quarta-feira, agosto 31, 2005

melancólicos sem causa?

uma pausa para falarmos um pouquinho sobre... música. "carta capital" 354, de 10 de agosto de 2005, reportagem-reflexão sobre o mais novo lançamento de los hermanos.

ainda espero parar para escrever melhor sobre isso, mas por enquanto não consegui ter idéias realmente legais sobre o novo disco dos rapazes, nem ao menos me sentir sinceramente empolgado por ele - hoje em dia, me causa um tanto de indisposição o tom choroso, essa melancolia meio sem razão evidente (após os rebeldes sem causa, quando criarão o [des]movimento dos melancólicos sem causa?)... mas, ok, os garotos são bravos, respeitáveis, produtivos. em homenagem a eles, por enquanto, coloco na faixa de gaza ao final do texto jornalístico o bônus de respostas dadas por marcelo camelo e por rodrigo amarante (bruno medina e rodrigo barba ficaram "invisíveis", desta vez), mas não aproveitadas na reportagem final.

SOB O SIGNO DA MELANCOLIA

Por Pedro Alexandre Sanches

Como uma banda inconseqüente de pop-rock se torna ao mesmo tempo uma instituição artística admirada por amantes da sacrossanta MPB, críticos e outros bichos? Como uma outra banda, experimental e toda tatuada de conceitos e elucubrações, consegue se manter popular e instigar laços sólidos com legiões hipnotizadas de fãs?

O quarteto carioca Los Hermanos vive a situação esquisita de ser, ao mesmo tempo, os dois grupos descritos acima. A história parece se desenrolar para eles de modo sempre inverso ao inicialmente imaginado, seja quando compõem um rock underground que vira sucesso nacional até em cima de trio elétrico de axé music (Anna Júlia, de 1999), seja quando tentam neutralizar a massificação ficando rebuscados (no disco Bloco do Eu Sozinho, de 2001). Num caso como no outro, não só não perdem público como ampliam a multidão a seu redor.

Transparecendo certo desconforto tanto pelo lado cara como pelo lado coroa dessa moeda, Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Bruno Medina e Rodrigo Barba vêm desenvolvendo uma relação ambígua com a arte, a música, o estrelato vulgar da era das celebridades, os fãs, os que os criticam, até com a própria imagem. Ao chegarem ao quarto álbum, 4 (Sony & BMG, R$ 30), parecem comprimidos num remoinho de tensão e conflito onde se juntam todos esses fatores.

O resultado da soma de todas as cores será imprevisível, como tudo continua a indicar. Mas a princípio 4 parece um disco feito sob medida para desagradar a caras e a coroas.

Começa pela imagem dos rapazes (todos eles entre 26 e 28 anos), cada vez mais diáfana. Se já vinham aparecendo desgrenhados em barbas do tipo anos Lula, hoje suas imagens simplesmente se dissiparam: não há foto de nenhum Hermano no pacote que acondiciona o CD.

Continua nos formatos musicais do álbum. Após fincar marcas personalistas, sobretudo em Bloco do Eu Sozinho e Ventura (2003), Los Hermanos diluem uma identidade peculiar em 4, que namora imagens musicais banalizadas nos últimos anos por grupos estrangeiros de rock climático, messiânico e deprimido, como Radiohead e Coldplay.

Consuma-se na tez das letras fluidas (ou inconsistentes, para quem quiser detratar), dos vocais sentidos (ou choramingados) e do conjunto melancólico, tristonho (ou esquivo, desanimado).

Embora exprimam também o sofrimento do ato de dar entrevistas para divulgar o trabalho, Camelo e Amarante, os dois cantores-compositores, interrompem o aparente processo de fuga e reagem ao atrito e à comoção que voltam a causar.

Camelo cita o termo "angústia" ao discorrer sobre imagem e discurso. "Quem tem que ter público é arte: o artista faz a arte e a arte tem o público. Fica uma confusão grande, de dar tanta estima a quem fez e tirar a estima da própria obra. A gente sabe do poder de influência do que escreve, mas não gostamos de ser estimados como porta-vozes de alguma coisa. Mesmo quando falo das minhas músicas fico inseguro, me embanano todo... Sei tão pouco por ser tão mais afetivo que sabedor."

"Gosto, sim, do Radiohead, e não do Coldplay. Mas está mais pra coincidência o lance com os climas. Hoje sinto que sempre vou ser um pouco aquele Rodrigo que aos 12 anos comprou o primeiro disco dos Smiths e o segundo do The Cure", explica Amarante, dando pistas de uma já antiga vertente soturna.

"Posso dizer que nunca ouvi nenhum disco do Coldplay. De Radiohead, conheço aqueles mais famosos. A melancolia não é uma propriedade dessas bandas, assim como uma barba não é propriedade nossa", diz Camelo. "Nada foi feito com nenhuma intenção, nem de parecer o Radiohead nem de parecer o Dorival Caymmi."

Ao citar a melancolia caymmiana, ele libera mais uma pista, cujas pegadas se espalham por todo o disco. Mais que nunca, Camelo é o lado molhado de Los Hermanos, escrevendo canções de paisagem marinha como Fez-se Mar, É de Lágrima (que revisa o mote antigo de Lobão e Júlio Barroso em Me Chama, ao contrapor e justapor sem muita cola os termos "lágrima" e "mágica") e Dois Barcos.

No contraponto, Amarante pincela o lado seco e voa sob títulos como Os Pássaros e O Vento. Onde tudo se mistura, Camelo pode soar aéreo (Horizonte Distante) e Amarante, aquoso (Paquetá), mas a bipolaridade entre os dois também pertence àquela matéria que ao mesmo tempo esfarela e solda a identidade dos Hermanos.

É que, contrariando linhagens históricas de bandas e parcerias (Lennon & McCartney, só para citar um caso), os dois optaram por conviver dentro de uma mesma banda, mas compondo isoladamente, cada um na sua, ao mesmo tempo rejeitando e enfrentando suas diferenças & semelhanças.

A versão de Camelo: "Só temos uma parceria efetiva, que é A Flor (1999), que fizemos juntos em Recife, na nossa segunda viagem para fora do Rio. Tenho uma dificuldade imensa de criar coletivamente. Você precisa fazer escolhas a partir do nada, e escolher coletivamente me parece uma loucura. Mas acho que sou mais parecido com Rodrigo do que com qualquer outro compositor, provavelmente".

A versão de Amarante: "Sem dúvida somos parceiros. Mesmo não escrevendo juntos, somos parte de um mesmo organismo, nossos discursos dialogam, são saudavelmente dissonantes. Nossas músicas se apóiam e se sustentam juntas numa bela incoerência. Aí esse papo de irmãos faz muito sentido. Somos muito próximos e ao mesmo tempo tão diferentes. Assim se dá nossa parceria, e é a melhor possível".

Outro efeito desse método pouco usual é o que descreve Camelo, admitindo que não deve ser lá muito fácil ("lidar com gente é a coisa mais difícil que se pode fazer"): "No nosso processo de feitura não existe liderança. É tudo muito democrático e afetivo. Nos juntamos não pela afinidade estética, mas pela afinidade pessoal".

Se há conflitos e ansiedades internos a administrar, Los Hermanos também já protagonizaram episódio em que a tensão extravasou e se tornou exterior. Aconteceu há cerca de um ano, e teve por outro bode expiatório o músico Chorão, líder da banda hardcore Charlie Brown Jr. Um episódio de rivalidade e discordância de postura entre duas bandas ultrapopulares culminou numa cabeçada dada por Chorão em Camelo, que em decorrência teve de fazer duas cirurgias, para corrigir um desvio no septo nasal.

O desconforto cresce quando o assunto vem à baila. À época, todos se recusaram a debater publicamente o episódio, mas Camelo se vê forçado a fazer agora a revisão, movido pelo prazer/pressão de voltar ao noticiário por força de querer/ter de divulgar comercialmente seu novo trabalho.

"Continuam correndo os dois processos que movi contra ele, um civil e outro criminal. Sinto uma indiferença enorme por Chorão, ele conseguiu o que ninguém conseguiu até hoje: me perder como interlocutor", afirma, irritando-se quando defrontado com a hipótese de que seqüelas do confronto infeliz pudessem ser um dos inúmeros colaboradores para a resultante sorumbática do CD de volta de Los Hermanos.

É que, no geral, tanto ele como Amarante contestam a melancolia como vetor principal de 4. Contestam fazendo sua defesa, no entanto.

Camelo: "A melancolia é um lastro da vida, é um sentimento. Falar dela de alguma forma expurga. Você consegue materializar e olhar para fora. É um sinal de que a gente está muito bem, eu acho. Sinal de que está mal é ficar falando de alegria o tempo inteiro. Nem tudo que se opõe à euforia e melancólico, não acho que a melancolia sirva como linha condutora do disco".

Amarante: "Acho que as pessoas reparam mais na melancolia porque isso as incomoda, como se a tristeza fosse alguma coisa forçada, imposta. É triste para muitos o que uma música emocionante pode revelar, ou quer revelar".

Ali, ele parece próximo da resolução do enigma Los Hermanos, que nem os autores ainda dominam muito bem. A negação parcial à melancolia pode ser um dos muitos laços que atam a banda a tantos e tantos admiradores. O nó cego seria a própria melancolia, que poucos gostam de sentir, mas que muitos cultivam mesmo sem querer.

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bônus 1: marcelo camelo fala

desfrutar ou fugir da idolatria dos fãs?
"musicalmente, a gente não se afeta muito por isso. é claro que a vida que a gente vive afeta, talvez por isso a resposta à turnê ensurdecedora e eufórica do primeiro disco tenha sido o 'bloco do eu sozinho'. não era a resposta panfletária, contra qualquer coisa, mas a reação de vida mesmo, de nós como pessoas. agora estamos numa relação mais serena com a carreira, uma relação mais madura com o público, sobretudo da nossa parte. eu, pelo menos, faço com muito afeto, tentando preservar a legitimidade do olhar afetivo, como um olhar inocente, sem intenção, afetivo."

[comentário meu: o que será que leva artistas - ou políticos, comunicadores, apresentadoras infantis, jornalistas etc. - a pensar que a relação "madura" com o público se deve sobretudo a eles próprios? será que é mesmo assim?]

radiohead, coldplay, caymmi
"posso dizer que nunca ouvi nenhum disco do coldplay. de radiohead, conheço aqueles discos mais famosos, gosto muito de 'kid a'. parecer com eles não foi uma intenção, mas se no frigir dos ovos você achar que a gente se aproxima disso em detrimento de uma estética mais pessoal, acho legítimo. fico me perguntando se as pessoas perguntavam ao caymmi se ele era melancólico, ou ao fernando pessoa. a melancolia não é uma propriedade de radiohead ou coldplay, assim como uma barba não é uma propriedade nossa. nesse sentido, acho que a gente é mais humano do que coldplay, estamos mais próximos de ser pessoas de verdade do que ser o coldplay."

espelhos distorcidos
"talvez a gente ainda seja muito comparado a um universo restrito, que é o do pop-rock internacional. o mercado brasileiro ainda se espelha muito no mercado estrangeiro, talvez por isso as referências que se trazem para a gente sejam essas mais próximas dos próprios jornalistas do que da gente. é como wilco, não sei de onde se inventou que a gente gostava do wilco. nunca ouvi, não sei nem do que se trata, gostaria muito de conhecer porque já ouvi dizer que a banda é ótima. coldplay eu conheço porque toca mais na rádio. radiohead, não, já é uma banda de que a gente gosta mais."

[comentário meu: acho que camelo reclama sutilmente, aqui, do profundo complexo de inferioridade que faz com que milhões de pessoas que se consideram "antenadas" e "informadas" pensem que a música pop gringa é melhor (ou, no negativo, menos tosca) que a música pop brasileira. mera ilusão, garotada. música não tem fronteira, e achar todo o trigo lá fora e todo o joio aqui dentro é uma maneira triste, melancólica, arrevezada de ter vergonha-medo-ódio-horror de si próprio. é o oposto do triunfalismo que compõem blurs, strokes e white stripes pelos países "civilizados" afora - o triunfalismo pode ser o contrário de derrotismo, mas eu acho que o triunfalismo É o derrotismo. com quantos wilcos se faz um nelson cavaquinho?]

laços de família
"a gente não é uma banda que se juntou porque todo mundo gostava do mesmo tipo de música. a gente não embarca numa onda de alguém, porque no nosso processo de feitura não existe liderança. é muito democrático e afetivo. nos juntamos não pela afinidade estética, mas pela afinidade pessoal. então o produto final de um grupo como esse é muito difícil de ser dirigido, apontado para algum lugar. o resultado é como nós quatro queríamos que soasse. é o que acho que é o nosso grupo. é a nossa coletividade.

estresses em família
"a gente fica dois meses fazendo e discutindo um disco, é claro que desse processo saem faíscas também. é impossível não sair. mas no final das contas o que importa é que a gente gosta muito um do outro. a gente passa por cima das discussões, e sabe que a discussão faz parte do nosso processo, do lugar onde a gente vai chegar. somos quatro, muitas vezes as decisões não são consensuais. são discutidas e argumentadas, a gente não fica partindo para o voto e jogando as diferenças para debaixo do tapete." [pergunta: gasta energia, demanda esforço?] "é, mas é muito revigorante e renovador o fato de estar fazendo um arranjo. o passo dado ali já suprime qualquer discussão chata que acabou de passar, porque a gente sabe que tem um lugar para chegar, que tem que fazer um disco dali. se ficássemos os quatro para jogar biriba num sítio acho que seria impossível, a gente ia sair na porrada com 15 dias e ia embora cada um para um canto. a gente está ali para fazer um disco."

sem músicas em parceria com amarante?
"o ato de compor depende muito de ter vontade, de partir para dentro para fazer se não não consegue terminar. mas também tem uma parcela de inspiração e introspecção muito grande. você tem que evocar uma coisa maior que você, jogando com palavras também. é algo mais intrínseco do que alguma coisa que você domine com sua força de vontade. tem muito de imprevisível e de involuntário. eu tenho uma dificuldade imensa de criar coletivamente. fazer uma música é você evocar uma coisa a partir do nada. o que você faz é escolher coisas dentro de um universo limitado, que é o universo musical de 12 notas, dos acordes, e do universo das palavras, que é abrangente, mas também tem fim. você precisa fazer escolhas, e escolher coletivamente me parece uma loucura. a gente tem uma parceria efetiva, que é 'a flor', que fizemos juntos em recife, na nossa segunda viagem para fora do rio. foi a única vez. as duas outras parcerias que temos foram de eu dar um pedaço de música e ele desenvolver, ou de eu ter uma letra e ele fazer uma melodia. a lembrança de 'a flor' é boa, muito boa."

hermanos parecidos ou diferentes?
"acho que não discordaria, não, que a gente é mais parecido do que diferente. sou mais parecido com rodrigo do que sou parecido com qualquer outro compositor, provavelmente."

show bizz legal ou chato?
"tem várias coisas ótimas, o show em si é um negócio muito valioso. o exercício de dar entrevistas muitas vezes, por formatar na nossa cabeça o que a gente faz intuitivamente, é esclarecedor, mesmo que seja puramente retórico e não leve a lugar nenhum. muda nossa condição, nosso olhar, formata mesmo um pouco melhor na nossa cabeça. por outro lado, a imagem e o olhar sobre nós, pessoas, é muito prejudicial para o lado artístico, o fato de você ser observado e não ser observador. você ser muito observado lhe tira um pouco a condição de observador, essa é uma coisa que vai de encontro à função do artista, dificulta um pouco o olhar. (...) tenho muita angústia em ser uma pessoa que está aqui falando contigo e de você colocar minhas opiniões na revista ou jornal como se eu tivesse alguma coisa... me sinto mais observador, tão inseguro já em relação às minhas próprias coisas que eu digo, tão incerto, tão mudando de opinião até das coisas que eu mesmo escrevo ali nas letras. ao mesmo tempo, tranqüilo de saber que aquilo ali é um retrato passageiro, não me sinto fiador das minhas palavras."

peso grande nos ombros?
"é, mas é um peso que também você pode vestir ou não. você pode tentar virar o bastião do que quer que fosse, mas a gente não gosta desse papel, não representa ele. (...) ao mesmo tempo a gente é totalmente porta-voz das coisas que diz ali. a gente fala coisas de um universo personalíssimo, que são universais e têm o mesmo poder de transformação que uma palavra de ordem ou um panfleto, talvez até maior. a gente sabe disso, do poder de influência do que escreve e de como isso modifica a vida das pessoas através do afeto. a gente não é inocente de lavar as mãos para isso, de não olhar isso ou mesmo de temer isso de alguma forma. a gente aceita isso, porque sabe que é uma das prerrogativas da arte. o que a gente não gosta é de ser estimado como porta-voz de alguma coisa. (...) quando o assunto gira em torno de outras coisas, eu até tenho opinião, mas o papel que me é dado como artista é de alguém que sabe das coisas, mas tem menos conhecimento de causa do que se se for ouvir quem estuda, quem acompanha, pode dar um panorama. se estou decepcionado com corrupção, quem não está?, mas esse tipo de observação... se por um lado o artista é um bom termômetro da população e tem essa habilidade de uma certa forma, eu, como espectador, estou muito cansado de ouvir o que as pessoas acham das coisas."

bônus 2: rodrigo amarante fala

"paquetá"
"meu pai me contou a história, então resolvi escrever aquilo. meu pai é tão ou mais palhaço que eu, me levou a escrever com senso de humor, relaxamento. o ambiente que ele me sugeriu, o misto de inocência adolescente e malandragem carioca, me levou ao tema. 'paquetá' é sobre o discurso masculino diante da mulher, a incapacidade de dizer qualquer coisa que não um pedido de desculpa, apesar do vasto vocabulário. acho que existe uma fartura de músicas brasileiras que se propõem a revelar a força e a beleza da alma feminina de uma forma séria e tocante. escrevi 'paquetá' querendo, do outro lado, revelar a fraqueza e a feiúra da alma masculina de uma forma bem humorada e até ridícula."

[comentário meu: linda inversão de expectativas, mas... por que seguimos vitaminando o mito dessa dualidade desequilibrada, a "beleza da alma feminina" versus a "feiúra da alma masculina"? quando a bela alma masculina vai escapulir da invisibilidade, falando de si por si própria?]

sem músicas em parceria com camelo?
"sem dúvida somos parceiros. mesmo não escrevendo juntos somos parte de um mesmo organismo, nossos discursos dialogam, são saudavelmente dissonantes. nossas músicas se apóiam e se sustentam juntas uma bela incoerência. aí esse papo de irmãos faz muito sentido, somos muito próximos e ao mesmo tempo tão diferentes. essa convivência é inspiradora, um combustível do questionamento. não fazemos música juntos pelo simples fato de isso ser muito difícil e dispersivo no sentido do discurso. eu e ele temos coisas diferentes a dizer, pontos de vista bem distintos e escolher cada palavra, cada acorde, seria muito difícil. o fato de juntos trabalharmos as músicas um do outro, de criar forma pras músicas juntos, impregna o universo de um no outro e assim se dá nossa parceria. É a melhor possível."

radiohead, coldplay
"gosto, sim, do radiohead e não do coldplay. mas está mais pra coincidência o lance com os climas. Hhje sinto que sempre vou ser um pouco aquele rodrigo que aos 12 anos comprou o primeiro disco dos smiths. E o segundo do the cure. acho que isso influencia minha música muito mais do que a minha admiração pelo radiohead. mas, da mesma forma, muita coisa que não é música me influencia na hora de fazer música: o senso de humor escrachado da minha sábia avó por exemplo. posso tentar fazer uma análise do momento histórico, opor o fluxo de informação sem credibilidade aos espaços vazios nos arranjos, às melodias menos certeiras, vacilantes. acho um exercício divertido, mas não me sinto tão apto quanto você para o serviço (sinceramente). acho que minha infância de surfe, carnaval e roque inglês me determina muito mais do que esse hoje coincidente."

turbulências, recuos, fugas?
"acho impossível escrever música para fugir de alguma coisa. escrevo para correr o risco 'sem o qual a vida não vale a pena', como já disse clarice lispector. o resto é a conseqüência. deve ser. e se há turbulência é porque há movimento e isso já é melhor do que ficar parado esperando uma encomenda. não dá pra ficar pensando no que representar (eu não penso assim). tudo deve ser conseqüência desse ato inconseqüente de escrever."

segunda-feira, agosto 29, 2005

meu casaco de general 3

mais duas torres-carne (fica aqui o convite à visita-irmã ao tópico-andar debaixo, também inédito e recém-publicado), para falar dos dias de hoje. mais uma torre-osso, ela própria trigêmea dos tópicos-térreo lá debaixo, "meu casaco de general", partes 1 e 2.

terminada a leitura do livro "meu casaco de general", de luiz eduardo soares, sobram, dos escombros-sangue, estilhaços-vísceras de dúvidas e respostas, de respostas muito mais que de dúvidas. adubo ao solo-céu, deitam-se abaixo trechos-emblemas, que arrepiam pelo que queriam dizer em 2000, pelo que se tornam trazidos para 2005, pelo jogo de encaixes que produzem quando brincam de embaralhar "polícia" e "política" (e arte, e música, e sexo, e vida...). são três trechos tristes-alegres, mais alegres do que tristes no solo-adubo por onde se deitam a(o)s lulas-po(l)vos destes porosos anos 2000.

só para seguir no hábito, é o terceiro trecho tenso-sonso, lá embaixo, aqui mesmo neste tópico-saliva, o que deixa pular, das frestas-feixes, idéias as mais estimulantes, admiráveis idéias novas-velhas.

(trechos especialmente reveladores-aterradores virão delimitados por [***asteriscos***] )
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primeiro trecho
l.e.s. está a discorrer sobre dinâmicas criminais que entrelaçam tráfico de armas e tráfico de drogas e vêm desembocar na sociedade que somos, mesmo que nos pareça a priori que "tráfico de armas" e "tráfico de drogas" sejam coisas distantes demais de nós, distantes demais de nossa(o)s ("pecados") capitais. l.e.s. lista-as aos borbotões, mas que se fique aqui apenas com os tópicos-teses 9 e 10, relatores das dinâmicas-tráficos que forjam nossa sociedade entrelaçada-estraçalhada:

"9. estimulam reações que tendem a estigmatizar a pobreza e os pobres, promovendo imagens negativas das comunidades, favelas e bairros populares, que passam a ser vistos como fontes do mal - como tem demonstrado a professora alba zaluar. essas imagens freqüentemente inspiram e reforçam políticas discriminatórias. os traficantes transformam a vida das classes populares num inferno. além disso, exportaram o inferno: no rio, a topografia e a distribuição espacial das favelas estenderam o perigo dos tiroteios aos prédios vizinhos aos morros. por outro lado, tornaram-se fontes de várias modalidades de prática criminosa que atingem as camadas médias e as elites. portanto, acaba se tornando natural a identificação das favelas com a violência. pode-se deduzir as implicações políticas dessa identificação. resultado: os moradores das favelas sofrem duplamente, primeiro como vítimas da tirania do tráfico, em seguida como vítimas de preconceitos e de medidas arbitrárias, elas mesmas criminosas e promotoras da barbárie, como a premiação faroeste, entre tantas outras formas de acobertamento e estímulo à brutalidade policial. supondo que o preço do controle da violência seja o extermínio dos criminosos, alguns governos decidiram assumir os custos e autorizar tacitamente o extermínio, que nunca atinge apenas os criminosos, é claro. transforma-se com freqüência num banho de sangue, flashes de um verdadeiro genocídio. tantas vidas se perderam, entre bandidos, residentes inocentes e policiais, para nada. [***os traficantes das favelas não passam de varejistas sem importância. quando morrem, são imediatamente substituídos e o ciclo se reinicia, cada vez com mais ódio e com contas ainda maiores para acertar, de parte a parte.***]

"10. promovem o entrelaçamento entre o chamado 'crime de colarinho branco', praticado por membros das camadas médias e das elites, e a criminalidade que prospera nas favelas e nos bairros populares, atuando no varejo dos tráficos de armas e drogas. [***apesar de as polícias continuarem a focalizar o varejo, que é mais visível e produz efeitos mais vistosos, não haveria tráfico sem lavagem de dinheiro, negociações internacionais, mediadores poliglotas, experts em contabilidade e administração financeira etc. sabe-se que esses personagens não moram em favelas.***] duvido que tenha havido, no brasil, oportunidade comparável para o estabelecimento dessa cumplicidade interclassista, que se apóia numa divisão do trabalho bastante conveniente para os criminosos que vivem longe da favela. a disposição bélica da tropa que atua no varejo dos morros se beneficia da competência financeira e administrativa dos cúmplices com escolaridade superior. por sua vez, esses evitam sujar as mãos com sangue e com a pequena propina cotidiana. delegam boa parte dos problemas operacionais e não se preocupam com os riscos inevitáveis da distribuição. fornecem os meios para uma perversa distribuição de renda, que se manifesta pelo viés perverso da democratização do medo."

[se lembra, maninha, daquele papo-boi-da-cara-preta do medo contra a esperança, da esperança contra o medo? pois hoje, maninha, só dá flor não-daninha neste solo-soluço que suplantou aquela dualidade troncha, neste solo-mãe-gentil em que os petistas-de-colarinho-branco estão socializando responsabilidades (e "culpas", infelizmente) com os varejistas-da-invisibilidade, coisa que seus antecessores mais maliciosos jamais fizeram. a "democratização do crime" há de ser, quiçá, mãe da democracia dos sem-medo, da democracia dos com-responsabilidade, da justa-eqüânime divisão do trabalho-responsa.]
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segundo trecho
aqui, l.e.s. defende a polêmica-explosiva proposta de oferecer, por um curto período de tempo e sob regras muito bem determinadas, "anistia" ampla, geral e irrestrita aos microcriminosos do cotidiano violento incrustado nas favelas brasileiras:

"anistia foi assunto digno quando éramos nós que estávamos presos - nós, da classe média -, durante a ditadura, por razões políticas. hoje, virou tabu. quem consideraria, a sério, uma proposta de anistia para todos os criminosos não condenados que se apresentassem durante determinado período de tempo, sob certas condições?

"no entanto, fui me convencendo aos poucos, a partir do início de 1999, ao ouvir as histórias dos meninos que ficavam no tráfico desejando sair. (...) esses jovens sonhavam com mudança de vida, com uma nova chance, mas achavam que não tinha mais jeito. que estavam perdidos. que não havia mais volta para eles. que estavam, como eles diziam, 'carimbados' pela polícia para morrer. ou que só lhes restava, fora do mundo do crime, a hipótese de uma cela infecta, em que seriam violentados e condenados a vegetar de forma subumana por muitos anos. de onde sairiam piores do que entraram, com menos alternativas para sobreviver decentemente e ainda mais marcados por estigmas. (...)

"não fazia sentido condenar tanta gente a permanecer, contra a vontade, fiel ao exército inimigo. por que engrossar as fileiras inimigas se poderíamos esvaziá-las? além disso, havia a questão ética. é verdade que já superamos, há muito tempo, a idealização dos bandidos. o lema célebre de hélio oiticica, 'seja marginal, seja herói', que fazia sentido quando não havia uma constituição democrática e todos os que se recusavam a aceitar as imposições da ditadura estávamos, de uma maneira ou de outra, à margem, éramos marginais, esse lema, hoje, quando as condições são inteiramente diferentes, soa absurdo. aprendemos que o crime tem de ser combatido, se queremos preservar a democracia que nos custou tanto conquistar. os criminosos são inimigos de todos, sobretudo dos pobres, entregues ao seu arbítrio violento. [***por outro lado, quem negaria que há uma parcela de responsabilidade que é nossa, que é de toda a sociedade brasileira, quando um menino de onze, doze anos se liga a traficantes?***] esse menino em breve estará comprometido com a organização criminosa. em alguns anos, estará praticando outros crimes, além do tráfico. aos dezoito ou dezenove anos, perceberá que já nãoretorno. seus horizontes estão bloqueados em todos os níveis, da psicologia à economia. a polícia conhece seu nome e seu passado, e mal pode esperar para colocar as mãos nele. caso isso aconteça, que futuro o aguarda? as chantagens, a morte, a prisão. nesse último caso, em que condições? com que perspectivas de recuperação? [***temos ou não alguma responsabilidade pelo destino trágico que começa a se esboçar antes da adolescência? alguém opta por se tornar um bandido aos onze anos?***] a criança cresce em meio a vínculos e processos sociais que farão dela um homem antes que ela tenha tido a chance de atravessar, com a ajuda dos pais e da comunidade, os anos difíceis da adolescência. [***esse homem prematuro que hoje é nosso problema - quanto deve à nossa omissão o seu salto mortal da infância ao inferno? temos ou não o dever de estender-lhe a mão, uma vez? de lhe dar uma oportunidade? de abrir-lhe uma porta de saída para que se reencontre conosco e recomece a sua vida? a sociedade, nós todos também merecemos uma segunda chance. a anistia não é apenas uma segunda chance para os que se perderam; é também uma oportunidade única para que a sociedade seja melhor do que tem sido.***]"

[mas isso foi em 2000, l.e.s. se referia aos pequenos homens prematuros do morro, os varejistas-sem-qualquer-importância. como seria possível, em 2005, transpor tais idéias para os infantes tardios do asfalto, os importantíssimos-políticos-empresários-banqueiros-capos-de-mídia? prendemos todos, todos os partidos, todos os políticos, todas as instituições das pequenas-grandes corrupçõezinhas-nossas-de-cada-dia? prendemos todos, cercamos de grades o brasil inteirinho? elegemos uns pobres-diabodes-expiatórios para o linchamento em praça pública, em presídio privado? deixamos todos soltos? libertamos o brasil, liberdade, ainda que tarde? nós não vamos pagar nada? a solução é alugar o brasil (para quem, para bush ou para bin laden)? é tudo free? tá na hora?]
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terceiro trecho
agora, l.e.s. se põe a discorrer sobre seus estudos in loco das políticas vitoriosas de segurança instaladas em nova york há algum tempo, quando as torres-gêmeas-simulacros ainda estavam de pé. e nos compara os americanos do norte, contundentemente:

"havia também algo mais no ar. talvez fosse o peso da tradição protestante, que faz de cada indivíduo o responsável solitário pela própria salvação. nosso espírito, no brasil, nas polícias, parece ser excessivamente católico. [***facilmente terceirizamos a responsabilidade, atribuindo a alguma instância externa a nós a culpa pelos problemas que nos atormentam. no brasil, há sempre um vago e obscuro 'eles', uma espécie de sujeito coletivo e oculto que se corporifica nos políticos, nos governos, nas elites, e cuja função simbólica talvez seja carregar o peso das culpas que cada um de nós, individualmente, gostaria de exorcizar.***] claro que é muito mais difícil mudar essa mentalidade quando a realidade externa dá razão à perspectiva crítica e confere verossimilhança à lamúria. melhor, então, deixar que a cultura produza sua própria química e rearranje os nossos fantasmas e as nossas personalidades, no ritmo que nossa história autorizar. a tarefa de modificar mentalidades é muito superior à força das políticas públicas. a mim, cabia simplesmente intervir para alterar comportamentos e procedimentos institucionais. era o que eu tinha de fazer. passei à ação, sem ilusões, mas com a certeza de que a implantação das áreas revolucionaria nosso quadro de insegurança pública e de caos organizacional."

[o triste fato é que hoje em dia (alô, leo) não há mais acordo nem mesmo entre l.e.s. e os petistas que chegaram a abrigá-lo no governo federal do brasil. mas, seja como for, que bela exposição de limites entre público e privado, entre as responsabilidades dos políticos (para nós sempre gigantescas) e as nossas próprias responsabilidades (para nós sempre minúsculas), não é mesmo? ok, os "sofisticados" crimes políticos e os crimes "brutos" das favelas parecem hoje se parear, resultando igualmente hediondos a nossos olhos assustados. mas é preciso lembrar que entre a barbárie do submundo dos morros e a esculhambação do hipermundo do planalto central, bem no meio do caminho-tiroteio, estamos nós. geralmente agindo como se não tivéssemos nada a ver com tudo isso - nem com a favela, nem com o palácio. ali estamos nós, tendo pesadelos, convencendo as paredes do quarto e dormindo "tranqüilos". sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo. (lula sabia? sabia, sim, tá na cara, tá na cura. nós também sabíamos.)]

dá licença, meu senhor

então eu fui almoçar, num restaurante moderninho do bairro de higienópolis. como estava sozinho, enquanto esperava o rango lia as análises políticas mais recente na revista semanal (não vou dizer que era a "carta capital" porque essa é a revista do meu patrão e não quero aqui fazer finta de capacho - sentiu a ironia no breque?). estava todo aberto na página que estampava uma big foto de luiz inácio, quando chegou o garçom para servir a minha quentinha.

de repente, tudo se transformou. meu olho pipocou do lula e pulou para o bife, enquanto o olho do garçom pulava de mim para o steak e do medalhão de carne para o presidente de papel na revista de papel. garçom versus freguês, todos os olhos se encontraram nos meus e nos dele. e ele resolveu romper suas próprias noções de hierarquia, aparentemente impróprias para aquele salãozinho invocadinho da higienopolândia, chão-poleiro de fernandos, de henriques, de cardosos. pôs-se a falar, a voz bem baixinha para não atrapalhar o trânsito.

"e aí? ele sabia ou não sabia?", foi o cochicho-pergunta-desafio que o garçom me entregou fumegando acompanhado de um filé com pimentas verdes.

pára, pedro, pedro, pára, pensa, respira, responde.

"ele sabia, ao que tudo indica, né? mas a gente também sabia, não sabia?", respondi-perguntei, revelando-me mais para mim mesmo que para meu questionador.

pronto, foi a senha. cheguei a temer que se instalasse um súbito mal-estar, mas, não, o garçom se abriu em flor. puxou um papo arretado, falou fartamente sobre política, contou-me detalhes que eu desconhecia sobre a privatização da companhia vale do rio doce nos tempos tucanos do quase-vizinho fhc (pra ser sincero, ainda não assimilei bem a maracutaia que ele me contava - ficou para a próxima tentar decifrar essa). mas o garçom falou, falou pelos cotovelos, coisas tipo essas que tento agora plagicombinar (sob o risco de inventar um pouquinho por sobre os modos de fala que não consigo propriamente arremedar):

"agora estão todos os partidos unidos contra o pt e o lula, são todos contra um. pra mim tem algo esquisito aí."

"eu nunca tinha votado no pt nem no lula, só votei desta vez. agora querem dizer que ele é o pior de todos os presidentes, mas eu não acho ele o pior."

"ele não pode ser tão ruim assim. quando entrou o dólar estava a cinco reais, hoje está a dois."

"o lula é muito respeitado lá fora, como nenhum outro presidente do brasil foi."

"eu sou pernambucano como ele. conheço pernambuco. meu lugar de origem é ruim. mas o dele é pior ainda."

antes que a sola de sapato esfrie, não resisto à sanha de fazer pesquisa eleitoral, ainda mais que o sujeito me surpreendeu sinalizando que odiava o pt e agora - justamente agora - não odeia mais.

"vota nele de novo?", pergunto-torço.

"não", responde, sólido como o pretume da coca-cola que borbulha no copo.

aplico meu confessionário: "eu voto. muita água ainda vai rolar até daqui a um ano, mas, para mim, ele não só não é o pior como é o melhor presidente que nós temos em muito tempo".

olhos se cruzam de novo, a mesa ao lado chama, mastigo as fibras, leio revista, ele volta, comenta mais um pouco.

"e o roberto jefferson? não era aliado, do ptb? eu queria entender qual é a dele, por que ele fez isso. eu não entendo."

"ficam criticando o que o pt fez, mas todos os partidos não fazem igual? é tudo igual. fizeram o mesmo, e pior ainda. o que o fhc fez não conta? e a vale do rio doce?"

"meu patrão não pára de falar mal do lula. quando ele está aqui, eu discuto com ele o tempo inteiro."

não bastasse a gentileza de debater política comigo, ainda me brinda com a madrepérola de alertar que não engole mais, não, esse papo-sapo de patrão. que patrão pode até resmungar (ó, minha santa ladainha lamuriosa do bigode loiro!), mas vai ter que ouvir de volta - aliás, não é isso mesmo que está fazendo comigo, com o freguês higienopolitano, higienopolista?

arquiteto uma retribuição, um gesto generoso que possa ser interpretado por ele como um agradecimento por sua doce rebeldia sem papas na sola do ovo. enquanto arquiteto, mr. servidor me devolve mais uma, aumentando o tamanho da minha gratidão:

"disse que não votava, mas ainda vou pensar. sou bem capaz de votar nele de novo, sim", dispara, sólido como as fibras doces de um canavial, como os goles viscosos de uma garapa temperada com muito gelo e gotas grossas de um belo limão.

ai, ai, ai. chamo-o para ver, avanço umas páginas na revista e mostro a ele as frases do presidente do ibope sobre lula: "é a maior crise da história. qualquer outro presidente já teria caído. sarney, fhc, itamar..."

tento panfletar. "pra mim, isso é sinal de que este presidente é forte, é respeitável, como nenhum dos que vieram antes conseguiram ser", ensaio, todo desconjuntado (e nem agora consigo reproduzir o desajeito todo de minhas próprias palavras, desacostumado talvez com os modos de fala da discussão em viva voz, sem o filtro solar da parede da torre de papel, nem das classes sociais "inimigas").

ele, o garçom, se infla de um contido contentamento, "é, o cara é forte".

porque o sertanejo, meu caro garçom, é antes de tudo um forte. estamos falando de bóias-frias, flagelados, pingentes, balconistas, palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados. estamos falando de lula, do garçom, de mim. estamos falando de/com um, ou melhor, dois cidadãos que votaram no lula e se vêem sob a ameaça do emparedamento, da farsa patroa que quer entubar preferencialmente em suas contas correntes o depósito-bomba de mais um monumental equívoco histórico.

mas não.

saio do restaurante satisfeito, reabastecido, a cabeça ribombando as frases preciosas do garçom-lula sobre patrões, pernambucanos, sertanejos, fernandos, luizes. a fala desembainhada, a opinião confusa, as noções nítidas construídas de dentro para fora e o desejo de participação não hierárquica reforçam e revigoram essa minha sensação tão presente-pulsante, de que estamos bem no umbigo de um momento ímpar, único, incrível, histórico.

como disse alguém lá no blog do idelber outro dia, o umbigo fica longe do cérebro - de dentro do umbigo, não dá para raciocinar direito. como disse meu xará pedro noizyman há pouco aqui no meu blog, "isto é a história acontecendo, mudando o mundo e as nossas vidas, right here, right now". a diferença, que o garçom pernambucano ensina de cátedra, é que há uma nova consciência no ar, que não há de permitir que troquemos as mãos pelos pés nem que confundamos os equívocos de agora com os equívocos de sempre.

não vamos meter mais essa nota de dois dólares furados no bolso. sim, já amargamos equívocos históricos colossais, mas esta não é uma época governada pelos patrões que espumam "a culpa é do povo", nem uma época governada pelo equívoco - o governo, hoje, mora dentro do homem que serve nossa ração, mora dentro da mulher que requenta nosso feijão. mora dentro da nossa cabeça.

quarta-feira, agosto 24, 2005

governar, anarquizar

pois então. de lá da janela da minha terceira torre, onde (quase) nada acontece, pude observar o balé da história se desenrolando diante de meus olhos, dançado pelos freqüentadores deste blog que compuseram o eleitorado animado do pleito das torres trigêmeas. sorry, rapaziada, mas o resultado numérico dá lula disparado, com quase o dobro dos votos não-lula e quase o triplo da desabitada torre número 3, aquela que queria dizer "vou ser presidente do meu corpo, governar, anarquizar".
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mas, vocês sabem, esse é o resultado que menos importa (até porque capta um momento confuso, que não há de ter nada a ver com o momento real e crucial de daqui a um ano e pouquinho). de lá da torre 3, ou melhor, daqui de onde não há mais torres, eu vi tanta, tanta, tanta coisa. e resolvi colocar a população do blog na roda, brincar um tiquinho de elaborar resultados eleitorais qualitativos (danem-se os quantitativos do mundo lá fora, se as pesquisas manipuladoras da hora querem dizer que eu sempre fui, sou e continuarei sendo minoria). voltei para fazer o unidunitê, salamê, mingüê. então lá vão minhas conclusões, na velha fórmula de pílulas, pilulitos, protein pills, mastiguinhas.
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dentro da torre antilulista, a caixa de comentários formulou uma briga colateral de torres "inimigas", centralizada num confronto entre marcio, recém-chegado ao blog, e sérgio martins.
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a discussão no front antilulista foi essencialmente estética, polarizada entre os que acham que clara nunes é a melhor cantora da história do brasil e os que acham que clara nunes não é a melhor cantora da história do brasil.
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dentro da torre lulista, formulou-se outra briga colateral, com ares de central, cuja temperatura subiu no confronto entre a torre-macho dunha e a torre-fêmea madamada.
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a discussão na fronteira lulista foi essencialmente política, embora não se desse em conta de ser contra lula ou a favor de lula. os que se colocavam em batalha eram, segundo diziam, partidários resistentes de lula.
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mesmo assim, a torre-macho defendia lula, contra supostos "ataques" da torre-fêmea. outras torrezinhas adentraram o recinto, tendendo mais a defender ou mais a questionar lula, de acordo com parâmetros de gênero e sexo (pedro mais pró-lula, márcia mais antilula).
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enquanto isso, permanecia desabitada a terceira torre, de fusão entre vários pólos ditos opostos - masculino & feminino, pedro & vange, esquerda & direita, contra & a favor, estético & político etc. etc. etc.
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a guerra que lotou a torre antilulista foi, quase integralmente, constituída por pessoas que se dizem pró-lula (a exceção é o sérgio, cuja posição não conheço).
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márcia, lulista radical, abriu a lotação antilula. a bomba que ela elegeu para detonar o que ela mesma defende foi tríplice, composta de três mensagens a respeito de zezé di camargo & luciano. usou, portanto, aliados de lula para combater lula, algo que nem ela desejava fazer. mas foi tríplice, tipo terceira torre (mais na forma que no conteúdo).
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na torre antilulista, só apareceu um antilulista declarado, o leo. mas, numa linda e estranha simbologia, leo apareceu na torre antilula para discutir estética, não para bombardear política.
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é sempre bom repetir: lulistas lotaram a torre antilula, mas antilulistas não deram o ar de sua graça na torre pró-lula. o que me leva a concluir que os lulistas, com justa razão, andam em pé de guerra com eles mesmos. mas também me leva a concluir que os lulistas são muito mais maleáveis, flexíveis e democráticos que os antilulistas. disso eu já tinha certeza, desde pelo menos 1 de janeiro de 2003.
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essa certeza só se confirma, dia a dia, pela retórica antilulista que, segundo marilena chauí bem filosofou n'"o silêncio dos intelectuais", está despencando nos dias de hoje para princípios nazifascistas, de que (trazendo para palavras minhas) nada deve ser combatido por mim com maior ferocidade do que o que pareça, a mim, diametralmente oposto ao que eu sou. tipo americanos versus iraquianos, homens contra mulheres, heterosexuais contra gays, brancos versus pretos, tropicalistas & sambistas, tucanos against petistas etc. etc. etc.
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leo, sérgio e marcio nunca saíram da torre 1. cat, rubens passaram apenas na torre 2, enquanto dunha fixou residência definitiva na mesma torre. vange se manteve, soberana e co-autora, na torre 3.
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poucos eleitores brincaram de pegar o cipó e ir visitar a torre vizinha. mauricio apareceu de passagem, mas foi pioneiro em se engajar no jogo e brincar de morar, ao mesmo tempo, na torre 2 e na torre 3. talvez tenha sido o único (não à toa é meu parente, hehehehehe).
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marcia acabou andando por todas as torres, feito cigana nômade - mas só depois que a provoquei em ambiente extra-blog. eu migrei feito peregrino (ou tarzan caricato de cipó em cipó) de torre em torre - mas acho que não conto, porque estou desempenhando o "anfitrião". madamada demorou, mas também brincou de bem-humoradíssima amarelinha na torre 1 - mas o fez falando de politica, não de estética.
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enquanto isso, na torre 2, a torre pró-lula, ninguém se atrevia a falar de estética. afoitos, dunha e madamada lotaram a guerrilha pró-lulista de relatórios, documentos, provas do "crime".
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no campo estético, marcio interpretou o afoito na torre 1, trocando de posição tantas vezes que acabou por irritar seu duplo-feminino márcia e provocar uma segunda guerra de torres (& sexos) em campo minado antilulista.
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supondo a razão de márcia-menina contra marcio-menino, marcio teria no entanto alegorizado o eleitor brasileiro típico, aquele que oscila entre opiniões próprias e entre acompanhar o rebanho para qualquer lado que o rebanho resolva ir. aquele que tende a acreditar em tudo que "a mídia" diz, mesmo que o que "a mídia" diz não tenha nenhum sentido lógico. lembra aquele cara (intelectual ou povão) que odiava o lula, virou lula de carteirinha há dois anos e meio e já é antilula desde criancinha de novo (atenção, não conheço marcio e isso não é um juízo a respeito dele - o cara é novo aqui, não conhece direito o "governo" e não tem mesmo como tomar posições instantâneas a respeito de nada).
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as três torres, miraculosamente, ainda permanecem de pé!!!, construídas pelas opiniões pessoais valiosíssimas de cada habitante que compõe uma torre, duas torres, três torres...
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gilberto gil, alô, alô, realengo: amarradão na torre dá pra ir pro mundo inteiro? onde quer que eu vá no mundo eu vejo a minha torre? é só balançar que a corda me leva de volta pra ela? (estou citando "sandra", uma de minhas prediletas do ministro) ou tudo já mudou e as torres já são feitas de algodão?
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as torres, como as conhecemos, são feitas de cimento. mas e a massa que mora nas torres, o que é que quer? a massa quer mudança? qual mudança? fala, mangueira!

sexta-feira, agosto 19, 2005

contra o governo lula

a voz de clara nunes, a melhor cantora brasileira de todos os tempos (pronto, opinei!), enche o ar poluído em nossos pulmões e pontifica o que foi que aconteceu com a música popular bras..., ops, com a política brasileira dos anos pt, dos anos lula.

a linda composição moralista foi escrita por mauro duarte, e se chama "lama". foi amaciada pela voz de clara em 1976, no álbum "canto das três raças", quando clara, seus compositores e o brasil inteiro ainda não sabíamos que somos resultantes do canto de muito mais que três "raças".

abaixo o governo lula!

lama *
(mauro duarte)
com clara nunes

pelo curto tempo que você sumiu
nota-se aparentemente que você subiu
mas o que eu soube a seu respeito
me entristeceu
ouvi dizer
que pra subir você desceu
você desceu

todo mundo quer subir
a concepção da vida admite
ainda mais quando a subida
tem o céu como limite
por isso não adianta
estar no mais alto degrau da fama
com a moral
toda enterrada na lama

* clara nunes morreu excessivamente jovem, em 1982, aos 39 anos, após uma cirurgia mal-sucedida para extrair varizes, talvez quem sabe uma das âncoras em que ela se apoiava para conservar sua beleza, sua fama, sua celebridade. morreu no mais alto degrau da fama, da beleza e da criatividade artística, contradizendo, ou melhor, comprovando o que cantara poucos anos antes em "lama". a crise de fama-celebridade-poder é grave no pt e no governo central do brasil, mas não pertence só a eles - é vivida cotidianamente por políticos de todas as extrações, artistas, médicos, comunicadores, jornalistas, "grandes" empresários, traficantes de drogas e de armas, religiosos, advogados, celebridades instantâneas de reality shows, jogadores de futebol etc. etc. etc.

a favor do governo lula

você já ouviu falar de universidade nômade? nem eu, mas fiquei sabendo hoje de um manifesto que vem de lá e anda percorrendo os fios invisíveis que interligam nossos computadores brasileiros e propõem soluções realmente novas para a profunda crise de valores, crenças e sonhos que o brasil está vivendo.

o manifesto "pela radicalização democrática e contra a desestabilização do governo lula" se une a outros fatos pingados que gotejam por aí, que poucos ouvem, muitos fingem não ouvir, tantos não querem nem acreditar. é primo da informação de que a balança comercial brasileira é hoje tão favorável quanto não era desde 1947 - mil novecentos e quarenta e sete, 58 anos atrás. é primo da evidência, sempre recusada, de que nada disso é coincidência: é fruto de uma gestão de mudança e transformação, que, infelizmente, está longe de ser a mais ética que o brasil já teve, mas é provavelmente a mais transparente de todos os tempos no brasil (pronto, opinei!).

omanifesto é, além de tudo, um abaixo-assinado - já foi assinado por intelectuais e por empregadas domésticas, e está aberto a quem mais quiser aderir. o manifesto, além de tudo, é pela construição, não pela destruição. o manifesto, além de tudo, peita a contracorrente e declara apoio ao cachorro quase-morto (segundo santa mídia, essa santinha safadinha do pau oco) lula. o manifesto, além de tudo mais, reflete posturas e pensamentos novos, novíssimos, de mudança, de transformação. os pontos mais marcantes de novidade - de liberdade, livre arbítrio, responsabilidade - vêm em negrito (que, desta vez, não é meu, mas dos próprios manifestantes).

viva o governo lula!

Pela radicalização democrática e contra a desestabilização do governo Lula

O que nós, abaixo assinados, temos em comum é uma viva esperança no processo de transformação democrática da sociedade brasileira, aliada a uma saudável descrença em relação à democracia representativa. Descrença por considerar que seus ritos e mentiras funcionam na base da limitação da própria democracia; e por acreditar também que não há democracia sem sujeitos e movimentos capazes de renovar e materializar diariamente suas bases constituintes.

A democracia representativa é parte determinante da corrupção da própria democracia. Por isso nossa relação com o candidato Lula e com o Presidente Lula nunca foi (e não é) marcada pela ilusão e nem pela desilusão.


Nunca consideramos o candidato Lula (e menos ainda o seu partido, o PT) o anjo redentor capaz de resolver todos os "problemas". Pelo contrário, sempre soubemos que a conquista do poder implicava homologar práticas de governabilidade viciadas. Isto não justifica nada, é apenas uma constatação. Poderia ser de outro jeito? Talvez, mas as correções necessárias do regime democrático não passam pela desestabilização deste governo. Pelas mesmas razões, nunca consideramos o governo Lula e suas opções em termos de políticas econômicas uma traição (da ilusão). Entendemos que se trata da política de um governo de coalizão, sustentado por um sistema representativo inserido em uma sociedade marcada, por um lado, pelos quebra-cabeças das obrigações externas e, por outro, por uma estrutura social profundamente desigual, na qual a concentração da renda e a estrutura sócio-econômica hierarquizada se misturam e se alimentam reciprocamente.

Ao mesmo tempo, se o governo Lula devia e deve ser enxergado como um governo "qualquer", isso não significa que esse governo seja igual aos outros!

Que Lula e o PT tenham tido que se "enquadrar" para "chegar lá" não significa que o governo Lula seja uma continuação da mesmice repetida há séculos pela direita e pelas elites. O governo Lula é o governo mais democrático de nosso país! Não é democrático porque enquadrado, nem por "respeitar" as instituições representativas, e ainda menos pela moderação de sua política econômica. É democrático porque, apesar de todas as concessões e dos graves erros, constitui a expressão da multidão dos "sem-direitos" que construíram esse país maravilhosamente criativo e terrivelmente desigual.

um simbolismo cheio de conteúdo material na composição social desse governo. Esse simbolismo está longe de se reduzir à figura do operário retirante nordestino semi-analfabeto. Com Lula e o PT, pela primeira vez, o governo não se reduziu apenas aos acertos internos das elites. Apesar de os avanços não terem sido tão profundos quanto desejávamos (e ainda desejamos), o governo matizou-se na multidão de cores que constitui o Brasil dos sem-direitos: os retirantes, os operários, os sindicalistas, os militantes negros, os professores do setor público.

Há também um conteúdo cheio de simbolismo na prática do governo que está longe de se reduzir à política econômica e que envolve a potente definição (mesmo que confusa) de um novo marco de políticas sociais constitutivas dos direitos. O atual governo vem enfrentando de fato o desafio da distribuição da renda e da luta contra todas as formas de exclusão, adotando políticas sociais que, pela primeira vez, vão além da mera retórica. Algumas dessas políticas, ainda em andamento, compreendem a Reforma Universitária, o Prouni, a política afirmativa contra o racismo, o Fundeb, o Bolsa família, Ancine-Ancinav, a preocupação com o fim da endemia da seca e sua indústria política, a auto-suficiência da extração de petróleo, a política de pesquisa em Ciência e Tecnologia, a política das patentes, as reformas microeconômicas para multiplicar as condições de acesso dos informais e dos "pobres" ao crédito e à regularização da situação de empresas que engrossam o caldo da informalidade no Brasil, dentre outras. Ainda é fundamental acrescentar às políticas sociais a adoção de uma nova compreensão da política internacional, fundada na gestão da interdependência global, com uma visão inclusiva da globalização e a aproximação com países que estão fora do arquipélago da prosperidade.

A campanha desestabilizadora desencadeada a partir do uso político hipócrita e moralista do escândalo dos Correios e das declarações do novo porta-voz da classe política – o dublê de cantor Roberto Jefferson – é uma ameaça golpista, arrivista ou simplesmente conservadora (qualificação que pouco importa), ao símbolo e ao conteúdo desse governo e do Presidente Lula.

Essa campanha precisa ser derrotada pela mais ampla mobilização democrática, em suas mais diversas formas de expressão: social, intelectual e política.

O estopim da crise parece ter se originado no âmbito das inevitáveis e violentas contradições internas ao próprio pragmatismo político do governo e de suas alianças. Roberto Jefferson é, nesse sentido, uma causa e um efeito. O pragmatismo do antigo campo "majoritário" do PT não inventou o Jefferson, mas não soube avaliar o verdadeiro "custo" desse tipo de alianças. Com efeito, a elite econômica e a direita social e política estão comemorando cinicamente o fato de o PT e Lula terem caído na armadilha da "continuidade". Contra os "usurpadores" sempre se usou a arma do medo.

Mas, a verdadeira crise é outra. É a crise da representação e de seu modo básico de funcionar pela inversão do próprio processo de legitimação democrática: poucos "representantes" eleitos pelo voto de "todos" acabam definindo ("governando") as condições de expressão de "todos" (os "governados"). O próprio mecanismo da representação corrompe o poder de "todos" reduzindo-o em poder de "alguns". Isso não significa acharmos que todos os políticos são corruptos. Muito pelo contrário, trata-se de afirmar que uma luta não hipócrita (não moralista) contra a corrupção não passa pelo respeito do "decoro" da representação, mas pelo reforço dos laços não-representativos entre governantes e governados, bem além dos ritos (e dos vícios) eleitorais. O orçamento participativo e o Portal da Transparência são experiências concretas – ainda bem limitadas – que vão nesse sentido.


Contra o autoritarismo da grande imprensa, pela radicalização democrática.

O que deveria interessar ao governo Lula (e ao partido que o sustenta) não é apenas a moralização das práticas de governo, mas a transformação de seus princípios de gestão. A defesa do governo Lula não é a defesa de práticas condenáveis geradas pelo aparelhamento do Estado, mas a crença de que qualquer transformação ética da política brasileira passa por uma radicalização democrática. Este é o único caminho – exatamente porque ele é, por definição, múltiplo e aberto – para a recomposição dos meios e dos fins, momento no qual a virtude se ergue contra a fortuna, contra o acaso, contra o passado, contra tudo que é estabelecido.

Praticamente toda a grande imprensa está linchando o PT, o Governo e o Presidente. Há uma lógica revanchista perversa que diz que este governo merece ser condenado pelas práticas abusivas de quando era oposição. A crítica das velhas práticas de oposição de um país recém saído da ditadura é mais importante do que a própria estabilidade de um governo eleito pelo voto de mais de 50 milhões de brasileiros. Existe algo mais autoritário do que essa inacreditável falta de pluralismo dos meios de comunicação?

Quando os sindicatos e os movimentos sociais manifestam suas inquietações diante dessa campanha política inusitada e autoritária, recorre-se imediatamente ao que seria o "espectro" da "venezuelização", entendendo-se com isso uma virada "autoritária" do Governo. Com efeito, os arautos da moralização da democracia condenam qualquer iniciativa de mobilização democrática não-representativa. Para eles, a Venezuela dos “sem direitos” é uma ameaça.

Ao contrário, a perspectiva ética passa pela disseminação de um espaço democrático e plural pautado pelo dissenso e pela dinâmica dos movimentos. Só assim veremos surgir uma alternativa concreta (e múltipla) às soluções populistas e autoritárias de sempre.

O caminho da refundação democrática está nas relações possíveis, abertas, conflituais – dinâmica e essencialmente múltiplas – que hoje podem se constituir entre este governo e os movimentos sociais (que por vezes ele se viu tentado a usar, neutralizar, ou mesmo cooptar).

Esse é o único terreno ético possível a partir do qual avaliar o governo do ponto de vista da ampliação (e não da regressão) do processo democrático.

Nesse sentido, essa crise pode vir a ter para a esquerda brasileira um efeito positivo e libertador. Varridas certas práticas político-partidárias e respectivos pressupostos ideológicos, poderia reabrir o campo da imaginação política e subjetiva que este governo, até o momento, não soube reinventar. Para isto, claro, é preciso que o desfecho desse processo não seja regressivo. Em face desse grave risco, precisamos buscar fortalecer as potências legítimas de transformação, ou seja, de radicalização da democracia.

as torres gêmeas *

e você, é "contra o governo lula", ou "a favor do governo lula"? deposite seu voto na urna-janela acima, abaixo da alternativa que mais lhe seduzir. e boa viagem, boa aterrissagem na próxima estação.

ou, não..., será que seria possível sermos menos binários, não sermos tão pobremente contra o governo lula OU a favor do governo lula? será que seria possível que nós, assim nos rebelando, inventássemos uma terceira e mais complexa, menos tosca, mais criativa, menos maniqueísta, mais sofisticada opção?

é isso ou continuarmos fazendo guerrinha de bolinha de papel encastelados em nossas respectivas torres gêmeas, aquela que acredita em tudo (a "otimista") e aquela que desacredita de tudo (a "pessimista"), até que sejam esboroadas as duas juntas, irmãs trágicas na ruína ruidosa causada por um bombardeio aéreo terrorista que depois ninguém vai entender de onde foi que veio (porque não veio do oriente médio, mas sim de dentro de nós mesmos, de entranhas que daqui a gente não enxerga).

é isso ou continuarmos sendo, nós mesmos, os terroristas invisíveis.

unidunitê, vem pular amarelinha também, como se fosse brincadeira de roda. é só depositar seus votos na urna-janela-tópico correspondente.

(ah, e como aqui não é eleição política nem teste de múltipla escolha de adolescente vestibular, serão aceitos votos simultâneos em mais de uma urna - viva o voto polimórfico, nem iludido nem desiludido!)

* agradeço a vange leonel (e, terceririzando, a todos os participantes falantes e mudos das mais recentes discussões deste blog) pela inspiração na construção da(o)s três torres-tópicos trigêmeo(a)s do fim de tarde desta sexta-feira deste belíssimo mês de agosto de 2005 [ei, mauricio, sobrinho arretado!, 30 anos não é mole, não!... mas, escreve o que o tio está falando, tudo vai ficar cada vez mais sensacional a partir de agora! feliz aniversário neste belíssimo 19 de agosto de 2005!].

quarta-feira, agosto 17, 2005

lerê, lerê

ah, é, tá pensando que é só na política que as relações são toscas, desiguais, desleais e mal-resolvidas? mera ilusão, viver feliz... investigamos mais um tiquinho sobre as mazelas da dita indústria fonográfica (que, de resto, é tãããão parecida com a dita indústia política) das terras de cabral, na carta capital 353, de 3 de agosto de 2005.

versa sobre uma disputa judicial em curso entre a gravadora multinacional emi e o ídolo teen felipe dylon ("a musa do verão/ da nova estação", manja?), e está longe de ser caso único, isolado ou incomum (a novidade que veio dar na praia, como no caso da política, é que em tempos de destampatório e incontinência verbal a famigerada "verdade" vem vindo à tona aos borbotões, no mais depurado estilo funkeiro de "ah, quié isso?! elas estão descontrolada!!", mora?).

pois logo depois desse houve outro caso, rapidamente abafado pelas partes envolvidas. uma nota de jornal deixou vazar que os titãs e seu empresário, manoel poladian (ele vai aparecer na reportagem abaixo, dá um close nele!), estariam indo à justiça conta a sony&bmg. o suposto motivo: para lançar o "mtv ao vivo" da titanomaquia, a recém-misturada sonybmg estaria forçando a barra para cancelar um adiantamento de r$ 1,6 milhão, supostamente devido por contrato à banda pela gravadora.

a sony & bmg negou tudinho (mas não compensou com outra versão, afirmando apenas que não negociava nada com poladian nenhum) e fez silêncio de túmulo diante de pedidos de entrevista para falar sobre o caso; em e-mails que me concedeu responder, poladian primeiro chamou o ato da megagravadora de "fraude inaceitável", depois encerrou assunto comemorando um vislumbre: "parece que haverá bom senso e o assunto caminha para uma solução".

e o assunto sumiu imediatamente do noticiário, o que fortalece a impressão de que eles todos, que são brancos, se entenderam após a notinha minúscula de ancelmo góis (tudo isso não faz lembrar de política de novo, esses trecos de adiantamento, mensalinhos & mensalões, recados cifrados, chantagem disfarçada em forma de notícia & vice-versa?).

caso abafado. caso abafado?

e a imprensa? abafa o caso junto com eles? elege alguém para endereçar ao cadafalso, entre titãs e/ou poladian e/ou mtv e/ou sony&bmg?

e a platéia? aplaude? vaia? fica indiferente? canta em coro o novo hino dos titãs contra a corrupção?

ou vamos todos juntos naquela outra onda de que nada do que é humano nos espanta? ou chacoalhamos tudo na liqüidificação de uma nova solução-frankenstein, de uma nova estrada de tijolos amarelos, de uma nova manhã? qual? quais?

tá difícil responder tanta pergunta. então quanto isso "brincamos" de "escravos modernos", quem sabe colocando como fundo musical aquele hip hop de rappin' hood que fala sobre "o palco da sociedade" enquanto sampleia dorival caymmi naquele outro banzo que chora as lágrimas ainda vitimizadoras de que "vida de negro é difícil, é difícil como o quê". é difícil, mas é a única que temos (enquanto não nos dispomos a melhorá-la).

ESCRAVOS MODERNOS
"Asfixiado", o cantor Felipe Dylon acusa arbitrariedades por parte do executivo Marcos Maynard e exige alforria da EMI

Por Pedro Alexandre Sanches

E eis que um dia Davi resolveu enfrentar o gigante Golias. No início de julho, pouco antes de completar 18 anos de idade, o cantor pop Felipe Dylon registrou na 2ª Vara Cível do Rio de Janeiro uma ação contra a gravadora multinacional EMI, na qual solicita rompimento de contrato, prestação de contas atrasadas e compensação financeira por perdas e danos materiais e morais.

É raro que casos como esse ganhem notoriedade, mas o que há por trás dele é prática mais que comum no ambiente musical brasileiro. Quando o texto da ação afirma que "o autor vive de sua atividade profissional como artista e está sendo asfixiado pelo tratamento incompatível dado pela empresa ré", o que se pode ler nas entrelinhas é que Dylon foi remetido à "geladeira" da EMI (e de todo o sistema musical).

"Meu objetivo é conseguir libertá-lo, para que ele possa voltar a trabalhar", resume o advogado Flávio Zveiter, retratando um aparente regime de semi-escravidão e argumentando que a EMI não tem depositado direitos autorais dentro dos prazos contratados, colocou de lado planos de carreira estabelecidos para o artista, suspendeu a gravação de videoclipes para promovê-lo e, com isso, desacelerou até mesmo a rotina de shows do ídolo adolescente.

Mesmo supostamente desinteressada pelo artista, a gravadora não aceitou até este momento liberá-lo para que possa reestruturar de outro modo sua carreira. "Em assim agindo a empresa ré, o autor está arriscado a ver sua carreira e seu nome caírem no esquecimento ou perder os parâmetros das idéias iniciais, diante de cláusulas abusivas do contrato que o submete à vontade exclusiva da ré e do flagrante descumprimento contratual pela EMI", reclama a ação.

A gravadora, que tinha prazo até a sexta-feira 29 para responder às acusações em juízo, nega-se a fazer declarações públicas sobre o caso. Emitiu apenas uma nota afirmando que "se reserva o direito de discutir este assunto apenas na esfera judiciária".

O conflito oculta modelos arcaicos de relacionamento entre artistas e suas gravadoras. No caso Dylon, um dos pomos da discórdia é o disco Amor de Verão, lançado no ano passado. O artista hoje alega ter sido induzido, "sob falsas promessas de investimento na sua carreira", a gravar uma música antiga de um dos diretores artísticos da EMI, Cláudio Rabello.

Trata-se de Um Amor de Verão, sucesso em 1985 com o grupo pop Rádio Táxi, que convive, no CD, com o rock romântico Ciúme de Você, de Luiz Ayrão, popular na voz de Roberto Carlos há 37 anos. Embora hoje proteste por ter de gravar sucessos "de mais de 20 anos", não é a primeira vez que o cantor o faz – em Felipe Dylon (2003), gravara Me Liga, que os Paralamas do Sucesso lançaram em 1984.

Por outro lado, três músicas de autoria própria de Dylon teriam sido excluídas arbitrariamente do disco, que, segundo a ação, "foi lançado por decisão unilateral da gravadora, de forma repentina e sem a devida preparação do autor (...), não tendo sido submetido (sic) a ele a aprovação da capa, as fotos, nem mesmo o título".

O advogado Zveiter justifica o porquê de Dylon ter inicialmente se resignado a gravar sob condições que caracterizam uma relação de dependência marcada e desigualdade entre as obrigações do artista e os desejos da gravadora: "A política de Felipe era não brigar. Em princípio ele não queria, mas foi orientado pelo empresário a não brigar com a gravadora".

O empresário, Lipe Dylong, é também pai do artista. Pelo lado materno, Felipe é neto do Golias Salvador Priolli, fundador da tradicional casa carioca de espetáculos Canecão. Um dos impulsionadores da carreira do ídolo pop-rock, que exalta a saúde e a natureza, é o executivo Jorge Davidson, que assina a direção dos discos de Dylon, mas foi demitido da EMI em 2004.

Do outro lado do campo de batalha, o Golias que demitiu Davidson e "asfixia" Dylon se chama Marcos Maynard, que assumiu a presidência da EMI há um ano. Ex-músico paulista, ele é um dos mais atuantes executivos da indústria fonográfica nacional, que emplacou, entre muitos outros, o sucesso de massa do grupo RPM e da axé music.

Maynard é daqueles executivos que atraem admiração e oposição em graus equivalentes. Seguido há décadas por artistas como Rita Lee, Ivan Lins, Simone, Zizi Possi, Marina Lima e Paulo Ricardo, é tido nos bastidores como um produtor que gosta de agir como interventor contumaz no conteúdo artístico dos discos que grava.

Contam-se às dezenas os artistas (de Erasmo Carlos a Marina Lima, de Rosana ao grupo Harmonia do Samba) que, sob sua guarda, gravaram sucessos do hábil compositor pop Cláudio Rabello. A associação intensificou-se quando Rabello foi subordinado de Maynard na efêmera Abril Music, gravadora extinta pelo Grupo Abril no início de 2003, sob R$ 18 milhões de dívida estimada pelo mercado (mas negada à época por Maynard).

Após a extinção da Abril e um período em que ficou, ele também, na "geladeira", Maynard assumiu a EMI, focando-se no objetivo de aumentar a participação da gravadora no mercado. Dito e feito. Enquanto em 2004 a indústria musical cresceu 17,9% em valor e 9,7% em quantidade de discos vendidos, a EMI aumentou o lucro em 30,9% e os exemplares vendidos em 86,4%.

Tais resultados consolidaram-se nas vendas de Natal, em que o mercado sofreu uma queda de 18,3% nas cópias consumidas em relação a dezembro de 2003, enquanto a EMI registrou o formidável crescimento de 288%.

Mesmo com resultados tão positivos, a multinacional não colocou Felipe Dylon ou nenhum outro artista novo ou disco inédito nas paradas. Entre os 20 discos mais vendidos em 2004, quatro são da EMI: um CD ao vivo dos Paralamas do Sucesso e três álbuns de material antigo da extinta banda de rock Legião Urbana.

Explica-se o inesperado boom de sucesso da Legião em 2004: a política de Maynard tem sido a de lotar as lojas com o catálogo da Legião, ponta-de-lança constante de vendas, muitas vezes a preços tão baixos quanto R$ 9,90. Procedimento parecido tem sido adotado com o catálogo de outros artistas de peso da EMI, como Paralamas e Marisa Monte, enquanto a nova direção prioriza gravar discos e artistas de tez popular como Latino, Frank Aguiar, Margareth Menezes, Netinho, Jorge Vercilo, Edson & Hudson etc.

As vendagens moderadas desses últimos e o pedido de socorro ao catálogo demonstram com precisão a já duradoura fase de paralisia da máquina de produzir sucessos de massa da indústria fonográfica.

A dupla sertaneja acima citada é motivo de outro processo que corre contra a EMI, este movido pela gravadora independente Deckdisc, de propriedade de João Augusto, ex-diretor artístico de Maynard nos tempos de Abril Music. A Deckdisc pede indenização por perdas e danos à EMI, que teria utilizado seu poderio econômico para desrespeitar contrato vigente e tirar da Deckdisc os bem-sucedidos Edson & Hudson.

O caso Dylon foi precedido por outros que ensaiaram sinalizar em público o desagrado pelo "modelo Maynard", muitas vezes desrespeitoso à individualidade artística. É importante notar que tal desigualdade não é nova nem circunscrita àquele executivo; alguns artistas é que, ali naquele nicho, parecem estar reagindo mais ao modelo caduco.

O grupo Pato Fu, por exemplo, desistiu de um contrato pré-acordado com a direção anterior da EMI, e descreveu o caso em entrevistas. O cantor Pedro Mariano teve de abandonar lá um disco inteiro, para poder se mudar para outra gravadora.

"A saída da EMI não foi tranqüila", conta Mariano. "Primeiro, Maynard queria que eu voltasse ao estúdio e gravasse outras cinco ou seis músicas de um CD em que a própria EMI havia investido muito. Tentei argumentar que teria de achar novas músicas, reunir os músicos, e ele respondeu que 'a pressa passa e a merda fica'. Fica complicado negociar com um cara assim."

Mariano diz que, após longa negociação, a EMI aceitou a rescisão do contrato, mas não concordou em devolver a seu poder o disco que se encontra parado até hoje nos arquivos da gravadora. "Perdi o ano de 2004 inteiro e me arriscava a perder o primeiro semestre de 2005 se insistisse. Foi o pior ano profissional e pessoal da minha vida, tive de partir do zero novamente", relata o artista, que há pouco estreou na Universal com um disco ao vivo com poucas inéditas e várias regravações de sucessos de sua mãe, Elis Regina. Foi como conseguiu escapar do "efeito geladeira" cultivado pela maioria das gravadoras.

Entre todos, o caso Dylon torna-se emblemático, porque ele surgiu em 2003 com larga aceitação junto ao público adolescente, bem ao gosto do "modelo Maynard". Mesmo assim, o desagrado explodiu quando se resolveu redirecionar a divulgação de Dylon das rádios segmentadas de rock adolescente para o circuito mais popular, de rádios "bregas" e aparentadas. Davi viu sua carreira desvirtuada, e foi à Justiça.

Confrontado pela reportagem de CartaCapital com uma lista de 21 perguntas sobre todos esses temas, Maynard afirmou por intermédio da assessoria da EMI que não iria se pronunciar. Mas um de seus parceiros mais próximos, o empresário de artistas Manoel Poladian, concordou em opinar sobre Dylon e Maynard, para ele "o mais competente executivo brasileiro da música".

Conhecidos desde que eram veterano e calouro no curso de direito do Mackenzie, Poladian e Maynard costumam atuar de modo coordenado, um cuidando dos shows e outro dos discos, em projetos de cunho comercial como um disco de Natal de Simone (25 de Dezembro, 1995) e um CD de versões dos Beatles por Rita Lee (Aqui, Ali, em Qualquer Lugar, 2001).

Eis a opinião do Golias Poladian, um dos mais bem-sucedidos empresários musicais brasileiros, que amplificou o sucesso de Roberto Carlos, Elis Regina, Jorge Ben Jor, Gal Costa, RPM, Titãs, Daniela Mercury etc.: "Acho um equívoco o talentoso Felipe Dylon não assumir suas próprias decisões e não administrar seu próprio vacilo, o que estamos presenciando nesse episódio pode ser o início do fim. Em toda atividade, as pessoas devem ter, além de um grande talento, caráter e responsabilidade e saber que sempre estaremos sujeitos a erros que devem servir de aprendizado para o futuro. O investimento feito pela EMI na obra do citado artista foi absolutamente suntuoso e não é procurando a Justiça que ele conseguirá atingir aqueles que lhe ajudaram a acertar na maioria das vezes".

Pedro Mariano sofreu conseqüências parecidas às que aparecem na avaliação de Poladian: "Logo surgiram burburinhos dizendo que eu não quis trocar uma música, que dei 'piti', que sou um garoto-problema". É certo que artistas imaturos costumam de fato assumir a pose de garotos-problema. Mas, adotando práticas comerciais selvagens e truculência de rolo compressor, velhos capitães de indústria feito Marcos Maynard parecem atolados numa versão adulta e nada inofensiva do desgastado rótulo adolescente.


OUTROS SELVAGENS
Livro relata as agruras de Michael Jackson

Contratos semi-escravistas entre gravadoras e artistas podem até parecer sinais da miséria cultural brasileira, mas as coisas não são bem assim. A recém-lançada biografia de Michael Jackson, A Magia e a Loucura (Globo, R$ 62), de J. Randy Taraborrelli, descreve episódios estarrecedores do contato selvagem entre grandes talentos musicais e as eminências pardas que agigantam sua fama e seu sucesso.

Astro infantil nos anos 70, quando ascendeu com o grupo familiar Jackson Five, Michael viveu seus primeiros anos artísticos sob as garras violentas de seu pai-empresário, mas também da mítica gravadora Motown, que impunha contratos escabrosos à família. Obrigava-se a custear todos os arranjos, músicos e estúdios para as gravações do grupo, mas as despesas teriam de ser reembolsadas com os lucros de discos vendidos. Pois em seis anos a Motown gravou 469 canções da família Jackson, das quais lançou "apenas" 174. Quando saíram da gravadora, os Jackson deviam US$ 500 mil, inclusive por 295 gravações nunca lançadas.

O talento individual de Michael foi o passaporte para a independência. Mas eis que ele reaparece adulto, como o poderoso artista-empresário com fortuna suficiente para comprar por US$ 47,5 milhões o catálogo de canções dos Beatles. É assombroso o relato da sanha exploratória e da crueldade de Michael no trato com o ex-beatle Paul McCartney. Cumprindo o mito, o abusado se convertera em voraz abusador.

Mesmo descontadas todas as diferenças de escala, não deixa de ser curioso lembrar que, aqui, Marcos Maynard começou carreira num grupo chamado Lee Jackson. Empresariada por Manoel Poladian, a banda fazia versões de sucessos nacionais e estrangeiros de soul e rock e era estrelada por Maynard, entre outros cinco futuros poderosos-chefões de gravadoras no Brasil e no mundo. – PAS

segunda-feira, agosto 15, 2005

ainda somos inúteis?

e o disco mais genial que tenho ouvido nestes dias é "ainda somos inúteis!", um tributo ao ultraje a rigor arquitetado pela migué records, de santa catarina, e pela monstro discos, de goiás.

discordo da exclamação do título. eu preferiria que perguntássemos: "ainda somos inúteis?" ainda somos inúteis? na minha opinião, a resposta é "não! não somos!", mas, ok, isso é meramente subjetivo.

talvez seja o caso pensar se se fundaria na dupla "úteis"/"inúteis" qualquer tipo de discussão produtiva para os dias de hoje.

porque útil é quem serve a alguém, né? e inútil é quem não consegue servir a ninguém, não é?

se for, basta. (inocente) útil é o capeta. inútil é o raio que os parta.

mas, então, mesmo assim. "ainda somos inúteis!" soa genial, se não por outra razão, pelo simples fato de peitar a ousadia de colocar dezenas de grupos jovens e bacaníssimos de rock'n'roll brasileiro para prestar uma homenagem em bom português a um grupo de suposta segunda divisão (o ultraje a rigor) de uma geração de suposta terceira divisão (a do pop-rock dos anos 80).

(enquanto isso, a banda homenageada em si está lançando um "acústico mtv"... tudo bem, nem o ultraje em pessoa consegue ser ultrajante o tempo inteiro, não é mesmo?)

enquanto isso, mais divertido ficar com o tributo, para a gente lembrar que "ciúme" ("eu quero levar uma vida moderninha/ deixar minha menina sair sozinha/ não ser machão e nem bancar o possessivo/ ser mais seguro e não ser tão impulsivo/ mas... eu me mordo de ciúme!") já vai ficando datado, que "inútil" ("a gente não sabemos escolher presidente") já datou e que, crianças do brasil, nós temos um passado de que podemos nos orgulhar, sim!

por que "a gente não sabemos escolher presidente" já datou? porque hoje em dia estamos descobrindo, à custa de muita dor (& prazer), que em vez de ficar no nhenhenhém eterno de "meu governante me decepcionou" talvez seja hora de trocarmos a pergunta sonsa "quem me governa?" pela afirmação audaz "eu me governo".

o ultraje a rigor nunca apontou solução nenhuma. mas talvez, fazendo parte do problema e do percurso, o ultraje sem nenhum rigor já fosse, sendo somente o que era, um pedacinho pequenino de solução.

é por essas & por outras que, hoje, veteranos srs. ultrajantes podem dizer em coro com seus pupilos: "ouçam os clássicos, crianças".

sexta-feira, agosto 12, 2005

meu casaco de general 2

vai parecer que não, mas estarei falando sobre a crise que nos assola.

hoje me arrepiam as soluções que passam pela fresta, as possibilidades de encontrar interruptores ligados e saber que a atração pela falência não é o único motor que nos alimenta e consome nosso combustível vital.

fico arrepiado em saber que várias das coisas em que mais tenho acreditado já estavam escritas, algumas delas pelo punho de gestores públicos, esses mesmos homens que hoje nos dedicamos 24 horas por dia a achincalhar (é um modo de acreditar que estamos nos poupando do auto-achincalhe, pois não?).

vai aí mais um trechão de duas páginas e meia de "meu casaco de general", desta vez copiadas sem brinquedos de recortar-e-colar. a retórica é cristalina, e naquela experiência se tornava prática depois de vir sendo teórica por já muito tempo. documenta o saber aplicado à prática além do falatório estéril, coisa que tão raramente nos preocupamos em fazer.

mas olha só que coisa de doido, que coisa mais linda, mais cheia de graça, que bossa nova, que jovem (van)guarda. luiz eduardo soares explica que, enquanto subsecretário de segurança do rio de janeiro, procurou tratar como duas faces inseparáveis de uma mesma moeda a campanha do desarmamento e... campanhas contra a homofobia.

será que a gente consegue vislumbrar a relação, e ver que marchar pelo desarmamento é igual a marchar pela diversidade e pela liberdade sexual?

[atenção: o referendo sobre o desarmamento vem aí. o direito de escolher e decidir pelo desarmamento da população braileira não há de nos ser subtraído pelo vendaval político que hoje mora dentro da nossa pequena delegacia moral-mental. e aí, vamos utilizar a crise para nos desarmar? topas o convite?]

pois é, passeata pela paz e passeata gay são a mesmíssimaa coisa. aliás, é preciso parar com o discurso tropical-fascista que desqualifica e ridiculariza o aliado mais poderoso que possuímos para sair de todas as crises: o respeito rigoroso pelas atitudes politicamente corretas.

nenhum pefelista neo-indignado nem nenhum tucano neomoralista vai fazer plástica na ética nacional se não tomar como palavra de ordem o triunfo do politicamente correto, seja na política, na delegacia, no fluxo de caixa, no asfalto, no dia-a-dia, na tão ridicularizada cartilha do nilmário miranda.

reconectando com os dias de agora, quero, antes que luiz eduardo soares comece a falar, chamar a atenção para a profunda ligação de tudo que ele dizia em 2000 com o que eu chamaria hoje de "efeito roberto jefferson", essa arma letal que hoje equipa e dá munição a dez entre dez pessoas que se odeiam a si próprias.

porque roberto jefferson, coitado(s de nós), reúne o pior desses dois mundos que luiz eduardo soares gostaria de paralisar, minar e demolir (mas não consegue, por falta de apoio político do pp, do pl, do pfl, do psdb, do pdt, do pt, do psol, do pstu, do seu zé da padaria da esquina).

do lado a da moeda que é uma pataca furada, bobjeff pertence à bancada do tiro, pratica tiro ao alvo, é financiado pela fabricante de revólveres taurus, é contra o desarmamento da população brasileira.

do lado b da moeda que é um disco furado, robferson é um machão decadente típico, daqueles de mal dissimulam por trás da própria truculência os instintos primitivos que o põem fora de si diante do ex-galã josé dirceu (esse próprio uma caricatura mais branda do machão decadente sem nenhum escrúpulo ou sentimento).

lado a mais lado b, rojefberfertoson pôs bolerão no melodrama brasileiro, consumou-nos não como tragédia shakespeariana, mas como dramalhão de fotonovela.

lado cara mais lado coroa, robejefo ocupou um espaço inteligentemente deixado vago pela pacificação de homens como mv bill: fez-se homem-bomba, guardou o fuzil de seu próprio ódio em casa e saiu à luta armada portando na língua a metralhadora giratória das palavras, arma mortífera para mel gibson nenhum botar reparo. bush e bin laden coraram de vergonha, o oeste longínquo passou a ser aqui mesmo.

foi a "macheza" desse homem, que anda forrado da capa protetora blindada do ódio interno guardado, que encantou e seduziu, nesta (in)exata seqüência, o governo petista do brasil e a mídia antipetista do antibrasil. foi a esse homem que primeiro o governo e depois a mídia confiaram os seus destinos, os nossos destinos.

nos socorra, dr. soares:

"é claro que havia muito mais, naquela nossa preocupação com a homofobia. sabíamos que os símbolos do poder são muito sexualizados, sobretudo nas polícias e particularmente entre os militares. acreditávamos também que nosso problema mais grave - o tráfico armado de drogas nas favelas - tinha mais relação com a escassez de recursos simbólicos para a construção positiva das identidades dos meninos do que com a escassez de recursos materiais para sua sobrevivência física. ou seja, a fome que leva ao crime é a fome de ser alguém visto, reconhecido e respeitado, e não a fome propriamente dita. em outras palavras, mais grave que a miséria é a exclusão social. a fome física pode conduzir ao desespero e até a atos extremos, mas dificilmente leva uma pessoa à imersão no mundo do crime (quando este não se apresenta como um modo alternativo de vida, mas um modo de lançar-se à morte precoce e violenta), a não ser com a mediação da revolta, que, associada à falta de perspectivas de identificação positiva, transforma-se em ódio duplo, contra si próprio (vazio de valor) e contra o mundo (no qual não há espaço para uma integração que valorize positivamente o portador do ódio).

"o tráfico seduz a garotada oferecendo-lhe recursos simbólicos compensatórios de sua invisibilidade social. o principal deles é a arma. quando um menino pobre e negro passa por nós, nas calçadas, nem sequer o notamos. se nos pede ajuda, muitas vezes recebe expressões de enfado, indiferença ou até repugnância. sua experiência pública mais marcante é a da invisibilidade. é como se ele não tivesse corpo, presença, opacidade social, é como se não tivesse valor e não ocupasse lugar no espaço. nossa indiferença e nosso gesto de desconforto, ou mesmo de nojo, é carregado de sentido e transmite ao menino a mensagem mais violenta que lhe poderia ser enviada: ele não é nada, não vale nada, não merece ocupar um minuto da atenção e da preocupação das pessoas que passam, cada qual fixada em sua própria vida e seus interesses. o menino e a menina pobres que vagam nas ruas, em busca de algo que nem eles sabem muito bem o que seja (talvez porque nunca tenham tido), morrem todo dia um pouco, vítimas dos pequenos assassinatos simbólicos cotidianos de que somos cúmplices. todos nós, afinal, temos mais o que fazer, pensamos. para isso pagamos impostos. para resolver esses problemas é que existem os governos. onde estão os governos? nós temos mais o que fazer. a garotada pobre, muitas vezes sem apoio familiar forte e permanente e quase sempre desprovida do sentimento de pertencimento a uma sociedade que lhe dá lugar, reconhecimento, afeto, perspectivas de futuro e sonhos nos quais possa engatar seus desejos e seu imaginário, colherá nas ruas sua ração diária de invisibilidade. sobre que base erguer a auto-estima, então?

"a solução que improvisam, mais os meninos do que as meninas, é a construção pelo avesso de si próprios, apoiando a auto-estima, o sentimento positivo do próprio valor, no reconhecimento negativo que obtêm dos outros quando lhes provocam medo. é só pelo medo que essa garotada perdida, sem rumo e sem esperança, anulada pela indiferença generalizada, consegue a migalha reconfortante de nossa atenção. através da imposição do medo, os meninos tornam-se visíveis, ganham corpo e opacidade social, ou, como talvez dissessem os filósofos, 'densidade ontológica'. os mais perversamente afortunados ganham nome e chegam a conquistar notoriedade, que será, entretanto, tão fugaz quanto suas vidas de glórias degeneradas. lançam-se à morte para alcançar pelo mal o que o bem lhes negou: um fiapo de humanidade. a arma será o principal instrumento dessa construção invertida de si; será a carteira de identidade na qual os rejeitados e excluídos encontrarão a única descrição verossímil de si próprios. a arma será o espelho possível.

"nós procuramos agir contra a arma, não só na esfera da prática policial, estimulando a apreensão do armamento dos criminosos (que atingiu números recordes em 1999), mas também na esfera legal e, sobretudo, na esfera do imaginário coletivo, sabotando sua valorização simbólica. a campanha pelo desarmamento e a campanha contra a homofobia, dentro e fora das polícias, representavam para nós, portanto, duas faces da mesma moeda. explico: na medida em que tornávamos pública a preparação dos policiais para o respeito aos homossexuais e às minorias sexuais, estávamos desestabilizando alguns vínculos simbólicos estratégicos - mais especificamente, a estrutura associativa inconsciente que organiza a imagem das polícias, sobretudo da polícia militar: arma-virilidade-poder fálico-exclusão das diferenças como condição da masculinidade. por outro lado, com a crítica moral e simbólica da arma que a campanha pelo desarmamento encetou, procuramos devolver a arma a seu lugar puramente instrumental, a serviço de funções profissionais muito específicas e sempre associada a valores negativos quando extraída do contexto profissional (mesmo aí, era ligada a circunstâncias defensivas, da lei e da vida). o núcleo simbólico falocêntrico perdia seus elos estreitos com a violência, elos articulados pela força expressiva das armas, e se abria para conexões positivas alternativas, com outros valores, entre os quais a paz e a liberdade para a diferença. diferença acolhida pelo poder - legitimada, portanto -, que se podia vivenciar, então, como forma de poder ou instrumento de autoconstrução positiva. novos jogos, novas linguagens podiam circular, nas mais diversas áreas da sociedade. estávamos mexendo em ideologias plantadas fundo no inconsciente e lançávamos pontes de comunicação com aqueles que permaneciam invisíveis socialmente."

quinta-feira, agosto 11, 2005

meu casaco de general

como tentativa de reagir à crise, me pego aproximado do universo penitenciário, pela via da leitura de "meu casaco de general - quinhentos dias no front da segurança pública do rio de janeiro" (companhia das letras, 2000), de luiz eduardo soares. onde tudo se mistura, sorvo em suas linhas um casamento explosivo (implosivo?) de cohecimento acadêmico (o cara é antropólogo, cientista social, sociólogo, professor etc.), vida política (o cara trabalhou em secretarias de segurança pública no rio, no rio grande do sul, no brasil), vida policial (o cara conviveu diretamente com delegados, coronéis, generais, meganhas, cabos, recrutas, bandidos), vida artística e suburbana (o cara fez teatro, o cara é chapa de marcelo yuka e mv bill).
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dá alento e dá desencanto. percebo que, de fato, a vida política é a vida policial é a vida suburbana é a vida publicitária (duda mendonça chora agora na tevê situada nos meus ombros) é a vida cotidiana é a vida real.
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não há discurso articulado possível neste instante, mas deixa eu propor um brinquedo, uma brincadeira, um folguedo? estando ainda no início da leitura, já destaquei trechos impressionantes, que dão mais alento que desencanto, que esclarecem falando supostamente de outro assunto que não o que nos mobiliza a todos aqui-agora.
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então, a brincadeira é de roda e quintal (de quebra-cabeça) e é cibernética, internética (de recorte-e-cole). destaco trechos lindos, brutos, impactantes, esclarecedores. intervenho sobre eles, justapondo negritos, itálicos, parênteses, numerais, penduricalhos, badulaques. no final de cada trecho separado por [colchetes], a gente volta e brinca de roda, de recortar-e-colar. uni-duni-tê, o escolhido foi vo-cê.
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["como sugeria mandela, 'verdade e reconciliação'. os gregos, na antigüidade clássica, consideravam o esquecimento a pior punição, a mais grave das maldições, o pior que se poderia desejar a um ser humano. aprendi, no jacarezinho, que a superação da tragédia coletiva depende da celebração pública da memória individual e coletiva dos grupos vitimados pela barbárie do estado. a reconciliação será possível apenas se aprendermos a suportar a verdade."]
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brincadeira, recorta-e-cola! luiz eduardo soares está falando de polícia, de violência, de (a)política pública de segurança. mas não soa um gongo, um sino, um alarme o'clock? e se misturássemos tudo? se recortássemos "mandela", colássemos (sob sua própria resistência e perplexidade) "lula"? brincando mais, vamos trocar "jacarezinho" por "brasil", por "planeta terra"? "barbárie do estado" por "apatia do cidadão", "barbárie do cidadão"? "reconciliação" por "cpi"? o que mais, que trocas mais?
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milhares delas podem ser feitas. mas fiquemos, por ora, com a semiconclusão: a reconciliação será possível apenas se aprendermos a suportar a verdade. sem falsos sustos, sem capuzes, sem máscaras, sem maquiagens, sem falsos moralismos, sem auto-sabotagens tenuemente suicidas. próximo trecho.
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["a postura tradicional das esquerdas sendo negativa, diz-nos o que não fazer; é omissa sobre o que fazer. adotar uma posição negativa, denunciando os erros, ainda que seja insuficiente, funciona quando se está na oposição. mas é trágico quando se está no poder.

(os militantes dos partidos de esquerda e das organizações não-govenamentais costumam cumprir com bravura e dignidade o papel de críticos dos governos e das polícias 1), (denunciando abusos, brutalidade e corrupção policiais, desrespeito aos direitos humanos e aos direitos civis 2). (todavia, poucos traduzem as posturas negativas em propostas, convertendo a indignação em sugestões práticas sobre alternativas viáveis. há exceções, como o viva rio e o sou da paz, que nasceram exatamente para reverter essa tendência. mas, apesar das notáveis contribuições que já contabilizam, são ainda poucos esses atores criativos e comprometidos com a construção do futuro, que vão além das cobranças e denúncias 3).

(nesse ponto, é preciso ter cuidado 4). não pode haver lugar, aqui, para mal-entendidos: (denunciar é importantíssimo, ajuda a salvar vidas e a sensibilizar a sociedade, preparando-a para admitir e até reivindicar posturas mais inteligentes e civilizadas do poder público. mas não basta 5). (já derrotamos a ditadura. nossa tarefa agora é reinventar a sociedade brasileira. e a responsabilidade é nossa, de todos e de cada um 6). (é difícil esperar o salvador que nos conduza pelo deserto até o paraíso. é perigoso cruzar os braços e torcer para que a história faça seu trabalho evolutivo, corrija espontaneamente nossos defeitos, nos devolva a trilhos civilizados e separe o joio do trigo. a história não é o livre jogo do mercado, não é a mão invisível da natureza, não é uma entidade mágica. a história, afinal de contas, somos nós mesmos e o que nossas parcas virtudes puderem fazer de nossos destinos incertos. nossa responsabilidade é intransferível. melhor elaboraramos bem nossas convicções 7)."]
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recorte-e-cole. brinque de ser sério, leve a sério a brincadeira:
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(1) troque, a seu bel-prazer, "militantes dos partidos de esquerda e das organizações não-governamentais" por "jornalistas", "críticos de música", "analistas políticos", "donos de mídia", "eleitores do lula", "eleitores anti-lula", "lula", "classe política brasileira", "músicos populares", "artistas", "policiais", "cidadãos que acham que bandido tem que morrer", o que mais você quiser dentro do seu próprio micro-universo.
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(2) saia de dentro de sua própria delegacia moral, mental, particular, e abranja "abusos, brutalidade e corrupção" a quem mais tiver o dom da (ir)responsabilidade neste mundo em que calhamos de viver: "governo", "oposição", "mídia", "imprensa", "cidadão alienado"...
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case (1) com (2), produza (3), veja que bicho que dá. se puder, mentenha guardada a semi-conclusão macerante (POUCOS TRADUZEM AS POSTURAS NEGATIVAS EM PROPOSTAS, CONVERTENDO A INDIGNAÇÃO EM SUGESTÕES PRÁTICAS SOBRE ALTERNATIVAS VIÁVEIS, pronto, gritei!, até que enfim!), mantenha acalentada a semi-conclusão alvissareira (SÃO AINDA POUCOS - mas existem! - ESSES ATORES CRIATIVOS E COMPROMETIDOS COM A CONSTRUÇÃO DO FUTURO, QUE VÃO ALÉM DAS COBRANÇAS E DENÚNCIAS, pronto, cochichei..., com suavidade e em voz alta...).
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(4) tome cuidado. se arrisque. tome cuidado se arriscando. ouse. mexa-se, acorde, desperte, há um líder dentro de você.
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(5) recorte-e-cole. mantenha "poder público" no lugar, mas ao mesmo tempo troque "poder público" por "eu mesmo". compartilhe. poder público é você mesmo, meu nego, nega minha. leia, releia, corte-se, cole-se, coloque-se dentro de sua crítica. autocritique-se, autoacaricie-se, ame-se, mova-se. guarde bem forte a semiconclusão azedinha-doce: "NÃO BASTA".
@
(6)
já derrotamos a ditadura
já derrotamos a ditadura
já derrotamos a ditadura

nossa tarefa agora é reinventar a sociedade brasileira
nossa tarefa agora é reinventar a sociedade brasileira
nossa tarefa agora é reinventar a sociedade brasileira

a responsabilidade é nossa, de todos e de cada um
a responsabilidade é nossa, de todos e de cada um
a responsabilidade é nossa, de todos e de cada um

como 2 e 2 são 5,
a responsabilidade é nossa
a responsabilidade é nossa
a responsabilidade é nossa
a responsabilidade é nossa
a responsabilidade é nossa
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(7) pense na polícia. pense no vidro fechado que separa você da criança que faz malabarismos no sinal vermelho. pense na política. pense na raiva que a corrupção lhe provoca. pense nas suas trepadas apressadas, interrompidas. pense nos seus amores evitados, malvividos, malsucedidos. pense no beijo que você não deu na testa do seu pai, da sua mãe, de sua irmandade. inverta a ordem e não altere os produtos, mantenha pulsante a semiconclusão, inverta a ordem e altere o produto:

nossa responsabilidade é intransferível
nossa responsabilidade é intransferível
nossa responsabilidade é intransferível

a história, afinal de contas, somos nós mesmos
a história, afinal de contas, somos nós mesmos
a história, afinal de contas, somos nós mesmos

porque depois que você morrer, companheiro(a), a história acabou para você. a história é aqui-agora, malditos os homens que tiveram a sorte de nascer num tempo interessante. quem sabe faz a hora, não espera acontecer. vem, não vamos embora. vem, vamos ficar. por isso eu resolvi agora: eu vou mais ficar. próximo trecho.
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["(os bons policiais vivem um drama que não deveria ser subestimado. ganham pouquíssimo para arriscar a vida, com freqüência moram longe do trabalho, têm de esconder a identidade profissional, pois onde moram isso pode lhes custar a vida 8). (além disso, envergonham-se dela, tal o grau de deterioração da imagem pública da instituição a que servem 9). (humilhados, negligenciados, condenados a um cotidiano muitas vezes modestíssimo, algumas vezes miserável, os policiais só são lembrados quando faltam, quando erram: cada dificuldade revelada, cada falha observada implica mais cobrança, mais pressão 10). não admira que tudo isso, preso na garganta anos a fio, exploda na primeira oportunidade, dentro de casa, com a família, no maracanã, numa briga de vizinhos, numa disputa de trânsito, na prisão de um criminoso ou na visita de um subsecretário. (que oportunidade melhor do que essa, a visita de um subsecretário? de início, as palavras são tímidas, como que a apalpar o terreno. os primeiros a falar tremem, balbuciam, desculpam-se pela ousadia, olham, a cada frase, seus superiores, buscando aprovação e licença 11). (ante a receptividade positiva, as palavras crescem de volume e ganham peso, conteúdo, gravidade. libertam-se até dos cuidados com a opinião dos oficiais. e quando estes falam, desligam-se das censuras do comandante. aos poucos, as mãos levantadas multiplicam-se, pontilhando o salão. logo a participação é torrencial. o tom predominante é de lamento, reivindicação e crítica não do que dissemos na palestra, mas da situação salarial, das condições de trabalho e da tirania do regimento disciplinar 12)."]
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(8) recorte-e-cole. troque "policiais" pelo nome da sua própria profissão ("jornalista", por exemplo). troque, até, pela profissão de político do baixo clero, quiçá pela de político do alto clero, presidente do brasil ou dos eua, "dono do mundo" na "guerra dos mundos". troque policiais por "heloísas helenas", "robertos jeffersons", "josés dirceus". troque o joio pelo trigo, chame o joio de trigo, chame o trigo de joio. iguale, zere, reconstrua. consulte sua carteira de identidade, consulte-se: você é obrigado(a) a esconder sua identidade, sua identidade de homem, mulher, travesti; heterossexual, bissexual, homossexual; religioso, laico, profano; católico, evangélico, macumbeiro; cristão, judeu, muçulmano; crente, agnóstico, ateu; branco, pardo, preto; sedentário, nômade, cigano; nortista, sulista, oriental; sulista, nortista, ocidental; militar, civil, marginal; dasluzete, remediado, miserável; político, policial, reles vagabundo; músico, jornalista, publicitário; político, artista, empregada doméstica; santo, puto, louco; abstêmio, bêbado, drogado; médico, paramédico, curandeiro?
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case (8) com (9), cutuque sua(s) identidade(s): você se envergonha de sua(s) identidade(s)? envergonha-se de si próprio, antes-durante-depois de se envergonhar da classe política que você (não) elegeu? em seu rumo inevitável para a morte, deteriora-se de dentro para fora, ou de fora para dentro? constrói-se, enquanto se deteriora?
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(10) você comemora seus êxitos? você recebe elogios, se auto-elogia? ou você vive sob pressão, sob a contínua explicitação negativa e repressora de seus "erros", "culpas", "falhas", "impotências"? recorte-e-cole, troque "policiais" mais uma vez por "eu mesmo", e/ou troque "policiais" por "presidente lula". você comemorou algum êxito do presidente lula (ou "meu mesmo")? ou se deteve, desde o primeiro minuto, a condená-lo/censurá-lo/repreendê-lo/reprimi-lo por qualquer ato que ele ("eu mesmo") praticasse? antes de lula, fez isso com os ex-presidentes do brasil? quantas vezes por dia você faz isso com você mesmo - se autocondena, se autocensura, se auto-repreende, se auto-reprime violentamente? não se reprima, não se reprima. não me reprima, não se reprima. não nos reprima.
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porque violência policial, meu caro, minha querida, mora dentro de sua própria delegacia moral particular. é lá dentro que são presos, torturados e mortos mais "políticos corruptos", mais "marginais", mais "culpados", mais "inocentes". se você autorizar a demolição, sua casa e seu cérebro se tornarão sua própria cadeia, o complexo penitenciário que algema suas mãos, suas pernas, sua língua, sua liberdade. e todo presidente será, forçosamente, ruim, safadoladrãofeladaputa - afinal, o presidente não é igualzinho a você? entre dentro do contexo, aperte a mão de seu presidente. afinal, ele mora aí dentro de você, num cantinho escuro da sua cela moral particular. converse com ele um tiquinho, dê-lhe um caldo de feijão (de início bem ralinho, para não assustar), brinque de "fome zero" com seu pequeno presidente particular. seja presidente do seu corpo, governe, anarquize. isso é melhor e não faz mal.
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(11) recorte-e-cole. troque os policiais medrosos diante do subsecretário pelos políticos, pelos srs. senadores e deputados, pelo deputado sangüinário, pelo laranja, pelo publicitário de campanha, pelo acuadíssimo presidente da república. veja-os/ouça-os tremendo, balbuciando, desculpando-se pela ousadia e pela desfaçatez, olhando seus superiores em busca de aprovação e licença, renunciando à vice-presidência da cpi. goze o momento, um pouquinho só, se possível um montão. entre no barco, a barca grande já vai partir e você também é um bicho de noé. não se esqueça de que crocodilos também choram, também são filhos de deus. e que, domesticado por seu próprio presidente particular, também mora dentro de sua cadeia moral um fofo e gordo crocodilo. chore, não tenha medo, nem que sejam de crocodilo suas lágrimas.
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(12) ganhe peso, ganhe conteúdo, ganhe gravidade. ganhemos. percamos-os, também. desistamos de procurar a luz no fim do túnel, porque a luz é o próprio túnel, por mais escuro que ele pareça. libertemo-nos até dos cuidados com a opinião de nossos oficiais, exteriores ou interiores. multipliquemo-nos, pontilhemos o salão. lamentemps, reivindiquemos, critiquemos, mas pulemos também um passinho para a frente, bundinhas empinadas. de volta aos comentários acima, recombinemos (1), (2) e (3). façamos do limões uma baita limonada. embebedemo-nos de limonada de cereja, goiabada de marmelo, de (6) e de (7). a história, afinal de contas, somos nós mesmos.