei aquela queixada e rachei a melancia. o povo veio todo nos meus pés para agarrar a melancia, para comer a melancia. virou um happening.

pas – no subtexto de "desperta, américa do sul", havia algo político, de "vai embora, ditadura"?

nm – claro, "acorda, acorda".

pas – as ditaduras ajudaram a esfacelar a união entre os países latino-americanos...

nm – sim, esfacelou a união dos países do cone sul, exatamente. minha intenção era exatamente reunir isso. quer dizer, eu não tinha voz para isso, nem poder, mas minha intenção era essa. não sou ingênuo, né? nunca fui [risos]. aí eu já não era criancinha.

pas – o que me espanta é que eles deixavam passar.

nm – pois é.

pas – nessa época, houve meio um levante latino-americano na música: você, elis regina, milton nascimento, fagner, belchior, zé rodrix, de repente todos estavam falando disso.

nm – sim, porque era uma mentalidade que tinha que ter prevalecido. eles fizeram exatamente a coisa certa, do ponto de vista deles: desagregar, para não ser um bloco. e conseguiram.

pas – essa mentalidade vai voltando aos poucos, não? o bloco volta um pouco a existir... [ele faz careta.] ah, vai, você fez tudo aquilo, não vê resultados?

nm – mas que bloco existe? com chávez, um tonto? com aquele outro, evo morales? cada um mais louco que o outro. as pessoas não têm consciência dessa união.

pas – mesmo se não pensarmos em política, você não sente? quando era pequeno, eu ouvia falar "desperta, américa do sul", depois nunca mais ouvi, para mim não existia união latino-americana nenhuma. era uma coisinha aqui, outra ali, mais recentemente caetano veloso fez "fina estampa" [em 1994], mas por muito tempo esse discurso saiu completamente de circulação.

nm – eu canto em espanhol até hoje. sempre cantei e continuo cantando.

pas – você foi talvez o único que continuou, que não perdeu essa instância?

nm – tá, mas não perdi essa instância porque é meu sangue. meu avô era argentino, minha avó, paraguaia. isso para mim é verdadeiro, não é moda.

pas – e hoje em dia existe de novo essa conversa de cone sul, surge uma cantora como marina de la riva, filha de cubano com brasileira, misturando as duas músicas... devagarzinho parece deixar de ser, entre aspas, fora de moda.

nm – para mim nunca esteve fora de moda.

pas – e, pelo que você diz, também não implicavam muito com isso na época, não percebiam muito.

nm – não, eles achavam que eu fazia isso por eu ser de mato grosso, por ser da fronteira. e é, também. é o princípio da história.

pas – por que seus primeiros discos [mostro "água do céu – pássaro" (1975) e "bandido" (1976)] nunca saem em cd?

nm – porque processei a continental e ganhei [risos]. toda hora eles lançavam, ganhavam dinheiro e não me pagavam. eram esses e mais um [mostra "pecado" (1977)].

pas – pensei que você não gostava muito deles.

nm – não, processei a gravadora, e ganhei. ficou anos. [olha a capa de "pecado", mostra a contracapa.] isso aqui que eu queria que fosse a capa, você sabe o que era isso? era eu no espelho. primeiro eu chegava no espelho, dava um beijo na minha boca, diante do público, e ficava esfregando meu pau em mim mesmo, e gozava. era isso aqui. não deixaram vir para a capa do disco, eu disse "tá bom, então ponho atrás". esse [aponta para "bandido"] talvez tenha sido o show mais sexualizado da minha vida. "pecado" já era uma seqüência dele, o repertório estava no show e botei no disco. foi o único em que fiz um strip-tease [enfatiza] mesmo. trocava até o tapa-sexo. tinha um biombo na altura da cintura, se levantava um pouco, meu pentelho estava de fora. até o tapa-sexo preto eu trocava, por um branco. vestia uma roupa branca com esse espelho atrás de mim, todo mundo me vendo lá. foi talvez o show que mais botei para derreter.


pas – em 1977, ainda tinha censura à toda...

nm – ah, tinha, mas eu botava para derreter. lambia o salto da minha bota.

pas – e esses discos nunca mais vão ser relançados? hoje em dia está tudo na internet, mas...

nm – agora a universal está querendo fazer uma caixa. quiseram esses três discos, e autorizei. dependia de uma autorização minha. eles agora são da warner.

pas – não era a warner que vetava?

nm – não, quem vetava era eu. ué, se tinha que lançar tinha que me pagar, não era só ficar lançando, e não me paga nada, que é isso? não é domínio público.

pas – antes você falou da máscara, essa que você usava com os secos & molhados e no início da carreira solo. ela escondia você, ou mostrava mais ainda?


nm – me protegia num sentido e me expunha em outro. como eu não tinha cara, extrapolava fisicamente. ouvia dizer que artista não podia andar na rua, que perdia a privacidade, e tinha medo de perder, não queria deixar de andar na rua. então isso foi para me defender, e compreendi durante o processo que era muito louco, porque, na medida que não tinha um rosto, eu tinha total liberdade de expressão física.

pas – isso ajudou vocês a expressarem toda uma revolução sexual que havia nos secos & molhados?

nm – sim, porque eu não tinha uma cara.

pas – acontecia de você sair sem máscara e não ser reconhecido?

nm – sim, muito, muito, muito. eu estava na praia e ouvia os comentários a respeito daquela gente. falavam de tudo. uns diziam "dizem que aquele camarada é viado, mas acho que ele não é, não, acho que ele faz isso para ganhar dinheiro" [risos]. que aquilo era um tipo, ouvi muito esses tipos de comentário, "não, ele é esperto, está fazendo isso porque está ganhando dinheiro". uma vez um disse assim "pois é, enquanto estão aí dizendo que ele é viado, ele está lá comendo carne todo dia, e eu vou para casa agora e não vou comer carne". [pega a capa de “feitiço”, de 1978, abre o álbum e mostra a grande foto interna em que aparece totalmente nu, de corpo inteiro] este foi recolhido.


pas – foi?

nm – foi tirado da loja. a mesbla fez uma vitrine inteira com esse disco aberto.

pas – a mesbla estava inspirada...

nm – uma vitrine inteira. quando viram isso, não suportaram. mandaram tirar o disco, devolver para a gravadora e só voltava lacrado. se não fosse assim seria proibido.

pas – se comprava lacrado e podia abrir em casa?

nm – sim, mas teve que voltar para a gravadora para ser lacrado com plástico.

pas – o que você pensava quando lançou esse disco, com essa foto?

nm – queria provocar, né?

pas – é o contrário dos secos & molhados, que ao mesmo tempo o superexpunha, mas protegia pela máscara. aqui é sem máscara, sem roupa, sem nada.

nm – já tinha passado um tempinho. eu já tinha visto que não perdia direito nenhum, que podia sair, podia andar, podia transitar, ninguém me impedia, nada acontecia. aí fui perdendo o medo. na verdade, isso já começou aqui [mostra a capa de cara limpa de "bandido"], aqui já não era máscara.

pas – em "bandido" e "pecado", eu diria que você troca a máscara pelo visual cigano, total, de acampamento, não?


nm – é... quer dizer, não diria cigano exatamente, esse foi o mais influenciado pela fronteira. a capa era eu com a faca na mão, não deixaram, proibiram. era essa foto aqui [mostra a capa do encarte interno], essa era a capa.

pas – ali tem até uma fogueira cigana atrás.

nm – uma fogueira, uma coisa de acampamento, de foragido da lei.

pas – é também a imagem da cidade natal, todo mundo com sua faquinha?

nm – sim, aquele espírito. acho que é o disco que mais se aproxima daquele universo.

pas – esta capa [mostro "mato grosso", de 1982] era bem provocadora também, né?


nm – sabe que esse aqui eu não achava [risos]?

pas – olha que você disse que não era ingênuo...

nm – mas essa eu não achava. tinha optado por outra, que achava mais bonita. mas eles acharam estranho. ali estou debaixo de mais de um metro de água, no pantanal de mato grosso, num lugar onde existia uma correnteza em que a água descia para a bolívia, e essas algas, que eram imensas. o cara que fotografou, luiz fernando [borges da fonseca], marido da luli, estava em cima de um cavalo, em cima, o cavalo com água pelo pescoço. olha a transparência dessa água.

pas – parece que está quase na superfície.

nm – pois é. eu tomava ar, afundava e tentava deitar e ficar deitado ali um segundo para ele me fotografar. mas nem fui eu que escolhi essa foto.

pas – não causou escândalo nenhum?

nm – acho que não.

pas – nessa época as músicas também estavam bem provocativas...

nm – muitas foram proibidas. aqui tem "jonny pirou"? [olha a lista de músicas, encontra a versão de "johnny b. goode", de chuck berry, por léo jaime e tavinho paes.] "uai, uai" [de roberto de carvalho e rita lee] foi proibida, "primeiro de abril" [de antônio brasileiro e roderiki] foi proibida, "jonny pirou" também, as três proibidas de tocar no rádio.

pas – era a fase provocativa de "homem com h" [de antônio barros, em "ney matogrosso", de 1981], "por debaixo dos panos" [de cecéu, em "mato grosso"].

nm – é, irônicas.

pas – no mínimo irônicas, mas queriam denunciar a hipocrisia da sociedade, não?

nm – é, a hipocrisia.

pas – a partir de "pescador de pérolas", você tira um pouco tudo – a máscara, as fantasias, a nudez. foi necessário? qual foi o motor?


nm – sim, tirei tudo. eu ouvia falar "ah, ele só faz sucesso porque fica nu, porque fica exibindo o corpo", e também fiquei na dúvida. bom, então vou experimentar, venho vestido de terno branco e vou fazer um recital. na verdade, isso não partiu de mim, recebi uma proposta do carlão [carlos de andrade] para fazer um projeto chamado "luz do solo", que era um cantor com um instrumentista. a proposta era fazer eu e arthur moreira lima, topei imediatamente. mas quando fomos conversar, eu e arthur, chegamos à conclusão de que devíamos colocar mais músicos. era mais interessante, a gente podia vasculhar o universo da música brasileira, com violão, percussão [entraram também paulo moura, raphael rabello e chacal]. e aí foi a minha prova de fogo. nesse momento, muita gente se afastou de mim.

pas – é? como você mede isso?

nm – eu vi. desapareceu. os comentários eram que eu tinha enlouquecido, que eu tinha pirado, que eu estava xarope, que agora cantava de terno. e outro público se aproximou, talvez aquele que não me levasse a sério antes. acho que aí foi um momento decisivo na minha vida. e depois pude voltar a fazer, né? porque também não sou nada, não sou uma coisa só, não sou isso ou aquilo.

pas – de lá para cá, você passou a alternar um poucos as duas coisas, uma hora é cartola, sem figurinos, depois volta de novo...

nm – sim. mas, olha, cartola surgiu totalmente sem eu esperar. era para acompanhar um livro de fotos ["ousar ser", 2002, com entrevista de bené fonteles e fotos de luiz fernando borges da fonseca], e eu tinha combinado com a editora que faria três shows para lançar o livro. gravaria o disco para acompanhar o livro e faria três shows para lançar. mas o livro não ficou pronto, e eu tinha o compromisso de fazer o show, as datas. fiz, e recebi uma proposta para voltar para brasília para fazer de novo. disse "aí tem pano para manga, se as pessoas estão querendo ver independente de livro é sinal de que cartola é um trabalho atraente". e quando fiz o cartola foi a primeira vez que vi uma renovação de público, adolescente, que não entendi.

pas – não entendeu até hoje?

nm – não, exatamente cantando cartola não entendi, não.

pas – foi no cartola que você detectou isso?

nm – foi.

pas – porque é como eu estava falando no começo, me espantei no show de sexta-feira ao ver muita molecada. então isso começou com cartola?

nm – pois é, com este eu compreendo. com cartola não entendia. uma vez voltamos de madrugada de um show, cheguei ao rio cinco e meia da manhã e fui ali na padaria. cheguei e tinha um bando de meninos de 19, 20 anos, acelerados, tinham também varado a noite. na hora que entrei, aquele tumulto deles, eram muitos, disse: "vai sobrar uma gracinha para o meu lado" [risos]. cansado, entrei, pedi meu café. daqui a pouquinho um deles me viu, veio na minha direção, eufórico, e disse: "você é o melhor intérprete de cartola!". tomei um susto. primeiro que não achava nem que ele ouvisse cartola, e vir falar comigo dessa maneira. achei que, imagina, quando está uma turma de garotões, vai sujar, né? nada. é engraçado isso, cartola atingiu um público muito interessante.

pas – você sente que tem agregado públicos diferentes a cada vez?

nm – acho que sim.

pas – qual seria o momento de agora, pelo que você sentiu dos quatro shows que fez em são paulo?

nm – senti a presença evidente de gente mais nova ainda. agora o que é que levou essa gente lá?, me pergunto. não tem um disco gravado, não tem um trabalho para calçar isso. fiquei muito curioso, pensei que talvez tenha sido a imagem – foi feito um trabalho [de divulgação] de mais de um mês, com a mesma foto, com figurino, eu meio de lado, com roupa de tatuagem, cabeça de couro com pedras. saiu várias vezes muito grande no jornal, talvez tenha sido isso. não sei o que foi que atraiu. também falei que era um trabalho mais rock, pode ser que seja isso.

pas – o trabalho com pedro luís e a parede [que rendeu o álbum em parceria "vagabundo", lançado em 2004] pode ter trazido um público mais jovem, será?

nm – não sei, pode ter sido.

pas – apesar de que nem eles são propriamente meninos, né?

nm – é, mas eles têm um público mais novo, deles, mesmo.

pas – percebi, por exemplo, um garoto que parecia ter uns 18 anos, desesperado no gargarejo, com papel na mão para você autografar.

nm – me lembro disso.

pas – não dava para saber a sexualidade dele, provavelmente nem ele sabe ainda, com essa idade. é algo excepcional isso, esses fãs do sexo masculino de cerca de 18 anos?

nm – mas, vem cá, com a internet no ar está havendo uma revolução enorme no comportamento sexual dos adolescentes. é impressionante.

pas – você acha que há uma identificação de natureza sexual mesmo?

nm – hoje em dia, com 15 anos você já tem uma identidade sexual, coisa que a gente não tinha, eu não tinha. eu não tinha. com 13 eles já têm uma identidade sexual. e é a internet que faz isso.

pas – outro menino subiu no palco, driblou os seguranças, deu um beijo na sua bochecha...

nm – só vi quando ele me beijou.

pas – você fez uma cara de...

nm – de quê?

pas – ...de nojo [rio]?

nm – não fiz!, cara de nojo?

pas – pareceu um reflexo, mas logo depois os seguranças levaram e você falou "deixa ele aí".

nm – mas não tive nojo nenhum. tomei um susto, porque não vi ele subir. eu apenas estava cantando... eu estava cantando?, não me lembro.

pas – estava.

nm – estava, né? aí ouvi uma voz aqui no ouvido, "me dá um beijo", tomei um susto. não me incomoda, imagina, dar um beijo. beija, qual é o problema?

pas – mas isso tem acontecido freqüentemente, com meninos?

nm – não, meninos me beijam depois, no camarim. meninos, meninas, senhores, senhoras. me beijam, acho normal as pessoas se beijarem. não acho nada, que esteja determinando nada. acho um gesto carinhoso, até. agora, acho precoce, sim, mas acho que é a internet que está evidenciando isso.

pas – outra coisa é que havia vozes masculinas gritando "gostoso!", "me leva para o seu harém"...

nm – que harém? [risos], qual é o harém? está na cabeça das pessoas [ri], né? acho tudo engraçado. não levo nada a sério, nenhuma dessas manifestações. não carrego isso comigo e não acho que vai acontecer nada. porque não vai acontecer. não é essa minha intenção, não estou ali para isso, não estou ali para ganhar ninguém. não vou usar isso. então não rola nada, acho engraçado tudo. não me incomoda, e acho divertido. [pausa] mas eu não lembro de ter feito cara de nojo. não, tomei susto, só. quando virei já tinha uma barba, e aí foi que percebi que era um rapaz.

pas – mas logo em seguida eu entendi, porque quando os seguranças levaram...

nm – eles foram atrás para pegar ele.

pas – ...você parou a música no meio e disse "deixa ele", foram as únicas palavras não cantadas do show.

nm – é, deixa ele. porque vi que eles foram com sede em cima do menino.

pas – e sinalizou que não estava reprovando, que estava achando legal.

nm – é, não me fez nada.

pas – o que eu queria entender é se esse tipo de manifestação masculina, seja dos mais novos ou dos mais velhos, é habitual.

nm – sim, já aconteceu muitas outras vezes, não é a primeira vez.

pas – não é novidade?

nm – não, não. já aconteceu mais freqüentemente. na época do "bandido" acontecia muito.

pas – eu estava tentando raciocinar uma hipótese... para um cara fazer isso, a gente não sabe se é gay, hetero, bi, o que seja, mas de qualquer modo para gritar "gostoso!" para o ney matogrosso ou ir beijá-lo, ele precisa pular algum obstáculo, não?

nm – ah, mas também está de farra, né? se está com uma turma, fica de farra.

pas – não envolve um grau de desrepressão masculina?

nm – sim, que eu acho saudável.

pas – era nisso que eu queria chegar.

nm – na verdade, compreendo até como isso: está uma turma, vou chamar ele de gostoso só para me exibir, para fazer uma palhaçada para os amigos. e tem os que falam achando, as mulheres que falam. imagina, eu vou provocar também, desço na platéia e vou cantar aquilo ["por que que a gente é assim?", de frejat, cazuza e ezequiel neves, é cantada junto ao público] lá embaixo para eles? não posso reclamar de nada que façam, né?

pas – e, por sinal, essa é uma das partes mais bacanas, um dos diferenciais de um show do ney matogrosso, que não acontece com muitos outros cantores.

nm – sim, ué, eu não sou desreprimido? quero que as pessoas sejam desreprimidas também. imagina, ou reprimir alguém? eu sou [pronuncia as sílabas pausadamente] desrepressor, em todos os sentidos.

pas – e isso vai bater até nas senhorinhas de idade, que também vão em turma - em gangues, eu diria.

nm – sim, sim.

pas – como é sua relação com elas?

nm – a melhor possível. vão falar comigo no final, e recebo todo mundo. fico às vezes mais tempo lá recebendo essas pessoas do que em cima do palco cantando.

pas – é 100% prazeroso? não enche um pouco o saco?

nm – não. é cansativo, tem horas que elas mesmas percebem que estou cansado. dizem "vamos embora, ele está cansado", digo "estou mesmo". gosto desse contato também, mas tem hora que estou cansado. pô, trabalhei para caralho já, né? é um show pesado, você vê que não é levinho de fazer. fiz cinco shows, viajei, venho de um mês e meio de ensaio de cinco horas por dia. ontem [na egunda-feira pós-shows], nossa senhora, parecia que eu tinha tomado uma surra e estava de ressaca. foi meu primeiro dia de folga depois de dois meses de pé no acelerador.

pas – e quanto à voz? você dá uns pulos, e ela não perde o fôlego nunca.

nm – é, mas no dia em que você foi ver, já lá no "divino, maravilhoso" [canção tropicalista de caetano veloso e gilberto gil, de 1968], deu umas falhadinhas. normal, né? dou três pulos, e você vê que pulo e começo a cantar lá no alto, ainda lá em cima, tenho que cair no chão e minha voz não pode falhar. uai, se não vai segurar, não vai inventar, né? tenho que cair cantando, e cantando direito, afinado.

pas – o pulo é para quê? para mostrar que isso é possível?

nm – não, o pulo é porque acho que é exatamente assim: "atenção para o refrão, uau!", e dou o pulo, "é preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte".

pas – na gravação original, gal costa falava "uau".

nm – ela fazia "uau", eu não faço, dou um pulo.

pas – fica ao lado de uma música que é um sucesso de luciana mello, que é meio uma surpresa quando começa.

nm – "simples desejo" [de 2000, de jair oliveira e daniel carlomagno], né?

pas – e é a hora em que a platéia inteira cantou junto. na hora pensei que eu não sabia que gostavam tanto dessa música.

nm – mas essa música fez muito sucesso. acho linda, a letra é muito bonita e tem tudo a ver com o que eu gostaria de estar dizendo às pessoas naquele momento. e tem link com "pro dia nascer feliz" [de frejat e cazuza; a letra de "simples desejo" diz "hoje eu só quero que o dia termine bem"].

pas – você acaba de assinar contrato com a egravadora mi, certo?

nm – não, não assinei um contrato. fiz um contrato por uma obra. não é um contrato, hoje em dia [faz muxoxo] não existe mais. não há nenhuma necessidade. é um contrato por esse trabalho, como eu vinha fazendo com a universal nos últimos quatro trabalhos.

pas – mudou muito essa relação?

nm – mudou completamente.

pas – para melhor?

nm – não existe mais gravadora como estrutura. as gravadoras não existem mais como elas eram. não sei no que é que eles vão ter que virar, mas o que era não existe mais.

pas – se fala muito que os artistas mais estabelecidos perderam privilégios. você se importa?

nm – não, perdemos os milhões que eles ofereciam. ofereciam milhões, isso era mesmo. era a farra do boi. para assinar um contrato de três anos era uma fortuna que eles derramavam em cima da gente. isso acabou.

pas – é bom ou ruim ter acabado?

nm – olha... não me impede de fazer meu trabalho com o mesmo estímulo, com a mesma vontade. não muda nada para mim. claro que era confortável assinar um contrato, ganhar um milhão. era, me permitia um descomprometimento com dinheiro. agora, não, agora vivo do que ganho fazendo show. claro, não é a mesma coisa. não tem um milhão assim sobrando. não sou milionário.

pas – não é mesmo tendo ganhado alguns milhões ao longo dos anos?

nm – sim, mas também tenho uma despesa mensal altíssima, com família e tudo. dinheiro acaba.

pas – quando você diz que as gravadoras derramavam dinheiro, não tem a contrapartida disso? elas sugavam em troca?

nm – de mim nunca exigiram nada.

pas – como você vê que a indústria se apropriou do imaginário que você inventou? como reagia e interagia com ele, com as capas polêmicas? imagino que para eles isso era vendável, também.

nm – olha, acho que só pensavam em ganhar dinheiro. e vendia. quer dizer, isso não era inventado, correspondia à minha verdade, que também me interessava que me precedesse. e eles ganhavam. isso também é muito atraente para qualquer pessoa, né? uma pessoa que tenha um apelo sexual é interessante para todo mundo. todo mundo é tocado por isso, isso é um instinto básico.

pas – volto a um assunto que já perguntei um pouco antes: por que há tão poucos artistas do sexo masculino com esse apelo? as cantoras têm muito mais o aspecto da transgressão sexual – maria bethânia, gal costa, marina lima, angela ro ro, cássia eller...

nm – tinham, tinham.

pas – hoje em dia você acha que não mais?

nm – não vejo mais, você vê? não vejo, pelo contrário, estou vendo elas muito comportadinhas. acho que isso aí foi uma geração.

pas – na verdade algumas gerações: primeiro gal e bethânia, depois angela e marina, depois cássia...

nm – sim, houve uma seqüência. maria bethânia era sexy, gal costa dava vontade de morder. você viu aquele dvd "phono 73"? todos deliciosos, todos.

pas – os homens e as mulheres.

nm – os homens e as mulheres, todos deliciosos. era uma mentalidade, um momento de expansão. raul seixas, que delícia. caetano, que delícia.

pas – o figurino do raul seixas era quase tão incrível quanto os dos secos & molhados.

nm – pois é. e dançando, tatuado, interessantíssimo. houve uma geração que usou isso, liberou isso. hoje não vejo isso, está mais diluído com essa coisa do axé...

pas – de lá até aqui, a gente tem, no meio, uma ditadura e uma aids, não?

nm – sim, a aids acho que foi o principal.

pas – na questão masculina, os homens que foram mais afirmativos, que falaram mais de suas sexualidades...

nm – morreram todos.

pas – ...dos anos 80, fica a imagem do cazuza e do renato russo. e mesmo com cássia eller, depois, fica um pouco uma associação de que quem ousa, quem transgride...

nm – mas não é verdade. estou aqui para dar provas de que é possível ser transgressor e ser feliz.

pas – você é otimista quanto a isso? vão aparecer novos cantores e cantoras que explorem melhor esse lado?

nm – ah, não faço a menor idéia. não percebo. o axé diluiu, chegamos ao nível da boca da garrafa. isso já não é mais transgressão. já é mau gosto.

pas – o que você acha de funk carioca? também é supersexualizado.

nm – mas é uma coisa muito específica, localizada, num gueto que é muito sexualizado, sempre foi e sempre será. mas é muito específico, e específico ao rio de janeiro. aqui tem essa coisa, a praia, todo mundo mostra tudo, todo mundo é gostoso. não representa o pensamento do brasil, é mesmo do rio. é engraçado.

pas – no geral, você vê um momento de mais liberação sexual ou de mais retração?

nm – olha, volto à internet, que me impressiona muito.

pas – e pode causar efeitos mais para frente também, não?

nm – fico muito impressionado. não sou uma pessoa que se comunica via internet, não gosto. mas ligo e fico vendo, a cada três minutos você esbarra com sexo. e com uma liberalidade sexual que nem acredito. como não é de verdade, não sei nem se aquilo é blábláblá ou verdade. se for verdade a metade do que é observável, então há uma liberação enorme. porque o negócio é o seguinte: é muito difícil você combater o instinto natural do ser humano, que é a sexualidade. como se combate isso? ninguém acredita em pecado mais, ninguém tem medo da igreja. as pessoas não têm medo nem da doença mais, fico sabendo de histórias do arco da velha, é como se não existisse a aids no mundo. e, com essa hiperpossibilidade, não sei. acho saudável expressar a sexualidade, mas a gente não pode esquecer que não existe cura para a aids. por que conviver com uma doença se você pode levar sua vida sem ela? por que ter que conviver por opção?, "ah, vou transar sem camisinha porque tem remédio, não vou morrer". para quê?

pas – eu queria chegar no seguinte: os frutos de liberação que você ajudou a plantar estão visíveis hoje?

nm – não, a aids fez recuar tudo que se conseguiu, né?

pas – mas não foi temporário, também?

nm – temporário, mas devastou. devastou. mas acho que direitos adquiridos são direitos adquiridos. não podemos voltar, regredir. acho, sim, que temos que mudar o enfoque, mas são direitos que foram conquistados.

pas – sobre sua geração de músicos, que é muito influente sobre tudo que veio depois, como você faria um balanço, de tudo que vocês sonharam e conseguiram concretizar e do que não?

nm – acho que, aos trancos e barrancos, se anda para frente. mas também temos que ter em mente que para cada momento de expansão há um momento de retração. é normal, nada caminha de uma maneira linear. não duvidaria nada se tivessem colocado esse vírus da aids propositalmente. não me assustaria, se um dia desses a gente tiver essa informação para mim não será nenhuma surpresa.

pas – quando falamos sobre "américa do sul", vi que você não gosta dos governantes atuais, mas eles são índios, retirantes nordestinos...

nm – mas são loucos, loucos...

pas – ...mas, como você disse, aos trancos e barrancos, permitem chegar a uma situação que antes não havia...

nm – ...pois é, mas e aí? a gente olha para o mundo, você acha que o mundo está ótimo? acho que está tudo decadente, geral. acho que é tudo ladeira abaixo. os véus caíram, não existem mais mocinhos e bandidos, só bandidos. então é isso, e vamos indo, até onde der.

pas – mas é ruim não haver mais mocinhos e bandidos? você já foi um "bandido" [aponto para a capa do disco de 1976]...

nm – não, acho bom a gente não ter ilusões. não ter ilusões, conviver com a realidade, saber quem é quem, o que é o sistema organizado. é bom a gente saber isso, não é viver na ilusão de que um é ruim, outro é bom, um é melhorzinho, outro piorzinho. não é, é tudo igual. agora, então, para nós aqui no brasil, está comprovado. não existe esquerda e direita, não existe nada. existe aquilo lá, que é a mesma coisa.

pas – nesse tema, aparece uma ponta de pessimismo que você não mostrou ao longo da entrevista?

nm – não, isso é real. não é pessimismo, é conviver com a realidade, a gente saber que não pode se iludir com pessoas. eu achava que o governo do pt seria ético, que lula era ético. mas e daí? cadê a ética?

pas – o balanço geral é ruim?

nm – o balanço geral é uma decepção enorme. e um vazio enorme. não há o que pôr no lugar.

pas – vamos ter que inventar o que pôr no lugar...

nm – sim, e vamos botar quem? vamos começar da estaca zero, recomeçar do zero.

pas – isso não pode ser bom também? quando você ajudou a fazer brasília, era estaca zero.

nm – sim. foi muito bom. é, vamos ver. vamos ver se vamos ter tempo. o planeta está seriamente ferido, vamos ver se teremos tempo de reestruturar alguma coisa em termos humanos.

pas – só para terminar, você tem algum tipo de ação com ecologia e meio ambiente, não?

nm – tenho uma reserva, 140 hectares de mata atlântica que transformei numa rppn, reserva particular do patrimônio natural. isso jamais poderá ser outra coisa, não se derruba uma árvore ali dentro. fica perto de saquarema. se eu morrer, a minha família pode vender, mas só pode vender para quem mantiver exatamente o que é. não pode, depois que eu morrer, vender para derrubar a mata e transformar num condomínio de luxo. aquilo nunca mais pode ser mexido. e é uma frente de mata atlântica, com águas...

pas – você comprou comercialmente mesmo?

nm – comprei, fui comprando. comprei por isso. as águas que correm por lá, todas, onde correr uma água, você pode botar sua boca e beber. aquela água é pura.

pas – há assédio de gente querendo comprar?

nm – já fui até assaltado, com metralhadora e tudo, porque queriam que eu saísse de lá. não vou sair nunca. agora, transformado em reserva, não podem fazer mais nada.

pas – se transformou em reserva por ação sua?

nm – ação minha, levei dez anos querendo isso, e o ibama me esnobava. a primeira vez que liguei oferecendo para fazer uma reserva, a mulher me tratou tão mal, era a presidente do ibama então. eu disse "escuta aqui, minha senhora, não estou lhe pedindo nada, estou oferecendo algo que me pertence, que paguei com meu dinheiro, do meu trabalho. estou querendo apenas usar de uma lei que ouvi dizer que existe". ela me tratou como se eu quisesse me dar bem, sabe? fiquei dez anos, não desisti enquanto não transformei em reserva. agora há, no brasil inteiro, uma associação de rppns, uma coisa que já está ficando bastante organizada.

pas – ali é um pouco o seu mato grosso natal?

nm – ali é meu mato grosso. eu tinha na minha cabeça que tinha que voltar para mato grosso, e ali, quando cheguei, disse "já está resolvido meu problema, não tem que voltar para lugar nenhum mais".

pas – seria difícil voltar?

nm – seria, porque não tem mais para onde voltar. não existe mais aquilo. agora vão liberar a construção de uma fábrica de aço na entrada do pantanal, não é isso? o pantanal é tão frágil quanto o amazonas.

pas – você tinha um envolvimento também na luta contra a hanseníase...

nm – sim, tenho ainda.

pas – como é?

nm – sou, na verdade, boi de piranha. sirvo para chamar atenção para o assunto.

pas – por opção sua?

nm – por opção minha. quando entraram em contato comigo fiquei tão chocado com a realidade do nosso país com relação a essa doença. eu achava que ela não existia mais. mas nós continuamos na liderança, nós e a índia.

pas – os emergentes...

nm – pois é.

pas – essas duas frentes seriam o seu envolvimento humanitário, digamos?

nm – é, embora eu tenha outros interesses. mas não tenho muita disponibilidade física além, não é? acho que a gente não tem mais nem que mexer com os índios, os que estão lá, deixa eles lá. mas fica essa bandidagem querendo invadir para tirar ouro e não sei o quê. fiquei muito feliz de saber que existem não sei quantas tribos que nunca tiveram contato com seres humanos. eu achava que não existiam, você sabe disso?

pas – não.

nm – não sei o número, mas é um número relativamente alto de etnias indígenas que nunca tiveram contato com a gente.

pas – por outro lado, o ministério da cultura tem esse programa dos pontos de cultura, que levam parabólicas a tribos.

nm – pois é, e acha isso bom?

pas – não sei. tem índio usando computador, índio globalizado.

nm – é, esse não tem mais jeito, né? descobriram o gostinho da cachaça.

pas – se pensarmos na sua descendência indígena, você também é um desses índios que se mundializaram, digamos assim.

nm – sim, mas esses que estão sem contato não querem.

pas – e vão continuar preservados, tomara.

nm – tomara, tomara. inteligentemente eles não querem.