terça-feira, fevereiro 21, 2006

a música dentro-fora do eixo

há algumas semanas, a feroz gravadora emi lançou no mercadão, em cd (aquele formato antigo do século passado, lembra? gosto tanto, apesar de ser tão demodê), uma extensa coleção de discos de jovem guarda, de iê-iê-iê, do rock nacional do rock nacional, do tecnobrega do pará dos anos 60.

embora seja virtualmente oposto àquele, este texto pretende formar par constante com "a música fora do eixo" (o 1). você pode não gostar dos tecnobregas de hoje (nem dos de ontem), mas eles são filhotes semi-alforriados de desbravadores que abriram picadas e alamedas sempre com uma bola de ferro presa no pé esquerdo (o pé esquerdo é sempre mais "perigoso" que o direito, você sabe).

roberto carlos ficou rico e milionário e bilionário e triliardário sem nunca (lutar para) conseguir desacorrentar a bola de ferro no pé esquerdo. seus asseclas, rivais e subprodutos (entre eles vários nomes que aparecerão citados cá embaixo) nem ficaram tão ricos nem gozaram de tanta fama e sucesso quanto o líder, o mártir tiradentes roqueiro do olhar mais triste que já existiu.

mas foram a ponte de relativa liberdade, de relativa rebeldia e de relativa autonomia que nos conduzem da semi-escravidão de rc à semi-alforria dos tecnobregueiros paraenses (e brasileiros em geral). diferentes do "rei" e dos "súditos" que se enfileiram abaixo, os tecnobregueiros do pará (do brasil) não têm gravadora, não têm arreios, não têm patrão. não precisam de você que está lendo este texto para existir, produzir, criar, se desenvolver, enriquecer. são uma espécie de duendes verdes que deram de nascer e se desenvolver lá na floresta amazônica - duendes, sim, mas com existência real, documentada, fotografada, filmada, dvdeada, blogada, fotologada.

aguarde, em breve eles vão invadir a sua praia - não há escapatória, não há mais escape, o processo histórico é inexorável. por enquanto, nada como matar saudades de duendes antigos como evinha, deny & dino, eduardo araújo, silvinha..., essa patota toda que você despreza e rejeita, mas que talvez seja mais livre, leve & solta que você...

celly campello, "estúpido cupido" (1959) - ela tinha 16 ou 17 anos, mas deu partida à música jovem brasileira celebrando insinuações sexuais limítrofes (o puritanismo para cá, a sedução pedófila para lá: "eu sei, a turma vai falar/ que eu sou muito jovem bra beijar/ que eu não tenho idade para amar") e inaugurando uma linhagem de exploração também limítrofe da sexualidade adolescente. filha ilegítima de carmen miranda, celly iria parir, espalhados pelo futuro, filhos como wanderléa, rita lee, baby consuelo, marina lima, cazuza, jairzinho & simony, carla perez, kelly key, felipe dylon, tati & deize... o sotaque fortemente paulista emolduraria, nessa estréia contemporânea de joão gilberto e complementar roqueira à bossa nova, os clássicos brasileiros-estrangeiros "estúpido cupido", "túnel do amor" e "lacinhos cor-de-rosa". essa última rita lee subverteria em 1974 no atalho adultescido-subversivo "de pés no chão", que trocava "lacinhos cor-de-rosa ficam bem só na cabeça" para "lacinhos cor-de-rosa ficam bem num sapatão" - a vida real batia pé na porta do armário, continua batendo até hoje.

tony campello, "tony campello" (1959) - irmão rapazote de celly, tony já tinha uns 22 ou 23 anos no ato de fundação do rock'n'roll brasileiro. protegia a moçoila com os laivos habituais de carinho, voz macia e machismo, irradiando baile canastrão em inglês ("as time goes by"), baile animadinho em português ("louco amor"), baile transversal em portinglês ("baby rock"). mas a moda era a mana.

celly campello, "broto certinho" (1960) - "brotinho, não fique abafado", mora nas gírias da época, popozuda? "querida mamãe" faz rodeios, previne mamãe de que mamãe vai cair durinha no chão diante da confissão que vem e confessa: a narradora tem um amor (mora nas sutilezas de época?)! "over the rainbow", no inglês original, é o tema cantado por dorothy celly entre leões, espantalhos, homens de lata e mágicos de oz (mora no feroz romantismo infante antropofágico?). e ela celebra-chora que "não tenho namorado", sofrendo a vigilância do mano tony e lhe contando que sairá, nesta noite, com pedro álvares cabral & outros vultos históricos impressos na livrolândia (mora no apelo, er, teen?). no hit "banho de lua", ela toma um banho de lua (nua?), fica branca como a (de) neve, deita-se amiga do luar tão cândido (mora na ambivalência?)...

tony campello, "baby... rock!" (1960) - sob o codinome "o broto da juventude", o rapazote se lambuza no mel derramado de "romântica", perdido no tempo entre o passado de dick farney e tito madi e o futuro de sergio murilo e roberto carlos. era tempo de transição, de transição que faz história com "h" minúsculo e depois vira poeira de estrela nas enciclopédias oficiais.

the jordans, "a vida sorri assim!..." (1962) e "suspense" (1963) - twist, hully-gully e surf music instrumental à brasileira, "lalaris" de suporte, suspense, mistério, "terrir" e o arcabouço sonoro que, pouco depois, faria as cabeças de roberto, erasmo & dez entre dez dos mais rebeldes roqueiros românticos da primeira dentição pop-rock brasileira. do lindo lago do amor drenados pelos papais jordans & seus vizinhos, brotariam filhotes feito lulinhas, em formato de titãs, paralamas dos sucessos, legiões urbanas, barões vermelhos, iras, ultrajes a rigor...

trio esperança, "nós somos o sucesso" (1963) - até hoje deixada de banda pelos consumidores mais, er, "sofisticados" de música popular, a família corrêa constituía um prodígio, um prodígio, um prodígio. eva, regina e mário eram as três pontas do triangular trio esperança, num fenômeno assim tipo celly campello de vozes infanto-quase-juvenis, num ataque assim de descida ao inferno do país das maravilhas das criancinhas ardidinhas. o imaginário era de pleno infantilismo bem bobinho, tipo "filme triste", mas ocultava nas microvilosidades samba-jazz ("bolinha de sabão", do espetacular orlandivo), lounge-delícia ("passo do elefantinho", versão do "baby elephant walk" de henry mancini - esse considerado "chique", aqueles mantidos "bregas" até que um meteoro caia sobre nossas cabeças). o pendor zoológico também enjaulava uma "pombinha triste" (do animador josé messias) e "o sapo", da dupla jayme silva-neuza teixeira - os autores, lembra?, de "o pato", que todo mundo ama na voz de joão gilberto sem molestar no joão as infantilidades, as zoofilias ou as letras debilóides. até que um meteoro ou uma lava de vulcão desjoãogilbertize nossos dogmas.

trio esperança, "três vezes sucesso" (1964) - a bossa negra já se inseria nas vozes dos pequenos esperançosos, como evidencia a bem infantil "meu bem lollipop", em comparação com a gravação da branquela wanderléa. as versões tipo arapuca para pequenos pássaros humanos proclamavam que estava "tudo dominado", ou quase tudo - escapava pela tangente, por exemplo, o samba-jazz-bossa-soul-iê-iê-iê "passarinho sem bossa", das plagas surreais de mr. orlandivo. perdido na imaturidade incontornável, o trio esperança ainda estava milhas distante da sonoridade soul simples e sincera que os caracterizaria do final da década de 60 em diante, já sem evinha na formação - esses discos, infelizmente, até hoje nunca saíram do acervo da (emi) odeon para o suporte cd. escondem jóias raras, raríssimas, qualquer coisa de sensacional.

golden boys, "the golden boys" (1965) - a família corrêa não terminava mais: para lá do trio esperança, os irmãos ronaldo, renato e roberto, mais o primo waldyr, constituíam os golden boys, que seriam talvez dourados no nome, mas (bem) dotados de harmonias vocais black, black, muito black - pelas quais fariam o acompanhamento quase anônimo de dezenas de astros mpb décadas afora, de roberto carlos a jorge ben jor. o mais brilhante grupo vocal da jovem guarda apresentava aqui um disco especialmente brilhante, de cujo cortejo de versões sairia o futuro clássico brasileiro-estrangeiro "erva venenosa", versão iê-iê-iê para "poison ivy". mas o setor de entortar era de samba-jazz, sambalanço, samba-soul, que evocava os vocais redondos de wilson simonal e, no melhor momento, rendia a festa-baile suburbana "toque balanço, moço" ("moço, toque balanço/ toque balanço, seu moço, senão eu não danço"), música negra entregue aos negros gatos dourados pelos branquelos suburbanos roberto carlos e erasmo carlos.

wanderley cardoso, "o jovem romântico" (1965) e "perdidamente apaixonado" (1966) - a faceta mais derramada, mais açucarada, mais exagerada, mais gritona, mais chorosa, mais exacerbada, mais desesperada da jovem guarda: seu nome era wanderley, wanderley cardoso. aqui, o rock era atirado para longe num peteleco, em favor de edulcoradíssimas choradeiras extraídas de repertório latino superlativo, sobretudo das hostes de gotejante romantismo italianado. robertão ficou inseguro, nervosinho, enciumado, mas deve ter sido mais dos olhos azulões que do poder pop - wandeco ficaria preso na gaiola dos arroubos precocemente envelhecidos à moda de anísio silva, conquistando legiões urbanas e suburbanas de fãzocas, mas sem se igualar à sinceridade "cafona" explícita de odair josé, núbia lafayette e uma multidão (nada) silenciosa de cantores fetios para o (e pelo) povão. o elo perdido canastrão teria por sobrenome cardoso, como um tal f(h)uturo presidente da república.

deny e dino, "coruja" (1966) - o doce e infame nonsense abrilhanta a faixa-título, explicando que "coruja é a indiferença de um brotinho encantador/ coruja é um nome feio que nos causa até tremor" (a dupla vinicius de moraes & elis regina tomaria sofregamente esse mesmo mote em 1980, quando ela soluçasse, n'"a arca de noé", que "corujinha, corujinha, que peninha de você"). o faro pop corujeiro certeiro de deny & dino se repete em outros rocks compostos de punho próprio, como a pré-psicodélica "o estranho homem do disco voador" - enquanto inseria o brasil na rota ainda inconsciente da psicodelia, o rock romântico da dupla também enviava ao brasil momentos de quase-densidade, como "meu pranto a deslizar", versão adolescente para a arrebatadoramente melódica "as tears go by", do repertório feroz dos rolling stones (ops, mencionei!). sim, era pura inconseqüência, mas num arco de tempo-espaço em que cabiam jagger & richards e vinicius & elis (esses porque no futuro revogariam o tremor bocó da duplinha, admitindo que "corujinha, corujinha, como eu gosto de você").

golden boys, "alguém na multidão" (1966) - o tino comercial da exótica mistura entre samba-jazz e iê-iê-iê (alô, mr. simonal) não deve ter sido suficiente para mais que uma temporada, pois em 66 os golden boys retornaram eximidos do sambalanço e coalhados de versões beatles (e quase beatles) dos pés à cabeça. o rock-balada bobinho destinado à posteridade era mesmo brasileiro, apesar de composto pelo versionista contumaz rossini pinto: "há um alguééééém/ na multidããããão/ que vai lhe adoraaaaar/ com devoção"...

deny e dino, "deny & dino" (1967) - as letras continuavam moralistas como de praxe, mas a tropicália caiu sobre o iê-iê-iê no vestuário e nas construções musicais deste cândido lp, concebido no enorme espaço de tempo entre antes e depois do primeiro álbum dos mutantes, entre antes e depois da trans-tropicalização de caetano veloso. múltipla por excelência, a instrumentação de "deny & dino" vive de ruídos, fanfarras, orquestras, violinos, romantismos beatle, ecos de serge gainsbourg ("pra ver você chorar"), pitadas psicodélicas, barulheiras pós-iê-iê-iê e até marchinha carnavalesca (siiim!, em "infidelidade"). o ápice de hibridismo inconseqüente acontecia no rockarnaval de guitarras distorcidas "é o fim", uma jóia incrustada no passado sambapop brasileiro. a prova cabal se encontra nos últimos sulcos do lado a do velho lp, numa marcha marcial (militar?) chamada "o ciúme" (lançada anteriormente em compacto), cuja introdução pouco depois seria reutilizada e subvertida por caetano para "enrockescer" e pós-modernizar os festivais da canção e a música popular brasileira; "alegria, alegria" nasceria de amor & ciúme por "o ciúme", que, por sua vez, discursava que "se há ciúmes é porque existe amor", para então resolver que "não é preciso ter cíúmes, pois é teu meu coração/ por que fazer da paz revolução?". caetano deve ter ouvido e decidido: ia fazer da paz revolução. "deny & dino", uma das granadas de artilharia, ficaria para trás como elo perdido - possuía a genialidade mansa e sonsa dos elos perdidos.

eduardo araujo, "o bom" (1967) - versão mais atabalhoada e desengonçada da simpatia bruta de erasmo carlos, eduardo araujo produzia lá seus rocks rebeldes-enfezados, como o gabola "o bom" e o clássico "vem quente que eu estou fervendo" (de resto mais duradouro na voz de erasmo.) mas agia numa faixa mais interiorana, de inflexões com o country rock da gringolândia (hello, brokeback mountain!), a futura canção cafona dos anos 70 e a música caipira brasileira (a parceria nada litorânea entre o interiorano de minas gerais e um mentor capixaba de cachoeiro do itapemirim não podia dar noutra). o mentor capixaba era o homem que no passado estivera por trás do iniciante roberto carlos e do iniciante erasmo carlos: carlos imperial. a influência do boss se fazia sentir também pela presença das tonalidades pueris da pilantragem de wilson simonal (de que imperial também era um dos mentores), como em "faz só um mês", no medley com "meu limão, meu limoeiro", no grosseiro "golpe do baú" ("barriguda/ nariguda/ zarolha ou caolha é genial/ banguela/ careca/ maluca, pé de cana, não faz mal/ o que interessa é que ela tenha o tutu") e em "viva o divórcio". essa última, simpaticamente cafajeste, era tema ousadíssimo para aquele período de tamanho moralismo militarizado: "quando o divórcio vier/ todo mês eu vou trocar de mulher".

sérgio reis, "coração de papel" (1967) e "anjo triste" (1969) - prova incontestável de que um dos muitos filhotes da jovem guarda se chamaria música sertaneja é sérgio reis, flagrado nos seus primórdios como o roqueiro cândido de temas como o melado "coração de papel" e até versões já levemente acaipiradas dos beatles ("amor, nada mais", versão em letra lerda de "here, there and everywhere" - bem, a gente gosta, mas no original beatle as letras já eram mesmo lerdas de dar torpor, né?). parada pré-sertaneja seria a da canção cafona dos anos 70, com que serjão já se parecia em temas de beira de estrada como as quase alegres "essa eu não entendi" e "é mentira o que você ouviu". no álbum "anjo triste", as baladas cafonas persistem, com lugar até para um histrionismo vocal à moda de roy orbison (na versão de "lana"); mas um coral soul-gospel vinha trazer doce estranheza a "agora quem não quer sou eu" - sim, até sérgio reis acompanhou à distância o "pretejamento" do pop de roberto & erasmo pelas mãos e cordas vocais de dr. tim maia. mas o vozeirão impostado e canastrão é que não combinava com os órgãos à lafayette e o fofo pretume pop de "agora quem não quer sou eu" e "eu vou cada vez melhor"... e graças a isso, provavelmente, o brasil ficaria sabendo década e meia depois que "panela velha é que faz comida boa"...

silvinha, "silvinha" (1968) - futura vocalista favorita para jingles e backings, silvinha iê-iê-iê era ardida e avançadinha a ponto de se deixar entontecer pela loiridão de um "professor playboy" sem os píncaros de romantismo adocicado das wanderléas de pouquíssimos anos atrás. mais bebê-bibelô era o discurso de "minha primeira desilusão", que não faria nenhuma mamãe corar em 1963. o gaúcho luis vagner, futuro samba-roqueiro, compunha com o parceiro d'os brasas tom gomes temas ainda pinçados no romantismo, ainda não impregnados da black music corpulenta de pouco tempo depois.

evinha, "eva 2001" (1969) - a assinatura de recomendação era de peso e ia se revelar, com o tempo, uma maldição: wilson simonal trombeteava evinha, ex-trio esperança, como uma das vozes do futuro do brasil. o que o brasil não soube foi que talvez fosse mesmo, se o brasil fosse suave como a voz de evinha. não era, mas o disco de estréia resiste a tempo bom e a tempestade, se você não quiser se apegar aos cânones que foram avisando, com o passar do tempo, que evinha não valia. o cardápio soul-rhythm'n'blues-pop-easy listening-tropicália-negra inclui delícias minúsculas de marcos valle & paulo sérgio valle ("os dentes brancos do mundo" e "tigre da esso que sucesso", essa com o som 3 de cesar camargo mariano no acompanhamento), antonio adolfo & tibério gaspar ("psiu"), nonato buzar & paulo tapajós (a tontinha "estorinha"), tito madi & armando henrique ("vou seguindo")... o clássico ligeiro de impecável docilidade é "casaco marrom (bye, bye, cecy)", do mano renato corrêa com gutemberg guarabyra e danilo caymmi, tão meiga e tão propícia à aurora das novelas globais musicadas quanto "teletema" (1970), de antonio adolfo & tibério gaspar, incluída como faixa-bônus no final do cd.

evinha, "evinha" (1970) - o segundo álbum solo da nossa pequena eva começa límpido e grandiloqüente, com o "tema de eva" de taiguara, emendado com uma versão dulcíssima de "something" (1969), dos beatles. a montanha-russa de veludo segue cafona-chique com ivan lins (em sua versão pré-histórica e altamente black) & ronaldo monteiro de souza ("agora" e "pense duas vezes"), antonio carlos & jocafi (na ironicamente modernex - e preconceitex - "cavaleiro de papel crepon"), joyce ("abrace paul mccartney por mim", bossa + beatles + branca negritude, surpresas no baú de joyce), guarabyra & renato corrêa (a fofíssima "setembro"), antonio adolfo & tibério gaspar ("em trânsito", "pela cidade")... entre as faixas-bônus, há mais adolfo & gaspar em versão pós-interiorana ("ondas médias") e mais furacão marcos valle ("pigmalião", também das engrenagens emergentes das novelas globais). [a nota dissonante: a emi conseguiu se atrapalhar e trocou os rótulos e os conteúdos dos dois cds de evinha. no rótulo "eva 2001" está o conteúdo de "evinha", e vice-versa. qual deles é preciso comprar na origem para adquirir cada qual eu não sei, não me pergunte, já queimei fumaça aqui tentando entender a confusão...]

acho que é isso..., cansou?

e o chapéu de caubói e os óculos féxon do bono, menina!, você viu??? (ops, mencionei de novo, êta, mania porreta de ver duendes!) vanguarda moderninha, anfetamina sonolenta, iê-iê-iê dos 80, te contei?, não?... hmmm, soninho, bye-bye, cecy...

p.s. póstero: foto-bônus em homenagem a ronnie von, gênio dentro-fora do eixo tropicália-iê-iê-iê, infelizmente não citado na enciclopopédia acima. no flagrante feito pela tv gazeta, ronnie e seu konvidado xupam dois sukulentos pikolés de xuxu:

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

a música fora do eixo

vamos inverter um pouco a ordem e mudar um tanto o eixo, para falar um minuto sobre hoje, mais que sobre ontem e amanhã?

minha reportagem na "carta capital" 380, de 15 de fevereiro de 2006.


A MÚSICA FORA DO EIXO
Novas tecnologias turbinam um imenso mercado informal à margem do império das gravadoras e da mídia. um caldeirão cultural que mistura tradição e futurismo

Por Pedro Alexandre Sanches

Quem pensa que conhece bem a música brasileira precisa reavaliar suas certezas neste início de século XXI. Basta deixar de lado por um momento o que está nas lojas, no rádio e na tevê e ouvir um pouco dos sons e das histórias vindas das periferias (geográficas e econômicas) do Brasil para perceber que algo novo está em curso.

Os novos paradigmas parecem se concentrar e se encontrar todos no extremo norte do País, na pujante cena musical de Belém do Pará. Assim o antropólogo Hermano Vianna descreveu o ambiente das "festas de aparelhagem" que forjaram o gênero "tecnobrega", uma convergência mestiça de ritmos brasileiros e caribenhos, música tradicional, "cafona" e eletrônica, romantismo de Roberto Carlos e tecnologia de DJs: "Quando as novidades são apresentadas, os fãs-clubes das aparelhagens vão ao delírio, com braços para cima, como se estivessem saudando a aparição de uma divindade, o totem da tribo eletrônica da periferia de Belém".

É a periferia da periferia que se move ali. Todo um mercado informal se desenvolve sem freios a partir dos bailes de aparelhagem, de artistas pobres que manipulam música em computadores caseiros e de camelôs que espalham a caudalosa produção em CDs de MP3 em que cabem centenas de músicas.

Cenas semelhantes se reproduzem nas periferias de cada Estado.

Nas ruas de Salvador (BA), meninos pobres vendem, por R$ 5 cada, discos de rap, música eletrônica, percussão afrobaiana e canções infantis fabricados por eles próprios num projeto coletivo chamado Eletrocooperativa. Com sede no Pelourinho, a instituição é um projeto artístico-educacional: para aprender a manipular tecnologia, usar computadores e produzir música, 50 dos 307 jovens atualmente atendidos ganham carteira assinada, vale-transporte e alimentação, cesta básica etc. O único pré-requisito é estar cursando ou ter concluído o segundo grau.

Em Cuiabá (MT), 12 jovens cidadãos se uniram na criação do Espaço Cubo, uma central autônoma que organiza, entre outros empreendimentos, a cooperativa de músicos Volume, o selo Cubo Discos, os festivais de música Calango e Grito Rock, o Estúdio Cubo de gravações e ensaios, a Agência Cubo de Bandas e ações educativas diretas em escolas públicas locais.

Durante a edição mais recente do festival Goiânia Noise, em dezembro passado, a capital de Goiás testemunhou não apenas shows de rock pesado, mas também a fundação da Associação Brasileira dos Festivais Independentes (Abrafin), congregando produtores de festivais de estilos musicais diversos de vários Estados periféricos do País.

Na mesma ocasião, foram lançadas também as diretrizes de criação do Circuito Fora do Eixo, com portal na Internet, programas de rádio, distribuidora de discos etc. Nas palavras de um dos participantes, Pablo Capilé (que também integra o Espaço Cubo), "englobará os estados historicamente alijados das benesses estruturais do eixo Rio-São Paulo, incluindo, no primeiro momento, Acre, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Sergipe".

Também em dezembro, acontecia em Salvador a sexta edição do Mercado Cultural da Bahia, misto de feira cultural e festival cuja parte musical agrupou dezenas de artistas dos mais diversos estados do País (inclusive Rio e São Paulo), da América Latina e até da Escandinávia. Todos pertencem às delimitações habituais da dita música de qualidade. Nenhum deles porta vínculos com as outrora hegemônicas gravadoras multinacionais.

São apenas algumas das inúmeras demonstrações de que um outro Brasil musical se desenrola para além dos limites habitualmente cobertos pela mídia que orbita no eixo Rio-SP. Esse outro Brasil é em tudo diferente do cenário pintado nos últimos anos pelas grandes gravadoras de discos, que repetidas vezes previram "a morte da música", caso não fossem contidos o avanço da pirataria e os usos e abusos da tecnologia. Enquanto assim se posicionavam, a música contornava previsões e ameaças para se fazer mais viva que nunca, em cada canto do País.

A informalidade ainda é uma das marcas de fogo do novo momento, mas parece já ficar para trás o embate simbólico que caracterizou a fase anterior, de gravadoras e músicos "honestos" de um lado, piratas "criminosos" de outro. É uma das características da cena paraense, segundo Vladimir Cunha, que prepara o documentário Brega S/A, em busca de destrinchar as transformações por que passa a cadeia produtiva local de música.

"Nem se pode falar em pirataria, porque não há ninguém ali recolhendo imposto ou direito autoral. É um marcado informal, efêmero, sem regras. Os artistas são muito pobres, mas com R$ 50 gravam uma música. A maioria das pessoas nem vive de música: trabalha no comércio de dia e canta à noite. Transitam entre o estrelato e a pobreza", avalia.

Cunha segue a rota informal do sucesso: "Belém é isolada do Brasil, mas fez uma relação forte com a tecnologia. O tecnobrega é todo digital, não existem mais gravadoras nem estúdios. É tudo feito no fundo do quintal. O atravessador do pirata passa de casa apanhando os MP3 que o camelô vai vender. Se a música ficar popular no camelô, será tocada no baile e renderá mais shows para o artista. Na festa, ele manda abraço para a galera do bairro, o show é gravado na hora e na saída já está à venda. O cara compra porque foi citado".

Caem em desuso esquemas tradicionais de jabaculê (o suborno entre gravadoras e mídia que infla artificialmente a execução radiofônica e televisiva de "sucessos" populares), segundo ele. "O camelô não cobra jabá, na aparelhagem não se paga para tocar. Não interessa para eles se o Zezé di Camargo está perdendo dinheiro, porque não se trata de pirataria."

A informalidade avança e toca no sistema oficial: o produtor Beto Metralha, residente do bairro periférico de Jurunas, é um dos que gravam sozinhos, em esquema 100% caseiro, programas de rádio e tevê que divulgarão o tecnobrega nas repetidoras locais de estações nacionais como a Rede TV! e mesmo a Cultura, antes refratária à música que não corresponde a padrões estabelecidos de qualidade.

Dessa mesma cena brotou o grupo que é o atual recordista em shows e discos vendidos (5 milhões, em seis anos de existência) e, por isso, furou a própria invisibilidade na mídia e já passeia com desenvoltura pelos programas dominicais da tevê aberta nacional. A Banda Calypso abandonou a informalidade e desfruta de estrutura profissional, com produtora e gravadora próprias, sediadas em Recife (PE).

A imagem de informalidade e independência que há anos floresce nos morros do Rio (com o funk carioca) e na periferia paulistana (o hip hop) apresenta Belém como um terceiro pólo, mas se esparrama pelo País, com o forró amazonense e cearense, o lambadão mato-grossense, a tchê music gaúcha, o arrocha baiano e assim por diante. Todas agregam uso universal da tecnologia com saberes musicais locais e formam uma rede espontânea que circula de periferia em periferia.

Se nessas cenas ainda prevalecem a informalidade e os subempregos, o processo de profissionalização também se acelera Brasil afora.

É o que ocorre na Eletrocooperativa baiana, que lançou no final do ano uma série de CDs autoproduzidos pelos alunos, dispersos entre hip hop com acento local (Afrogueto, Império Negro) e ritmos locais entremeados com recursos eletrônicos (os discos Caçuá Eletrônico, Eletropercusiva e O Folclore – A Alma dos Povos), entre outras fusões.

O CD coletivo Eletro Erê, por exemplo, reveste cantigas de roda como Boi da Cara Preta e Se Essa Rua Fosse Minha com percussão baiana e rap. "A intenção é tirar um pouco a sexualidade de pauta da criançada. O universo lúdico está esquecido nas festas infantis, é só boquinha de garrafa, festa no apê", justifica o baiano Reinaldo Pamponet, um dos criadores da Eletrocooperativa.

Uma das âncoras do projeto é o apoio psicológico aos jovens ali atendidos. "Ensinamos música e tratamos de temas transversais como drogas, violência, sexualidade, paternidade responsável, o valor do dinheiro, cidadania. A idéia é que, quando chegarem ao mercado de trabalho, eles tenham vivido sempre no coletivo. Alguns reagem ao acompanhamento psicológico, dizem 'eu não sou maluco', mas quem quiser continuar vai ter que se analisar, sim".

Outra experiência de organização é a do Espaço Cubo, de Cuiabá, que chega à sofisticação de ter cunhado uma moeda própria, o Cubo Card. Pablo Capilé explica: "É um sistema de créditos que auxilia na profissionalização dos artistas e nas inter-relações entre o instituto e a classe, uma moeda de troca de prestação de serviços. Por exemplo, a banda toca em uma produção da Cubo Eventos e recebe 300 Cubo Cards. Cada um equivale a R$ 1,50, e ela pode trocar esses créditos por ensaios, gravações, assessoria de imprensa, locação de equipamentos etc.".

O grupo parece se profissionalizar e se politizar ao mesmo tempo, mantendo contato constante com poderes locais e federal. "É nossa obrigação nos organizarmos. A verba para cultura é de todos e para todos. Temos que acabar com os 'carlismos', 'caetanismos' e 'barretismos' a que somos submetidos. Não podemos ficar só apresentando projetos e esperando a aprovação, temos que nos mobilizar", discursa Capilé.

Caso equivalente é o dos produtores de festivais Brasil afora que passaram a se reunir e a se organizar em classe, sobrepujando até questões estéticas e de rivalidade entre subgêneros musicais.

Os associados de primeira hora vêm de festivais de rock pauleira a música eletrônica. Vão da surf music do Primeiro Campeonato Mineiro de Surf ao evento de discussões conceituais e tecnológicas Porto Livre, do grupo pernambucano que coordena desde 1993 o Abril pro Rock. Passam por Natal (Festival do Sol), Uberlândia (Jambolada), Brasília (Senhor Festival) etc.

"Percebemos que era preciso encontrar um jeito de nos fortalecer em conjunto, em vez de ficar chorando as pitangas uns para os outros", sintetiza um dos pilotos da Abrafin, Fabrício Nobre, dos festivais goianos de rock Bananada e Goiânia Noise e da gravadora independente Monstro.

Após revelar a cena mangue bit pernambucana e vários outros brasis para o Brasil, o Abril pro Rock vai um passo além na profissionalização e luta por se internacionalizar. Seu organizador, Paulo André Pires, se desdobra também no agenciamento internacional de carreiras artísticas como as da Nação Zumbi e do DJ Dolores.

"É difícil sobreviver somente aqui, ouvindo patrocinador pedir para incluir o Capital Inicial. Não investimos em trazer atriz e ator da Globo para dar pinta, se estivéssemos nessa de dinheiro já teríamos saído fora há muito tempo", justifica Pires.

Outro formato que se divide entre dialogar com a terra natal e com mercados exteriores também periféricos é o Mercado Cultural da Bahia, definido pelo diretor Ruy Cezar como uma iniciativa para fomentar um mercado de música de qualidade, algo "que a grande indústria não promove" – e que nessa sexta edição reuniu 600 artistas e 800 especialistas de cultura de vários países.

O curador musical é Benjamin Taubkin, que vem de outra iniciativa descentralizadora, a do projeto Rumos, do Itaú Cultural. Uma das chaves do projeto, segundo ele, se concentra nos debates, para os quais procura adotar o seguinte norte: "A gente não faz seminário de lamentação. Tem problemas? OK, como é que se contornam os problemas? Um péssimo vício nosso é essa idéia de que precisamos salvar o Brasil, mas quem salva sou eu, não você. Uma andorinha não faz verão, a cultura se modifica por vários".

"Achei que o papel fosse buscar a diversidade musical das várias regiões do Brasil. O que queremos é que cada trabalho selecionado tenha ligação com sua origem. Pode ser rock, rap ou música eletrônica, desde que tenha um pé na sua região", completa Taubkin, ele próprio ancorado na tradição da música instrumental.

De tal conceituação surge um festival que, embora mais dedicado à comunidade cultural que ao público consumidor, estabelece parâmetros aos quais o Brasil só agora começa a se acostumar. Na volumosa programação, convivem pacificamente gêneros e artistas os mais diversos. Eis alguns exemplos díspares, testemunhados em dezembro por CartaCapital:

O poeta, cordelista, repentista e cantador Bule Bule, de Feira de Santana (BA), apresentava seu samba de roda mais rural que urbano, sem entrar em contradição com o discurso sócio-político do grupo de hip hop Faces do Subúrbio, de Recife (PE). O Trio Manari, do Pará, extraía jazz e sambão de reco-recos indígenas gigantes, enquanto os rapazes do Naurêa despejavam em ritmo de "forrock" os lemas "como é bom ser brasileiro" e "como é bom ser sergipano".

No Teatro Castro Alves, Vitor Ramil evocava a melancolia, o frio e as milongas do Rio Grande do Sul; em praça aberta, o grupo Lado 2 Estéreo, do Piauí, exibia um híbrido de drum’n’bass, "samba black power" e rock militante anti-discriminação racial e social. No palco, Josh, do Lado B Estéreo, provocava os anfitriões: "Mandaram eu colocar a camiseta de volta, porque aqui é a Bahia. Tirei porque lembrei que aqui é a terra de Carla Perez".

Josh tenta resumir o ambiente em que virou artista: "Teresina é uma cidade que vive sob o padrão Globo de sucesso. Não fazemos parte de nenhuma cena que temos que seguir. Uma vantagem que no início era dificuldade é a gente ser de uma cidade improvável. É um estranhamento".

O Brasil musical que resulta dessas tantas imagens díspares é complexo, diversificado e em nada uniforme como faziam supor, ao longo dos anos 90, gravadoras e mídia. Dilui monoculturas como as de axé music, pagode urbano e canção sertaneja, assimilando-as e as revestindo de diversidade que antes não possuíam.

No pólo Norte, por exemplo, Daniel Zen, organizador do festival Varadouro, manda notícias sobre a nova música do Acre: "A contradição/fusão entre urbano e florestal, típica das cidades amazônicas, constitui a poética de boa parte das bandas daqui, o que demonstra uma identidade local, que reúne essa contradição urbana/florestal".

No pólo Sul, Marcelo Domingues, do DemoSul, dá informações diversas, mas semelhantes, sobre Londrina (PR): "Hoje, há cerca de 80 bandas em atividade na cidade, variando entre o rock, o pop e a MPB. São lançados de 15 a 20 CDs por ano, alguns pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura e outros por iniciativa independente de selos como Lab Records, que era direcionado apenas a punk e hardcore e agora começará a lançar outros estilos".

De volta ao Pará, Vladimir Cunha ensaia a síntese entre tantas possibilidades díspares, defendendo ao mesmo tempo a qualidade popular do tecnobrega e novos diferenciais estabelecidos por bandas de rock como La Pupuña e Suzana Flag, que adotaram o português e as referências musicais locais lado a lado com fascínio "universal" pelo pop-rock anglo-americano.

"São alunos de música e chamam artistas do tecnobrega para tocar com eles, chancelando-os não mais como paródia. São formados em música e se aproximam da periferia para começar a entender o lugar em que vivem", afirma, consciente de que Belém não quer ser Londres, Hollywood, a Rede Globo ou São Paulo. Belém quer ser Belém – e isso talvez comece a se estender a cada cidade do Brasil.


NA ERA DAS GRAVADORAS DE ESQUINA
"A indústria fonográfica tradicional perdeu conexão com o gosto popular", avalia o antropólogo Hermano Vianna

Uma das figuras estratégicas no acompanhamento da descentralização que vive a música brasileira é o antropólogo Hermano Vianna, que co-dirigiu com o produtor Beto Villares o projeto Música do Brasil, uma espécie de atualização das expedições de Mário de Andrade (1893-1945) rumo às musicalidades do Brasil profundo.

Vianna cultiva ramificações íntimas com a cultura oficial: é próximo tanto de Caetano Veloso, quanto da Globo, quanto do ultracomercial Tim Festival, quanto do Ministério da Cultura de Gilberto Gil. Mas também atua como um ideólogo do outro lado da moeda, como mostra na entrevista a seguir.

CartaCapital: A música do Brasil não precisa mais de gravadora, tevê em rede nacional, rádio, jornal e revista?

Hermano Vianna: A música mais popular no Brasil não precisa mais de nada disso. O pessoal se cansou de esperar oportunidade, de reclamar da falta de espaço e atenção das gravadoras. Partiram para a ação, aproveitando o desenvolvimento tecnológico que tornou fácil e barato que qualquer banda produza seus discos. Onde há um computador com gravador de CD, há uma gravadora. Então, há gravadoras em praticamente todas as favelas brasileiras. Quase todas as favelas agora têm lan houses, já reparou?

O sucesso da Banda Calypso não foi produzido por gravadoras, e só quando já haviam sido vendidos milhões de CDs nos camelódromos as rádios e tevês passaram a tocar. Todas as bandas do forró eletrônico cearense já produziram DVDs, inventando uma nova indústria audiovisual que não depende de Lei Rouanet, mas abastece os bares de periferia. O lambadão cuiabano e a tchê music gaúcha inventaram suas economias paralelas, que só são paralelas do ponto de vista da grande mídia.

Quando leio as estatísticas de queda da indústria fonográfica, fico surpreso. Todas essas bandas fora da indústria vendem muito, os shows estão lotados por multidões, mesmo nas regiões mais pobres. Foi a indústria fonográfica tradicional que perdeu conexão com o gosto popular. Nos camelôs de Belém, toda semana há lançamentos novos de tecnobrega, com as músicas que estouraram no último domingo nas festas da periferia paraense. A indústria fonográfica não tem essa agilidade.

CC: A música brasileira vive um processo de descentralização?

HV: A descentralização é inegável. Não aconteceu por projeto político, até porque a maior parte dos movimentos políticos "conscientes" despreza essas músicas, condenando-as como alienadas ou lixo cultural. Mas aconteceu, em todos os lugares ao mesmo tempo. As gravadoras lançam quantos artistas por ano? E quanta gente faz música pelo Brasil? É uma multidão que fica de fora. A multidão resolveu lançar seus discos. Não é mais um movimento centralizado no Rio e em São Paulo. Cada cena desenvolveu modelos diferentes, adaptados à realidade local. São maneiras experimentais de produzir, divulgar e ganhar dinheiro com música. E as periferias se comunicam entre elas, sem depender de Rio e São Paulo. Já há uma rede nacional de comunicação paralela, que não é mais centralizada.

CC: Onde você colocaria, nesse tabuleiro, a produção musical dita intelectualizada?

HV: Acho que é mais dependente do esquema antigo. Ainda fica esperando que uma grande gravadora venha salvá-la. Acreditamos que a música boa é produzida por artistas geniais, por criadores privilegiados, não é? Eles são admirados como pessoas superiores. Suas criações devem ser protegidas e perpetuadas como se fossem de vidro frágil, como se tudo conspirasse contra elas. Essa concepção de arte é recente, apareceu com o Romantismo europeu. Antes música era uma produção coletiva, sem "autores" e "direitos autorais". Isso continua a acontecer na maior parte das festas populares brasileiras. As pessoas ali têm uma relação diferente com a música: tudo é brincadeira de todos. Ninguém está ali para reverenciar quem está no palco. Quem está no palco é igual a quem está na platéia.

CC: A cisão entre centro e periferia na música, que você tem descrito, é irremediável? Como se poderiam reconciliar essas duas pontas que não se compreendem uma à outra?

HV: Uso as palavras centro e periferia como provocação. São muito carregadas, muitos grupos diferentes acham que são donos delas. Gosto de bagunçar o coreto dessas fronteiras: tudo que acontece de interessante passa sempre de um lado para o outro. Se não fosse a indústria de informática do centro do império norte-americano, nenhuma dessas novas músicas periféricas existiria. O mundo é felizmente mais complexo do que um jogo com dois lados. Há muitos lados. Sempre gostei de mediação.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

a montanha do dar-de-ombros

névoa

ei, tu, cara-de-tatu. pega teu preconceito mais recôndito, aquele que mais te incomoda porque, quanto mais tu tentas expeli-lo pelo cuspe, mais ele te corrói por dentro.

ei, você aí. que tal levar seu preconceito para passear um pouquinho?

dê uma volta com ele. passeie pelas calçadas, vá pela sombra. mostre ao seu preconceito os cachorrinhos no pet shop. juntos, façam muxoxos às crianças de 12 anos entupidas de consumismo mórbido de shopping center.

ainda que seja difícil, respeite seu preconceito. pague-lhe um sorvete. evite o marketing nas vitrines, sucumba ao marketing onipresente: carregue o seu preconceito para dentro do cinema, conduza-o a assistir um filmão hollywoodiano cotado para ganhar o oscar. compre um saco grande de pipocas.

pague duas entradas, uma meia para você, uma inteira para o seu preconceito. colabore na campanha benemerente que levará o dramalhão da hollywood mountain a faturar bilhões de dólares mundão pobre a fora e umas estatuetas de marketoscar no ex-epicentro do planeta.

e, bingo!, pegue-se de repente de mãos dadas com seu preconceito, no escurinho do cinema, entre beijos lânguidos (de língua) e fogosos, enquanto "brokeback mountain", de ang lee, se avoluma diante de seus (quatro) olhos.

goste. emocione-se um pouquinho assim, ó. derrube uma lágrima furtiva, mas saia do cinema dando de ombros para o "western gay", por não ter se identificado tanto assim.

então olhe de novo para seu preconceito, veja como ele está mudado. pergunte-lhe se gostou do filme (com jeitinho, para não magoá-lo).

molhe seu preconceito com um copinho d'água gelada (antes, faça um bochecho, tire o sal e os piruás do dente, cuspa). teste seu companheirinho eriçado, umedecendo-o, para descobrir se, depois do filme com que você não se identificou tanto assim, seu preconceito irá proliferar feito gremlins n'água, ou se, pluft!, vai se extinguir feito sal diluído em água doce.

dê soro ao seu preconceito. ele merece.

chuvisque-o de lágrimas, suor, urina, sangue, esperma, sucos vaginais, saliva, catarro. cuspa. engula. aplique um chego, uma chegadinha, um xamego, um bole-bole no seu preconceito.

cuide-se bem, perigos há por toda à parte, e é tão necessário viver. mas cuide do seu preconceito no escuro do seu quarto, à meia-noite, à meia-luz. dispa-o de seu capote "pré", desnude-o, acaricie-o e faça-o gozar feito conceito nu (goze com ele), materializado em pré-pós-conceito, em tudo ao mesmo tempo agora onde tudo se mistura.

mate seu preconceito. deixe-o à míngua de inanição. só então olhe-se despido(a) no espelho e veja-o ali de volta, transmutado feito zelig em sua própria face. repita todo o ritual, moldando-se à sua própria imagem e semelhança como fizera até então com seu preconceito (peça o dinheiro de um dos ingressos de volta na bilheteria).

entenda, com carinhos à farta, que o seu preconceito É você, e que você É o seu preconceito.


flor

o grande lance de "brokeback mountain" está em ser uma modalidade de filme (ou de atitude humana, em termos mais abrangentes) bastante inusual para todos nós, independentemente de nossa própria natureza: é um filme que coloca em xeque e em choque e em confronto e em harmonização elementos que até o final do século passado não cabiam juntos num mesmo compartimento, por serem, aparentemente, 100% incompatíveis uns entre os outros.

antes, como já disse o cantor popular, mulher era mulher, bicha era bicha e a mulata não era a tal. filme gay era filme gay, black movie era para black people (ainda não há tradução precisa em português), filme de faroeste era para joão machão valentão, e assim por diante - e filme branco, masculino e heterossexual podia ser visto livremente por gays, negros e mulheres, porque não havia perigo nenhum de gay virar hétero por assistir ao beijo ardoroso entre um homem e uma mulher, nem havia risco de o sujeito virar michael jackson de tanto se mirar em leonardo dicaprio e nicole kidman, nem mulher nenhuma saía cuspindo do cinema por assistir a tanta violência testosteronizada. tudo que não tinha remédio remediado estava.

pois eis que, entre centenas e milhares e milhões e bilhões de pessoas que estão cerzindo esse mesmo novo tecido nas periferias (e no centro) do mundão afora, ange lee de repente nos aparece com "brokeback mountain".

[ang lee nasceu em pingtung, taiwan, do outro lado do mundo.]

por elegante espírito do tempo, mas também por habilidades ancoradas em psicologia, razão, sensibilidade, emoção e sabedoria, ang lee logrou atravessar as fronteiras que antes não se atravessavam.

moveu ao escurinho do cinema exércitos de pessoas ainda receosas, semi-hipnotizadas, apegadas em proposições-bóias como "não é só um western gay" ou "é uma história de amor universal, que vale para qualquer um". multidões silenciosas entraram no e/ou sairam do cinema ainda amedrontadas, atordoadas - mas certamente modificadas, por terem tido a coragem de pular a barreira, primeiro, e pela experiência vivida, depois.

ang conseguiu colocar "só um western gay" na vitrine histérica do oscar, o que moverá mais e mais multidões silenciosas à doce arapuca armada por ele. tantos
farão como os que já fazem e dirão que "brokeback mountain" só é possível porque não edifica uma história de redenção gay, ou porque se ajusta (por isso mesmo) à américa autopunitiva & atormentada de mr. bush - bullshit! [é só prestar atenção minuciosa às muitas piadas ferinas que ang lee remete ao texas, ao texas de mr. bush. só faltou ser (quase) explícito também ali, mas eu (acho que) entendi. até tu, mr. bush?]

pois então, dear, mr. bush, aí mesmo no coração de sua terra em guerra cega contra o espelho chamado "terrorismo fundamentalista islâmico", ang lee veio de olhos puxadinhos universalizar um tema que até então ainda não saíra desavergonhadamente do armário, com todos os olhos abertos para cenas não só de beijos que não ousam dizer seus nomes, mas até mesmo de - suuuuuustoooo! - sexo anal quase explícito entre dois homens. ninguém perdeu um pedacinho sequer por ter passado por tais cenas, ou será que perdeu?

[alguma saudade do tempo em que fechávamos os olhos, assustados, aos excessos sanguinários de jason, freddy krueger e rocky balboa? teremos doravante de fechar olhos indignados às cenas de sexo quase explícito? acabou a era do subterfúgio, ou alguém ainda precisa dum alien e duma sexta-feira 13 para viver?]

investido de coragem, lee arquitetou a travessia que iria transportá-lo e a seu filme da "sociedade secreta de armário" (alô, bares gays!, alô, opus dei!, alô, candomblé!, alô, maçonaria!, alô, ciganos!, alô, escotismo!, alô, igreja evangélica!, alô, vaticano!, alô, tfp!) para a "sociedade 'normal'" (alô, santa "normalidade" do pauzinho oco!). e se flagrou, ele próprio, executando a travessia que seus dois adoráveis personagens não conseguem concluir, da não-aceitação social à aceitação social, da auto-rejeição individual à franca autoaceitação individual.

ouso dizer que ang lee deve ser outro homem depois da urdidura e do sucesso (intelectual, não indu$trial) de seu filme. se ele quis mover o mundo ao seu redor a partir da movimentação destemida de si próprio, eis.

será que ang lee perdeu algum pedaço no percurso? será que resiste inteiro? e seus espectadores, os resistentes-temerosos e os românticos-ansiosos, os que nunca viram nem quiseram ver o beijo de juninho em "américa" e os que tanto quiseram ver, mas não viram o beijo de juninho em "américa"?

não sei se perdemos pedaços, mas todos, gays e héteros e bis e pans e trans, saímos do cinema em fila silenciosa, assustadiça. independentemente das compotas e cubículos e gavetas em que nos guardamos, cada um de nós, saímos, muitos de nós, desconfortáveis do cinema, matutando que "essa história não diz respeito a mim", "não me identifiquei", "é só um western gay" (no caso dos héteros), "esse filme é bom para hétero ver, não para mim" (no caso dos gays), "não é só um western gay, é uma história de amor universal" (os héteros), "será que lá no fundo esse filme está contando a minha própria história?" (os gays).

ou, hum, atendendo à arquitetura de ang lee e invertendo tudo onde tudo se mistura: "não é só um western gay, é uma história de amor universal" (os gays), "será que lá no fundo esse filme está contando a minha própria história?" (os héteros). e os bis, e os pans, e os trans, e os assexuados, nossa senhora, quanta gente saindo aturdida do cinema!

o desconforto é amplo, venha ele em forma de leve irritação, encantamento, identificação (in)esperada, negação, indiferença, pena, consternação, tristeza, melancolia, gosto amargo de fracasso compartilhado. porque "brokeback mountain" conta, sim, a história pessoal de cada um de nós, na medida em que permitimos, como o casal atópico do filme, que nossos sonhos íntimos se deixem aos poucos, ao longo da vida toda, sucumbir ao rolo compressor de uma entidade opressora e essencialmente feroz e sanguinária chamada "sociedade".

"brokeback mountain" somos nós mesmos porque é (somos) o retrato da opressão intolerante que o nosso vizinho comete diariamente contra aquilo que de mais precioso guardamos dentro do nosso próprio armário.

"brokeback mountain" somos nós mesmos porque somos (é) a mola propulsora da máquina da sociedade, aqueles que calam diante das minúsculas humilhações individuais diárias, que se fazem dia a dia submissos ao rolo compressor que, afinal, foi construído por um monte de pessoas iguaizinhas a (e diferentinhas de) nós mesmos.

"brokeback mountain" é o sujeito desajustado, a ermitã, o pária social, a solitária no sótão, o fascínora feroz, a bela adoecida, o tolo na colina, a moura torta, o mendigo na esquina, a louca varrida. são o homem e a mulher que optaram por dar de ombros e de costas a seus próprios desejos para não aborrecer uma sociedade sem desejos, sem personalidade, sem vida, para não despertar a fera ferida adormecida oculta atrás desta sociedade.

"brokeback mountain" é a "laranja mecânica", a anti-"laranja mecânica". é a montanha-monolito de "2001, uma odisséia no espaço", o antimonolito, aquilo que arde e cura. stanley kubrick morreu, viva o rei stanley kubrick.

"brokeback moutain", dando de costas a dar de costas a si própria, é o século xxi se olhando de frente, cara a cara, sem medo de quem espreita ali atrás. é o mundaréu de gente diferente que não se entreolhava frente a frente embarcando na mesma nau, no mesmo noé, na superfície contínua do mesmo planeta. é um grito pela paz e pela tolerância. mr. bush não se verá do mesmo modo como se via se ousar assistir a "brokeback mountain". ou olhará no espelho e verá osama bin laden, ou gisele bünchen, ou um dos anões amigos de branca de neve.

ops, tropeço. talvez o mais provável seja que mr. texas "billy the kid" bush não assista jamais a "brokeback mountain" (alô, saddam hussein!, alô, mr. fhc!, alô, seu lula!, alô, mano chávez!, alô, madame bachelet!, alô, companheiro fidel!). não se pode ter tudo ao mesmo tempo agora. lamentavelmente a resistência e a intolerância seguem poderosas penetrando feito lança pontuda (ui!) a era de aquário e o século xxi.

mas, ok, a resistência a "brokeback mountain" (daquele tipo tão martelado -apavorado- como "não sou obrigado a ver dois homens se beijando", "não vejo filme de gay"), a esta altura, terá sido a resistência à realidade. o medo de ver "brokeback mountain" é o mesmo medo que mantém espectadores "arrumadinhos" distantes de, por exemplo, "a pessoa é para o que nasce", o filme brasileiro que ousa despir de preconceitos atávicos os corpos lindos de três cantadeiras cegas velhas gordas pedintes de esmolas no sertão da paraíba. alô, maroca, alô, poroca, alô, indaiá.

se você tem medo de "brokeback mountain", de "a pessoa é para o que nasce" e de um punhado de obras novas de arte que estão pintando por aí, prepare-se, porque daqui por diante você há de sentir cada vez mais medo (e não, não é carrie, a estranha, quem veio para te assombrar). são as portas dos armários que estão sendo todas abertas. e o ar que está entrando é tão fresco e refrescante quanto pode ser asfixiante e causador de vertigem para narinas acostumadas por demais à naftalina da hibernação.

porque mofo é veneno, mas ar puro também inebria e entontece. respira fundo, tu. a atmosfera é toda tua - elege o ar que tu preferes respirar, ó, minha flor de quantos sexos e cores e credos quiseres ter.

[p.s.: e eis que este blog se rendeu ao assunto da temporada, ao bochicho da moda, à grande roda compressora que infesta todas as logomarcas planeta afora para locomover mais um bloquebâster fantasmagórico da montanha nada mágica hollywoodiana. este blog não tem patrocinador, não ganhou nenhum centavo por isso, está propagandeando o rolo-ang-compressor-lee à toa, de graça. pirateou uma foto no cyberespaço para ilustrar o tijolaço - dona hollywood não deve se incomodar. a mobília do mundo tá toda revirada, mesmo.]

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

quem fica em casa é caracol?

do túnel do tempo, de volta ao final de 2005, "carta capital" 372, de 14 de dezembro de 2005.

é o samba... e o samba, hein? o samba pertence ao passado? o samba está esperando lá no futuro? ou o samba é hoje? viver é sentir saudades do passado que já foi? seguir projetando um futuro que nunca chegará? e o hoje, onde foi que se escondeu? alguém sabe? alguém viu? alguém procurou?


SEM PRAZO DE VALIDADE
Incansáveis, pioneiros do samba seguem atuantes nos palcos e na estrada

Por Pedro Alexandre Sanches

Lá pelas tantas, num instante à parte dentro de um show de quase três horas de duração, o homem de 92 anos apanha a sacola verde que conservou ali a seu lado o tempo todo. Tenta encontrar, no meio das folhas de papel, a letra copiada do novo samba-enredo da Mangueira, o do carnaval de 2006.

Esse é o único, entre 34 sambas encadeados por um vozeirão que não titubeia jamais, que Jamelão não canta de cor e salteado nessa noite de quarta-feira no Bar Brahma, quase esquina entre as avenidas Ipiranga e São João. Mesmo os versos da paulistaníssima Ronda, de Paulo Vanzolini, ele vai desenrolando um a um, logo depois de constatar o provável esquecimento de quem não a cantava fazia anos e anos.

Estabelecido num hotel de São Paulo enquanto durar a temporada sem dia certo para terminar no Brahma, Jamelão continua sendo a voz do samba, a voz do carnaval, a voz da Mangueira. Mais tarde, ele assim justificará o fato de não ter o novo samba-enredo na ponta da língua: "Às vezes dá um branco. A cabeça está para o outro lado. Estou cantando aqui, mas pensando em coisas lá no fim do mundo".

Jamelão é, hoje, a face mais notável de um fenômeno persistente e intrigante para quem goste de lamentar a marginalidade a que o Brasil insiste em atirar sua dita "música de raiz". Ele alegoriza, em pessoa, a perenidade do samba e a longevidade de seus principais expoentes.

Pois o tempo passa depressa e lá se foram 27 anos desde que Nelson Sargento desabafou, em tom de lamento e de resistência, versos entoados por Beth Carvalho, que davam conta de que o samba "agoniza, mas não morre". O autor da denúncia, hoje com 81 anos, é outro dos que se mantêm em atividade. Acaba de ver lançada, pela gravadora carioca independente Rob Digital, a caixa de quatro CDs Nelson Sargento 80 Anos, e anda nos últimos anos se espalhando pelos ofícios de artista plástico, escritor e ator de cinema e tevê.

"Agoniza, mas Não Morre aconteceu na década de 70, quando o samba estava começando a ser invadido por outros ritmos. Foi quando houve a invasão das escolas de samba pela classe média. Impuseram outra cultura. Mas você vê que o samba luta muito para sobreviver, até hoje", discorre o artista.

O telefonema de CartaCapital também apanha Dona Ivone Lara, 84 anos, com a corda toda, recém-chegada de um show em Curitiba, em comemoração ao Dia do Samba. "Faço um a dois shows por semana. Ainda estou trabalhando, divulgando meu disco Sempre a Cantar (bancado pelo selo francês Lusáfrica). Graças a Deus, nós somos solicitados. Ainda não se esqueceram da gente, não", diz, afirmando que sua onda agora é compor novos sambas com um jovem parceiro, Bruno Castro.

Jamelão, Dona Ivone e Nelson formam, com Jair do Cavaquinho (de 85 anos), Guilherme de Brito e Casquinha (ambos com 83) e Xangô da Mangueira (com 82), a comissão de frente de uma ala secundada por bambas um pouco mais moços, como Wilson das Neves (79), Walter Alfaiate e Elton Medeiros (os dois com 75), Monarco (72)...

Ainda que constantemente desprezado pelas gravadoras multinacionais, o grande samba se beneficia da resistência dos sobreviventes de uma geração que revelou Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulo da Portela, Carlos Cachaça e tantos outros. Mas também conta com vogas sazonais que, ao menos desde os anos 60, proíbem o samba de morrer, até mesmo de agonizar.

A mais recente delas aconteceu em meados dos anos 90, e a partir de 1997 teve no pequeno palco paulistano do Villagio Café um dos centros irradiadores. Quem lembra é Zé Luiz Soares, um dos donos do Villagio e também da gravadora independente Lua Music (que veiculou nos últimos anos CDs inéditos de Guilherme de Brito e Casquinha): "Eles estavam esquecidos, até no Rio de Janeiro. Monarco não pisava em São Paulo fazia cinco anos e Guilherme, sete. Cláudio Camunguelo não vinha aqui fazia 18 anos. A coisa estava feia para o tal samba de raiz, depois de dez anos de hegemonia do pagode mauriçola. Nem na Lapa carioca se falava nisso".

Soares admite que a marola dos anos 90 teve a ver com o advento do projeto Buena Vista Social Club, que reagrupara com sucesso mundial os equivalentes cubanos à nossa velha guarda do samba.

"O ostracismo dos cubanos em muito se assemelha ao dos nossos sambistas. A postura dos artistas é praticamente a mesma: talento de sobra e articulação de menos, pois são pessoas muito simples e de origem pobre, que continuaram pobres", analisa.

E segue pela descrição do lado brasileiro: "É seu Guilherme com 82 anos subindo escadas para chegar em casa, Camunguelo com móveis feitos de caixas de madeira, Walter Alfaiate dormindo há 20 anos num sofá velho. São dramas verdadeiros e inacreditáveis, mais ou menos como a história do Cartola lavando carros".

O testemunho de Dona Ivone Lara, enfermeira aposentada, vai em direção parecida. Ela conta que arcou com suas passagens e as de três músicos para poder ir a Curitiba. "Mas eles têm despesa grande com a gente, pagaram hotel e alimentação. No final, compensa."

Mesmo aí, há variações. A empresária de Jamelão em São Paulo, Beth Dutra, conta que o cachê atual do mais importante intérprete de Lupicinio Rodrigues é de cerca de R$ 12 mil por apresentação. "O Brahma paga um pouquinho menos, mas dá passagem, alimentação, estadia, vôo quando ele tem algum compromisso no Rio. Somando tudo, gira em torno de R$ 10 mil por show", afirma.

Em duas noitadas de Jamelão presenciadas pela reportagem, o Brahma registrava casa lotada (inclusive com caravanas vindas do interior do estado) de clientes jantando, petiscando, bebendo e tendo clássicos amargos como Nervos de Aço, Folha Morta, Cadeira Vazia, Esses Moços, Risque, Brigas, Nunca e Vingança como trilha sonora.

Mesmo garantindo êxito constante de audiência, Jamelão costuma trabalhar por cachê fixo, nunca por participação de bilheteria. É também aí que sua história diverge da dos sambistas que passaram pelo Villagio. Volta Zé Luiz Soares: "O que a gente fez foi trazer essas personalidades, a partir de uma percepção de que havia um tesouro musical e histórico abandonado no Rio de Janeiro. Trazíamos eles de ônibus, pelo couvert, com hospedagens em hotéis simples e almoço no quilo. Mas tivemos o cuidado de dar um caráter de espetáculo aos shows, com luz baixa, som perfeito, nada de pista de dança, todo mundo sentadinho, ouvindo, cultuando a personalidade".

Por falar em personalidade, a de Jamelão varia entre a extrema paciência de atender toda a fila de pessoas em busca de autógrafos (que, às 2 horas da madrugada do dia 1º, incluía de casais pedindo fotos em sua companhia a um prefeito de cidade do interior) e o humor oscilante, temperamental.

Durante o show, ele diverte o público com jeitão irascível, capaz, por exemplo, de lançar farpas por sobre mitos: "Cartola eu sempre conheci, desde moleque, mas ele nunca foi com a minha cara. Eu também não vou ficar me lamentando. Não gostava muito talvez da minha maneira de cantar, e eu também não fazia muita questão". Não faz muita questão, e canta feito veludo o samba-símbolo de Cartola, As Rosas Não Falam.

Entrevistado sobre o samba 2006 de sua Mangueira, ele assim oscila: "Já escolheram, vai esse mesmo, não adianta dar palpite. Me interessa gravar porque minha voz fica no ar, vou deixar de colocar a voz? Não. Mas eu não sou obrigado, não sou empregado de escola. Canto o que eu quero, na hora em que eu quero".

Também se recusa a colocar em termos do prazer de cantar a longa permanência na carreira: "Não é gostar ou não gostar. É o meu trabalho, eu tenho que saber me apresentar. Ninguém me ensinou, eu tenho meu dom. Não tem negócio de como faz para conservar a voz. É Deus que quer, não é ninguém. Se Deus quisesse, eu já queria ir embora. Mas ele quer que eu fique, eu vou ficando".

Ex-integrante dos históricos conjuntos sessentistas Rosa de Ouro, A Voz do Morro e Cinco Crioulos, Nelson Sargento aborda a resistência dos bambas do samba sob outro ângulo. Evoca a cantora Araci Cortes, que em 1965 protagonizava com Clementina de Jesus o espetáculo Rosa de Ouro: "O caso dela era mais sofrido, teve glória na grande época das vedetes. (O produtor) Hermínio Bello de Carvalho foi buscá-la no retiro dos artistas para o Rosa de Ouro. Emilinha Borba, que foi uma tremenda artista, estava vendendo disco independente na rua antes de morrer. É duro. O Brasil tem a mania de colocar as pessoas no ostracismo. Diz 'está velho', pronto".

E conclui o raciocínio, embutindo na própria receita de longevidade um recado tácito para "esses moços, pobres moços" de hoje em dia: "Se você começa a se projetar muito novo, aos 30 anos você está velho. Foi o que aconteceu com Araci, com Emilinha".

Nota dissonante ao vigor de Jamelão, Sargento e Dona Ivone é Guilherme de Brito, parceiro de Nelson Cavaquinho em uma galeria de sambas históricos. Cantor extemporâneo dos espetaculares álbuns Samba Guardado (2001) e A Flor e o Espinho (2003), ele demonstra pouca disposição em voltar à arena. "Agora não canto mais, não. A voz está ruim, rouca. Eu estou borocochô. A gente tem que reconhecer o estado real para não passar ridículo."

Mesmo pensando assim, ele é um dos responsáveis, com versos perenes como "tire seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor", por fagulhas que ajudam a revelar mistérios do samba e da longa vida de seus bambas. "Não sei explicar o fascínio do público de hoje por essas figuras. Vi gente chorar no Villagio muitas noites", descreve Zé Luiz Soares, que os trata como "pop stars negros e pobres", mestres da auto-afirmação em fuga de uma "música enlatada, jabazenta, artificial".

É mais ou menos o que continua a fazer Jamelão, entre os choros e risadas que provoca nas quartas-feiras do Brahma. Para terminar pelo começo, é assim que ele se apresenta ao público, depois de subir devagarinho ao palco, pendurar a bengala de lado e se aboletar no banquinho de que não sairá dentro de quase três horas:

"Como vocês estão vendo, não é nada demais, é só isso aqui mesmo. É bom a gente dar uma voltinha. Ando por aí, dando umas quebradas. Estou cuidando da máquina. Quem fica em casa é caracol".