quinta-feira, setembro 28, 2006

sou caipira, pirapora...

...e, não, em 12 anos de gestão-daslu, o tucanato-pefelismo paulista não "conseguiu" chegar perto de despoluir os rios mortos de sua capital, os rios podres de seu interior. segue povoada de morte e desolação a megalópole que se pretende, pretensiosa, a mais "rica" e "viva" do brasil, e que faz desembocar um oceano de podridão nas campinas e vales do interior do estado que se presume, presunçoso, o mais "próspero" e "desenvolvido" do país.

como podem(os) não querer se(nos) assemelhar a urubus em volta da carniça e a ratazanas de beira de esgoto uma população e uma elite política que não prezam(os) a própria saúde, o próprio bem-estar, o próprio prazer de estar mergulhados na vida aquosa que tantas vezes simulam(os) ser só seca?

tal qual bóia nas águas que banham pirapora do bom jesus , emerge abaixo reportagem publicada à edição 406 de "carta capital" [o link traz algumas das fotos de olga vlahou que acompanharam a reportagem], de 16 de agosto de 2006. abaixo dela, submerge um perfil "brasiliano" do sambista arraigadamente paulista osvaldinho da cuíca, vindo da edição 402, de 19 de julho de 2006, inspirador do que viria ser a viagem enternecida e dolorosa à tão próxima e tão distante pirapora (que também é governada pelo psdb).

[e eu, que venho de maringá, lá no interior norte do paraná, caipira, pirapora do sul do brasil, com muito orgulho!!!, rendo minhas homenagens ao interior de são paulo e ao samba rural de são paulo e aos interiores de todos os brasis! a bênção, mãe elis regina!]

e já estamos em plena zona eleitoral!, agora é festa!, excelentes votos para todos nós!!!


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O SAMBA E PIRAPORA
O batuque profano e a romaria sacra convergem no interior profundo, a 54 km de SP

Por Pedro Alexandre Sanches

A charrete, o cavalo, a bicicleta, a motoca, o Fusca, a Kombi, o ônibus de turismo. Os peregrinos que vieram a pé, a barraca de lona, o banco do Fusca, a boléia do caminhão. A procissão religiosa, a música sertaneja, o parque de diversões. O samba quase escondido, encolhido, ilhado ali dentro da multidão. Tantas imagens típicas de periferia colecionam-se numa visita a Pirapora do Bom Jesus, num fim de semana de romaria e festa religiosa no município de 15 mil habitantes a 54 quilômetros de São Paulo.

A paisagem de pé de serra e as construções coloniais comprovam que ali é o interior profundo do Brasil, embora distante pouco mais de meia hora da maior capital do País, se não houver trânsito. Não fossem os cavalos, as charretes e os chapéus de caubói, a cidade apinhada de romeiros reproduziria fielmente nesses dias 5 e 6 de agosto o caos da capital. Engarrafamentos, sirenes insistentes de ambulâncias, policiamento numeroso e ostensivo (além de tudo, é o fim de semana que inaugura a terceira onda de ataques do PCC).

Em meio ao pandemônio ainda bucólico que aviva e transtorna a cidade, há ainda o rio. Pirapora quer dizer "peixe que pula", em tupi-guarani. O Bom Jesus do nome remete à aparição nas águas do rio, diante de três escravos locais, em 1725, de uma imagem de madeira de Jesus Cristo. Os devotos não tardariam a querer se banhar naquelas águas "milagrosas".

O rio se chama Tietê. Nasce na Serra do Mar, banha a capital, atravessa já apodrecido 62 municípios ribeirinhos e deságua 1.100 quilômetros depois, no rio Paraná, divisa com o Mato Grosso do Sul. Hoje, o Tietê de Pirapora não tem peixes que pulem nem águas limpas em que os romeiros possam se banhar. Tem, em troca, enormes blocos de espuma com cheiro de esgoto, que completam de modo belo e desolador a paisagem contraditória da cidade-abrigo do Bom Jesus.

Não à toa, Foi um Rio Que Passou em Minha Vida, do sambista carioca Paulinho da Viola, será um dos sambas mais freqüentes no reduto profano das festividades. Romaria (sou caipira, Pirapora...), toada caipira do santista Renato Teixeira que a gaúcha Elis Regina popularizou, vai servir mais aos fiéis do campo sagrado, embora flerte com o profano nos versos como eu não sei rezar/ só queria mostrar/ meu olhar, meu olhar, meu olhar.

Embora acuado, o samba liderado pela matriarca Maria Esther Camargo Lara, 82 anos, não está incrustado na balbúrdia por acaso. Desde o início, a religiosidade local se complementou por rituais escravos que erigiram lado a lado com a devoção o batuque rural, de bumbo, exclusivamente rítmico, um dos nascedouros do maltratado samba à moda paulista. Dessa água se nutriram "eruditos" como Mário de Andrade e Claude Lévi-Strauss e "populares" como Geraldo Filme e Plínio Marcos.

Quem mantém acesa a chama do samba em meio ao espetáculo religioso é Osvaldinho da Cuíca, ex-integrante dos Demônios da Garoa, que dirige em acordo com a gestão tucana reeleita da cidade o encontro entre lendas de Pirapora, como Maria Esther, e lendas do samba paulistano, como Carlão do Peruche.

"O samba está fraco, a prefeitura só comprou dois surdos e um bumbo", provoca Esther, que no sábado foi ao enterro da irmã, desmaiou e visitou o hospital, mas à noite já trocou a roupa preta por outra colorida, típica do samba rural de Pirapora. Seu grupo até ousa sair pelas ruas de paralelepípedos na tarde de domingo, antes da procissão, mas no resto do tempo permanece confinado no Espaço Samba Paulista Vivo, da prefeitura, onde a pinga, o samba no pé e a democracia racial fluem sem parar (e sem pagar).

O samba resiste comprimido por várias frentes. No próprio espaço, há os grupos que fazem versões sambistas de Ciúme de Você (do repertório iê-iê-iê de Roberto Carlos) e Gostava Tanto de Você (soul de Tim Maia). Crianças e adultos cantarolam funks cariocas nas ruas, ou então compram no camelô da praça CDs piratas dos gêneros mais populares do momento (de samba, há um e outro de Martinho da Vila, Alcione, Demônios da Garoa, Raça Negra, Art Popular, e só).

A prefeitura cede amplo terreno ao ar livre para os shows também gratuitos de música sertaneja, com Rio Negro & Solimões fazendo apoteose, após a procissão. No show lotado de Jander & Jandel, a dupla convida o público a conferir a programação dirigida por Osvaldinho do outro lado do rio – a recíproca não é verdadeira.

A atmosfera carregada que emana do rio extravasa para relações sempre tensas, como o próprio Osvaldinho da Cuíca já previra: "Vai pintar ciúme". Esther se enerva com a Velha-Guarda do Peruche, que toca na frente do grupo local e, para ela, já não é samba de verdade. "Antigamente a gente tinha muito mais tempo, benzia o bumbo, fazia oração, todo mundo fazia silêncio", discursa ao microfone, alfinetando o público.

O próprio Osvaldinho vai às turras públicas com a Velha-Guarda do Peruche, que não trouxe acompanhamento musical, e com o grupo Samba do Baú (de jovens da zona leste da capital que cantam temas de raiz a pedido da platéia), porque o vocalista errou numa explicação sobre as tradições de Pirapora. O samba paulista briga consigo mesmo.

Mesmo assim, uma harmonia estranha e espontânea perpassa tudo o que está acontecendo por ali. Enquanto na praça da igreja a fila para adorar a imagem do Bom Jesus se arrasta feito cobra pelo chão, no Espaço Vivo os chapéus de caubói vão se misturando ao samba no pé. Confundem-se no salão os batuqueiros tradicionais, os caubóis, as Tias Baianas Paulistas das escolas de samba da capital, estudiosos que filmam com câmeras digitais, fãs que tiram fotos com telefones celulares, rapazes que acompanham a batucada com camisetas de Ramones e Iron Maiden (as bandas de rock) ou de Cuba (a ilha).

Dona Esther é apresentada por um grupo de mulheres a um homem sorridente que, dizem, veio da África. "Não gosto de preto", ela provoca de novo, para a seguir completar: "Não gosto porque me casei com um. Se vocês soubessem o quanto preto é gostoso..." As mulheres gargalham. O homem, um refugiado congolês, sorri e agradece Esther pela música que ela compõe, recria e governa.

Crianças e jovens do grupo local de samba de roda exalam alto contraste, dançando escondidos embaixo de batas coloridas e enormes máscaras em forma de caveiras. O mais velho dos batuqueiros do grupo, João do Pasto, 70 anos, minimiza os contrastes abundantes na história sacra e profana de sua cidade (e ali mesmo no salão): "É igual política. Todo mundo era amigo, ninguém era empregado de ninguém. Aqui vem vereador, vem noviço. Só o que estragou mesmo foi a poluição desse rio".

E é com essa poluição que a metrópole vai retribuindo o que construiu e aprendeu com a periferia e o samba de Pirapora.


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BRASA ACESA NO BEXIGA
Aos 66 anos, Osvaldinho da Cuíca enche de vida a comunidade da Vai-Vai

Por Pedro Alexandre Sanches

A feira livre vai sendo desmontada no início da tarde de terça-feira, mas segue alvoroçada a confluência entre a praça 14 Bis e as ruas São Vicente, Dr. Lourenço Granato e Cardeal Leme, no coração do Bexiga, região central de São Paulo. Há dois motivos a mais para o movimento, além da feira. Um é a reta final da reforma da quadra de ensaios da Escola de Samba Vai-Vai, que será reinaugurada na noite seguinte. Outro é a presença de Osvaldinho da Cuíca, mestre-de-cerimônias da festa de quarta-feira e, acima de tudo, história viva do samba paulista.

Paulistano nascido no Bom Retiro há 66 anos, Osvaldinho veio ver as reformas e dar entrevista a CartaCapital em seu território natural, no boteco ao lado da quadra da Vai-Vai. No decorrer da tarde, a mesinha instalada na calçada testemunhará uma procissão de abraços e cumprimentos a um dos fundadores da Vai-Vai, quando de sua conversão de cordão a escola de samba, em 1972.

"Fomos engolidos pela cultura das escolas do Rio de Janeiro, que tinham enredo, alegoria, porta-bandeira... Havia uma ansiedade muito grande do paulista em se parecer com o carioca, porque o carioca estava na revista Cruzeiro, na tevê, no cinema", explica ele.

Nem assim o samba de São Paulo perdeu identidade própria, como esse fundador da ala de compositores da Vai-Vai atesta no disco recém-lançado Osvaldinho da Cuíca Convida – Em Referência ao Samba Paulista (gravadora Rio 8, com convidados como Jair Rodrigues, Elizeth Rosa, Aldo Bueno, Quinteto em Branco e Preto e outros). laborando uma geografia sonora do samba de cá, o CD regido por Osvaldinho passeia por Pirapora do Bom Jesus (berço de origem do samba rural do estado), pela Barra Funda (nascedouro do samba na metrópole, no início do século XX, com o hoje esquecido Dionísio Barbosa), pelo Tucuruvi (sua principal morada ao longo da vida) e, claro, pela Bela Vista (nome "oficial" do bairro do Bexiga).

"Os cachorros do Bexiga latem no ritmo do samba, reparou?", diverte-se, enquanto os donos dos cachorros se encarregam da xepa da feira da manhã. Um homem negro aproxima-se e põe-se a cantar um samba. "Eu sou compositor", ele justifica, a fala meio pastosa. O mestre elogia, cumprimenta, pede desculpas, prossegue a entrevista.

O Bexiga, para ele, é reduto de resistência do samba no centro da capital: "A cidade foi empurrando para a periferia a gente humilde que fazia trabalho braçal, e com ela o samba foi ocupar grandes redutos na zona leste, zona sul e zona norte". Nas memórias da Barra Funda ou da Bela Vista, guardam-se também os tempos em que fazer samba rendia perseguição policial e prisão, uma realidade que Osvaldinho conheceu de dentro.

"Era proibido batucar na rua, quem não tivesse carteira assinada era enquadrado no artigo da vadiagem", diz o sambista que foi vendedor de jornal, feirante, vendedor de frutas na Estação da Luz e engraxate na porta da gafieira Nelsônia, no Tucuruvi. "Gafieira era para o povo humilde que trabalhava na sacaria e no fim de semana vestia terno elegante e chapéu panamá. Era a única forma legalizada de sustentar o samba em São Paulo", lembra.

"Hoje a sociedade inverteu os papéis, a mais alta classe tomou posse do samba, financia e participa do carnaval. O pobre continua discriminado – antes era porque batucava, hoje, porque não pode pagar 300 reais em fantasia ou camarote. Antes era a polícia, hoje é o capital que mantém o pobre fora", avalia, plantado num dos poucos núcleos que ainda não foram remetidos à periferia.

Diversos membros da diretoria da Vai-Vai aproximam-se para reverenciar o patrono. O sambista Thobias da Vai-Vai, novo presidente da escola, chega, abraça Osvaldinho, supervisiona as obras, fica por ali.

A forte presença negra, tanto no bairro como na agremiação, atesta os pilares de resistência que a Vai-Vai centraliza. Mas o local é caldeirão racial democrático, em contraste com bairros vizinhos, como Higienópolis, e os Jardins.

Tulia Yamamoto, assessora de imprensa da escola e da Rede Nacional do Samba, ciceroneia Osvaldinho. "Meu pai trabalhou com ele, foi um dos primeiros japoneses no carnaval paulistano", diz ela, contando que hoje integra uma ala de japoneses na escola.

Descendente de italianos por parte de pai e de "caboclos do mato" por parte de mãe, Osvaldinho integra a "ala italiana" do samba paulista, que conquistou notoriedade nacional com Adoniran Barbosa, "o poeta do Bexiga". Entre 1967 e 1999, Osvaldinho integrou por várias ocasiões o grupo Demônios da Garoa, expressão máxima da difusão do samba italianado de Adoniran (e de São Paulo) pelo Brasil.

"Adoniran e Demônios da Garoa deram um colorido à identidade do samba urbano de São Paulo, ao mesmo tempo que traz a influência rural na batida de cavaco e viola. É um samba que só tem aqui, só aqui", ele legisla em causa própria e grandiosa. Embora tenha chamado os Demônios para cantar no disco, ele não cogita voltar ao conjunto. "A formação mudou. Hoje são os filhos, os netos."

Exaltados em seu CD são também os primeiros instrumentos musicais que ele tocou na vida, como as frigideiras de cozinha e os apetrechos da caixa de engraxate, com os quais o garoto Osvaldo imitava o som da cuíca – hoje, é uma cuíca profissional que ele exibe e acaricia ao longo da entrevista.

Entre uma brincadeira e outra com o bêbado de botequim ou o operário que termina a pintura num andaime ao lado, ele delimita outra diferença entre o samba carioca e o paulista: "Aqui o samba nasce e morre na rua, no meio do povo, nunca teve a vitrine e o glamour que teve o do Rio".

Talvez a diferença more mesmo nas visões de mundo divergentes dos sambistas de uma praça e de outra. Embora especialmente apartado da mídia, da fama e do dinheiro, o samba paulista goza de celebridade local, artesanal, instantânea e espontânea, como comprova o assédio pelas ruas do Bexiga.

Recuperado de um câncer na garganta há poucos anos, brinca com a própria vida: "Eu estava com minha velinha apagando, aí acendi de novo". Acendeu mesmo. Em plena atividade, canta em shows e discos e comanda caravanas anuais de sambistas a Pirapora, para participar das romarias que desafiam maniqueísmos fundindo os extremos opostos da religiosidade sagrada e do samba profano.

O próximo sonho, além de concluir um DVD sobre o samba paulista, é conduzir um documentário sobre a música nos quilombos da zona portuária de Santos, que ele diz estar à beira da extinção. Com o cenário de contrastes do Bexiga ao fundo, cantarola com voz renovada uma predileta de Adoniran, aquela que diz que eu, que já fui uma brasa,/ se me assoprarem, posso acender de novo. O povo apinhado ao seu redor dá o selo de garantia: a brasa segue aquecendo quem quiser se aproximar.

sábado, setembro 23, 2006

na companhia do povo

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"crítica"
(extraída da "carta capital" 409, de 6 de setembro de 2006.)

A CASA NÔMADE DO SKANK


O grupo Skank atinge resultados notáveis em seu oitavo álbum, Carrossel (Sony BMG, R$ 30), ao escavar um pouco mais as próprias origens. Tal esforço principia pela capa de motivos nômades e circenses e se conclui pela música, que chega mais perto que nunca das raízes mineiras firmemente fincadas pela geração do Clube da Esquina.

A faixa Panorâmica, por exemplo, começa pela constatação talvez involuntária de que de repente aquela esquina era mais que um lugar. Idéias e tonalidades afirmadas por artistas como Milton Nascimento e, principalmente, Lô Borges reaparecem em faixas delicadas como Cara Nua, Notícia e Trancoso, todas enriquecidas pelo som de um excêntrico banjo, e todas dispostas naquela mesma esquina entre a MPB à moda mineira e os Beatles.

Em Uma Canção É para Isso, o Skank volta ao mito, agigantado por Milton, de que todo artista tem de ir aonde o povo está, forjando com excelência um tema pra cantar (...) na companhia do povo. É a canção de maior apelo popular, que se ajusta com precisão à complexidade maior, mas igualmente comunicativa, da faixa Garrafas, um misto estranho entre iê-iê-iê, psicodelia e balada pop. O mito a derrubar, nisso tudo aí, é o da suposta dissociação entre "qualidade" e "popularidade". Ambas moram com conforto na casa nômade do Skank. - POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

ii
"entrevista"
(concedida por e-mail pelo líder do skank, samuel rosa, especialmente para este blog contente.)


pedro alexandre sanches - as ilustrações da capa de "carrossel", e também algumas letras (a exemplo de "nômade", do disco anterior), me trouxeram à mente imediatamente imagens circenses e ciganas - em parte, acho, por influência de duas reportagens sobre esses dois universos que fiz para a "carta capital" (se quiser acessar, as reportagens estão disponíveis aqui e aqui. minha pergunta é: como você diria que o imaginário cigano e o imaginário circense penetram na música brasileira, na música do skank, na música de "carrossel", na sua música?

samuel rosa - não é difícil imaginar que levando a vida que vimos levando ao longo desses 15 anos, viajando quase todo o tempo e subindo ao palco em quase todos os finais de semana, carreguemos algo do circo, que já é meio nômade. falar sobre essa condição em nossa música é inevitável. a vida na estrada é extremamente impactante e, como se não bastasse, a rotina de uma banda pop fora dos palcos, também. os bastidores desse "mundinho fechado" são quase tão narcotizantes quanto a vida "on the road". acredito que essas sensações contaminem nossa forma de compor. e não é pra menos. sinto até que gostaria de ir mais além nessas questões, mas ainda não fui capaz... a vida na estrada às vezes me parece insustentável. como conciliar a estrada e a vida? e mais: como conciliar aquilo que você parece ser no palco com a sua intimidade? vou filosofar! [oba!]

a vida na estrada é um "não ser"? estar em muitos lugares pode ser uma forma de não estar em nenhum!! e aí então somos marginais, como o palhaço alegre e melancólico.
e fica fácil imaginar o quanto nos sentimos próximos desse universo cirsense. somos também artistas populares, artistas do improviso, da arte não erudita, não acadêmica, por mais que vez ou outra tentemos dar outros tons a ela. talvez menos com "carrossel" e mais explicitamente no "samba poconé" [álbum de 1996] o skank tenha feito um tipo de contemplação sobre essa nossa condição de artistas do interior de um país de terceiro mundo. mas com "pretensões" de se alinhar às correntes musicais primeiro-mundistas através da tal "linguagem universal" (fosse o reggae ou o rock) e ainda brincar com o inevitável risco de vez ou outra soar como uma mera paródia dos modelos importados. sem desprezar, contudo, a possibilidade de ser uma alternativa a eles. meio que como a atlântida querendo ser hollywood. não sei se você se lembra das ilustrações do álbum ["o samba poconé"], vinham naquele formato de cartazes de cinema desenhados, muito comuns no interior do brasil, que davam invariavelmente uma "deformadinha" engraçada no rosto dos artistas. não sei se "viajo" [viaja!, oba!, viaje(mos)!], mas, num certo sentido, esse rosto deformado que se parece com o original, mas o deturpa poderia ser exatamente o nosso.

pas - também de "nuvem cigana" é a música de milton nascimento, lô borges, beto guedes e todos os artistas engajados no histórico clube da esquina. e também noto, na música do skank, uma presença crescente de laços explícitos com o clube da esquina, com a história da música popular brasileira feita a partir de minas gerais. você também vê isso acontecendo? é proposital, ou natural, ou tudo ao mesmo tempo?

sr - confesso a você que tinha eu já meus 18 anos, uns três de guitarra e a música dos "garotos da rua divinópolis" ainda não tinha batido. fazia parte apenas de minhas reminiscências, já que meu pai gostava e eu ouvia por tabela. acho que o clube da esquina começou a ter real valor para mim quando percebi que lô, beto e cia. encarnavam a possibilidade de alguém, mesmo tendo nascido num gueto improvável como era belo horizonte, fazer algo interessante aos ouvidos do brasil e até do mundo. ou seja, mesmo não tendo nascido em liverpool, a gente tinha uma chance. era muito estimulante para quem vislumbrava uma pequena possibilidade de poder viver de música em bh, trombar com caras já populares em todo o brasil, em botecos, estádios de futebol etc.

e não era só isso: o som do clube da esquina também já era uma tentativa bem sucedida de resolver um dilema que vivemos até hoje: o de como fazer rock ou pop de qualidade, ou uma música que fale preferencialmente à juventude, sem soar inglesa ou americana demais. a meu ver, a música do clube é mais peculiar e menos universal do que deveria. nesse ponto, me identifiquei mais especificamente com o lô. passei a acompanhá-lo em discos e shows, aprendi a tocar suas músicas, virei um grande , não perdia nada.

naturalmente, depois disso meu interesse musical foi mudando, mas aquelas expressões melódicas e seqüências harmônicas provavelmente ficaram cravadas em meu dna musical. foi aí que, em 1995, naquilo que considerei um aceno, lô gravou "te ver", música minha e do chico amaral em seu disco "meu filme" [1996]. em contrapartida, chamamos lô para participar de um disco comemorativo do selo chaos, da sony, cantando conosco "você fica bem melhor assim". depois disso, ficamos muito próximos e veio a idéia de fazermos shows juntos e posteriormente um disco, que ainda não rolou (os shows rolam eventualmente, de acordo com a conveniência das nossas agendas). acho que definitivamente nos tornamos parceiros e eu também percebo o quanto esse encontro, somado àquilo que anteriormente já havia assimilado do clube, vem influenciando as transformações no som do skank.

pas - apesar de nômade, o skank está radicado em minas gerais, certo? é possível fazer música de apelo e popularidade no brasil sem se escravizar ao eixo rio-são paulo?

sr - não totalmente. a possibilidade que temos de tocar nossa carreira e ainda permanecer em bh nos é muito favorável. um dia cheguei a duvidar que o skank pudesse existir sem que nós nos mudássemos para o rio ou são paulo. não é pra menos, antes da nossa geração (a dos anos 90) isso não era muito usual. as bandas, mesmo sendo de outros cantos do brasil, inevitavelmente se transferiam para o "grande eixo". porém ainda sentimos o quanto é necessário para uma banda de música popular se fazer presente nesses lugares de forma sistemática. escolhemos transitar num universo musical que exige muita visibilidade, constância, quase que uma militância em determinados tipos de veículos que se concentram basicamente em rio e são paulo. nos esmeramos em fazer isso na conta certa, claro que de forma totalmente intuitiva. e, ainda, felizmente gozamos de suficiente autonomia junto à gravadora.

pas - é cada vez mais comum a associação do som do skank com sons como os de blur, oasis, radiohead etc. (confesso que até ecos de luna ouvi em "carrossel"). não raramente, essa associação é feita meio que desmerecendo, colocando o skank como copiador "terceiro-mundista" de matrizes lá do "primeiro mundo". o que você acha disso?

sr - não me arriscaria a dizer que em termos de música pop o brasil já tenha chegado ao brilhante resultado de produzir algo genuinamente seu. acho que ainda não, mas quem sabe um dia? por mais que ao longo da sua história musical o país tenha produzido bons grupos de rock, respeitados até mesmo por quem mais entende do bordado (vide mutantes e a crítica inglesa), até mesmo eles, em algum momento, beberam em fontes estrangeiras. alguns mais, outros menos, mas invariavelmente todos beberam! a meu ver, nossa conduta não destoa tanto assim de outros grupos brasileiros de rock e pop que almejam fazer algo de qualidade (se pelo menos essa é a intenção) se alinhando com o que de melhor está sendo feito lá fora. se há demérito nisso então, por favor, vamos de novo às passeatas contra a guitarra!

é um pouco o que falei na resposta da primeira pergunta. não posso concordar que esse "conflito de identidade" seja uma exclusividade do skank, porque, se não estou enganado, o hip-hop não nasceu na periferia de são paulo, tampouco nos morros do rio; o movimento punk não foi inventado no planalto central; o romantic reggae não se criou nos litorais tupiniquins; e são paulo está a milhas de distância da califórnia para reivindicar uma parcela de colaboração na fórmula final (diga-se de passagem, extremamente padronizada) do emocore!

indo um pouco mais além, essa condição não se restringe apenas às bandas, acho que não é exagero dizer que é perceptível um vinculo ainda forte com modelos importados também em outros setores, como revistas especializadas, as tvs de música e suas premiações e até mesmo na própria crítica. mas realmente penso que nem por isso tenhamos deixado de chegar a resultados bem satisfatórios na maioria desses segmentos. contudo, não dá tapar os olhos para uma condição que é a nossa (e de tantos outros), ou seja: um grupo de terceiro mundo querendo fazer rock, querendo se inserir e usar de linguagens universais. e de mais a mais eu não vou colocar gratuitamente tamborins em nosso som, só pra falar que nós misturamos samba com rock. não vou! nem mesmo pra vender show no exterior, que é o que muitos fazem!

acredito na possibilidade de se criar uma identidade, ainda que sutil, confiando apenas no simples fato de que como brasileiros teremos a chance de ler e produzir rock de uma forma muito própria, não sendo então necessário acentuar traços daquilo que naturalmente pode aparecer. se antecipar, neste momento, pode fazer a coisa desandar. mutantes, secos & molhados, clube da esquina, todos chegaram a um ponto de excelência musical e a um nível de universalidade sem necessariamente se exacerbar em exotismos.

pas - reformulando a mesma pergunta de cima, haveria mesmo uma relação direta do skank com bandas inglesas e norte-americanas "modernas", ou ela vem mais por intermédio da enorme influência dos beatles, e do uso que os artistas do clube da esquina fizeram dos beatles?

sr - pedro, não é segredo pra ninguém em que filão do rock'n'roll o skank deseja transitar. isso fica claro ao ouvir nossas músicas e até mesmo em nossos releases muito já foi dito. creio ser muito claro qual fatia do bolo mais nos seduz. contei ainda nas respostas anteriores um pouco da minha história com o pessoal do clube.

com relação aos beatles, sinto a necessidade de fazer algumas considerações porque, verdade seja dita, os beatles são o começo de algo muito abrangente! é realmente muito difícil a todo compositor que deseja fazer rock com mais de três acordes e trabalhar melodias não esbarrar neles. os caras foram talvez os primeiros a trazer de forma contundente a "canção" para o rock. além do mais, produziram uma música ao mesmo tempo tão "inespecífica" e com tanta identidade (por mais paradoxal que isso possa parecer) que, a meu ver, acabaram por criar um estilo que tanto influencia bandas como as que você citou e milhares de outras. e mais, estavam à frente na década mais transformadora e revolucionária do século passado e que talvez por isso tenha ecos até hoje. claro que com a ajuda dos principais expoentes do britpop, que por sua vez acabaram por influenciar as "supernovas" bandas da cena atual... mas o fato é que os beatles estão aí até hoje e "revolver" [1966], com 40 anos, ainda é um disco insuperável no quesito modernidade.

nesse sentido, é um pouco arriscado dizer a uma banda que tem fortes traços de beatles e da música sessentista que ela soa retrô. a sensação que tenho é que para esses milhares de bandas que optam por fazer um rock mais melódico, tentando uns passos fora do recurso óbvio e onipresente da guitarra distorcida o tempo todo (que alguns simplistas insistem em colocar no mesmo saco sob o rótulo de "soft rock") é que essa associação com os beatles é tão óbvia e superficial quanto falar a uma banda de reggae que ela tem "algo" de bob marley.

mas também não quero me justificar e nem me ater às qualidades dos beatles e sua capacidade de influenciar bandas até hoje. o fato é que ninguém faz música sozinho, muito menos a partir do nada. alguém já disse que "o homem não é uma ilha". todos nós estamos sobre forte influência do mundo e, principalmente, sob forte influência daqueles que admiramos, seja nas artes plásticas, literatura, teatro etc. caetano veloso, em recente entrevista pela ocasião do lançamento de seu novo álbum, citou pelo menos uma dezena de referências, de sonic youth a haroldo de campos. todos estão lá no seu último álbum.

pas - se fosse possível escolher, o skank de "cosmotron" [2003]e "carrossel" é mais oasis, ou é mais "para lennon & mccartney" [canção de lô borges, márcio borges e fernando brant, gravada em 1970 por milton nascimento, e que conta simbolicamente (ou não?) a john e a paul que "eu sou da américa do sul/ eu sei, vocês não vão saber/ mas agora eu sou cowboy/ sou do ouro, eu sou vocês/ sou do mundo, sou minas gerais"]? é mais "gringo", ou é mais "eu sou da américa do sul, eu sei, vocês não vão saber"?

sr - o grau de parentesco entre "cosmotron" e "carrossel" é patente, mas, na minha opinião, "carrossel" é um disco menos preso a cartilha de um estilo musical. acho que no novo disco as referências são mais internas do que no anterior. como se a banda tivesse uma autonomia maior ao passear nessa seara das canções e timbres mais apurados. é como se estivéssemos mais capacitados a fazer adaptações a esse estilo ou caminho que decidimos trilhar desde o "maquinarama" [2000] (modéstia à parte).

pas - há um banjo rodando intermitente com o "carrossel", por que vocês elegeram esse instrumento? ele estabeleceria algum tipo de ponte com os estados unidos, onde inúmeros artistas (de neil young e bruce springsteen a madonna e norah jones, do cinema hollywoodiano ao cinema independente, dos artistas "apolíticos" aos mais anti-bush) parecem olhar com mais carinho e afeição para a country music, para sua música "de raiz"?

sr - assim como o banjo, outros instrumentos que nunca haviam dado as caras em discos anteriores do skank apareceram dessa vez. Principalmente instrumentos de orquestra: trompas, violinos, tímpanos, vibrafones etc. além disso, foi dado um cuidado maior aos vocais. trabalhamos em coro em quase todas as músicas, sempre com extremo zelo, para não descambar para o sertanejo, motivo talvez pelo qual grupos brasileiros não se arrisquem muito nessa praia. o fato é que queríamos dar uma produção ainda mais cuidadosa ao álbum, além até da que tivemos no "cosmotron", sem perder o lado artesanal, que descobrimos ao fazer "maquinarama". isso tudo, não posso negar, muito inspirado por bandas gringas, que conseguem conjugar bem a boa produção com uma aura "low profile". ou seja, mesmo com muito requinte, soa honesto. uma certa "simplicidade sofisticada", como diria nick hornby.

pas - e, voltando ao brasil natal, existe um interesse crescente, por parte do skank, de dialogar com suas raízes locais?

sr - curioso notar que ao escolher fincar o pé nessa sonoridade atual, o skank, como você bem observou (mas muitos não conseguem ou não querem perceber), acaba honrando uma tradição da música brasileira. ao soar melódico, psicodélico, ou até mesmo rural, o skank acaba por perpetuar correntes musicais que já têm décadas de história dentro da nossa música. ainda que nos dias atuais exista quase uma obrigação em corresponder a uma expectativa gringa de sempre ligar o brasil a música festiva, rítmica, etc. não podemos nos esquecer da grande tradição melódica e harmônica que temos.

mas, como falei anteriormente, tenho algumas ressalvas quanto à busca obsessiva ou premeditada por infringir traços da música de raiz brasileira no pop ou no rock.
concluindo, e voltando mais ao centro de sua pergunta, se pudermos considerar clube da esquina e jovem guarda como raiz musical, eu diria que o skank, de uma maneira ou de outra, nunca deixou de estar ligado as referências locais.

pas - "uma canção é pra isso" recupera o clima de "vou Deixar" e vai mais além ainda, explicando na própria letra o que essa estirpe de canções pretende: ser popular, estar perto do "povo", ir aonde o "povo" está. a "fórmula da canção pop perfeita" existe, vocês buscam essa "pedra filosofal" nessas canções? por quê, para quê?

sr - tenho certeza que alguém já disse que o formato da música pop já se esgotou. mas não creio que seja por causa disso que vou deixar de gostar dela e de até reconhecer seus méritos. não é lá tarefa muito fácil fazer uma música que caia no gosto popular e de que ainda assim você possa posteriormente orgulhar-se. fernanda takai certa vez sabiamente falou: "fazer esquisitices musicais não é lá muito difícil". acho que ela estava se referindo ao quanto pode ser mais complicado fazer algo que caia no gosto de uma multidão. "uma canção é pra isso" tenta, de alguma maneira, dizer que esse fenômeno não e lá tão desprezível quanto alguns querem acreditar, e mais, citando de novo nick hornby, ela se encaixa num perfil de músicas que não têm pretensão maior, senão a de inspirar pessoas, sei lá, consolá-las depois de um dia ruim, ser uma brisa de otimismo pra quem procura esse tipo de sensação em uma canção. e por que a música não pode se prestar a esse fim? obviamente, não desprezando a possibilidade que ela tem de cumprir outros papéis.

pas - é possível ser comercial, rentável etc. dentro de um projeto que almeje a "qualidade"? é possível fazer "música de qualidade" dentro de um projeto que se pretenda popular, industrial etc.? é possível ao mesmo tempo ser comercial e fazer uma canção (ainda bastante sutil, é verdade) chamada "antitelejornal"?

sr - se não estou enganado, ou indo muito além, existe algo subliminar em sua pergunta que é: "o por quê da necessidade quase que implacável de dissociar aquilo que é de qualidade daquilo que é popular?". algumas certezas já temos, como, por exemplo: nem tudo que é popular é necessariamente ruim. certo? outra: muitas coisas passam a ser ruins depois que se tornam populares. nós mesmos já vivemos isso. vi muita gente desdenhar do nosso trabalho depois que passamos a ser mais populares, principalmente pessoas que haviam sido muito receptivas com nossos primeiros trabalhos e, mais ainda, quando éramos independentes. nossos primeiros álbuns tiveram críticas de razoáveis a boas à ocasião de seus respectivos lançamentos e depois se tornaram piores, sem que nada fosse alterado neles. nem mesmo uma nota sequer.
porém concordo com a idéia de que algumas coisas podem se sofisticar tanto a ponto de atingirem um nível de complexidade que inevitavelmente as tornam mais difíceis de serem compreendidas. van gogh morreu miserável; bob dylan, apesar de sua genialidade e de ser uma das principais influências de meio mundo pop, nunca teve uma vendagem proporcional à sua importância. o problema que vejo em insistir nisso é o risco que corremos de perpetuar um vício comum tanto da crítica (desculpa, nada pessoal) [disponha, samuel!! concordo plenamente contigo!!!] quanto dos "formadores de opinião" de estar sempre mais inclinados a legitimar aquilo que é menos popular, ou que está mais à margem, do que aquilo que já passou pelo crivo popular.

é uma sensação de que ao artista popular não é concedido o direito de reconhecimento por parte dessa classe. claro que isso não é via de regra. só estou falando de uma tendência que eu acho existir. também não deixo de achar que o papel da crítica deva ser esse mesmo, de enxergar coisas que a média não vê, lógico. mas esse tipo de protecionismo acaba por gerar uma incômoda proliferação de candidatos a bob dylan no circuito alternativo que acreditam piamente que não vendem porque são bons demais!

[obrigado ao generoso samuel!, pela entrevista! e obrigado, também, à generosa susana ribeiro, que intermediou nosso bate-papo!]

iii
"reflexão"
(porque o melhor lugar do mundo é aqui, e agora... e em forma de abecedário, porque no abc do sertão o ele é , o eme é , o ene é , e até o ípsilon é pissilone...)

a) talvez minhas perguntas ostentem um tom passadista, na insistência em torno de beatles e de clube da esquina (e, por que não?, até mesmo de oasis). mas é que me bate fundo o fio delicado de memória que ouço, a unir uma das mais monumentais canções da história da música popular brasileira (a prosaica, presunçosa, sentimental e topetuda "para lennon & mccartney") a baladas de "carrossel" como, por exemplo, "panorâmica", "cara nua" e "notícia". essas novas canções têm muita história guardada dentro delas, e isso é tão bonito.

b) ouço (ou interpreto, sei lá) que samuel não acredita que algum artista pop brasileiro tenha chegado algum dia "ao brilhante resultado de produzir algo genuinamente seu". discordo dele nisso, e os exemplos em contrário abarrotam minhas estantes lotadas de vinis e de cds. chego a duvidar de que o próprio samuel acredite 100% nisso, até porque há no disco de sua banda uma balada chamada "cara nua" (composta em dupla com o supercarioca humberto effe), que ecoa e vai bem além do lamento tipo "vocês não sabem da américa do sul" do velho clube da esquina. "que dia é esse que só nasce pra você?", perguntam a letra e a melodia, ambas muito aparentadas de lô borges. cá deste lado fico fantasiando que estão falando não mais a lennon & mccartney, mas aos produtores-difusores exclusivistas do lixo ocidental que vem da américa do norte (há muitos brasileiros entre esses)... "viajei"? bem, fantasiar é um direito pleno do ouvinte, não?

c) o que seria o "sertanejo", conforme citado por samuel durante a entrevista? seria uma condição, um vírus, uma doença, uma contaminação, um ente "inferior" diante de entes "superiores"? o que seria a nossa habitual repulsa pelo gênero (seria um gênero, o "sertanejo"?)?, que leva samuel, por exemplo, a temer "descambar para o sertanejo"? nutrimos ojeriza por conta das apropriações perversas dos "sertanejos de indústria", ou é contra a própria idéia "sertaneja" em si que nos rebelamos? nossa repulsa é aos abusos, ou é à própria existência do sertanejo (antes de tudo, um forte), do caipira, do matuto, do caboclo, do mulato, do cafuzo, do negro, do intersexo, do interiorano, do rural? difícil responder (estamos em pleno trajeto), mas esse horror de distanciamento hoje nos traz à condição peculiar, paradoxal, tensa, de querermos muitas vezes admirar os banjos simbólicos em bob dylan ou strokes ao mesmo tempo em que escorraçamos com intolerância os banjos simbólicos em tonico & tinoco ou zezé di camargo & luciano. pois no meio do caminho dessa antiqüíssima cisão havia um skank, filho de um milton, por que vocês não sabem do lixo ocidental?

d) por falar em "rural", foi só quando samuel utilizou esse termo que se materializou na minha cabeça uma associação que acho que só estava existindo em forma de sentimento, bem longe do cérebro. só então caiu-me a ficha da proximidade do som atual do skank com o "rock rural" brasileiríssimo (& estrangeiríssimo) dos anos 70, conforme praticado por sá, rodrix & guarabyra, ou marcos valle quando associado com o grupo o terço, ou erasmo carlos quando associado com o grupo karma, ou elis regina quando cantando "casa no campo", de zé rodrix e tavito, entre tantos mais. talvez estejamos falando, se for possível condensar, na música não-praiana brasileira, aquela que brota de minas gerais, mas se esparrama também pelos interiores mato-grossenses, capixabas, goianos, amazônicos, paraenses, paranaenses, catarinenses, gaúchos etc. talvez estejamos nos referindo àquela música que brota dos lugares íntimos que os demofóbicos atolados em preconceitos até mesmo geográficos chamam pejorativamente de grotões (enquanto xingam de quadrilha o conjunto das pessoas originárias dos "grotões").

e) é significativo que samuel rosa, haroldo ferretti, henrique portugal e lelo zaneti tenham iniciado a jornada musical do skank tão próximos do reggae, tão praieiros, tão jamaicanos, e hoje tragam estampada na testa a linda palavra interior.

f) sobre a ligação que samuel faz entre a música do skank e a jovem guarda, há um trecho lindo na canção mais popular (em vários sentidos) do disco, "uma canção é pra isso", que é o seguinte: "uma canção me veio sem querer/ naquela hora difícil/ joguei-a logo nesse iê-iê-iê/ por profissão ou por vício". roberto carlos mora profundamente dentro de samuel e de chico amaral, os autores dessa música. não foi nada à toa que roberto chamou samuel para acompanhá-lo ao violão, na reedição do hit iê-iê-iê "é proibido fumar" (que o skank já gravara em 1994, na compilação "rei" e no álbum "calango"), em seu "acústico mtv" (2001).

g) muito à maneira de roberto carlos, aliás, "uma canção é pra isso" sobe às nuvens do enlevo quando desliza pela melodia afirmando que "uma canção é pra acender o sol no coração da pessoa", "pra fazer o sol nascer de novo", "pra contar o que nos encantou na companhia do povo". não é nada à toa que ela é o carro-chefe de "carrossel", uma generosa canção popular(& rebuscada) num generoso disco rebuscado (& popular).

h) acredito que "uma canção é pra isso" e também "vou levar" (mas igualmente canções bem mais "sofisticadas" como "garrafas", do novo cd, ou "formato mínimo" e "dois rios", do disco anterior) constituem elas mesmas uma resposta possível e plausível e provável para a dúvida que samuel expressa ao afirmar/perguntar que/se "nem tudo que é popular é necessariamente ruim (certo?)". temos aí possivelmente uma idéia invertida, a célebre falsa questão que muito se disseminou pela sociedade brasileira, partindo das classes mais "altas" para as classes mais "baixas". a academia, a crítica e o jornalismo sempre lideraram os rebanhos puxadores dessa classe de preconceitos, desse preconceito de classes. tiveram evidentemente a cumplicidade retro-invertida de artistas e animadores de auditórios, que insistiam com igual nível de pressão e intolerância no estigma contrário, de que "tudo que é popular é bom", ou de que "tudo que é impopular é ruim". todos estavam surdos, trancando conceitos supostamente estanques em gavetas forjadas fosse na ignorância "popular", fosse na ignorância "intelectual". só o que se conseguiu, com isso, foi interromper transitoriamente (meia geração? uma inteira? mais que isso?) a livre circulação entre o "popular" e o "impopular", o "sertanejo" e o "urbano", o "erudito" e o "inculto", o "sábio" e o "burro", o "simples" e o "complicado", uma montanha desta altura de rótulos preconcebidos, amorfos e inoperantes. hoje, quem faz as perguntas é quem traz as respostas, em perfeita sincronia interna.

i) do fio de tempos-espaços imemoriais, milton nascimento troveja por trás de "uma canção é pra isso", para lennon & mccartney e para nós-brasileiros-do-mundo: "por que vocês não sabem do lixo ocidental? não precisam mais temer, não precisam da solidão. todo dia é dia de viver". porque, como milton já sabia dos bailes da vida, todo artista tem que ir aonde o povo está. e porque, como todo mundo já está sabendo, todo mundo neste mundo é artista.

segunda-feira, setembro 18, 2006

franz ferdinand (*) (**) (***)

A BOLA DE NEVE É FOGO
Um templo em que o rock e a religião vivem juntos

Por Pedro Alexandre Sanches

O roqueiro tatuado está posicionado com a guitarra em punho. A platéia de 2.500 jovens ergue os braços em culto ao ídolo. Estamos no palco de um show de rock, certo? Certo, mas mais ou menos. Dois dias atrás, aquele cenário era completamente outro. O palco era um altar. O público orava. O condutor do rebanho não era o roqueiro Rodolfo Abrantes, ex-líder do popular grupo de rock Raimundos, mas sim o pastor evangélico Rinaldo Seixas, criador e condutor da Bola de Neve Church. Estávamos e estamos num templo religioso.

Rodolfo, o músico de 33 anos, mantém-se firme no espírito rock pauleira que o revelou nos anos 90, mas agora canta exclusivamente temas que versam sobre Deus e Jesus Cristo. Nessa noite de terça 29, está lançando seu primeiro álbum-solo e evangélico, Santidade ao Senhor, pela gravadora Bola Music. Ele também é pregador e pretende ser pastor: "Sou missionário, a coisa que menos faço é ser músico. Vou, com certeza, me tornar pastor, ficar num lugar meu, numa igreja, pregando".

"Rina", o pastor de 34 anos, prega num púlpito que é uma prancha de surfe de cabeça para baixo, com dois golfinhos pendurados no pedestal. Atrai multidões de jovens surfistas, skatistas, fisiculturistas, lutadores de jiu-jítsu e esportistas à filosofia religiosa que ostenta o slogan in Jesus we trust e prega, entre outros motes, que "Deus é fogo" e "incendeia". Ele também canta, nos cultos que lidera com a esposa, Denise Seixas.

O culto, que no domingo 27 duraria três horas e meia, conta com canções, sessões de adoração e uma cobrança de dízimo sem grandes pressões. À frente de um telão que projeta imagens de coqueiros, ondas gigantes e tartarugas marinhas, Rinaldo conduz um transe coletivo de expressões em línguas que "não são humanamente conhecidas", "línguas de fogo". Prega a separação entre "beduínos" e "esquimós" e louva os indivíduos "quentes", contra os "mornos" ("hipócritas") e os "frios" (distantes de Deus). No entanto, o nome da igreja é Bola de Neve.

Rodolfo também costuma pregar, em Balneário Camboriú (SC), onde mora. O músico-pregador e o pastor-cantor têm mais em comum. Ambos emergiram para a religião a partir de trajetórias de abuso de drogas. O mesmo aconteceu com suas respectivas esposas e com muitos dos freqüentadores da igreja, que nasceu em São Paulo, em 1999, e hoje tem 26 templos espalhados pelo País, especialmente em cidades litorâneas.

"Hoje em dia, todo mundo já teve alguma experiência com drogas. A nossa diferença é que procuramos falar abertamente sobre isso, sem hipocrisia", diz Rinaldo.

Consumidor de drogas diversas dos 13 anos até 2001, Rodolfo hoje as associa com o período de maior sucesso, que a gravadora Warner alavancou: "Eu me sentia um turista. Por estar o tempo todo drogado, estava nos lugares só em corpo. Conheci o Brasil inteiro e não conheço nada do Brasil. Considero o cara doido dos Raimundos um defunto. Quando vejo imagens daquela época, dá uma coisa ruim no estômago. Não nego, porque fiz. Mas não me faz bem".

No palco, Rodolfo roga à platéia atenção menor à sua imagem: "Quero que esqueçam meu cartaz lá fora e olhem só para Deus". No bastidor, admite que hesitou em voltar aos palcos: "Eu tinha muito medo de virar artista de novo, de virar produto, ser comercializado. A adoração não é algo que se comercializa".

A memória ruim do consumismo também aparece na fala de sua esposa, Alexandra, de 27 anos, pregadora e cantora: "Não é culpar as drogas, era legal. Eu amava tomar ecstasy. Mas cansei de fingir. Um dia me olhei no espelho, eu tinha silicone, megahair, plástica no nariz, unha postiça, lente de contato azul, fiz lipoaspiração com 17 anos. Nada contra, amo meu peito e meu nariz, e faria tudo de novo, mas isso tudo era o reflexo do que eu era. Olhei para mim e disse: 'Eu sou uma farsa'".

As únicas "marcas" exaltadas explicitamente na Bola de Neve Church são Deus e Jesus, mas, sim, o comércio e o consumismo pulsam ali, por toda parte. Entre os espectadores/adoradores, abundam marcas como a surfista Rip Curl, a Nike e até Louis Vuitton. Durante o culto de domingo, o pastor divulga um futuro culto só para mulheres, a ser conduzido por Denise, para o qual prometem-se sorteios de 40 sessões de bronzeamento, hidratações faciais e massagens relaxantes.

Na terça, muitos entrarão no show deixando quilos de mantimentos, ou até mesmo de graça. Os que gastaram os 20 reais do ingresso têm a opção de trocá-lo por uma cópia do CD de Rodolfo na Bola Music. Rinaldo diz que o estúdio de gravação da Bola Music, que fica dentro do próprio templo, foi doado. O disco sai sem nenhum contrato assinado, segundo garantem as duas partes.

Monique Evans, que se casou na Bola de Neve, circula pelo coquetel (sem álcool) de lançamento, fazendo entrevistas para a RedeTV! A mídia secular e a religiosa misturam-se no mezanino "vip", cujas cadeiras de culto foram retiradas.

"A mídia nos deu respaldo, respeito e visibilidade. Nunca foi algo que a gente buscou, foi sempre a mídia que nos procurou. Esta é a primeira vez que temos uma assessoria de imprensa", sintetiza o pastor, referindo-se à curiosidade que as características inusitadas do templo costumam atrair. A assessora de imprensa do lançamento de Rodolfo é uma profissional de uma das maiores empresas do ramo no Brasil, que atua ali como voluntária, por ser freqüentadora da igreja.

"A gente entende que o espaço físico não é um lugar sagrado. Sagradas são as pessoas", diz a pastora Denise, 34 anos, para justificar a hibridez do espaço. Esportista e filha de um compositor de escola de samba, ela abre o show de Rodolfo com voz potente e reggaes de refrões que trocam o got to have kaya now de Bob Marley pelo brado de caia, Babilônia!, repetido em uníssono pela multidão.

Não se encontram pelo ambiente do show resíduos de álcool, maconha ou fumaça de cigarro. Mesmo assim, o público que grita "Jesus!" entre as canções vibra de empolgação. Ostentando nos antebraços a enorme inscrição "eu e minha casa servimos ao Senhor", o publicitário Rafael Nakel, de 28 anos, exprime assim sua alegria: "Venho porque amo Deus. Aqui me sinto mais livre, olha quem está ali. Aqui estão os mais loucos, é o meu time".

"Quem está ali" é o roqueiro Rodolfo, que Rafael idolatra desde os Raimundos. A diferença é que estamos num templo de louvor, e não na arena de algum festival badalado de rock, cultuando um ídolo pop, ou na pista eletrônica de uma rave, idolatrando um "superstar DJ". Ou será que estamos, que sempre estivemos?

@

(*) reportagem publicada na "carta capital" 409, de 6 de setembro de 2006.

(**) o título deste tópico, que originalmente deveria se chamar "a bola de neve é fogo", foi inspirado na banda escocesa de rock franz ferdinand, que, segundo os fiéis da imprensa, "incendiou" a platéia de um caótico festival paulistano no fim de semana que passou, passou, passou...

(***) também vi, e até considero excelente a banda franz ferdinand (apesar do nome alavancador de guerra). batutas, mesmo, os rapazes, mesmo quando fazem lembrar peter frampton, ou outro som afim de comercial de cigarros (ou de telefones celulares? o que têm em comum as propagandas subliminares de l*cky str*ke & as propagandas superliminares de m*t*r*la? por que tanta gente tem me interpelado com expressões de inconformismo por eu não possuir celular?). mas, ah, quando o fanatismo afana a fé, o mar de gente se abre-e-fecha para a passagem dos fiéis. aí, a bola de neve É fogo e o palco de roqueiro É o púlpito do pastor. a diferença mais gritante parece ser mesmo de nível alcoólico no sangue, ou seja, do(s) alucinógenos utilizados para mobilizar a fé da multidão. dependendo única e exclusivamente de tu, fiel, franz ferdinand & art brut & caetano (& moreno) veloso & blablablá também podem ser fogo (fátuo).

quinta-feira, setembro 14, 2006

não sou eu quem me navega...

na estréia de sua temporada no novo teatro fecap, na noite de 14 de setembro de 2006, paulinho da viola evocou emocionalmente um samba antigo de cartola, "fiz por você o que pude", narrando a mitologia por trás da linda canção.

segundo ele, cartola a compôs em homenagem à escola de samba do coração, após um duradouro período de ostracismo (foi reencontrado pelo jornalista stanislaw ponte preta, lavando carros em ipanema, como a história sabe e registra) e de um convite para voltar a trabalhar em sua estação primeira de mangueira.

o que acontece, como lembrou paulinho, é que na letra de "fiz por você o que pude" cartola cometeu (ato falho?) um erro de linguagem, um erro de português (um "erro" de lavador de carros dentro dum mundão de doutores?). trocou, explico eu (paulinho, malicioso, não explicou), o verbo "premia" pelo verbo "premeia", que assim ficou capenga, mas rimando sublimemente com "veia" e "semeia". leia, leia, leia aí a letra do samba de cartola:

fiz por você o que pude
(cartola)

todo o tempo que eu viver
só me fascina você, mangueira
guerreei na juventude
fiz por você o que pude, mangueira
continuam nossas lutas
podam-se os galhos, colhem-se as frutas
e outra vez se semeia
e no fim desse labor
surge outro compositor
com o mesmo sangue na veia

sonhava desde menino
tinha o desejo felino
de contar toda a tua história
este sonho realizei
um dia a lira empunhei
e cantei todas tuas glórias
perdoa-me a comparação
mas fiz uma transfusão
eis que jesus me premeia
surge outro compositor
jovem de grande valor
com o mesmo sangue na veia

pois cartola compôs a declaração de desistência (desistência da burocracia mangueirense, veja bem). e, segundo paulinho-semente, os críticos furibundos apressaram-se em apontar o erro semântico no samba do poeta-&-lavador-de-carros. aposto eu que o fizeram de modo sibilino, belicoso, demofóbico, gotejante de veneno. cartola, contou paulinho, ficou desgostoso e nunca mais cantou esse que, para ele, é um de seus mais lindos sambas. "eu, sempre que posso, canto", emendou o príncipe portelense, a esta altura também já apartado de sua escola de coração.

escrevo este tópico para sublinhar a genialidade e a generosidade desse pequeno gesto de paulinho, de resgatar do passado não só cartola, não só "fiz por você o que pude", mas também o "erro" em "fiz por você o que pude", o "erro" em cartola, o "erro", os erros. poucos teriam coragem de louvar o "erro" nestes avançadísismos anos da graça dos 2000, pois não? sussurro o que certamente sussurrariam baden powell & vinicius de moraes: a bênção, paulinho da viola.

mas não é só isso, ainda. o que eu mais queria comentar, na verdade, é o que ainda não comentei. a crer nas memórias de paulinho (& do samba, & do brasil, & deste mundão de doutores-e-lavadores-de-carros), "fiz por você o que pude" causou horror no ato de seu lançamento, e o horror que causou se concentrou no poder de ferir feito punhal que tinha a palavrinha "premeia". certo?

errado. aposto que a palavrinha "premeia" e, ao redor dela, o "erro" de linguagem de mestre cartola, não eram o punhal, mas sim a cortina de fumaça que turvava a cena que estava deveras acontecendo.

o horror que "fiz por você o que pude" poderia causar, eu aposto, não está concentrado em "premeia". espalha-se difuso pelo poema inteiro. é o conteúdo, não é a forma. é o conceito, não a filigrana. é a faísca de gênio, não o esgar de mediocridade. é a poesia bruta contida no gesto de cartola de aceitar (com resignação? sem resignação?) a dança das gerações [desilusão... desilusão, danço eu, dança você...], a continuidade do sonho humano por sobre o envelhecimento e a morte dos indivíduos.

"guerreei na juventude", "e no fim desse labor surge outro compositor com o mesmo sangue na veia", exclama o poeta, prenhe de doçura & amargor. "fiz uma transfusão, eis que jesus me premeia: surge outro compositor, jovem de grande valor, com o mesmo sangue na veia", morde-e-assopra o gênio altivo no mesmo instante em que se curva, modesto, ao "sambista mais novo" [alô, édson & aloísio, na voz potente de alcione, por sobre a dança das gerações: "não deixe o samba morrer!, não deixe o samba acabar!"].

e a partícula "premeia" levaria sobre si toda a carga da fama ifame? quem aí teria/teve/tem/terá a coragem de rejeitar o todo pela parte?, praguejar pelo apodrecimento da colheita por pejo & nojo à temporã?, colher o fruto e ceifar a machadadas a árvore que o produziu?, nutrir-se de samba e incendiar o pomar?

cartola-da-viola não o faria, não o fez, não o faz, não o fará. ele ama o pomar, dentro dele a árvore, nela os frutos todos, entre eles também a linda fruta proibida que por azar-e-sorte premeiou-se em nascer mais (ou menos) desajeitadinha [todos juntos reunidos numa pessoa só?, ó, dr. arnaldo(baptista)-estamira?].

e é isso o que paulinho da viola tem a nos declarar, inseguro, neste momento de contagem regressiva, poucos minutos antes de o brasil eleger a um só tempo o último governante de uma velha linhagem & o primeiro governante de uma próxima linhagem [estamos todos juntos reunidos numa pessoa só?, ó, dr. arnaldo(baptista)-estamira?].

e é isso o que paulinho da viola tem a declarar neste momento em que, hesitante, resgata cartola e se faz cartola e revigora a antiga constatação perplexa de cartola (de todos nós) diante da rapidez com que a vida corre.

e é isso o que paulinho da viola tem a retificar em cartola, decidido, (quase) no mesmo momento em que sai do palco com seus músicos e deixa o holofote aberto para o solo de um único violonista restante, e ele é seu filho (e neto de césar faria, e sobrinho de raphael rabello) joão rabello, jovem de grande valor com o mesmo sangue na veia bem(n)-brasileira.

@

[p.s. do outro lado do espelho, no espírito do tempo: o vizinho blogueiro nelson de sá também tratou hoje do tema prole, no tópico "foi-se o tempo", tratando de caetano & filhos, de gil & filhos, de marilena chaui & ferréz etc. e tal. é a torrente do presente (alô, madamada!), que se espalha agora pelo ar comum que respiramos.

o nelson falou de proles, mas se esqueceu da prole dele mesmo - citou ferréz & os novos, mas não citou esta janelinha aqui, que tem aberto janela privilegiada para "intelectuais orgânicos" de "sangue 'novo'" como ferréz, seu jorge, mv bill, marcelo yuka, maria alice vergueiro (& seus netinhos), gog, estamira, ceguinhas de campina grande etc. etc. etc.

pois o nelson não cita nem conta, mas eu vou contar e citar: quando editor da "ilustrada", foi nelson de sá quem me obrigou (não sem certos traços autoritários) a prestar atenção no rap, no discurso do rap, na importância política do rap, no avanço que o rap trazia. foi só aí, em plena "folha de s.paulo", que aprendi, atrasadíssimo (e nunca livre de certos excessos autoritários), que um fenômeno crucial acontecia bem diante do meu nariz e eu nem sequer percebia. fui a campo, em tempo, correr atrás do prejuízo, a pedido(-exigência) do "chefe"...

enfim... posso não ser exatamente prole do de sá, mas certamente sou uma das proles de seu faro sensível diante da revolução que o rap (e o funk carioca, e o tecnobrega paraense, não sejamos bairristas, né?) significa dentro da música popular brasileira. obrigado, mestre-companheiro nelson!]

segunda-feira, setembro 11, 2006

ferréz: manual prático dos afetos

o que o escritor e rapper "made in capão redondo" ferréz tem a dizer sobre estes surtos de violência que nos vêm em ondas, como o mar? não tem nada a dizer além do que já vem dizendo há anos - e que acha que ninguém quis nunca ouvir, ouve só:

"quando eu fiz 'capão pecado', tem um trecho que fala assim: "o futuro é 'mad max', esteja preparado. dias de chuva, bairro entrincheirado". eu já falava lá. a gente não fala mais no pcc, porque a gente já falou tanto de guerra social, há tanto tempo, e nunca ninguém levou a sério. se for ver uma reportagem minha e do paulo lins na 'folha' em 2000, a gente falava o quê? 'ou pela arte ou pelo terror.' e hoje a gente está vendo o quê? o terror. e isso é um pequeno nicho do que vai acontecer ainda".

ouvidos poucos, ouvidos moucos... se você não ouviu QUANDO ferréz falava, que tal ouvir agora, no ato, ENQUANTO ferréz está falando?, para não ter que dizer, daqui a cinco anos, atarantado(a), que "ah, ele falou, mas eu não estava ouvindo, então, como não ouvia, não fiz nada para dar minha cota na resolução dessa encrencONA, que também era e é e será minha"?...

pois ferréz fala agora, e sua fala guarda momentos de alta contundência, e guarda momentos de alta poesia - eu sei que você vai saber encontrar seus próprios momentos ali dentro da fala dele.

[ao fim da entrevista transcrita, segue como bônus a reportagem que dela resultou, inserida à "carta capital" 407, de 23 de agosto de 2006. porque, apesar de tudo, como sempre diz um certo cantor-ministro, o melhor lugar do mundo é aqui, e agora.]


pedro alexandre sanches - além de livro, cd e o trabalho na sua loja, 1dasul, agora você estréia também em história em quadrinhos. é ferréz multimídia?

ferréz - é que sou muito produtivo, tá ligado? ao mesmo tempo que sou, fico com receio de lançar um monte de coisas. mas não tem jeito, você tem que fazer e tem que lançar. já tinha evitado fazer lançamento dos dois últimos livros que fiz, do "amanhecer esmeralda" e do "literatura marginal", que organizei. não fiz lançamentos justamente para não chamar atenção.

pas - por que não chamar atenção?

f - não sei, eu não gosto de festa. sou chato pra caralho. não gosto de lançamento, não gosto de ir no lançamento dos outros, não gosto de fazer o meu. evito o máximo possível. eu gosto de fazer o trabalho, de realizar, ver pronto, ver prensado. mas tem coisa que tem que fazer, então não tem jeito.

pas - vai acontecer lançamento do "ninguém é inocente em são paulo"?

f - vai. vai ser lançado lá na livraria cultura, no dia 31 [de agosto, agora já passou].

pas - é um sacrifício para você?

f - é. em lançamento você vê muita face do ser humano de que você não gosta. todo mundo é "parabéns", "parabéns", mas as pessoas que estão no convívio com você mesmo é que são verdadeiras, o resto é meio esquisito. mas faz parte também, né?

pas - como aconteceu sua ligação com história em quadrinhos?

f - a primeira vez que apareci numa revista foi na sessão de cartas de uma história em quadrinhos. eu mandava cartas para várias publicações. sempre li muito quadrinho, foi a primeira coisa que li. até hoje eu leio bastante. e chegou uma época que juntou uma coisa com a outra. fui à revista "rap brasil" fazer uma matéria de rap, convidado para dar uma entrevista, e tinha um cara que estava desenhando lá, o alexandre de mayo. quando eu era pequeno, sempre quis ser desenhista, nunca quis ser escritor. era meu sonho, tanto que eu fazia fanzine e desenhava, desenhava história em quadrinhos também. só que eu não era bom [ri], né? depois de muito tempo rodrigo fonseca, da editora pixel, me ligou e disse que queria elaborar uma revista em quadrinhos comigo, que eu podia convidar os desenhistas que quisesse e tal. e pensei em chamar o alexandre, e em a gente fazer uma parada que abrangesse uns moleques que não acham nada na banca que tenha a ver com eles. eu também fui educado com gibi americano e europeu. quadrinho nacional é muito fraco. os que existem são bons, mas são pouquíssimos os que chegam.

pas - seu plano é continuar nessa linha?

f - não sei. eu não tenho nunca nenhum plano. sei que vou fazer três revistas, uma trilogia. já escrevi o roteiro da segunda parte, vai chamar "central do crime original". e a última vai sair antes de dezembro, também. mas eu sempre me realizo quando faço um trampo só, quis fazer um livro infantil e fiz só um. queria agradar um público, os moleques sempre me cobravam, "você nunca fez um livro para nós, tio". fiz, está realizado, não tenho vontade de fazer outro. é que nem cd, fiz um em 2003 e até hoje não fiz outro.

pas - não está produzindo ou planejando outro?

f - estou fazendo um com um grupo que montei, mas aí é um trampo diferente. o grupo se chama tref, que é como a gente fala, três famílias, três favelas. montei o grupo para fazer umas composições e poder, sei lá, dividir a parceria de escrever com outros caras. é legal.

pas - quadrinho é mais fácil de fazer que livro, disco etc.?

f - cara, "os inimigos não mandam flores" é um conto meu, aí fiz um especial do "fantástico" com ele, depois estava pensando pôr no livro, mas era legal fazer uma coisa separada. eu tinha divulgado ele, pus pela primeira vez na revista "literatura marginal", que editei para a "caros amigos". esse é um conto com que os moleques aqui do capão redondo chaparam muito, sempre perguntavam se ia virar livro. achei que era uma pena deixar ele morrer, aí resolvi fazer o livrinho em quadrinhos com ele. quer dizer, os moleques meio que reivindicaram.

pas - você fala, num dos textos de apresentação de "ninguém é inocente em são paulo", sobre a dificuldade de montar uma história nova, que acabou o conduzindo a publicar um livro de contos. é isso mesmo?

f - é sobre a dificuldade de fazer romance, né? aqueles contos são como se fossem mini-romances, minitentativas de fazer um romance.

pas - mas surgiram pela dificuldade de imaginar um novo romance?

f - não, porque são histórias que tinham que se acabar mais rapidamente, é uma transa mais rapidinha que uma prolongada. a história do conto era de duas ou três páginas só, bastava para mim contar aquilo em duas ou três do que fazer todo um romance com ela. entre um romance e outro, os contos vão brotando. tem idéias que não dá para pôr no romance, não cabem no personagem. o "manual prático do ódio" [seu livro de 2003] tinha, sei lá, quase 200 personagens. toda história que quero pôr eu vou pondo. aí vejo uma história de violência contra a mulher, falo "puta, não fiz uma mina que sofre isso no livro, tinha que pôr". porque tudo representa a periferia, né? a periferia é um complexo de um monte de atitudes. se você não representa um professor homossexual, você vai numa escola e o professor diz "porra, tá vendo?, você não fala de homossexual". pô, então vamos falar de homossexual. aí você não fala do negro, ou fala, mas não fala da mulher negra, que é a que mais sofre, porque nenhum homem negro quer ela também. é uma complexidade de coisas, tento pôr um pouquinho de cada.

pas - tenta porque tem necessidade de pôr, ou porque se sente cobrado?

f - porque tenho vontade, de contar um pouco. as pessoas não têm idéia do que é, o cara não sabe o que é ser desempregado até ele ser. fiz um conto no livro novo, que saiu primeiro na itália, por uma editora lá, que se chama "o pão doce", e é baseado no desemprego. o cara não agüenta mais trampar, sai da firma e, mano, ele só quer uma cesta básica. ninguém imagina como é bom ter a cesta básica, e a ironia é esta, que logo o mercado não dá cesta básica para ele.

tem histórias que me incomodam. o "manual prático do ódio" era um conto, que até fiz para uma coletânea da europa. aí, depois que fiz, ele me incomodava. achava que a história não estava boa, que o final tinha que mudar. então ia mexendo, mexendo, e 20 páginas viraram 200 e 300 e virou um romance. mas tem histórias que acho que não têm um gás para virar um romance. uma coisa que sempre digo para o arnaldo antunes é que aprendi com os trabalhos dele a reciclar idéia, que é algo que eu não fazia no meu trabalho antes. hoje em dia eu faço. "os inimigos não mandam flores" era uma letra de música que virou uma crônica que saiu na revista, depois virou um especial para o "fantástico", agora virou uma história em quadrinhos. e a cada vez que vem, vem com mais argumento, mais força, mais começo, mais meio e mais fim. é legal, porque muitas vezes você tem uma idéia e não temperou, ela sai assim meio crua. é algo que acho que os escritores têm que tomar cuidado, porque a gente vende densidade. a gente vende coisa densa, coisa fina não interessa a ninguém. se vou falar de um jornalista superficialmente, não dá, tem que falar de forma densa.

pas - o ônibus é uma imagem bastante presente no livro de contos, primeiro como metáfora para a viagem dos que ingressaram no crime e não vão voltar mais, depois na comparação da fila do ônibus com uma fila de judeus num campo de concentração. pode falar sobre essas imagens?

f - ônibus é um barato louco, né? o cara que sempre andou abre a janela ali e viaja, né? é mais reflexivo. o carro, por ter conforto..., nunca vi um cara parar o carro para escrever, porque teve uma idéia. entro no carro e não tenho porra de idéia nenhuma. só tenho idéia quando saio do carro. mas ônibus, não, ônibus é foda. você entra, ouve um cochicho daqui, outro dali. você vê a paisagem de uma forma privilegiada, porque o ônibus é alto. então não sei, tem uma química nele. se eu entrar no ônibus, tenho que ter alguma coisa para escrever. agora tenho um celular que dá para escrever, fico escrevendo nele. o ônibus me dá muita idéia, de clima... vejo um cara de muleta no ônibus, falo "caralho, essa porra é uma guerra mesmo, o cara de muleta, outro cego". o bagulho é tipo uma trincheira, o ônibus me dá muita inspiração. tenho amigos que são mais conhecidos no rap ou na música em geral, mpb, que não andam de ônibus nem fodendo. o cara paga para não andar de ônibus. eu, não, mano, se eu puder ir de ônibus, vou de busão. de dez em dez dias, tenho que andar de ônibus um dia, nem se não for para escrever, mas para ir para um lugar e voltar. não sei por que, também, mas...

pas - você costuma ler em ônibus?

f - quando eu trabalhava para fora e ia de ônibus, eu lia bastante no ônibus. lia em pé, sentado. ultimamente não levo, porque se levar vou querer ler o livro todo. então deixo para ler em casa, e no ônibus eu vou andar, vou ver as coisas. também, depois que você fica um pouco conhecido, é chato pra caramba, porque todo mundo fica te pedindo o livro, pensando que é o seu. você fica "não, este não é o meu", "é de quem?", "é de um cara, um alemão", "é amigo seu?, então arruma um para mim?". todo mundo pede o livro, é foda. ou então o cara quer anotar o nome do livro, você não fica em paz. às vezes dou azar, vou pegar ônibus e chega sempre aquele cara mais chato, "eu te vi na mtv, da hora!". aí não dá para aproveitar mais nada.

pas - esse assédio é algo que incomoda você?

f - ah, é. eu gosto quando vejo que o cara realmente... mas sempre tem as conversas paralelas, o cara está dizendo uma coisa e vai chegar em outra: "gosto muito da música, e tal, inclusive eu tenho um grupo de rap...". é foda isso, mas também faz parte, porque a gente, também... eu sempre prometi que, escrevendo, eu nunca ia ficar num pedestal. escritor tem essa fama de ficar numa torre de marfim, de todo mundo ficar lá embaixo olhando ele. acho importante você estar transitando, a pessoa estar te vendo. acho muito louco, quando estou na rua, o cara "ó lá, filha, pega autógrafo do menino lá, ele é escritor". é diferente você ter um escritor na rua, acho legal. quando vejo os amigos que escrevem poesia, como sérgio vaz, o cara na rua andando e conversando, é legal, mano, o cara está ali exercendo, não fica só restrito.

pas - então é em parte legal, em parte ruim?

f - é. depende do dia. tem dia que não quero mesmo falar com ninguém. tem dia que escolho para falar justamente as pessoas que não consigo achar. esse negócio de vida intelectual da gente também é chato, porque todo mundo trabalha o dia todo. você fica sozinho, vai falar com quem? você liga, o cara está trabalhando, o outro também. você acaba com os caras desempregados, os caras que roubam... é natural também.

pas - você poderia fazer uma descrição de como está sua vida? mudou muita coisa desde que você começou a lançar livros, não?

f - mudou pra caralho, no respeito. o respeito aumentou, pelas coisas que escrevo, pelas coisas que falo. o espaço aumentou, hoje posso dizer não para um monte de gente. antigamente eu não podia dizer não nem fodendo. o cara falava "tem r$ 50 aqui para você falar", eu tinha que ir. hoje já não preciso.
não tenho uma vida que eu gaste muito, procurei não morar em condomínio fechado, não ter carro caro, não ter coisas caras, para não ter que me matar para ter esse padrão. senão é como mano brown falou no dvd, você tem que trabalhar para pagar as coisas de depois que você ficou famoso. eu não tenho esse padrão de vida. em vez de ter um carro de r$ 20 mil, tenho um de r$ 8 mil e consigo manter, o pára-choque é r$ 50. os caras criam um padrão que não podem manter. na minha casa aqui, fui eu que envernizei todas as janelas, pintei. como já trabalhei num montão de coisa, vou cuidando da casa, e fica mais barato você administrar. coloquei a iluminação junto com um amigo, já trabalhei em tanta coisa que sei fazer uma porrada de coisa.

pas - você falou dos intelectuais que trabalham com outras coisas para sobreviver, é o seu caso também? como está estruturada sua vida hoje?

f - se eu deixar de trabalhar na 1dasul, só compro o básico, não vivo. então tenho que trabalhar na loja e tenho que escrever. tenho que fazer as duas coisas.

pas - onde fica sua loja?

f - ela fica no centro do capão redondo. meu trabalho é administrar. minha mulher trabalha lá vendendo as roupas junto com um amigo, o davi, e eu trabalho criando as roupas, confeccionando, administrando as mercadorias que vão entrar e sair da loja, atendendo os grupos de hip-hop que vão lá deixar cd, e fazendo os eventos culturais que a gente faz.

pas - as roupas são confeccionadas na loja mesmo?

f - não, é fora. marca é assim, você tem a loja e terceiriza tudo. vou na mulher da touca, na mulher da camiseta, no cara do silkscreen, o dia todo zanzando de lá para cá resolvendo um montão de coisa. dividi minha vida assim: tem dias que tiro para resolver coisas da loja, tiro seis dias para trabalhar na loja e faço tudo, faço camiseta, boné, tudo que tenho que fazer. aí, pronto, resolvi, naquele mês já trabalhei aqueles seis dias, aí vou seis ou dez dias para trabalhar como escritor. aí fico nas minhas coisas de escritor, vou ler, vou no meu arquivo pessoal. depois tiro mais seis dias para fazer os eventos, os shows, as palestras que vou dar. divido meu tempo meio assim, é foda.

pas - mas está dando certo, você está progredindo, não?

f - está dando certo. até hoje nunca prometi uma coisa que não entreguei. um cara do "estadão" ligou querendo um texto, falei que não ia fazer porque é um texto que não me agrada. tem coisa que não quero fazer e não falo não, outras dá para fazer, me aperto um pouco mais, mas entrego no prazo, para não dar mancada. estou terminando uma peça de teatro agora, estou reescrevendo "lisístrata". terminei no prazo, porque não gosto de enrolar ninguém.

pas - vai entrar em cartaz onde, e quando?

f - vai entrar este ano, só não sei onde direito.

pas - é na comunidade?

f - não, é um pessoal que já mexe com teatro. reescrevi a peça toda, ficou louca, estilo favela.

pas - um dos integrantes do grupo negredo diz, no dvd, que para organizar os shows e tudo mais, é preciso continuar trabalhando em outras coisas para sobreviver, fazendo bico. você encontrou uma fórmula mais estruturada que essa?

f - é... por a gente conhecer o sistema bem, por ter essa coisa de crítica do sistema e da corporação, você também trabalha de forma corporativa, você aprende o método. tudo no sistema capitalista é uma fórmula, tá ligado? ouvi isso de jornalista que hoje é rico, milionário, ele disse "mano, é tudo uma fórmula mesmo, você descobre um caminho, persiste ali, vai abrindo suas coisas, vai indo". acho que 10% é o talento, e 90% é trabalho. tem que trabalhar muito, tem que fazer o corre mesmo. eu ia entregar texto no lugar, não mandava e-mail, ia lá para ver a cara das pessoas para depois elas lembrarem de mim e me indicarem em outro trabalho. então participei de um monte de coisa, nos cinco primeiros anos que eu escrevia eu trabalhava em empresa, de balconista e tudo. eu nunca me iludi, já cheguei a ganhar prêmio da associação paulista dos críticos de arte e no outro dia eu estava trampando vendendo livro e camiseta na rua para poder inteirar o dinheiro da conta. o erro dos caras é pensar que já deu certo. está dando. um amigo falou uma vez que eu não fiquei no "capão pecado" [seu primeiro livro, lançado em 2000], só, porque não parei um dia desde que lancei aquele livro. nem para comemorar eu parei, ele disse. sempre foi um corre mesmo.

pas - qual é exatamente a atuação da 1dasul no dvd "100% favela"? você é um dos produtores?

f - esse projeto foi idéia da sophia bisilliat, que é filha da maureen bisilliat, uma fotógrafa muito conhecida, curadora de museu. sophia viu a gente fazendo a festa na favela e achou muito legal. o negredo realizava a festa, esses quatro meninos que cantam rap, e eu ajudava patrocinando panfleto, ajudava no palco. tinha uma época que políticos bancavam a festa, mas a gente tinha que pôr os políticos em cima do palco, e a comunidade falava "pô, fica pondo esses caras!". então tá bom, a gente cobra entrada e não põe esses caras mais. e a gente optou por pedir alimento, aí doa para igreja, a igreja ajuda a gente a organizar também, ou seja, a comunidade toda participa.

quem organizava primeiro era o negredo, os meninos, na comunidade deles. aí sophia veio com a idéia de filmar e fazer um dvd, ela deu idéia de um documentário. falei "pô, sophia, esse bagulho de business não acho legal". ela falou de fazer um documentário mostrando a gente juntando dinheiro, correndo, fazendo todo o processo. pensei "é, pode ser". aí não tinha dinheiro para fazer, e a mãe dela decidiu emprestar o dinheiro para nós. veio aqui na favela para emprestar o dinheiro, tem que ter uma coragem absurda, porque ficou caríssimo o dvd.

pas - pode falar quanto?

f - ah, inicialmente a gente gastou r$ 50 mil, foi o que maureen logo já emprestou. a gente não teve muito mais gasto que isso porque muito amigo veio participar, por amizade. a comunidade ajudou bastante.

pas - com esse dinheiro vocês montaram palco e toda a estrutura para o show?

f - foi. aí conseguimos recuperar na distribuição, com a distribuidora, atração, e já conseguimos pagar a maureen. ficamos aliviados. aí os caras falam que somos mais xaropes ainda, porque o rap é todo para o projeto do negredo, periferia ativa. quando o cara faz um projeto desses ele fala "puta, agora vai vir minha cota". a gente já pensou doar tudo para o periferia ativa, porque a gente sabe que lá na favela precisa de muita coisa. então estamos fazendo a biblioteca lá e quer ampliar para virar um centro cultural.

pas - mas por que a 1dasul tem o nome lá na co-produção, qual é exatamente a participação?

f - então, tem artistas aí que só vêm por causa de mim, tá ligado? dentro do rap não vale o dinheiro, vale a moral que você tem. não adianta falar que vai chamar os racionais e vai pagar r$ 100 mil, os caras não vão. a tim queria chamar os racionais, não foram, foda-se, já era, não vão mesmo, pode pagar o dobro que também não vão. tem artistas como gog e realidade cruel que vieram mais por causa do meu trampo, mais em respeito à 1dasul e ao ferréz mesmo que em respeito a outras coisas. e aí teve os panfletos que a gente bancou, a coisa de organizar, de arrumar hotel para os artistas ficarem, de produzir mesmo a festa. eu produzi junto com eles. é claro que trabalhei bem menos que o negredo e a sophia, que tramparam mais que todo mundo. mas cada um foi muito importante, e sem um de nós não aconteceria o evento. na hora de negociar com a gravadora fui eu que fui, porque o wilson souto jr. [diretor da atração, ex-sócio do legendário lira paulistana] é mais amigo meu, me respeita muito mais. são pequenas coisas que fazem a maior diferença na hora. a gente mostrou um minuto do dvd para o wilson, ele disse "está fechado, só pela idéia do projeto, de ter uma biblioteca envolvida, vocês ensinando a fazer a festa".

pas - como o negredo se tornou o núcleo de produção disso tudo? são caras novos, não muito conhecidos, não?

f - são caras novos, são um exemplo de vida. os caras não bebem, não fumam, são caras que para nós são muito raros. foi por isso que a gente se juntou com eles, por isso o brown se aproximou. foi muito por acaso, e ao mesmo tempo foi uma coisa cósmica. é uma puta humilhação para os outros grupos, porque o negredo é um grupo pequeno, e a gente fez o dvd que os outros grupos nunca fizeram, nem um produtor grande faz.

pas - pensei que mano brown podia ser um tipo de patrocinador deles, não é o caso?

f - não, tanto que saiu pela atração. fui eu que levei eles até lá.

pas - eles moram naquela comunidade mesmo, onde acontece o show?

f - moram, é pertinho daqui, quatro ruas para cima.

pas - já há uma nova edição do festival programada?

f - já, para 9 de setembro agora [já passou, e eu perdi. e você, perdeu também?]. vai ter chico césar, racionais...

pas - você tem se aproximado mais dos racionais?

f - dos racionais não posso falar, posso falar do brown. ele cola aqui na favela com a gente, por causa desse projeto. a gente está mais próximo, debatendo idéias. quando vê uma matéria minha ele já comenta, já tem uma proximidade maior.

pas - na discussão que aparece no dvd, os rapazes do negredo discutem de igual para igual com ele, não?

f - acho legal isso, você vê que é uma coisa descontraída, um bagulho de amizade mesmo, e de ideologia também. acaba um somando na posição do outro. acho que o dvd vai servir para mostrar que a gente está aí para debater, que tem que falar mesmo. tenho o maior orgulho desse dvd, deu um puta trampo, a gente fez a festa, ficou 11 meses trampando depois que aconteceu a festa, mais seis meses antes. são quase dois anos trabalhando na mesma coisa.

pas - brown já havia participado antes?

f - já, ele já tinha cantado. nos extras tem um pedaço do show que ele fez um ano antes, ele cantando de dia. aí nesse a gente pediu para ele para participar dos extras, achamos mais legal ele conversando.

pas - vocês conversam muito, ali, sobre cobrança, tanto de pessoas de fora da comunidade sobre o hip-hop, como também a cobrança de dentro, do cara que acha que o rapper progrediu na vida e tem obrigação de ajudá-lo. você também tem progredido, qual é sua opinião sobre isso?

f - acho que tem que ter um limite. tem muita cobrança em cima de nós, porque a gente fala do assunto. a gente fala, e o pessoal cobra. mas, pô, tem milhares de pessoas que ganham dinheiro com música, com arte ou extorquindo os outros e também não fazem nada pela quebrada. a melhor forma de evoluir é evoluir recebendo elogio na rua, de que você não mudou. eu procuro sempre tratar as pessoas e ser tratado como se estivesse dentro de um barraco de madeira do mesmo jeito. veio outro dia aqui o técnico da máquina de fliperama, a gente ficou tomando café, ele ficou jogando, a gente apostou. ele disse "caralho, nunca fui na casa de ninguém arrumar uma máquina dessa que a gente ficou trocando idéia". é o tratamento dos outros, eu não acho natural o cara que está lá fora, eu não gosto [refere-se a seu mauro, motorista da "carta capital"]. se ele trabalhasse comigo, não ficava. quando é pessoa íntima minha, como arnaldo antunes, falo "não, chama o cara para dentro". você vai falar numa revolução e o cara está lá fora, sabe?, também faz parte. tem muita coisa que me incomoda, que não vejo do jeito que as pessoas vêem. quando fui para a feira de paraty, ficava todo mundo assim "nossa, aqui é um antro de escritores, que lindo", e aí eu via os índios no canto pedindo esmola. eu não ficava encantado porque estava vendo escritor, eu ficava triste porque estava vendo os índios pedindo esmola sentados nas ruas que foram construídas pelos escravos. é o mesmo escravo que era bisavô da mulher que me serviu leite dentro do hotel, da pousada do sandy. porra, a única vez que vi negro lá foi na hora que a mulher veio me servir leite e café. eu não fico normal, porque eu conheço a história, lido com a história do outro lado. é foda, tem muita coisa...

é como quando fui ver "cidade de deus", eu até comentei na "folha", o pessoal sai falando "que legal, dadinho é foda", e eu "caralho, mano, os caras vêem o bagulho como diversão, mas não tem nada a ver, não é isso". é o jeito que a gente vê a vida, é chato também ver desse jeito. mas fazer o quê, se a gente já nasceu assim com a visão meio para a guerra?

pas - parece um conflito sério, como se você estivesse errado porque progrediu, o que vai ouvir tanto de um cara como eu que chego aqui e vou perguntar por que você está morando numa casa legal, quanto de um cara da própria comunidade.

f - é. eu achei legal, porque o pessoal de mídia, jornal e livro não julgou. eles vêm aqui e falam que conhecem a batalha, que tem que ter o melhor. o nome do disco que vou lançar com o tref é "de sofrimento já basta meu passado". não fiz voto para ser franciscano. não tem como convencer o moleque da favela, ele sem dente e vai ver um traficante com relógio de ouro. então, mano, você tem que estar num patamar em que o cara possa te respeitar também. a gente não pode se iludir, eu não posso falar mal da nike e fazer uma camisa inferior às da nike. tenho que fazer uma que seja bonita, tem que ter um padrão. então acho que tenho que ter um padrão para viver também. eu não tinha como escrever, mas eu escrevia. a minha casa era em frente ao córrego, você lembra. a gente ia dormir à noite e os ratos estavam andando no forro, meus livros sendo comidos pelos ratos. tive que mudar para ir para uma casa um pouco melhor para poder escrever melhor, viver melhor.

pas - e, se você não fosse da periferia, ninguém ia lhe cobrar isso.

f - ninguém ia cobrar nada. e tem mais, é pouco, pelo tanto de livro que eu vendi, o tanto de palestra que já fiz. qualquer cara de classe média estaria muito melhor. tem coisas que a gente não faz, já me chamaram para comerciais de televisão que eu não faço, tem revistas que me chamam para escrever e eu não vou. era para ter muito mais. mas é que a gente não faz tudo, acaba triando. mas eu nem explico muito, porque tudo que estou conseguindo não é com dinheiro de escrever, tá ligado? não é cd, dvd, nada, é com dinheiro da 1dasul, de roupa, de fazer bico aqui e ali. se fosse pelos livros, eu não tinha nem uma janela dessas aqui. o livro é muito pouco, não dá para você se manter, não. mas é claro que de uma coisa para outra vai ajudando.

pas - haveria um jeito de essa cobrança parar, de eu não fazer parte disso fazendo esse tipo de pergunta? para você é pior receber essa cobrança de quem não é da periferia ou de quem é da periferia?

f - sabe que daqui não teve nenhuma cobrança? nenhuma. todo cara que entrou na minha cara depois que mudou falou "caralho, parabéns, mano, você merece mais, isso é o começo do que você merece". os caras vêem o corre, os que estão próximos de mim viram. até o cara que veio entregar pizza um dia aqui, que era amigo meu, falou "caralho, você está morando aqui?". "estou." "sabia, moleque, sabia que você ia para um lugar melhor, e daqui a um ano você vai para um melhor ainda." ainda está normal para eles, porque eles estão esperando eu ir embora. desde que lancei o "capão pecado", está todo mundo esperando eu ir embora do capão, a verdade é essa. "quero ver até quando ele vai agüentar." e eu quis comprar uma casa melhor aqui porque não precisa eu mudar daqui. que diferença tem de onde vocês moram? olha que tranqüilidade. não tem. tudo bem que à noite um cara liga um som, a rua enche de moleques jogando bola. mas eu gosto disso também.

pas - é uma idéia disseminada pela sociedade, como se todo mundo quisesse fugir da periferia.

f - cara, sabe por que eu não mudei daqui? porque sou teimoso. a pressão é fodida, tanto dos caras daqui como dos caras de lá. é em mim, no brown, é impressionante. os caras falam: "você tá moscando, meu, você já tinha que ter se envolvido pra lá, o que você está fazendo aqui?". eu falo "mano, eu faço os trampos, estou ganhando meu dinheiro, não preciso ir para lá, não é lá que presta, não. pelo contrário, lá tem mais cara filho da puta que aqui, mano. lá os caras têm oportunidade e ainda são filhos da puta". aí o cara: "não, mano, você é doido, se eu puder eu me jogo, vou para uma goma de responsa e me jogo".

olha, eu tenho exemplos aqui dentro da favela de cara que começou a fazer faculdade e no primeiro ano já se jogou. e aí o cara volta para cá fodido, de busão, mas pagando, "não, eu moro ali perto de moema". aí você vai trocar idéia com ele, o cara diz "eu não consigo nem comprar um arroz, cara, o arroz lá é mais caro, a vida lá é foda, mas eu tenho que ficar lá, porque...". aí a sociedade já vê o cara como vitorioso, a mãe dele... está cheio de cara assim. e eu falo, o que eu tomo de café da manhã a maioria dos caras que mudaram não toma, o cara não consegue nem comer um pão de boa.

pas - muitos, não só aqui na periferia, querem apagar seu passado, não querem lembrar da própria origem.

f - é, o cara quer fazer faculdade e acha que vai ser dono de empresa, que vai gerenciar a empresa do chefe dele. é foda. é que nem o gog fala, por mais que você se esforce isso não foi feito para você. o sistema já separou a parada. é um preço alto.

pas - essa consciência de ficar, e não de fugir, tem aumentado? e, no hip-hop, há a influência do mano brown nessa postura?

f - é, acho que um exemplo vai ficando no outro.

pas - a presença de quem deu certo, entre aspas, no próprio lugar muda tudo, não?

f - eu acho que muda muito. eu vejo o cafu, que nasceu neste bairro aqui. você vê, aqui todo mundo fala do cafu na rua. se ele estivesse aqui, mano, ia ser muito foda. não sei se os caras iam seqüestrar ele, não sei. de repente não. mas todo mundo ficou com a presença dele muito forte aqui. os caras ficam "o cafu morou ali, ó", "ele ia aí", "eu joguei bola com o cafu". o cara tem orgulho, tá ligado? já peguei amigo meu no bar falando "o cara cresceu comigo". eu falei: "caralho, eu tô aqui ainda". e ele "não, eu estava falando de você mesmo", o cara já está falando de você no passado porque ele pensa que você vai vazar. mas é uma pressão muito foda. eu não ia mudar nem da minha casa, apesar dos ratos, mesmo. eu só mudei porque os caras entraram lá para matar um amigo meu, e minha mulher estava sozinha dentro de casa. o cara não achou nem eu nem o amigo, com certeza ele ia matar nós todos.

pas - você também?

f - é, porque aqui é assim. o cara vai pular na sua casa para matar um cara, ele vai matar quem está lá dentro, não vai deixar você ver. quando cheguei em casa estava aquele tumulto, o pessoal da rua falando que entraram dois caras armados, minha mulher sozinha. depois de uma semana, meu amigo foi assassinado, por esses mesmos caras. e a gente nunca descobriu quem eram. então fiquei muito chateado, a casa começou a me lembrar o cara. juntou tudo isso e falei "não, vou mudar de casa", mudei duas ruas para cima, aqui é só duas ruas para baixo daquela outra casa. falei "de bairro eu não mudo também, não".

pas - você nasceu neste bairro mesmo?

f - nasci dentro do distrito capão, só que nasci no bairro velho.

pas - há o receio de ficar mais visado ou exposto por estar numa casa maior?

f - não, aqui os caras dão importância para carro. para casa ninguém liga, mano. se tivesse um carro louco, aí era foda. para casa o cara não liga, eu sou o único cara que gosta de casa. o resto, mano, cara não está nem aí se vai morar num barraco. é claro que ele quer uma casa bonita, maior, mas não é a preferência do cara. aqui, se você quiser chamar atenção, é carro. se lança um audi, aí fodeu, "caralho, você venceu, mano, você é o cara". no, fico com esse golzinho aí todo batido.

pas - você fala da pressão do pessoal daqui, que por eles você já teria saído daqui. mas, se tivesse saído, estariam falando mal de você?

f - não sei, mas a pressão é boa, sabe? tipo "pô, você é um cara tão batalhador, vai ficar aí moscando?, olha a rua aí toda zoada". É por bem [ri], não é por mal, "vai embora daqui". ele acha que o conselho bom que tem para dar é para você sair fora, "sai enquanto é tempo".

pas - mas como será a relação do cafu, por exemplo? ele foi embora, não voltou mais, abandonou?

f - mas é difícil um cara falar mal, nunca ouvi. o cara sempre fala do cafu como... o cara não tem com quem se apegar, mano, ele já fala bem do silvio santos, da hebe, da globo, imagina de um cara daqui que venceu. o cara fez certo, você só tem valor mesmo quando sai. o cara teve valor mais quando saiu.

pas - o que foi a boataria de que você tinha se mudado para o rio? Foi por causa da história do seu amigo assassinado? você foi morar no rio?

f - não, eu fui passar uns dias na casa do paulo lins [autor do livro "cidade de deus"]. é foda, como eu posso explicar? imagina um cara com quem você convive o dia todo. o cara era muito íntimo meu, a gente era irmão mesmo. alex, cantava rap comigo. e depois ele partiu para a vida criminal, né?

pas - ele tinha um grupo?

f - não, ele cantava comigo, no meu disco solo ["determinação", de 2004] ele canta comigo. e depois ele começou a ir para a vida criminal, começou a fazer assalto e tal. assaltava carga, essas coisas. naquelas fotos [aponta para a estante em frente] ele está comigo no lançamento do meu primeiro livro, em 1997, e no lançamento de "cidade de deus". éramos amigos desde pequenos, conheci ele com 6 anos de idade. era tão amigo que tenho o rosto dele desenhado nas minhas costas.

pas - desenhou depois de ele morrer, ou antes?

f - depois. ele fez a tatuagem 1dasul, eu também tinha feito. a gente era muito pela ordem. os caras mataram ele numa covardia, ele não morreu por causa de assalto nem nada. morreu porque gostava de uma mina, e o namorado da mina foi morto um ano antes. e os caras achavam que foi ele. por coincidência, esse cara que era o namorado da mina era o jorge, que fazia festa junto com nós também, ele filmava as festas para nós. ele morreu, e depois o alex morreu. tenho uma foto em que estamos nós três juntos, é um bagulho muito foda. mas é aquela coisa que periferia tem, se mata e se morre de graça aqui dentro.

pas - ou seja, ele nem morreu diretamente por causa do crime?

f - não, não foi por causa do crime em nada. o que me deixa mais fodido é isso, se fosse por causa de crime eu já tinha entendido, apesar de que jamais se entende a morte de um amigo. mas se falassem que o cara foi baleado porque foi roubar, aí eu entendia. o cara morreu numa coisa idiota. muita gente aqui morre ou mata de forma muito idiota, por ciúme, por... e, quando acontece isso, o sistema conseguiu, o sistema venceu. eu falo no cd novo: "tudo eles podem, furar e destruir/ mas a amizade ninguém mata assim". nisso o sistema vence, porque o sistema cria uma paranóia, joga você num lugar pobre, sem expectativa de vida, e você começa a se comer ali. isso é o mais foda, mano.

pas - quando acontece uma morte parecida com essas no asfalto, vira manchete de jornal.

f - vira, richthofen está todo dia aí, ó. depois do caso da richthofen, imagine que mais de 2.000, 3.000 moleques de periferia já morreram, mano, e ainda o negócio está passando. naqueles atentados lá do pcc morreram 400 e poucas pessoas, como se fosse nada. são que pessoas? entregador de pizza, mecânico, operador de posto de gasolina, então não tem importância, né?

pas - mas, então, você foi passar uns dias no rio para...

f - fui nessa época. mas depois, quando aconteceu aquele negócio do pcc, aí já fui para outro lugar, fui tirar mais uma semana... só vou em situação extrema [ri], quando está muito... e mais por causa de meu pai e minha mãe, que ficaram "não, tá todo mundo falando do seu nome aí, ninguém conhece você e está falando já". falei "é, então está demais, né?", porque a gente não tem noção, né?

pas - mas estava todo mundo falando, como assim?

f - porque escrevi aquele texto para a internet, em que pedi para o pessoal de periferia não sair à noite porque os policiais estavam revidando. aquilo foi mal interpretado, depois dei entrevista para o site "carta maior" e aí fodeu tudo, porque os policiais acharam que eu estava falando mal deles. na verdade eu estava falando nem do pcc, nem da polícia, estava falando do cara da periferia que estava se fodendo por causa dos dois lados, entendeu? aí danou-se tudo, sofri ameaça de tudo que é lado, ficou todo mundo pesando.

pas - ameaça de que tipo?

f - recebi mais de 90 e-mails de ameaça de cara falando que era policial. foi cara me procurar em lugares que eu freqüentava falando que era policial, cara querendo conversar comigo. ficou um clima totalmente esquisito, um comentário. e aqui no bairro é assim: quando começa o comentário, alguma bosta acontece. conversa mata um. conversa não paga conta, mas mata um. muita conversa para cima e para baixo não presta.

pas - mas então foi entendido que você estivesse criticando, e aí os policiais ficaram em cima de você? na imprensa ficou muito ligado, de que "por causa da onda de ataques do pcc o ferréz foi embora de são paulo".

f - então, os caras viajam também. não foi por causa do ataque em si, foi por causa das ameaças. o bagulho estava tumultuado. e aí o que acontece? eu até falei isso para o "estadão" outro dia, todo repórter não conhece ninguém de periferia. então ele vê meu nome, o escritor ferréz é lá do capão, "não consigo falar com o brown, vou falar com ele mesmo". aí o cara liga para mim, e aí tudo é eu, mano. se eu deixasse, se eu fosse responder todas as matérias, eu já era porta-voz do pcc, mano.

pas - uma situação bastante difícil para você...

f - é, eu não tenho nada a ver com criminalidade, entendeu? mas todo mundo me liga para saber do pcc. e eu não conheço ninguém do pc, o pior é isso. se eu conhecesse alguém, eu até falava, mas eu não conheço ninguém, mano. e o cara não anda com uma carteirinha escrito "pcc". então é complicado.

pas - na verdade, esse é mais um sinal de como é precária a relação entre a periferia e o centro.

f - é. isso é uma puta coisa provando que não tem ligação nenhuma. e que ninguém liga, porque quando a gente faz uma festa aqui não vem nenhum repórter. Vvcê acredita que no festival não veio nenhum repórter?

pas - eu acredito, mas, por outro lado eu, por exemplo, não fiquei nem sabendo. eu deveria ir atrás, e também não sei muito como.

f - é, você não ficou sabendo, mas a gente divulgou. nem a "caros amigos" [revista de que ferréz foi colaborador fixo até há pouco] mandou um repórter. mandou numa outra festa, publicou a matéria no site, nem na revista foi. ninguém liga, mano, ninguém está nem aí. é dentro de uma favela? então foda-se. é muito triste isso aí, tá ligado?, porque é uma coisa que faz a maior diferença aqui. movimenta as pessoas para o evento, faz gente trabalhar, gera emprego, as pessoas montam barraca com o maior cuidado. depois você vê que não junta um repórter, é triste pra caralho.

pas - outro dia houve em salvador a conferência da diáspora negra, stevie wonder e outras pessoas importantes estavam lá e pouca gente soube, não sei em que medida por descuido da imprensa, por falta de divulgação, por tudo junto.

f - é, o stevie wonder veio para cá e ninguém ficou sabendo. eu vi também na televisão, ele ali cantando, falei "porra, stevie wonder está aqui". eu ia ver ele, ia com amigos meus aqui que são todos favelados, todos, cara juntaria dinheiro dele do salário e ia ver stevie wonder, só para ver o cara falar. mas ninguém divulgou nada também. porque não interessa. tudo que é em relação ao negro, à cultura popular brasileira, não interessa.

pas - mas isso está num processo de mudança?

f - tem que estar, tem que estar, porque senão eles vão engolir isso por outro lado. não tem como. você liga a televisão e só vê americano. a gente está fodido com uma televisão dessa [zapeia sua tv, para demonstrar]. é só idiotice, filme americano, programa de fofoca, programa de cozinha, venda de computador, programa americano de educação, novela mexicana. à noite é evangélico, evangélico, evangélico e jornalista tendencioso, porque todo libanês que morre é culpado e todo israelense é inocente. você vê que é na caruda. a mídia é tão pilantra que fala "teve 60 mortes no combate entre hezbollah e as forças de israel", só que não fala que 58 são libaneses e só dois são israelenses. a tendência é isso, "são 60 mortes". é muito foda. mas não somos só nós que estamos enxergando, muita gente está enxergando já e ficando puto, mano. é opressão de todo lado.

pas - ainda que nenhum jornalista vá ao "100% favela", eles não teriam que ser todos chamados, nem que fosse para constranger?

f - tem que ser, eu acho que tem que ser. mas o "100% favela" estava no blog quatro meses antes, a gente publicou no site "real hip-hop", nos meios de comunicação que dão espaço para a gente. fizemos panfleto, no meio da galeria 24 de maio estava cheio de panfleto. não tem como eu não saber que tem um encontro de jornalistas se eu vou sempre numa banca de jornal. aí tem como saber. a gente não tem onde divulgar mais. não tem como deixar em "folha", "estadão" etc., ninguém dá nota. não interessa para ninguém. então a gente deixa nos meios que dá para divulgar, põe no blog. agora é que falei para os moleques da igreja e estou pesando o brown também, de que, mano, temos que usar a Internet. senão nós estamos fodidos. se eu não pusesse aquele aviso de que os caras estavam matando aqui, não tinham parado um pouco de matar. eu tendo a acreditar nisso, que você salvou um pouco de vidas, mano.

pas - teve um papel importante aqui, então, ainda que você tenha sido ameaçado?

f - teve. o superior é pressionado, porque sai no jornal, sai na televisão, sai em todo lugar, o cara fala "porra, segura um pouco o cara lá porque isso vai me prejudicar". aí estouraram aquelas mortes que o saulo [de castro abreu filho, secretário de segurança do estado de são paulo na gestão pcc] tentou pegar os registros e esconder. os familiares começaram a aparecer na tv denunciando também, uma coisa leva à outra. não fui eu que comecei tudo, mas você é uma molinha ali que ajuda no eixo e a coisa vai indo. você é uma peça da engrenagem, a gente tem que saber usar esses meios de comunicação também.

pas - o momento que estamos vivendo, com o pcc, mudou a sua vida? mudou a vida da periferia?

f - nem um milésimo de segundo de nada. quando aconteceram os atentados, todas as lojas fecharam no capão: marabraz, casas bahia, todo mundo. nós ficamos abertos. o cara perguntou "você não tem medo de ficar aberto?". mano, eu tenho um trabalho na comunidade, a gente conhece todo mundo na comunidade, por que eu vou fechar a minha loja? eles têm que fechar mesmo, a marabraz não volta um centavo das suas coisas para o bairro. uma dessas lojas me chamou uma vez, porque estavam tentando criar uma coisa social, eu falei "beleza, em que eu posso ajudar?". "você ajudaria a gente?" falei "ajudaria, se vocês estão querendo criar algo social eu ajudaria". aí sugeri um panfleto divulgando os móveis, e atrás uma dica para a gestante não fumar, para a mulher não engravidar, como evitar engravidar mais cedo. vê se foi aprovado? não foi, mano, porque o cara quer aproveitar os dois lados para vender. não querem fazer nada social porra nenhuma, eles querem é vender mais. eles têm que aumentar a venda, só. extorque o bairro.

para você ter uma idéia, minha mãe foi numa loja dessas aí comprar, e o cara que estava vendendo era conhecido meu. minha mãe chegou em casa meio abalada, perguntei o que foi, "ah, o cara não quis vender um armário para mim, falou que eu não tinha saldo, salário suficiente". falei: "mas tem, mãe, se é para fazer parcela de r$ 100 você tem o suficiente, vou lá falar". fui lá e trombei o cara. ele disse: "mano, não vou vender para a sua mãe, não posso, ferréz, sua mãe é maior trabalhadora aí, eu já vendo para as outras tiazinhas e fico meio mal, o bagulho custa r$ 200, sua mãe vai pagar quase r$ 1.000 parcelando, eu não vou vender, não". aí falei para minha mãe ir e pagar à vista, inteirei o dinheiro com ela e ela pagou. tem hora que a consciência do cara também bate.

pas - e ele não estava querendo vender, mas era por outra razão que não era a que sua mãe estava imaginando.

f - você sabe aposentado, aposentado é tudo fodido. todo mundo já vem a foder neles nesses planos, aí usa essas atrizes que nem hebe para falar "aposentado, venha, abra um crediário", já descontam direto da folha de aposentado. ele já recebe uma mixaria, e descontam todos esses crediários e créditos pessoais. isso é um assalto, isso é crime, organizado ainda, porque tem escritório e tudo.

pas - qual é sua opinião geral sobre os episódios todos com o pcc?

f - olha, quando eu fiz "capão pecado", tem um trecho que fala assim: "o futuro é 'mad max', esteja preparado. dias de chuva, bairro entrincheirado". eu já falava lá. a gente não fala mais no pcc, porque a gente já falou tanto de guerra social há tanto tempo, e nunca ninguém levou a sério. se for ver uma reportagem minha e do paulo lins na "folha" em 2000, a gente fala o quê? "ou pela arte ou pelo terror." e hoje a gente está vendo o quê? o terror. e isso é um pequeno nicho do que vai acontecer ainda.

pas - ninguém levou a sério também porque todo mundo foi fingindo que estava surdo, que não estava escutando, até que bateu, não é?

f - é, agora não tem mais. os caras seqüestraram repórter da globo [a entrevista aconteceu na segunda-feira seguinte ao seqüestro global], né?, fiquei sabendo. não soltou ainda, não?

pas - soltou hoje.

f - os caras são foda, meu. hoje está chegando num patamar o barato... o rio já tem uma puta violência, só que os caras não entenderam ainda que o rio não é uma cidade estressante que nem são paulo. o pcc vai ser estressante, que nem são paulo é. É crônico. então o método de trabalhar vai ser crônico também, que nem é são paulo. tudo é crônico aqui, vai ter que ser crônico também. é o seguinte, mano, a gente só está vendo o começo da ponta do iceberg ainda. infelizmente, não é sendo derrotista nem nada, é sendo realista. quem planta ódio colhe ódio, não tem outra alternativa, plantar ódio e colher amor.

pas - você está falando da sociedade mais rica?

f - a sociedade mais rica. as classes média e alta vão pagar muito por isso. para nós... você acha que nós estamos ligando, sanches? eles põem o zé povinho na televisão falando [faz voz caricatural] "ai, estou com medo de sair de casa", como se o cara fosse explodir uma doméstica na rua. eles tentam colocar todo o povo contra isso como se o povo estivesse sendo prejudicado. a minha mãe estava assistindo outro dia aqui uma reportagem, minha mãe também é cricri que nem eu. estava lá [faz a voz de novo] "eu fiquei com medo de sair na rua, o meu filho não vai mais estudar, estou quase tirando minha filha da escola, ai, o pcc...". minha mãe falou: "caralho, mas estão explodindo só posto de gasolina, concessionária, de que essa mulher está com medo?".

pas - sua mãe notou que havia algo errado ali naquele discurso. ela mora aqui perto?

f - mora, aqui no mesmo bairro, com meu pai. mas então fica esse pânico, a mídia é ligeira, ela joga para nós, para nós termos ódio, para ter disque-denúncia, para a sociedade cobrar. é claro que a sociedade também sofre quando não tem ônibus, quando um ônibus é queimado. mas eles querem alcançar direto é o estado, mano, que deixou o sistema carcerário fracassado. onde não chegou nada do estado, no sistema carcerário, eles tiveram que criar um próprio jeito de sobreviver. é que nem eu, eu fiz do meu próprio jeito, de fazer minha roupa, meu livro. não tive oportunidade de que alguém falasse "ó, vem aqui comigo que nós vamos fazer, você só cria". eu não posso ser só criador, tenho que ser realizador. a mesma coisa eles, só que no criminal.

pas - como se reage, aqui, ao fato de que são bairros ricos que estão sendo atacados, e que quando aparece na tevê é como se fosse aqui, só aqui? para variar, estão jogando para cá, não?

f - é foda, meu. é como se o ódio fosse... é bom, né?, você já viu disque-denúncia de assassinato de pobre, propaganda assim "denuncie o assassinato de um pobre que você viu na sua rua", "denuncie alguém que está batendo na mulher"? nunca viu. [toca o telefone.] então, esse aqui é o cara da "folha", está me ligando tem mais de mês para eu fazer um texto de pcc, eu não vou fazer um texto de pcc. porque se comenta dos caras você passa maior veneno, tem que saber muito o que fala. a gente representa um povo de periferia, não representa uma facção nem a polícia. e os caras ficam pedindo texto [poucos dias depois, saiu a reportagem na "folha", em forma de entrevista, ferréz falando SÓ de pcc].

pas - você acha que as pessoas confundem, acham que você sabe tudo sobre pcc?

f - é criminalizar o pobre, né? é uma visão estereotipada que eles têm, de criminalizar o pobre. eu sou pobre, automaticamente tenho contato com criminosos. quando, na verdade, é o contrário. quando o cara é rico ele tem muito contato com criminoso, porque é o dinheiro, não tem como ser rico no brasil, é um dinheiro no mínimo usurpado, ou tirado da gente ou tirado da classe média. porque também estão explodindo a classe média de um jeito que tá foda.

pas - para a periferia o que está acontecendo não teria, por tudo isso, até um tantinho de justiça, se a sociedade do outro lado está aprendendo a lidar minimamente com algo que vocês conhecem tão a fundo, ou ao menos a saber que existe essa realidade toda?

f - não, eu acho que nisso, não. no final a gente fica estereotipado, a gente também sai perdendo. não é como se fosse uma vingança, sabe? seria uma forma cruel de dizer, acho que não é assim.

pas - perguntando de outro jeito, o que está acontecendo é ruim para a periferia, prejudica a periferia?

f - é ruim, prejudica, porque a polícia se desespera e começa a pegar gente que não tem nada a ver, começa a culpar, invade favela. a polícia veio aqui, invadiu favela, jogou gás lacrimogênio nas favelas, parecia uma guerra. no dia em que tem atentado, quem paga é nós também. você é revistado, também é um preço alto que você paga. você vê que o dobro do que morreu de policiais morreu de inocentes, gente que não tem coligação nenhuma com o partido, com o pcc. acho que não é bom, também, como forma de vingança. mas é um efeito, não tem como não ter um efeito. em todo lugar do mundo tem uma facção lá que está revoltada com uma parte da sociedade, que está querendo outra coisa. os caras falam que não tem ideologia, que não tem propostas, mas eu vou falar para você: aqui a gente fala que não tem até ter. não tem até ter. os caras já estão seqüestrando cara e reivindicando os baratos, já.

pas - a grande mídia parece ainda não entender nada, como é que podem seqüestrar um cara da globo? é um jeito de dizer à mídia que ela é participante de tudo isso também?

f - é que os caras não entendem, eu falei isso em muitos dos meus textos, que estão mexendo com cara que não tem nada a perder. foderam com o cara a vida toda. o cara não tem nada a perder, não tem um vínculo forte com a mãe dele, de amor, com mãe criou ele, educou, levou aos melhores colégios. não tem nada disso, não, foi pau no gato desde a manhã. vai trabalhar na feira, vai pedir dinheiro no farol, o cara é treinado assim. quer que o cara volte como?, vire advogado? às vezes até vira ainda.

pas - mais inacreditável poderia ser pensar que, até há pouco tempo, o cara do bairro rico podia viver sem nem se lembrar dessa outra realidade, ou que o brasil não tivesse essas facções que você diz que existem em todo o mundo.

f - agora está sendo lembrado, constantemente. no brasil tem, é que não tinha em são paulo. em são paulo os caras estavam se criando ainda. os caras vão aprender a ver que esse bagulho ainda vai ficar pior quando as coisas se separarem. o ser humano tende a se separar, aí fica pior, porque fica facção contra facção. já tem outras facções de cadeia, elas podem ficar mais fortes. quando isso tudo começar, meu nego, aí segura. é que nem no rio, quando você vê de novo você não entende nada.

pas - muitos intelectuais de classe média e alta afirmam que as discussões sobre cotas raciais vão piorar a tensão no brasil. o que você acha disso?

f - acho que se todo tema fosse debatido de forma preconceituosa que é esse tema da cota, puta que pariu. ninguém agüenta, todo mundo liga com um tema desse, que são os estudantes querendo vaga. é um bagulho que já tinha que ter parado de ser comentado, as pessoas já tinham que estar estudando lá. sempre falei que tinha que ter uma cota para branco, aí ele ia ver como é gostoso, "aquele branco só estuda aqui porque tem uma cota". o negro tinha que ter o direito de estudar. eu acredito numa cota financeira, pela renda do cara. vê a renda do cara. não tem como, um cara que é responsável pelo pib e está estudando na usp de graça. o cara tem dinheiro para poder ir para a disneylândia toda semana e fica estudando na usp de graça, é ridículo.

pas - você acha que deveria haver uma cota limitada para esse cara?

f - limitada para ele, 5% para quem tem dinheiro, 95% para quem não tem. se não, vai freqüentar as particulares mesmo, ele tem dinheiro para pagar. este país é todo ao contrário, mano, é impressionante.

pas - você não acha importante essa discussão estar acontecendo? não está expondo o racismo velado de muita gente?

f - é, mas não sei, porque cada um tem um argumento. o próprio negro tem um argumento contra a cota às vezes. também não é legal você entrar numa faculdade e o cara falar "olha, aquele negro ali é cota". também é foda isso.

pas - sim, mas seja qual for o resultado final desse debate, era um tema que não se discutia antes, e hoje está na ordem do dia.

f - eu acho que é uma reparação histórica. demorou para ter esse tipo de coisa. demorou para o estado prover isso.

pas - não estaríamos dando um passo, uma vez que antes a gente fingia que nem existia essa questão?

f - é, mas não se discute porque o cara acha legal discutir pelo tema em si. o cara acha legal discutir porque ele não aceita. ele teve uma faculdade e acha que o outro vai fazer..., é totalmente preconceituoso. quer ver uma matéria preconceituosa? passou no "jornal da globo" um aluno branco, filho de advogado, que estava processando a escola porque disse que o negro tirou menos que ele, mas passou pelas cotas, e ele não teve vaga. esse aluno estava tendenciosamente na frente de uma biblioteca gigante do pai dele, e o pai dele falava "eu não aceito isso, o meu filho não passar, tirar uma nota maior, o negro tirou uma nota menor". você pensa, caralho, isso é um preconceito tão fodido que essa matéria não tinha nem que estar no ar. ele que vá estudar numa escola particular. é esquisito isso. então cheguei nesse patamar, teve uma época que eu fui usado até nisso. os caras de rádio me ligavam, toda hora eu dava entrevista e dizia "não, eu sou contra as cotas porque acho isso e isso". e aí eu vi que os caras gostavam, falei "caralho, se o cara está gostando alguma coisa errada eu estou falando". os caras mais boçais gostavam, "ferréz está certo, porque ele está contra as cotas'. aí eu pensava, tá vendo?, o cara daqui contra as cotas é gostoso para eles.

pas - mas aí você mudou de posição?

f - aí eu falei "porra, alguma coisa está errada". ouvindo o que ouvi, hoje acho que a discussão não foi feita da forma correta, mas pelo menos foi feita. então alguma coisa já conseguimos. aí, se vai entrar índio..., nós vamos conquistando também, porque o racista não assume, ele fala "e os índios?, e os homossexuais?", e aí ele começa a ser liberal para todo mundo. mas, não, então que o índio vá lá e lute pelo direito dele como nós, negros, estamos lutando. aí o cara, "ah, então só vocês podem?", ele te pega na conta como se você estivesse errado, exigindo um direito errado, só seu, porque o direito tem que ser de todo mundo.

pas - mas não é justamente aí que os que usam esse tipo de argumento estão se revelando? antes estavam todos na moita, quietinhos.

f - estão. você não viu num prédio da paulista, quando saiu a onda de pcc, que os caras estenderam uma faixa "morte aos manos"? mandei e-mail para todo mundo dizendo o que é mano e o que é ladrão. vamos estabelecer uma diferença, porque a classe alta entra em crise.

pas - é bom a classe alta entrar em crise um pouco, não?

f - é, não é? é bom. e quer saber? Ddas semanas depois dos atentados do pcc, fui para pinheiros, estava conversando com uns jornalistas, passou um carro, o escapamento estourou, todo mundo "aaaaah!". eu falei: "o que foi?". "vai que vem o pcc aí, olha a polícia passando ali". falei: "manos, vocês estão loucos?". "não, é que o negócio aqui está pegando." caralho, o negócio é esquisito. eu sei lá, a justiça divina...

pas - é quem sabia desse tipo de coisa só pelo filme "cidade de deus", pelos seus livros, e agora chegou à vida real dele. ainda que seja o escapamento do carro, é aprender a viver com susto, coisa que vocês já sabem muito bem, não?

f - é que não era só no inverso, né, mano? parecia que era só o inverso, parecia que era só com nós. a gente sempre falava isso: periferia não é um problema nosso, é um problema de todo mundo. mas o cara não se inclui, porque ele levanta cedo, tem sucrilhos, tem carro bom para andar, então não está nem se lixando. uma vez passei de carro em frente a um mcdonald’s da marginal, tinha um ponto de ônibus lotaaaado. meu amigo falou assim: "olha aí o pessoal se fodendo". olhei para o meu amigo e pensei: esse ara também é pobre, mas tem um carro, olha e fala "olha o pessoal se fodendo". na outra semana voltei no mesmo ponto, para ver o que aquele pessoal ali fala. o bagulho é louco, o pessoal estava comentando da novela, "porque a alice, a maria fernanda...", caralho. o cara está no carro de r$ 6 mil dele, ele já é melhor do que o cara do ponto, e o cara do ponto está preocupado com a novela. é um bagulho louco, sei lá.

pas - no grupo contrário às cotas, há uma posição comum de falar que está errado, está errado, mas sem nenhuma contraproposta concreta. não parece que o desejo é deixar as coisas exatamente como estão?

f - é, o argumento do cara que não quer a cota é que tem que começar pelo ensino [faz voz mansa e arrastada] básico, porque o negro e o pobre não têm ensino básico, blábláblá. porra, cara, daqui a 50 anos, quando todos os filhos dele estiverem formados, aí a gente forma um cara nosso. isso se houver boa vontade política para reformar isso, porque senão não vai ter nunca. não tem o depoimento aí do josé serra falando que quando ele for eleito governador ele quer manter você passar só freqüentando aula, que não precisa tirar nota mesmo, não? considero serra um cara inteligente, quando você vê um cara desses falando isso é foda. o cara vai continuar passando as pessoas, não vê que elas estão passando e não estão aprendendo nada desse jeito? acho que 90% da discussão sobre cotas é preconceituosa, ela já é levantada de forma preconceituosa. eles já falam incomodados, "você acha certo esse negócio de cotas?". as perguntas são assim: "o negro não estudou, aí vai lá e passa, e o pessoal que estudou não passa?". porra, mas não é assim, né, mano? a gente está num país em que ninguém lembra que quando o cara deu aval, quando a isabel foi lá e assinou, havia um pessoal que dizia "vamos pôr o negro estudando quatro anos antes de libertar, vamos educar o negro para poder plantar, consumir, comprar, vender". "não, vamos libertar eles logo, coitados", aí foi interessante para a confederação liberar. aí jogou o negro na rua e quer que o cara compre fazenda, plante, faça conta. como, se o cara só vivia serviçal?

pas - ninguém lembra isso, ou ninguém sabe disso? não está nos livros de história...

f - é, ninguém diz isso na escola, é foda. a gente aprende sobre a américa do norte todinha e não aprende sobre a nossa própria cultura. se for ver mesmo, o cara não teve nada, jogaram o cara e ele foi morar no morro mesmo. começou assim. depois quer que o cara tenha educação? e vou falar, muitos negros não precisavam de cota, não precisam, porque estão estudando e tiram boas notas e estão vencendo na vida. muitos brancos daqui que são pobres também estão lutando e vencendo na vida. não está também o pessoal desistindo, tem muito cara batalhador. e tem outros que têm filho, não podem mais batalhar, têm que batalhar pelos filhos.

pas - para confirmar se entendi: você tinha uma posição mais contrária às cotas raciais e percebeu que isso era usado meio com segundas intenções por quem o entrevistava. mas aí você mudou de posição? hoje em dia é mais a favor das cotas?

f - sou mais a favor do que contra, mas ainda acho que são feitas de forma errada. mas é melhor que sejam feitas de forma errada e sejam feitas do que não feitas. acho que o método depois a gente melhora. é melhor fazer. fez, pronto, vamos segurar essa porra e agora a gente vai melhorando. mas fez. nada no país nunca é feito para o negro, então já que fez, vamos lá... a gente teve uma puta vitória esses dias aí, o presidente lula sancionou uma lei pela qual o cara vai preso se agredir uma mulher, tá ligado? é um bagulho que ninguém agüenta mais, a mulher denunciava o cara e era assassinada, mano.

pas - quando você diz "a gente teve uma vitória" está falando do brasil inteiro?

f - o brasil inteiro teve uma puta vitória, porque as mulheres são o eixo deste país e são tratadas como... todo mundo é mais importante que o outro, né? o homem é mais importante que a mulher, se a mulher for branca ela é mais importante que a mulher negra, se a mulher negra tiver dinheiro ela é mais importante que a negra pobre... é foda. por isso que sempre gosto do movimento punk, que não gosta de classificação. classificação é foda.

pas - você diz que, apesar de não ser o melhor jeito, hoje você é mais a favor do que contra. pelo menos a questão está posta. eu perguntaria se não vale mais ou menos o mesmo para o documentário do mv bill, "falcão", que você foi das poucas pessoas que tiveram coragem de criticar e se colocar contrário publicamente, num artigo na "folha". mas não é outra coisa que, bem ou mal, está chamando atenção para realidades que não estavam nem sendo vistas?

f - será que não, mano? Será que não estão sendo vistas, será que o cara não assiste "cidade alerta"? eu não sei, tenho todos os trabalhos do bill, desde o primeiro, e sempre vi uma qualidade muito boa no trabalho dele, então acho que eu esperava mais do documentário e me decepcionei. pode ser por isso, coisa de cara que gostava do trampo do cara. acho que não é a cara dele fazer aquilo. acho que ele é bom músico, bom rapper, bom articulador, mas ali tem a mão de outros caras, do celso athayde [empresário de mv bill], então não gostei mesmo. eu não acho legal, por exemplo, minha mãe ser mineira e alguém fazer documentário de mineiras mostrando 12 prostitutas. não acharia legal para minha mãe, ela sendo mineira. da mesma maneira, não acho legal mostrar um documentário com um monte de moleque traficante. tanto a gente não acha legal que fez o vídeo "100% favela", que não tem uma arma. não precisou ter uma arma, uma pistola, ninguém falando que vai morrer. e teve cara que estava no palco, você assistiu ao show dele, e ele já morreu. mas a gente quis mostrar que na favela tem uma resistência, tem uma vida, tem um sopro.

eu acho o documentário pobre de espírito – o documentário, não o bill ou o celso athayde. o trabalho em si não acho legal, mas os caras são bons. fica parecendo que tenho briga com bill, e não tenho. já viajei com ele, a gente conversou muito, já veio junto conversando de palestra. não tenho nada contra, mas tenho contra o trabalho. fiz a carta, a carta ficou forte porque é política. eu sou muito chato mesmo quando se fala de periferia, porque eu me considero como cada moleque que está aqui na rua, eu me vejo como um moleque desses, e eu queria ser bem representado. vi os moleques se chamando de "falcão" e não gostei, mano. não acho bom isso para o nosso orgulho. mas também levei cacetada para caralho, porque ele é negro e eu sou branco, porque eu sou mais branco do que ele..., todo mundo pau no gato. recebi muita crítica. mas recebi também muito elogio.

pas - chegou a se arrepender, ou não?

f - não, não me arrependo nem um minuto, de escrever, não. me arrependo de falar às vezes, mas de escrever, não. só me arrependo de uma coisa naquela carta: de não ter dito que eu tinha os trabalhos dele e que eu gosto dele como rapper. só isso faltou falar, porque fica parecendo que tenho briga com o cara, e não tenho.

pas - há esse mito, de que existe muita rivalidade, tanto dentro do próprio movimento como entre rappers de são paulo e do rio.

f - mas teve aquele negócio ridículo da globo, que a globo deu uma resposta na "folha" falando mal de mim. um cara da globo, erlanger, mandou e-mail dizendo que eu ofendi o "fantástico" e falando bem do bill, que eu tinha inveja, coisas que é até ridículo para um representante da globo falar. então, porra, se eu incomodei a globo ali... a gente fala, no rap a gente fica preso pelas palavras. esse cara até disse que eu falei do "fantástico", mas já participei do "fantástico" e estava bem à vontade quando participei. mas é foda, a mídia só fala o que interessa a ela... ele não fala na carta que não foi para a globo que fiz "os inimigos não mandam flores", mas para uma produtora chamada barraco forte. eu estava muito à vontade porque estava na minha casa, foi filmado na minha casa. a barraco forte foi lá depois e negociou com a globo, eu não fiz para a globo. não tenho contrato assinado com a globo.

pas - e é legal ter passado na globo, você não acha?

f - é legal.

pas - o "100% favela" não devia passar no "fantástico", até para fazer contraponto com o "falcão"?

f - aí, sim, porque é uma coisa diferente, uma coisa possível. o cara vai falar "olha, os caras fizeram uma festa louca". mas o "fantástico" não vai dar 45 minutos para nós, você quer apostar quanto?

pas - por quê? porque é sensacionalismo que interessa à mídia?

f - porque notícia ruim vende, e notícia boa, não. no outro dia está todo mundo comentando, "os caras estão armados até os dentes". aquilo ali dá aval para a polícia matar no morro, cara. porque a polícia fala "tá vendo?, vou subir de metralhadora, o moleque que eu trombar eu tenho que matar". eu, se fosse polícia e visse, no outro dia ia subir louco. eu vejo de forma muito negativa. muitos caras que andam comigo, não, vêem de forma normal, outros vêem meio assim, outros acham que é o jeito que ele foi, meio social. incomoda um monte de coisa.

pas - o fato de bill ter ido lançar o livro na daslu você acha ruim?

f - muito cara acha esquisito. eu não posso comentar isso porque é o jeito dele trabalhar. até aí, que é o jeito dele divulgar, eu não comento. mas o trabalho em si eu acho muito negativo, sabe? "notícias de uma guerra particular" é um documentário fodido, mano, mas você vê conversas ali que falam da coisa positiva. eu não sei fazer um trabalho meu sem ter uma solução, eu não sei. às vezes pode ser piegas isso, mas eu tenho que pôr uma porra de uma solução ali. o conto tem que ter um final. quando não tem é esquisito, a denúncia pela denúncia é que nem a arte pela arte, acho que não vira. mas quanto ao rapper e ao escritor, ele é muito bom, é um dos melhores compositores que tem no rap.

pas - dos livros você gosta? de "cabeça de porco"?

f - não. não comentei os livros por causa da editora objetiva [que também lança seus livros], para não tumultuar com a editora, que ia virar um problema maior isso. mas li os livros, "cabeça de porco" também é um livro-documentário, não é um romance. achei boas as partes do bill, as partes do outro cara eu não gosto, acho muito esquisito, diferente para a gente ler, não acho legal. o outro, "falcão", nem li, porque "cabeça de porco" já diz por si só. mas tem umas coisas interessantes no "cabeça de porco", que marcam. um livro que gostei muito foi o "elite da tropa". caralho, aquele livro ali é foda, parece que você está lendo um livro de espião americano, né, mano?

pas - você não acha que cada um, a seu jeito, está dando um recorte da realidade que, somado aos outros, oferece um painel maior? "100% favela" não acaba sendo complementar ao "falcão", mesmo sendo completamente discordante? o "falcão" na daslu não colabora deixando empresário riquíssimo surtado, em parafuso, sem saber o que pensar, sendo defrontado com imagens com as quais não está acostumado?

f - pode ser, porque para nós, também, é um bagulho tão normal que pode ser que eu ache normal demais.

pas - você se incomoda por ver o mundo em que você vive ser retratado de um jeito triste, cruel.

f - é, eu não sei, não tem o interesse de mostrar o talento do cara daqui, do cara que trabalha. não tem esse interesse, mas tem o de mostrar uma coisa que, não sei, é esquisito... quando se mostra, mostra de um jeito muito exótico, "olha como é a favela", "olha, ela era mendiga"... aquele cara lá do farofa carioca, como é o nome?

pas - seu jorge.

f - é, o seu jorge. poxa, muito chato o jeito que mostram o cara, "seu jorge, que foi mendigo, morou na rua". o cara é um puta músico, então fala da música do cara. é por isso que não tiro mais foto na rua, não tiro mais foto com favela atrás. por quê? porque fica aquele estereótipo, toda foto sai eu com as mãos abertas e a favela atrás, mesmo no gibi. não vou deixar ninguém mais fazer isso comigo, vou tirar foto eu com livro, eu com cd.

acho que está na hora de a gente dar um outro salto. fiz o "capão pecado", é uma linguagem mais crua, criminalidade. "manual prático do ódio" é a criminalidade de uma nova geração. então o próximo livro tem que ser um processo criativo mais alto ainda. você tem que ir evoluindo, senão vou ser visto antes como favelado, periférico, aí sociólogo, para depois ser visto como escritor. e eu primeiro sou escritor, meu primeiro dom é escrever. sou reconhecido lá fora e em outros países como escritor. eu vendo livro porque é bom, não é porque fala da favela. minha editora fala "seu livro pode falar de abacaxi, mas o jeito que você escreve é legal para caralho". outro dia escrevi sobre uma piscina, ficou muito legal, três moleques que invadem uma piscina, pulam dentro dela.

pas - há um pouco o estigma de que o rap de são paulo é mais carrancudo, mal-humorado, enquanto o rio é mais oba-oba, funk, sexo. hoje há um cara do rio fazendo um documentário muito forte e vocês em são paulo defendendo uma posição de mostrar o lado bom também. não parece que transformou suas posições para seguir adiante? o pessoal de são paulo mesmo não era menos preocupado em mostrar o que há de positivo na periferia, no hip-hop? não é uma evolução, tudo isso?

f - eu acho que sim, mas é uma visão simplista essa do carrancudo e do outro.

pas - maniqueísta.

f - é. na verdade, a periferia não é uma coisa que você possa resumir. é muita coisa diferente. a gente pode falar de uma forma positiva, mas no show o cara diz "quem não gosta da polícia mão pra cima", e todo mundo ergue a mão. tem um protesto, tem um confronto também.

pas - mas já se mostra de um jeito ao mesmo tempo sutil e expressivo.

f - é, no debate a gente fala do chico buarque, do caetano, do marcelo d2, também é pau no gato. tem debate, os caras são carrancudos nessa parte. e também tem a parte do rio que é séria, e a parte que é festeira. interessa para a elite manter o funk, interessa para a Prefeitura manter a sexualidade em evidência, muito turista e tal. são paulo não é vendido em sexo como o rio é. lá fora, você vê folheto dos países e tem uma montanha, uma cachoeira. no rio já mostra logo uma bunda, pernambuco mostra logo uma mina morena na praia. tem também essa vendagem de sexo, em que o brasil é muito covarde e os outros países também apóiam.

pas - qual é sua opinião sobre a atuação do marcelo d2?

f - d2, mano? acho que o de leve está falando bem do d2, deixa o de leve dar a resposta para ele.

pas - você acha a posição mais comercial do d2 prejudicial para o hip-hop?

f - tem um amigo meu que fala que d2 elevou a qualidade dos clipes, das coisas, a um patamar que a gente não pode alcançar no hip-hop, então a gente se fodeu. acho que tem lógica também isso, ele elevar a um passo que a gente não pode. mas eu não vejo ele como um cara do rap, não vejo ele fazendo parte do movimento hip-hop.

pas - ele, hoje, está nessa assumidamente para ganhar dinheiro. mas também é sincero nisso.

f - eu não sei... ele é corajoso, pôs uma dançarina de samba pelada no clipe dele, um bagulho que é para agradar os gringos. ele tem esses links, é ligeiro, trabalha bem, sabe trabalhar, é profissional, por um lado. mas, por outro, em termos de movimento ideológico mesmo, para mim ele não significa nada. nem sei se ele tem essa aptidão. antigamente eu tinha os discos do planet hemp, eu via até alguma coisa de protesto. mas acho que hoje ele se perdeu totalmente, está fazendo um bagulho totalmente comercial mesmo. é como se fosse um grupo de axé, de samba, um leonardo. vejo ele assim.

pas - mas com uma música de mais qualidade, não?

f - não vejo, não, porque o rap que ele canta, para a gente, é fraco. as riminhas dele... os moleques aqui já aprendem a cantar rap na favela com umas rimas bem mais evoluídas. não vejo mais conteúdo em nada dele, sei lá.

pas - voltando a são paulo, a imagem da cidade sempre foi de progresso e tecnologia, mas a história do pcc dá uma modificada nisso, não?

f - acho que são paulo vai ficar caótica mesmo. eu gosto muito de "cronicamente inviável", acho que é um prefaciador do caos. comprei os filmes do sérgio bianchi, assisto todos, acho que tem muito a ver com o meu trabalho e o de todo mundo que mexe com favela. não tem como criar essa capital de tecnologia e tudo ficar límpido, branco, transparente. por isso o nome do meu livro é "ninguém é inocente em são paulo".

pas - estão lá os rios tietê e pinheiros denunciando isso...

f - denunciando, tem os barracos da favela da coca-cola, tem os moleques catando lata do lado de carro de r$ 300 mil. esses dias vi um troço que me machucou muito, uma senhora carregando um carrinho pesado pra caralho, cheio de papelão, e o cara fechou a mulher com a porra de uma pajero. a mulher estava lá no sol esperando, o cara podia deixar a mulher passar e fechou para poder entrar. são paulo é assim. quando estou dirigindo e o cara pára na frente eu falo "aqui é são paulo, caralho, vai, anda". paulo lins veio para cá, eu morava na casa em frente ao córrego, ficou lá comigo. ele: "porra, aqui é mar de barraco". não tem mar, né?, aqui é mar de barraco. daqui a pouco, veio um cara e jogou um carrinho de entulho dentro do córrego. eu falei "ô, vocé é louco?, não tá vendo que a gente tá limpando o córrego aí?". "vou jogar onde?, não tenho onde jogar, vou jogar aqui mesmo." o cara ainda voltou com o carrinho de novo, cheio de entulho, começou a jogar. eu falei "você não vai jogar, mano", "vou", "não vai", eu joguei ele dentro do córrego com carrinho e tudo. ele: "você tá fodido, eu vou te pegar".

pas - [espantado] você jogou ele dentro do córrego?

f - joguei o cara, o carrinho, tudo dentro do córrego. o paulo lins, "você é doido, cara?". que doido?, o cara tirando uma... aí entrei no carro e fui levar o paulo lins para encontrar o negredo. Ccra, até chegar lá discuti com três caras no meio do caminho, um entrou e não deu seta, outro estava tumultuando a entrada na única rua que dava para entrar...

pas - todo mundo estressado, inclusive você...

f - todo mundo age errado. paulo lins falou "puta que pariu, não vou ficar mais nem um dia nesta porra". falei: "isso porque você não foi para o centro ainda para ver o que é o inferno, cara". aí chegamos à favela, som alto, churrasco e bagunça e discussão e mulher bêbada caindo no chão, paulo lins falou "caralho, isso aqui tá foda". são paulo é assim mesmo, estresse total. aí evito dirigir, evito sair, quando vou na casa do cara já fico lá o dia todo. se você ficar circulando, você fica louco. sair daqui para ir para o centro é três horas no trânsito. é crônico mesmo. e a gente respira isso na arte, faz livro assim.

pas - eu estarei falando um absurdo se disser que entre a última vez que vim entrevistar você e agora a região está mais bonita? melhorou, de lá para cá?

f - você tem essa impressão, né? acho que os trechos do capão que você viu estão bonitos, os trechos que você viu. é época de eleição, os caras deram uma arrumada nas ruas. muita coisa não estava pintada, foi pintada agora. algumas ruas foram asfaltadas.

pas - o córrego de que você reclamava há três anos, como está hoje?

f - podre do mesmo jeito. mas se você for lá hoje ele está limpo, tem uma pilha de terra jogada do lado dele. é o que os caras fazem antes da eleição, tiram toda a terra de dentro do córrego, que está alagando, e põem do lado. aí quando a eleição acaba aquela terra vai descendo de novo para o córrego, porque eles não levam embora. é maquiagem, né, mano?, vai maquiando. os problemas aqui não estão sendo solucionados e estão crescendo. por quê? porque vai crescendo a população e o número de hospitais, postos e escolas é o mesmo. a qualidade da escola não é nem a mesma, é pior ainda. a cidade aqui não cresce como nos outros lugares, você não tem organização nem estrutura de nada.

pas - e se pensarmos sobre a auto-estima de cada um, como nas casas grafitadas para o show, e ficam mais bonitas do que eram? por que a periferia tem que ser cinzenta?

f - em alguns lugares aqui isso está melhorando bastante, o cara fala "vou pintar minha casa". a gente do movimento também pega no pé. mas acho que falta muito ainda.

pas - se eu perguntar, numa somatória de tudo, se está melhorando, piorando ou igual?...

f - eu diria que melhorando não está, tudo igual nunca fica...

pas - ...e piorando também não está?...

f - piorando, sempre tem um jeito de piorar mais um pouquinho. pela evolução que você vê em outras coisas, eu não vejo melhora. a melhora é muito atrasada. o cara construir mais um murinho na casa dele durante três anos é muito pouco, perto da evolução que tem um estudante aí do mackenzie. é muito pouca a evolução. internet chegou na minha casa, se minha casa quebrar só tenho um amigo que tem. se a dele quebrar não tem onde ir mais, tem que ir naqueles pontos de lan houses.

pas - que, segundo hermano vianna, existem em qualquer favela hoje em dia, não?...

f - tem, os caras cobram r$ 1.

pas - não são pessoas que não tinham acesso e hoje estão tendo?

f - mas esse acesso não está sendo usado investigar a vida do hermann hesse. o acesso é para ver o jogo do corinthians, para entrar na globo para ver a receita da ana maria braga... é foda. fui nesses pontos de cultura e critiquei muito, porque os caras estão lá ensinando o moleque a entrar no palmeiras, a pesquisar a vida do jogador do palmeiras.

pas - mas não tem um mito aí, do cara que não sabe nem chegar ao dicionário para consultar - esses meninos não estão ao menos sabendo lidar com o computador?

f - mas o cara não vai mudar com computador. vi tanto pai aqui, "meu filho teve aula de computação”" o que você aprendeu? "aprendi o word." escreve? "escrevo, o que você falar eu escrevo." mas você sabe escrever? "como assim?" fazer uma redação? "não gosto de fazer redação." quer dizer, o cara sabe, mas ao mesmo tempo não sabe para que usar aquilo.

pas - mas não pode ser um passo adiante? algumas das coisas que estão acontecendo agora estavam plantadas nas letras do mano brown há 10, 15 anos...

f - é, é... mas meu primo fez curso de computação cinco anos atrás e dirige perua hoje. não basta, não é uma coisa que basta. não tem vaga, trabalho, colocação. não tem espelho, para falar "aquele entrou para o escritório, está bem". o cara aprendeu tudo sobre computador, entrou para o escritório e tira xerox no escritório. não vejo revolução nessa parte, pelos exemplos de amigos e parentes que tenho. não vejo ninguém que está dando certo com isso. está sobrevivendo.

pas - que posição você defendeu na época do referendo do desarmamento?

f - a de não ter arma.

pas - a que perdeu, portanto. você acha que esse resultado teve conseqüências? as ondas atuais de violência não teriam uma das raízes ali?

f - para começar, acho que a gente tinha que ter que ter um referendo para saber se a gente queria esse referendo. acho que foi um equívoco, jogaram uma bomba na mão do povo sem nem mostrar direito o que o povo podia escolher. não se mostraram as coisas de forma clara.

pas - e deu um resultado belicoso...

f - é, porque jogaram a bomba e disseram "decidem vocês", "não temos competência para decidir, então toma a bomba aí e vê o que vão fazer". a indústria de armas é muito forte, vamos para referendo. aqui, se o maluf for de novo as pessoas vão votar no maluf. as pessoas agora vão votar errado, vão votar no psdb. se perguntar se quer a pena capital, 90% vão dizer que sim. mas quem diz que isso é certo? eu acho que tinha que preparar o povo para decidir as coisas, e não preparam. é por isso que a gente vota tão mal. o referendo todo é um engodo. mas tem muito moleque que chegou em mim e falou "você acha que tem que ser contra as armas, mas se eu não andar armado e o cara me matar ali?". o estado não oferece proteção, quem disse que o policial também pode andar armado?, uns moleques aí de 19 anos, estão preparados para andar armados? não sei, você vê o policial tremendo, segurando a porra da pistola com o dedo no gatilho para dar geral nos outros. não sei se esse cara também está preparado para andar armado. se for pensar assim, é foda.

pas - e a posição armamentista venceu...

f - mas o segredo de combater crime e violência e assassinato não está na arma.

pas - ...e um ano depois estamos vivendo uma onda de violência e de organização do crime. diziam "não vamos deixar a arma só na mão do bandido", e agora esse que chamam de bandido está mais organizado que nunca, num estado de coisas em que a violência parece ter até aumentado.

f - mas será que aumentou? será que aumentou mesmo, será que aquele posto de gasolina só lá deu esse efeito todinho, ou é só efeito que deu na gente, mas não aumentou nada? ou será que a gente falar de violência vai dar efeito mais violento depois? porque toda vez que passa coisa de violência na tv eu penso se isso não dá poder para o cara, se não é isso que vai dar a violência e fazer o cara sair de casa armado hoje. não sei, ali na frente tem cinco casas que são isoladas num condomínio. quando teve o ataque, passei e fiquei olhando, que ridículo: automatizaram o portão, puseram cerca elétrica. caralho, vai subindo essa porra aí que já era alta. é ridículo, aqui o cara vai pôr fogo na sua casa para quê? acho que também saiu uma lei sobre violência psicológica contra a mulher – o cara segura a mulher no casamento pela parte psicológica. acho que é a mesma coisa, a gente também está sendo vítima de uma violência psicológica. o assunto é pesado, a gente fica falando. você sai na rua e não vê ninguém dando tiro em ninguém, mas esse pânico...

pas - seria algo exagerado?

f - exagerado. o cara fala "199 ataques até agora" e mostra o mesmo posto, o mesmo carro, e fica aquilo o dia todo, "vamos mostrar mais uma vez o posto, como está o posto?", "ah, está aqui, está queimado". não tem mais o que mostrar, o cara continua mostrando. quando começaram a mostrar as viaturas do deic pegando fogo, tinha duas viaturas que não tinham pegado fogo ainda, e não chegou nenhum policial lá, não chegou nada. era meio-dia, estavam os repórteres esperando e ninguém se pronunciou. quer bagulho mais desorganizado que isso?

pas - você está falando também na responsabilidade da mídia nisso tudo, aumentando e tornando tudo uma bola de neve?

f - com certeza. vira um holofote. o nome que o pcc ganhou, o marketing... se fosse voltado isso para uma ong a ong estava milionária.

pas - agora, com o repórter seqüestrado, a globo não fala mais o nome pcc, só fala "homens armados", como se não quisesse dar publicidade ao pcc, mas isso só agora, quando entrou na roda também.

f - não adianta mais, não.


UM PORTA-VOZ DA PERIFERIA
O escritor e rapper Ferréz reflete o Brasil a partir do Capão Redondo

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Veio ao mundo o primeiro DVD brasileiro integralmente produzido na favela, pela favela. Chama-se 100% Favela e inclui festival de rap, documentário e depoimentos inéditos de Mano Brown, dos Racionais MC's, entre outros atrativos legendados em português, inglês e espanhol. Entre os produtores do esforço, ao lado do grupo de rap Negredo, está o nome 1daSul, outra marca que é 100% favela.

Instalada no centro do Capão Redondo, na periferia sul da cidade de São Paulo, a 1daSul é a usina produtiva de Ferréz. A 1daSul, em si, é uma loja de roupas imaginadas por ele próprio, sempre sob motivos inspirados na periferia. Mas, aos 30 anos, o dono da casa amplifica cada vez mais sua atuação: hoje, além de romancista, cronista e rapper, faz produção de show e DVD, virou roteirista de história em quadrinhos, escreve contos e livro infantil, está adaptando o texto de Lisístrata para uma nova montagem teatral.

Ferréz nasceu e mora no Capão, hoje numa casa ampla e confortável que comprou com o progresso conquistado com a 1daSul e com os romances Capão Pecado (2000) e Manual Prático do Ódio (2003). "Desde que lancei o primeiro livro, está todo mundo esperando eu ir embora do Capão. E eu quis comprar uma casa melhor porque não preciso ir para o centro, não é lá que presta, não. Que diferença tem de onde vocês moram? Olha que tranqüilidade", ele defende o apego à própria origem.

É esse apego à origem que ele aborda sem meios-termos ou subterfúgios nos recém-lançados Ninguém É Inocente em São Paulo (uma coletânea de contos, da editora Objetiva) e Os Inimigos Não Mandam Flores (uma história em quadrinhos desenhada pelo jornalista Alexandre de Mayo, da editora Pixel). Segue extraindo idéias e imagens do cotidiano que testemunha, como no caso das metáforas fortes com ônibus que são constantes nos contos.

"Ônibus é um barato louco, né? Você ouve um cochicho daqui, outro dali, vê a paisagem de uma forma privilegiada, porque o ônibus é alto. Tenho amigos que são mais conhecidos no rap ou na MPB que não andam de ônibus de jeito nenhum. Eu, não, mano, se puder ir de ônibus, vou", diz. Um carro Gol antigo repousa na garagem à frente da casa.

A morada anterior, em frente a um córrego poluído, rendeu o conto Vizinhos, mas mais história já aconteceu desde então: "Eu não ia mudar nem de lá, apesar dos ratos andando no forro. Só mudei porque os caras entraram lá para matar um amigo meu. Minha mulher estava sozinha dentro de casa, se eu estivesse lá com o amigo com certeza matavam nós todos. Porque aqui é assim, se o cara pula na sua casa para matar um cara, vai matar quem está lá dentro, não vai deixar você ver".

O amigo, Alex, foi assassinado uma semana depois. "Ele cantava rap comigo, e depois partiu para a vida criminal. Assaltava carga, essas coisas. Éramos amigos desde pequenos, desde 6 anos de idade. Era tão amigo que tenho o rosto dele desenhado nas costas. Quando ele morreu fiquei muito chateado, a casa começou a me lembrar o cara." Ficou alguns dias no Rio de Janeiro com Paulo Lins, autor do livro Cidade de Deus, e então se mudou para outra casa, distante apenas duas ruas da anterior.

Também abandonou São Paulo por um período após a primeira onda de ataques do PCC. Na ocasião, em 17 de maio, publicara em seu blog (http://ferrez.blogspot.com/) um manifesto sobre o caso, em que assim se posicionava: "A Polícia Militar e a Polícia Civil (...) estão fazendo da nossa periferia um Estado para lá de nazista. Já são mais de cem 'suspeitos' assassinados, e nenhum deles é PCC. Só de colega, foram mortos quatro (...). O povo está morrendo, sendo baleado pelas costas, ao entregar pizza, ao voltar para casa. (...) Lei marcial para pobres inocentes foi decretada".

Diz que o texto lhe rendeu mais de 90 e-mails ameaçadores (inclusive de pessoas que se identificavam como policiais), que ele rebateu também no blog. E não manifesta arrependimento: "Se não pusesse aquele aviso de que os caras estavam matando aqui, não tinham parado de matar um pouco. O superior é pressionado, porque sai no jornal, na tevê, em todo lugar. A gente é uma peça da engrenagem, tem que saber usar os meios de comunicação também".

O episódio o fez se recolher diante da mídia, também. "Repórter não conhece ninguém de periferia. Então vê que o escritor Ferréz é do Capão, 'não consigo falar com Mano Brown, vou falar com ele mesmo'. Liga para mim, e aí tudo é eu. Se eu deixasse, se fosse responder a todas as matérias, eu já era porta-voz do PCC. E não tenho nada a ver com criminalidade, não conheço ninguém do PCC."

Artista-ativista, Ferréz reivindica um basta às atitudes automáticas que sempre estereotipam e criminalizam os mais pobres, e critica as classes mais altas da sociedade: "Em 2000, Paulo Lins e eu já falávamos que 'ou pela arte ou pelo terror', nunca ninguém levou a sério. As classes média e alta vão pagar muito por isso. Ainda não entenderam que o Rio não é uma cidade estressante como São Paulo, e que então o PCC vai ser estressante, como São Paulo é. Tudo é crônico aqui, isso vai ter que ser crônico também. Quem planta ódio colhe ódio. Não há outra alternativa, plantar ódio e colher amor."

Foca a crítica na mídia: "Eles põem o zé-povinho na tevê falando (faz voz caricatural) 'o meu filho não vai mais estudar', 'ai, estou com medo de sair de casa', como se o PCC fosse explodir uma doméstica na rua. Minha mãe falou: 'Mas estão explodindo só posto de gasolina, concessionária, de que essa mulher está com medo?'. Fica esse pânico, e a mídia é ligeira, joga o ódio para nós. Mas a gente representa um povo de periferia, não representa uma facção, nem a polícia".

Questiona a mídia também na discussão das cotas raciais. "Fui usado até nisso. As rádios me ligavam, toda hora eu dava entrevista e dizia 'sou contra as cotas raciais porque acho isso e isso'. E aí vi que os caras mais boçais gostavam, pensei 'caralho, se eles estão gostando alguma coisa errada eu estou falando'." Mudou de posição, por isso? "Acredito numa cota financeira, por renda. É ridículo um cara que é responsável pelo PIB e está estudando na USP de graça, e o outro sem vaga. Hoje sou mais a favor das cotas raciais do que contra. É melhor que sejam feitas, mesmo de forma errada, do que não sejam feitas."

Não valeria um raciocínio equivalente para o documentário Falcão, dos cariocas MV Bill e Celso Athayde, que Ferréz criticou veementemente, por explorar negativamente a violência? "Tenho todos os trabalhos do Bill, sempre vi uma qualidade muito boa nele. Mas não acho legal mostrar um documentário com um monte de moleque traficante. Vi os moleques se chamando uns aos outros de 'falcão' e não gostei, mano."

Faz o contraponto, exaltando uma postura que, por sinal, não era freqüente nem no rap paulista de até há pouco: "Tanto a gente não acha legal que fez o 100% Favela, que não mostra nenhuma arma. Não precisou ter uma arma, uma pistola, ninguém falando que vai morrer. E teve cara que estava no palco, você assistiu ao show dele, e ele já morreu. Mas a gente quis mostrar que na favela existe uma resistência, uma vida, um sopro".

Nessa clave, imagens raras do vigoroso e colorido 100% Favela mostram Ferréz e os rapazes do Negredo debatendo com Mano Brown temas como a mídia e a música brasileira, mas também fazendo autocrítica sobre "a ruindade do rap atual" (nos dizeres de Brown) ou o perigo de se formarem elites mesmo dentro do próprio movimento hip-hop.

Noutro momento do DVD, o líder Brown diz: "Humildade é sabedoria. Arrogância é burrice, e muitas vezes eu fui burro. A burrice vem da neurose, do ódio, da revolta. Você passa na frente de uma favela dá ódio, dá raiva. Dá raiva até da favela, por que eles aceitam isso aí? Você pode tratar um playboy com arrogância, porque ele tem os olhos verdes e não é da mesma cor que a sua. Você acha que ele é rico, trata mal porque viu gente igual a você sofrendo. Isso é burrice, eu já fiz isso. (...) Vou tentar ser menos burro daqui para frente".

Ao que tudo indica, depois do avanço de MV Bill, é hora de Mano Brown, Ferréz e o rap paulista colocarem na mesa um novo repertório de atitudes, posturas e bandeiras, de dentro para dentro e de dentro para fora.