quinta-feira, abril 27, 2006

guilherme de brito

um dos meus conflitos atuais com os clichês do jornalismo diz respeito ao obituário. é fácil demais escrever um texto que será considerado sensacional quando se está diante da morte de uma personalidade, sabe por quê? porque a morte é a única circunstância em que um jornalista (comentarista, crítico, analista, escritor, sei lá que nome atribuir ao dito cujo quando se dá o coito entre o trabalhador & a circunstância) se permite transbordar de emoção, afeto, amor. o público leitor aplaude, sintonizado com a comoção movida pela morte - e os textos por vezes são especiais mesmo, já que não é mesmo corriqueira essa descarga de emoção conjunta. é quando a emoção se torna comunitária e circula em sincronia nas partes todas da cadeia predatória, circunstancialmente colocada em estado de congelamento e suspensão diante da morte. é quando a crítica de fígado se esvai, já que parecemos ser solidários apenas no câncer, no gol e na morte.

pois a morte paralisa e anestesia, e pouco se percebe que o excesso de emoção na hora do velório é igualzinha à frieza calculada que empesteia todas as outras horas. sujeitos fartamente criticados e/ou desprezados e/ou rejeitados e/ou repreendidos durante a vida se convertem automaticamente em santos, sob a pena do corvo. o escriba, aquele que demonizava o defunto em vida, cumpre sua "nobre" função carpideira, que coleta tenras carniças com o bico doce e legitimamente emocionado (afinal, o dono do bico também teme a morte e se sente sinceramente impactado por ela). o escriba "sensível" vira papa-defunto, e conquista fama e prestígio por conta da morbidez - a sua própria e a da multidão de seus fregueses.

por isso tudo, meu humor é meio de enjôo diante da morte de guilherme de brito, ou melhor, não diante da morte dele, mas do cortejo fúnebre de perdões e complacências que a imprensa e seus comensais têm de erigir ao seu redor - "sem ele o samba fica mais triste", "ele deixará muitas saudades", sabe esses chavões nauseabundos (inclusive os que já usei acima, "ele nunca foi devidamente valorizado em vida")? como evitar os clichês que banalizam a morte e a vida anterior a ela, sem para isso abdicar de se emocionar e de querer emocionar com o ato de escrever?

me ocorre de imediato minha experiência individual com guilherme de brito, como entrevistador de guilherme de brito, ele já velhinho, mas ainda co-autor do clássico de nelson cavaquinho (alô, eduardo gudin!) que pede também com pronunciada morbidez que "tire seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor". o propósito era um pequeno show que ele ia fazer no modesto villagio café, de zé luiz soares (alô, zé luiz!!!), e que rendeu na "folha de s. paulo" a entrevista "guilherme de brito põe seu sorriso no caminho" (o link do dasluol só vale para cidadãos que possuam o cartão de sócio honorário, sorry, periferias...).

pergunta vai, resposta vem, fui sendo embebido (como não raro acontece, diante de sambistas) pela qualidade e pela profundidade das histórias que guilherme de brito tinha guardadas dentro de si e que desaguavam, diante da mais tênue pergunta. suas respostas, pelo que guardavam de beleza & tristeza & amargura & ternura amalgamadas, foram oprimindo meu peito e me emocionando a ponto de eu ficar com vontade de chorar, ali mesmo, diante dele e de sua esposa, dona nena. profissional rígido feito cadáver, instantaneamente me aparelhei de todos aqueles artifícios de que dispomos para simular a nosso interlocutor que não estamos com vontade de chorar, quando estamos com vontade de chorar.


guilherme de brito olhou para mim, candidamente, e me desmoronou com uma doce pergunta, assim (você sabe que na fala coloquial a gente diz "tá", e não "está", né?):

- você tá com vontade de chorar?

- tô. - respondi de imediato, brotando do rigor mortis, transgredindo uma tonelada de férreas regras tácitas (lixo "cultural", mora?) e, no íntimo, profundamente aliviado por aquela fração de segundos em que guilherme de brito me solicitava passar de entrevistador em entrevistado.

balbuciei "tô", enquanto guilherme de brito de pronto se expandia, se agigantava.

- ah, não faz isso..., que se você ficar com vontade de chorar, eu também fico - murmurou, os olhos já tão cheios de lágrimas quanto os meus.

sempre me lembrarei de guilherme de brito como o pioneiro entre aqueles, pouquíssimos, que no exercício vêm ensinando a este trabalhador que emoção ocultada é emoção perdida, e que emoção em vida (alô, roberto carlos!) é ainda mais avassaladora que as emoções da morte. de olhinhos molhados (pelas histórias que ele mesmo contava, diga-se), guilherme de brito estava marcando para sempre a minha vida (transformando mesmo o seu curso, eu diria), naquele minúsculo ato de desprezar o tom farsesco que acompanha qualquer entrevista-clichê, em que o entrevistador finge que pergunta e o entrevistado finge que responde e ambos se (des)unem no propósito-regra de se manter ferrenhos em suas distintas posições no mundo, nas redes de proteção (proteção desprotege?) de quem muito precisa atacar e/ou se defender, para que assim restem preservados (preservação depreda?) o medo de ser atacado por parte de um, a sensação de não ter quem o defenda por parte do outro. e vice-versa.

daquele pequeno show no villagio café em diante, entrou em cena mais uma vez o zé luiz soares, com seu sócio na gravadora independente lua discos thomas roth (que hoje atua como jurado "malvado" do inquietante programa "ídolos", do sbt). na lua, eles bancaram dois discos inéditos (e excepcionais) de guilherme de brito, que banharam de vida a vida que ainda vivia dentro do sambista. chamam-se, esses dois testamentos musicais, "samba guardado" (2001) e "a flor e o espinho" (2003, em companhia do trio madeira brasil). cássia eller e luiz melodia participaram do primeiro, beth carvalho, elton medeiros, raimundo fagner e moacyr luz estiveram no segundo, haja boa companhia, sô! (os camaradas dasluol podem rememorar detalhes tão pequenos em "lua discos dá alento à tradição e inovação", em "samba dos bambas ganha nova chance em discos inéditos", em "velhos sábios acionam suas luvas de pelica" e em "guilherme de brito casa amargura e ternura". bendita internet, que reúne num mesmo cybercafé do espaço-tempo o passado, o presente & o futuro.)

há narizes torcidos, nós sabemos, a essa certa tendência de setores da imprensa musical em enaltecer e mitificar e romantizar o "samba de raiz", como se tal ato significasse fazer ode ao anacrônico, ao ultrapassado, ao mortiço. pode ser, mas eu acho que não é só isso - junto com esse arrepio e essa vontade de chorar que o samba provoca e sambistas provocam, vem um estranho sentimento de libertação, uma esquisita descoberta de que as coisas podem ser ditas (& cantadas) sem maiores ocultações, de que se pode transgredir convenções de bobeira alegre e de tristeza sonsa, de que não é preciso dourar pílula para se referir à vida como um todo, e não só das partes delas de que a gente não se envergonha (ou pensa não se envergonhar). o curioso é que tais qualidades (a emotividade na frente de todas elas) sejam sistematicamente confundidas com anacronia, pieguice, envelhecimento, rabugice, morte. como se só na proximidade (temporal ou espacial) da morte elas recebessem permissão temporária de existirem, por parte de uma sociedade cruel com os vivos (desde que mantidos a uma distância segura) e "jovialmente" apaixonada pela morte (desde que mantida a uma distância segura).

acho que era isso. hoje de manhã, ao saber da morte de guilherme de brito e ao me nausear com os clichês ao seu redor, me pus a lembrar daquela cena de quase-choro vivida com aquele velho professor. e senti de novo aquela mesma vontade agridoce de chorar.

eu acho que era isso, eis aí repisados todos os chavões. afinal de contas, o que haveria de mau a respeito dos clichês, dos clichês de emocionar e se emocionar com a morte, como talvez estejamos fazendo agora, queiramos ou não? talvez nada, provavelmente nada. o que eu queria, para poder me sentir mais intensamente vivo e sem medo da morte, e menos morbidamente papa-defuntos, era cada vez mais emocionar (e me emocionar), não só diante do episódio épico da morte, mas também no cara-a-cara diário com a vida.

[p.s.: este texto foi escrito ao som de discos de guilherme de brito, amado batista e odair josé - algum problema nisso?]

domingo, abril 23, 2006

imagine o pobre com dentes de ouro....

inspiradora essa história de que, com abril já caminhando para o final, na semana que passou o orçamento da nação para 2006 foi finalmente aprovado no congresso nacional (você sabia que até agora o brasil nem tinha orçamento para 2006?, ou estava ocupado-a demais botando "culpando" o bode lula por toda e qualquer pereba e brotoeja e escama que lhe pipocasse a pele?).

já que até o orçamento de 2006 "já" foi aprovado, talvez nunca seja tarde para lembrarmos o que foi gravado de bacana e de bacaníssimo no ano musical brasileiro do antigo e já quase esquecido 2005, pois não? se sim, vai aí a listinha pessoal e impressionista (e alfabética) do pas, e que se estourem fogos amigos sem artifício para 2005! o rojão?, segura daí, que eu seguro de cá!

ademir assunção, "rebelião na zona fantasma" (zona branca) - poesia maldita transtornada em música pop, música maldita transbordada em poesia pop. centrado, sincero, e uns versos assim de "e então?/ você já ouviu itamar assumpção?/ já teve coragem de dizer não?". e a coragem de dizer sim, você já teve?

adriana capparelli, "bem + perto" (dabliú discos) - cantriz do grupo oficina, adriana semeia tons tristonhos numa mpb de canções próprias, & de outras moças (letícia coura, natalia mallo, vanessa bumagny), & de outros moços (zeca baleiro, torquato, caetano) etc. & tal & coisa.

alceu valença, "na embolada do tempo" (indie records) - embalado no vento, o bardo nordestino deixou para lá as convenções e o comercialismo "ao vivo" de série recente, para voltar a beliscar a densidade, a mansidão, o mistério, a consistência.

alcione, "uma nova paixão" (indie records) - uma de nossas mais prestativas sambistas históricas, alcione em muitos momentos faz o gênero desleixado, meio perdido de direções e parâmetros. "uma nova paixão" segue a regra, mas o faz, como alceu valença, com o mérito de se fiar de novo em novas canções gravadas em estúdio. dentre 16 sambões românticos e/ou baladas sambadas, "meu ébano" (de nenéo e paulinho rezende) é o mais sedutor e divertido libelo de ginga, liberdade e orgulho racial.

aldir blanc, "vida noturna" (lua music) - já falamos um bocado sobre blanc & bosco no tópico bobos sabidos, doidos varridos, nobres de vintém, isso foi em maio, bem antes de o aldir lançar seu disco solo. "vida noturna" prefere os humores melancólicos à fúria construtiva com que blanc & bosco redesenharam os tipos populares brasileiros ao longo do anos 70. mas a matriz ainda é de aço & polpa, a ironia fina já é finíssima, os tipos estão (quase) todos lá, à espera de uma maior revalorização, que recentemente tem passado de sopro pelas bocas de adriana capparelli, seu jorge, chico césar, céu, daniela mercury, bojo & maria alcina, & poucos mais. a bênção, senhor definidor do brasil passado, presente & futuro.

alzira espíndola e alice ruiz, "paralelas" (duncan discos) - zélia duncan patrocinou, e a expressão feminina alistada nas vanguardas poéticas & paulistas & paranaenses & poético-paulista-paranaenses desliza branda & linda & tímida & exuberante ao longo de um disco enviado para cá de lá do mais plangente universo paralelo habitado por mulheres & poetas & pretos & malucos & itamares sempre-nunca navegados. o poeta está vivo (a bênção, itamar assumpção), as poetas estão vivas.

ana carolina e seu jorge, "ana e jorge ao vivo" (sony & bmg) - o comercialismo pode ser o combustível principal da gravadora multinacional (provavelmente também dos próprios artistas), mas o que os move artisticamente, tanto uma como o outro, é o caos, a convulsão. há arestas por todas as frestas a serem aparadas, mas o pique político que embebe o encontro entre a bissexual branca & o negro pós-hollywoodiano da perifa & do ar livre é fonte de energia e vitalidade para ambos. a confluência se consuma no binóculo apontado por seu jorge a "zé do caroço", uma chocante crônica sócio-musical forjada em samba & amor & violência & revolta pela grande, grande, grande leci brandão: "e na hora que a televisão brasileira/ destrói a gente com a sua novela/ é que o [líder comunitário & traficante do morro do pau da bandeira] zé põe a boca no mundo/ é que faz um discurso profundo/ ele quer ver o bem da favela". que efeitos palavras assim hão de causar na multidão mais chapada pela interpretação agressiva, áspera e acomodada de ana carolina, ah, isso é coisa que pagaremos para ver & ouvir.

antonio adolfo, "carnaval piano blues" (kuarup discos) - pai (ou tio, no mínimo) da bossa comercial, da toada moderna, da pilantrália, da brazuca pop, do soul br-3, do teletema, da música independente brasileira e da mpb mansa anos 70-80 de naras (leão) & angelas (ro ro), adolfo brinca de carnaval ao piano, magro & encolhido (mas rotundo de história & histórias), entristecendo e simplificando o que já era simples e triste em "pierrot abandonado", "pastorinhas", "saca-rolha", "recordar é viver"...

antonio nóbrega, "nove de frevereiro" (brincante/distribuidora independente) - o sempre afetivo e armorial discípulo de ariano suassuna & dos saberes populares pernambucanos mergulha com presteza & destreza no frevo do chão natal. é a tradição, manos & minas, quem tem medo desse bicho-papão?

arranco de varsóvia, "na cadência do samba" (dubas música/universal music) - o grupo carioca investe numa apropriação moderna e sem fronteiras do samba, sem medo da raiz & da tradição, mas sem medo tampouco de chacoalhar dorival caymmi com zeca pagodinho, pixinguinha com leoni, dona ivone lara com naná vasconcelos, luiz bandeira com caetano veloso.

artificial, "free u.s.a." (ping pong) - blimp, plim, boing, boom, tschak. & o amalucado kassim aprontando bobagens com zazueiras de videogame & computador.

banda calypso, "volume 8" (produções calypso) - a burguesia nacional, dentro dela setores-chave, er, "intelectualizados" da academia ou do jornalismo musical (alô, pas!), segue comandando a aversão agressiva contra trabalhos como o desses tecnobregas do pará. a questão se traveste de estética, embora entre os críticos ninguém nunca explicite muito bem quais são os, er, "pecados" estéticos da cafonália popular brasileira - no caso de joelma & chimbinha, há temas simples e repetitivos, vocais precisos embora melosos, temática superficial entre a animação da dança feliz & o romantismo melancólico (pós)iê-iê-iê, ritmo frenético no triângulo brasil-caribe-latino-américa... a pergunta é: por que um som tão direto e despretensioso teria o poder de afetar, irritar e ameaçar tanto assim os setores burgueses que seguram a sociedade a freio? uma tentativa de resposta: atrás do trio elétrico da censura estética a quem ouse criar e produzir e se comunicar nos modos "bregas", segue uma série de carros alegóricos típicos do subdesenvolvimento e da arrogância dos estratos mais, er, "de cima" da sociedade brasileira: rancor e intolerância (não vou usar desta vez o termo-clichê "preconceito", ok? ops, usei...) contra o diferente em termos de classe social, região, estética não musical (já reparou o visual e os quilinhos a mais dos calypso? você não agüenta, não, ô, fragilidade?), arbítrio, cotas que os "ricos" de espírito e/ou de matéria acreditam piamente ter sido instituídas pela própria providência divina. pois sim, o som do calypso vem dizer que NÃO com muito topete & ciência de direitos civis igualitários - e diz gostoso, sem muxoxo, sem legitimar o chororô dos não-me-toques, sem "tomar o lugar" (eta, expressão careta...) de ninguém, sem deixar dor de ouvido após uma audição tão despretensiosa quanto o próprio som. abaixo as ditaduras.

cachorro grande, "pista livre" (deck disc) - rock'n'roll sulista do rio grande, sem medo de ser feliz, acelerado, inconseqüente, sujo, feio, malvado (&, por que não?, limpo, bonito, bonzinho)... e a gente? a gente gosta e se diverte às pampas, aos pampas.

caito marcondes, "auto-retrato" (maritaca) - sons percussivos, indígenas, afrobrasileiros, mouros, ciganos..., brasileiros.

cansei de ser sexy, css (trama virtual) - está na fórmula da pedra filosofal da música para divertir: juventude, energia, entusiasmo, brabeza, tesão, alegria, raiva, inconseqüência, irresponsabilidade, pouco siso, culpa, responsa, tristeza, sinceridade, ocultação, transparência, deslumbre, paixão. não falta nenhum desses elementos à explosão de vitalidade que é o cansei de ser sexy. eles hão de selecionar os componentes preferenciais dentro da fórmula, para definir se css é mais fogo de palha, ou mais experiência libertária, ou mais revalidação de velhas regras mercadológicas, ou mais pote de permanência, ou mais leveza, ou mais o quê. nós seremos seus cúmplices (não se esqueça!), na falta e/ou na fartura, no descrédito e/ou na exultação. o futuro, dela(e)s e nosso, está por ser rascunhado, mas a diversão é mais que presente: ela é real, cotidiana, e não cansou nem um tiquinho assim de ser sexy.

carlinhos brown, "candombless" (candyall music/tratore) - dirigido por carlinhos brown sob ruídos pop, eletrônicos, tropicalistas, submissos, roqueiros, arredios, inconsistentes, bossa-novistas, conchaveiros, rituais, um elenco arrebatador de mães & pais de santo do candomblé congelam na curva do tempo discussões esterilizantes sobre se isso é "primitivo", ou se aquilo é "moderno", ou se brown é baiano demais ou baiano de menos ou brasileiro demais ou brasileiro de menos. peço permissão aos navegantes nauseados para declarar que o resultado catuca o êxtase, o gênio, o sublime. se os navegantes nauseados não me concederem a permissão, declaro mesmo assim: o resultado catuca o êxtase, o gênio, o sublime. catuca mãe, catuca pai, catuca filha, catuca o samba que nasceu no mar, num navio negreiro, como carlinhos mesmo já fincou ao definir riachão (Riachão, o sambistão, não o ribeirão).

ceguinhas de campina grande, "a pessoa é para o que nasce" - também foi fartamente tematizada aqui a trilha sonora do documentário sobre as três cantadeiras cegas que vivem à margem da mendicância (não)musical na paraíba-mulher-macho-e-fêmea deste grande brasil (dá lá um pulinho, de ré, em "pobre coitado é o cacete", mas também em com os olhos bem abertos). para ouvi-las, é preciso primeiro firmar o olhar desfocado pelo aparente primitivismo de suas cantorias. depois que os olhos-ouvidos estiverem acostumados com tanta claridade (& com intervenções criativas do quase-cego hermeto pascoal), irá aparecendo de mansinho a imensa sofisticação dos poemas, palavras & sons com que maroca & poroca & indaiá (& uma multidão de invisíveis) enxergam o que há de mais belo e/ou sofrido no mundo. o cd 2, de releituras por paralamas do sucesso, bnegão, mombojó, lenine, junio barreto, eddie, nervoso & canastra, zé renato & teresa cristina, lirinha, otto, pato fu, fausto fawcett & laufer, cabelo, silvério pessoa, elba ramalho, lula queiroga, bráulio tavares, pedro luís & a parede e originais do sample, enxerga menos que as cantadeiras em pessoa - mas também enxerga muito, de montão.

céu, "céu" (ambulante/tratore) - a moça surgiu, e boa parcela da crítica musical se apressou em promessas demais, cantarolando desde logo "eu te darei a céu, meu bem, e o meu amor também". pessoalmente, acho que ainda é cedo, fico um tantinho incomodado na hora da partida com maneirismos demais, com a originalidade algo intimidada por algum sentido de cópia (pela angústia da influência?), com o ar gélido que parece emular as fauces mais esnobes de marisa monte. mas o(a) céu de carreira já vai sendo riscado, adornado pelo padrão de produção de beto villares aqui, pel'"o ronco da cuíca" de bosco & blanc acolá, pelo cantar bonito da moça em todo lugar.

chico césar, "de uns tempos pra cá" (biscoito fino) - o regresso de chico não é de fácil e rápida assimilação (ele nunca é), mas intrigam e instigam suas experiências em fazer confluir os ambientes popular & erudito, sob canções intrincadas, regravação da datada & sempre presente "cálice" (do outro chico com o outro ministro), abordagem corajosa do delicado tema do triângulo amoroso ("1 valsa p/ 3"), e assim por diante. a jóia da coroa é "orangotanga", uma celebração irônica, mas direta sobre o brio plebeu da música popular: "olha, foi jóia/ mas agora é miçanga".

cidadão instigado, "o método túfo de experiências" (slag records/selo instituto) - "o circo da dê.cadência" (2002), o primeiro disco do grupo cearense liderado por fernando catatau, já era incrível, mas este segundo tem cara de elo perdido, ou melhor, de elo encontrado. é nó de confluência e ponto de convergência entre roberto carlos & nação zumbi, entre o tributo às ceguinhas de campina grande que saíra antes & o tributo a odair josé que sairia depois, entre a brasil-latinidade caribenha & o hip hop brasil-paulistano, entre os píncaros de pop sofisticado & o máximo em ternura brega, entre a faísca cafona de "te encontra logo..." e "o tempo" & o fogareiro trans-electro-pop de "chora, malê" e "o pinto de peitos" ["sim, meninos, o pinto de peitos tem o bico preto e o seu pio é escuro", assum preto, blackbird, belchior, nos respondam, o passado & o presente & o futuro sempre mais]. há que se ouvir "apenas um incômodo", para se decantar a incorporação do pai simbólico belchior [aquele que em 1976 já advogava que, "veloso, 'o sol (não) é tão bonito' pra quem vem do norte e vai viver na rua"], catatau falando tudo tudo tudinho sobre maroca & poroca & indaiá & joelma & chimbinha & o brasil 2005: "por que eu lhe incomodo tanto?/ (...) será que a minha voz fanha polui a tua sonoridade sobre-humana/ ou será simplesmente porque eu me aceito assim, e até gosto de mim?/ (...) se você me chamar de paraíba ou baiano não vai me soar estranho/ pois eu sei que aos teus olhos eu sou apenas um incômodo/ que veio do nada para empestar o mundo, mas escute/ eu que vim do nada (...) só tenho um sonho que já é meu/ e duas palavras para lhe dizer neste instante: me agüente!", canta(rá) catatau em 2006. entenda-os como quiser ou puder o freguês, localizo aqui os versos com mais cara de brasil 2006 que (não) ouvimos em 2005: "imagine, o pobre dos dentes de ouro/ quer sim, quer sim, quer sim/ um pouco de dente de ouro michelin".

cláudio jorge e luiz carlos da vila, "matrizes" (selo rádio mec) - o samba se areja em um passeio minucioso, que singra o brasil sob combustível de samba, congada, baião, capoeira, coco, partido-alto, maracatu, xote, boi, jongo, catira, ijexá...

claudio zoli, "zoli clube vol 1" (trama) - receoso, hesitante, conservador, sim, talvez, mas quem há de se queixar de um disco em que um soulman decida recolocar em pauta souls e funks de quilate histórico de tim maia, cassiano, robson jorge & lincoln olivetti, dom beto, hyldon, carlos dafé, tony bizarro etc.? eis.

a comunidade samba da vela, "a comunidade samba da vela" (pôr do som/atração fonográfica) - mora numa roda de samba onde não se bebe álcool, onde se canta até que a vela se apague, onde os fundadores são chapinha, maurílio, paqüera e magnu, onde o canto encanta e quase cansa por soar sempre em coro, onde a pauta é a vida em comunidade? mora, mora na filosofia..., para que não rimar essas novas velhas rimas?

dj dolores, "aparelhagem" (azougue discos/distribuidora independente) - loops mundiais, nordestes locais, a voz-raiz de isaar, o espírito errante de dolores: música do mundo.

daniel carlomagno, "daniel carlomagno" (trama) - uma estonteante canção chamada "na minha cabeça", à altura do melhor de marcos valle, e maiores detalhes em dentro da cabeça, um baile pelo lado b.

daniela mercury, "balé mulato" (emi) - em 2005, daniela se bipartiu em duas: pariu o constrangedor "clássicas" (com "standards" jazzeados da mpb, ai, que sono), mas também este vigoroso "balé mulato". insistindo tanto em percussão afro-axé como em eletrônica, em prol de conservar sua identidade, encontrou tonalidades fortes e belas no badauê ("levada brasileira"), na balada ("toneladas de amor"), na vida real ("nem tudo funciona de verdade": "a dor sobrepuja a felicidade/ a barriga cresce/ a maçã perece/ nem tudo funciona de verdade"), no afro-samba-jóia ("meu pai oxalá", de vinicius & toquinho); na diversidade, enfim.

dexter, "exilado sim, preso não!" (alta voltagem fonográfica/porte ilegal) - se todo mundo anda abrindo armários nesta era lula, isto é bossa nova, isto é muito natural: um dos mais corpulentos discos de hip hop do ano veio de dentro da prisão (ou do exílio, como define seu autor - será que de lá do desterro a terra também é azul?). é que os aprisionados também estão saindo do armário, camarada!, num país que devagarinho descobre a existência de uma palavrinha chamada "auto-suficiência" - ou teus preconceitos te impossibitam de farejar & enxergar arte fina & bruta brotando de dentro da cela de uma cadeia? "acordei com uma vontade/ de saber como eu ia/ e como ia meu mundo...", canta jorge ben ao final de "tamo junto", enchendo de poesia as janelas das cadeias e de fora delas. disco de fibra & respeito, viu, dona daslu?

elba ramalho e dominguinhos, "elba ramalho-dominguinhos" (rca/bmg) - tal como citado lá acima a respeito de alceu valença, esses dois aqui também robustecem quando se beneficiam dos tons mansos, despidos, densos (& populares), essencialmente nordestinos.

elton medeiros, "bem que mereci" (quelé/acari/biscoito fino) - é a tradição do samba em seu estado elementar, é preciso dizer algo mais? bem que merecemos.

erasto vasconcelos, "jornal da palmeira" (candeeiro records) - irmão de naná vasconcelos, erasto é em si a paisagem musical pernambucana, na pororoca entre a tradição & a modernidade. assim é o rico & anárquico "jornal da palmeira".

f.ur.t.o., "sangueaudiência" (epic/sony & bmg) - marcelo yuka supera a vivência n'o rappa, balangando entre a clareza mental extraída da política & da música e a confusão mental extirpada da violência brasil-carioca. seus pares na "comunidade cultural" estão preparados para lhe dar ouvidos?

gal costa, "hoje" (trama) - difícil, mulher difícil. arisca, teimosa, arredia, "snob", bailarina equilibrista na corda bamba de uma tranqüilidade apenas aparente. quase desagradável, talvez, é o seu disco "independente" - mas menos que os anteriores, de quando a tranqüilidade se aparentava apenas de apatia.

hamilton de holanda, "01 byte 10 cordas - ao vivo no rio" (biscoito fino) - de instrumentista-chave de apoio para zélia duncan a instrumentista-chave de apoio para si mesmo, o bandolinista dá banho de virtuosismo onde quer que esteja.

los hermanos, "4" (sony & bmg) - o mar, a maré e a marola evocam um pouco das maresias comentadas acima a respeito da cantora e compositora céu. estes 4 são, com poucas sombras para dúvida, alguns de nossos mais interessantes jovens em música popular. mas os maneirismos demais, o ar algo gélido e a melancolia chororô puxam los 4 uns passinhos para trás, se mirarmos o baile de valsas que já contou com o ápice de "o bloco do eu sozinho" (2001). quando tudo isso vem, ainda por cima, como trilha sonora de fundo para tempestades músico-políticas-marqueteiras de roberto jefferson, então, ai, ai, ai...

itiberê orquestra família, "calendário do som" (maritaca) - em disco, a impressão é de que não se pode captar mais que uma fração dos gestos libertários de que são capazes esse itiberê zwarg, discípulo amalucado (e poderia não ser?) de hermeto pascoal, e sua jovem orquestra de jovens inquietos. ao vivo é que é de cair o queixo a quixotaria da orquestra família, que abre armários "clássicos" e coloca abaixo concepções tipo teia de aranha sobre música erudita & música popular.

izzy gordon, "aos mestres com carinho - homenagem a dolores duran" (rio 8/distribuidora independente) - izzy é negra, tem suingue e é sobrinha de dolores duran. assim também é seu tributo black-bossa às doídas e polpudas fossas da tia que naufragou ao batizar, com uma garrafa de éter, o futuro transatlântico bossa nova.

jair rodrigues, "alma negra" (trama) - embora freqüentemente rechaçado nos comitês de mpb dasluzete, jair é lenda & história & monolito. de volta às inéditas, apresenta mais um pouco daquilo que apaixona poucos e é rechaçado por muitos. e ainda produz, entre outras, a faixa-título, um contundente afro-samba de orgulho negro co-interpretado com garra pela filha luciana mello.

jards macalé, "real grandeza" (biscoito fino) - tributo ao eterno retorno é, em parte, a homenagem de macalé a seu mais importante parceiro, waly salomão. a tarefa gera mais versões de clássicos macalé-salomônicos, como "vapor barato", "mal secreto", "negra melodia", "rua real grandeza" etc. o disco gira em círculos, e, como homenagearia gonzaguinha, é bonito, é bonito e é bonito.

juliana diniz, "juliana diniz" (mercury/universal) - não é fato corriqueiro, mas agora já podem ser a mesma pessoa a garota linda de morrer cujo visual televisivo assanha globos e gravadoras multinacionais & a intérprete de samba de espinha dorsal irretocável tipo monarco-paulinho da viola-zeca pagodinho-marisa monte. a juventude e o dogma duelam com respectivos trunfos e fraquezas, na espera(nça) de que o duelo, mais adiante, termine em beijo na boca.

kid abelha, "pega vida" (mercury/universal) - você pode até torcer o nariz, mas paula toller canta doce feito mocotó, gostoso como maria mole, leve como catavento, ploc feito chiclete, eletrizante como a descarga de dor da ratoeira após o queijo. "eu tô penando pra driblar o fracasso/ eu tô brigando pra enfrentar o cagaço", que ouvinte despreconceituoso conseguiria não se derreter junto com o trio fofo que dribla com a transparência possível o "declínio" "natural" que é a maldição do pop? versão reggae meio desenxabida à parte, fetiche à parte é a doce belezura de "será que eu pus um grilo na sua cabeça?" (de guilherme lamounier e tibério gaspar, lançada pelo "white soulman" lamounier em 1973), que evoca saudades doidas do álbum original, pertencente aos acervos warner e jamais relançado em cd.

luiz tatit, "ouvidos uni-vos" (dabliú discos) - o canto choroso de tatit é quase um espanta-tubarões, mas ele sabe disso, nos avisa disso e transforma isso em poesia confessional de primeira linha. sem caixa 2.

mg calibre, "brazzonia" (clandestina produções) - jazz, caribe, mangue bit, funk, eletrônica, tudo passado na máquina paraense de processar diferenças e convertê-las num novo som, no novo som.

marcos valle, "jet-samba" (dubas música/universal music) - a volta a temas de sua veia pop universal, como "selva de pedra", "previsão do tempo" e "esperando o messias", em versões jazz-instrumentais, fica a meio prumo, a meio palmo, a meio termo. mas marcos valle é marcos valle, ontem, hoje e sempre, ainda que você fique aí só se lembrando de joão gilberto.

margareth menezes, "pra você" (emi) - de lá, ivete sangalo se enfurna por hábitos frenéticos (o que você pode chamar de "sucesso", se raciocinar quantitativo, ou de "auto-sabotagem", se bailar qualitativo). de cá, margareth conquista a festa serena (chame-a você de "fracasso" ou "maturidade"). certamente não vendeu caminhões de discos (ivete também não, embora digam que sim), mas o bel-canto e a espontaneidade de "pra você" não desonram a melhor música baiana de celebração, nem a artista, nem mesmo a gestão (ex-?)feroz do "mago" trapalhão marcos maynard na gravadora.

maria bethânia, "que falta você me faz - músicas de vinicius de moraes" - no decorrer do percurso sentimos cansaço e preguiça (meu cu, vinicius!), mas impressões iniciais permanecem registradas (e válidas, acredito) em maria modernista.

maria rita, "segundo" (warner/wea) - simbólica a paridade entre o que fizeram de 2005 los hermanos e o que fez de 2005 maria rita. por certo ainda jovens e imaturos, talvez tenham sido esses meninos & menina os que mais traduziram em música o susto jeffersoniano de 2005. maria rita, por si, encaramujou-se numa derivação (o caso ipod) de que ela não necessitava e que desviou olhos e ouvidos de onde eles mais poderiam estar - na música, nas motivações ocultas atrás de roberto jefferson, na criação, no sucesso desjabazeiro. o desgaste e a dor não fariam morada num painel-cenário em que tudo estivesse bem, mas os tropeços talvez não se demonstrem tão maus assim: depois de "segundo", maria rita estará zerada para reiniciar, se reinventar, dar de ombros (se quiser) para tudo de passadiço que esteve cristalizado em sua música, no ofício e na indústria a que ela pertence, neste brasil parido por sua mãe, por brizola, por lula e pelo irmão do henfil, de que ela é (e nós somos) filha(os) alegre-triste(s).

maricenne costa, "movimento circular" (canto discos/tratore) - relicário da bossa, maricenne grita um "bolas!" às tradições e se diverte entre canções moças de moisés santana, beatriz azevedo, fernanda porto, mais tropicálias & anti-tropicálias, bossas & anti-bossas. nas hordas da tradição, vai de elzo augusto, o "samba da periferia", olha que beleza: "sou samba, venho da periferia/ não alugo moradia/ eu sou a voz do povão/ sou pobre de pobreza absoluta/ mas tem rico que me escuta/ copo de uísque na mão, meu irmão". nas hostes da "modernidade", é pela pena de moisés santana que a antiga dama chama-convoca: "você tem compromisso!" - cê tá escutando?

martinho da vila, "brasilatinidade" (mza music/emi) - antenado dos choques de integração progressista que varre a latino-américa & o mundo que não se comunica em inglês, martinho foi salpicar o samba brasileiros com latinidades em espanhol & em português de outros sotaques, by nana moskouri, rosário flores & otras mas. e 2005 foi mesmo o ano em que o samba arejou em mais de um sentido e vetor, como martinho & kátia guerreiro bafejam em "dar e receber": "eu quero dar/ eu quero dar/ eu quero dar/ e receber/ e receber/ e receber".

max de castro, "max de castro" (trama) - mais ou menos à maneira de maria rita e los hermanos, max introjetou em 2006, num disco de humor sombrio, introspectivo, de tons graves, de certa impressão de desesperança (mais em barulho no brooklin: um samba para todos).

meirelles e os copa 5, "esquema novo" (arte clara/dubas música/universal music) - meirelles foi, é & será o coringa por trás de invenções como jorge ben, samba-jazz & o samba-jazz de jorge ben. precisa complementar?

moacir santos, mario adnet e zé nogueira, "choros & alegria" (adnet música/zenog/biscoito fino) - na mesma linha, moacir é crucial como meirelles, e, como se não bastasse, é negro. mesmo limitado por questões de saúde, continua dando asas à criação. precisa complementar?

moisés santana, "terra em trânsito" (lua music) - pop bem brasileiro, tropicália, pós-tropicália e participações (pós)tropicalistas de arnaldo baptista & maria alcina.

mônica feijó, "sambasala" (independente) - de recife cantando para o mundo, mônica aborda o samba, mas sob ponto de vista essencialmente pernambucano. mais conhecidos como criadores de mangue bit & adjacências, os sambistas da massa reunidos por ela se chamam fred zero quatro, ortinho, junio barreto, roger man, felipe s, fábio trummer... é o regime de cotas querendo vigorar também no gênero brasileiro por excelência, mas radicado carioca por supremacia e exuberância.

moraes moreira, "de repente" (rob digital) - na contramão das rotas 2005 de alceu valença, elba ramalho & dominguinhos, moraes moreira optou pela fusão entre modas & tradições - é por isso que o bom & gostoso baião-de-dois renasce rebatizado "baião d2". a bênção, filhote marcelo d2.

nação zumbi, "futura" (trama) - "hoje, amanhã e depois" é uma das grandes músicas de 2005, abrindo um disco todo ele redondo & inspirado. o mangue bit já vira história, sem acumular poeira, e o botão de sintonia fina é o de fusões cada vez mais profundas, cada vez mais harmoniosas, como se jorge ben, burt bacharach, roberto carlos, serge gainsbourg, nancy sinatra, marcos valle, doris monteiro, beck, arnaldo & rita, björk, lou reed, tim maia & mais uma porção de gente estivessem morando em comunidade na e fazendo serenatas pela veneza brasileira.

naná vasconcelos, "chegada" (fábrica/azul music) - irmão de erasto vasconcelos, naná é em si a paisagem musical pernambucana, na pororoca entre a tradição & a modernidade. assim é, como de costume, o rico & anárquico "chegada".

nereu, mocotó e swing, "samba power" (yb music/tratore) - dentro do trio mocotó, o incrível pandeirista de grave & zombeteiro vozeirão nereu é bamba inconteste do samba-rock. em aventura solo, ele surpreende e, com intensidade antes não notada, se vira de frente para a tradição do samba "puro". e vira bamba do samba-samba, era só o que faltava.

nilson chaves, "maniva" (outros brasis) - patrimônio humano-pop-cultural do pará, nilson comemora a si próprio sob produção do incansável catalisador cultural zeca baleiro, por sobre musicalidades das finas profundidades brasileiras & entre convidados como celso viáfora, ceumar, chico césar, edmar da rocha, flávio venturini, jean garfunkel, moska, vital lima, zeca baleiro. a gente do brasil afora começa a ter mais acesso, benditos sejam o acréscimo de amor próprio, a melhora de auto-imagem, a lapidação de auto-estima do povo paraense.

nilze carvalho, "estava faltando você" (finaflor/rob digital) - arejando-se, o samba volta a se tornar mais e mais feminino (a bênção, clementina, clara, ivone, beth, alcione, leci, jovelina...). o coro de novas pastoras que vêm reivindicar o direito de ocupar o centro do palco é protagonizado por teresa cristina (presente também em 2005, infelizmente apenas com o ao vivo quase-redundante "o mundo é meu lugar") e por esta bela e serena nilze.

nuno mindelis, "mindelis apresenta: outros nunos" (gravadora eldorado) - onde tudo que é bacana se mistura, o blueseiro nuno mindelis quebrou as barreiras dos sons e ultrapassou as fronteiras dos estilos num momento de atordoante polifonia (mais e melhores detalhes em outros rumos, novos nunos, todos os olhares).

os the darma lóvers, "laranjas do céu" (independente) - psicodelia impopular gaúcha, "laranjas do céu" acolhe rock rural, mutantes em fase progressiva, a suavidade de azimuth & marcos valle, climas viajandões, lirismo místico, um borbotão de esquisitices. "fantástico", uma paródia sarcástica (mas séria) ao dito cujo, é fantástica. o resto do disco também é.

osvaldo pereira, "as árvores" (dubas música/universal music) - samba elegante, melódico, jovem & antigo, seguro. esse não morre, nem sequer agoniza.

parteum, "raciocínio quebrado" (trama) - irmão menos conhecido de rappin' hood, parteum começa a jornada, sob arranjos sofisticados, certa insegurança, ímpeto criativo, a voz dos excluídos bradando cada vez mais potente, até que enfim.

pato fu, "toda cura para todo mal" (rotomusic/epic/sony & bmg) - a usina inventiva de belo horizonte segue a todo vapor, já conversamos sobre isso no blog, com entusiasmo & empolgação, em pato fu & o sítio do picapau verde-amarelo.

patrícia ahmaral, "vitrola alquimista" (independente) - a mineira por vezes pende ao careta na interpretação, mas os textos & autores (raul seixas, fernanda takai, zeca baleiro, ela própria, edvaldo santana, suely mesquita, pedro luís...) reunidos desvendam um faro raro, de compromisso com a atualidade. não chegassem aos ouvidos de tão poucos, os versos já antigos de walter franco em "mixturação" poderiam definir com desenvoltura o brasil convulso de 2005: "eu quero que esse teto caia/ eu quero que esse afeto saia". pois o teto não caiu?, o afeto não saiu?, não estamos todos ao ar livre?

pierre aderne, "casa de praia" (santa música/distribuidora independente) - bossa nova nada dogmática, delicadeza, melodia, redes colaborativas entre os novos cariocas (com participações de rodrigo maranhão, domenico, adriana maciel, alexandre moreira do bossa cuca nova...), melancolia, suavidade.

pitty, "anacrônico" (deck disc) - como ela mesma sabe, seu rock baiano pesado guarda algo de anacrônico. mas o tempo é de reemancipação feminina, de revalorização da música & do rock que vão além da mera linha de montagem, e pitty é, sim, vitamina para tudo isso.

preta gil, "preta" (geléia geral/universal music) - preta é o lado b de pitty, como pitty é o lado b de preta. sendo mais desbocada e menos paciente com as convenções que a conterrânea, preta é menos levada em consideração como moça séria pelos brasileiros embotados por convenções e preconceitos do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça. entre tais brasileiros talvez se inclua a própria filha "fútil" do ministro "profundo" do minimistério, mas essa menina pós-baiana tem recado à beça a proclamar, se você quiser ouvir-enxergar, a bênção maroca, poroca, indaiá.

la pupuña, "belém - pa" (independente) - o surf rock caribenho-brasileño do grupo paraense circula, por enquanto, num mini-cd ultra-exclusivo e mega-restrito - mamão papaia com palmito melado para quem acredita que a quantidade não é a alma do negócio.

quinto andar, "piratão" (quinto andar/l&c editora) - lançado na revista "outracoisa", de lobão, "piratão" é um primor de hip hop funkeado em modos & moldes zombeteiramente cariocas, de crítica sócio-político-econômica, de enfrentamento aos vícios prediletos da indústria músico-político-cultural (preguiça, jabá, caixa 2, mensalão, manja aquela coisarada toda que te querem fazer acreditar que foi inventada por ali babá na terra do axé?). divertido de montão.

rappin' hood, "sujeito homem 2" (trama) - se o samba se areja e se espalha soberano por outros territórios, muito disso ele deve a seu grupo caçula de filhotes, sob o guarda-chuva do hip hop. dentro desse, rappin' hood tem lugar de mestre-sala & porta-estandarte, desde há um tempão. "sujeito homem 2" solidifca a saída do rap de diversos armários, misturando-se com a tropicália de caetano & gil, com a antitropicália de geraldo vandré & jair rodrigues ("disparada rap" é o máximo), com o samba duro de arlindo cruz ("muito longe daqui", espetacular), com os pops-brasil de zélia duncan & claudio zoli... infelizmente, o sampling fulminante de "a história de um homem mau", de roberto carlos, restou inédita, por conta das idiossincrasias proibitivas do "rei" - um dia o decreto de ocultação há de ser revogado, ah, se há.

roberta sá, "braseiro" (mp,b/universal music) - como no caso de céu, o grau de desdiferenciação em relação a marisa monte age como complicador, mas roberta sobrepuja bons obstáculos. o conglomerado atemporal abarca marcelo camelo, rodrigo maranhão, teresa cristina & pedro amorim, pedro luís & a parede ("no braseiro", segmento-chave do cd), lula queiroga, paulo césar pinheiro, ney matogrosso, paulinho da viola, hermínio bello de carvalho, mpb 4, chico buarque (numa versão xaroposa de "pelas tabelas"), janet de almeida, dorival caymmi...

roberto carlos, "roberto carlos" (amigo records/sony & bmg) - primeiro foi rappin', depois veio roberta, agora é roberto. o "rei", ah, o "rei"... bem, o "rei" ex-rei do iê-iê-iê gravou a guarânia paraguaia-brasileira "índia", um passinho a mais para o (auto)reconhecimento de que ele, roberto carlos, é mesmo o mais brasileiro de todos os brasileiros. a estrada é comprida.

rolando boldrin e renato teixeira, "rolando boldrin-renato teixeira" (kuarup discos) - o que ainda é custoso para roberto vem com a facilidade de um 2 + 2 para rolando e renato. regras e timidezes e caretices à parte, o brasil de dentro exulta nessas re-versões de "vaca estrela boi fubá" (patativa do assaré), "zé ponte" (lupicinio rodrigues & felisberto martins), "chico mineiro" (tonico & francisco ribeiro), "três nascentes" (joão pacífico), "minha história" (joão do vale & raymundo evangelista), "ventania" (geraldo vandré & hilton acioli), mais luís peixoto, volta seca, chico buarque, boldrin, teixeira, almir sater...

ronei jorge e os ladrões de bicicleta, "ronei jorge e os ladrões de bicicleta" (independente) - mais rock visceral baiano, agora em versão masculina (a bênção, pitty!). destaque especial para a deliciosa "daikiri".

sandra peres e paulo tatit, "pé com pé" (palavra cantada/mcd) - vanguarda paulistana, mais poesia, mais ternura, mais música responsável para a criançada: bingo!

seu jorge, "the life aquatic studio sessions" (hollywood records/universal music) - a burguesia reativa instalada nos corações e mentes da imprensa musical e da "sociedade civil" do brasil diz "não" dia sim dia não ao sempre marqueteiro, sempre extraordinário seu jorge. a desculpa, desta vez, é a "profanação", sob letras simplórias, dos clássicos de art rock bissexual de david bowie (o que antes era pansexual agora virou também bleque pau, cê tá entendendo que a transgressão resiste?). ora, mas o que seria do pop-rock se ele cessasse de profanar? seu jorge é que, isto sim, mantém bowie, hollywood & o brasil vivos com um mínimo de dignidade, o resto é uma dose algo exagerada de puritanismo, intolerância e (falso) moralismo. abaixo as ditaduras.

silvério pessoa, "cabeça elétrica coração acústico" (luni produções) - missão difícilima era suceder o êxtase do transgressivo "micróbio do frevo" (2002), o que ensombrece a audição do disco seguinte do ex-líder extra-mangue bit do cascabulho. seja como for, o coração agreste de "cabeça elétrica coração acústico" assegura novas, supimpas & abundantes emoções.

os skywalkers, "zenmakumba" (baratos afins) - nascido no coração da zona leste paulistana & filtrado no nervo exposto do centrão da cidade, pela empolgação amorosa do selo-loja de luiz calanca, "zenmakumba" tenta radicar anarquia & diversão na (quase) sempre sisuda e reacionária megalópole. o que há de imaturo e cru no som dos três meninos e uma menina não se oculta na audição, mas perde de lavada para o que há de vigoroso & entusiasmado em canções como "cores de domingo", "papo furado com irene" & "irene caiu", a sarcástica & autocrítica "a garota do sábado à noite" ("a banda tocando é boa, mesmo assim irrelevante/ todo público é artista, jornalista ou aspirante"), "27 ou quem quer ser kurt cobain?", "são jorge na lua"... a tropicália é o mote, sob caudalosas citações a caetano veloz & kurto cobain & jorge bastante ben & etc. e tal - mas o alto grau de originalidade surge do fofo sincretismo, musical, religioso (candomblé branco-moreno espalhado pelo cd, viva!, é a zona leste espanando também os seus armários) & ideológico.

sonic junior, "pra fazer o mundo girar" (mundo perfeito) - grooves & eletrônica & pop brasileiro à moda alagoada, sob filtro paulistano. e bacanudo, especialmente em "pulsar".

tara code, "azul e roxo" (tratore) - esquisitice eletrônica baiana, áspera e difícil, tara code é o reverso transverso seja de pitty, seja de preta, seja de ronei jorge. desconstrução proto-eletrônica nativa, tesa e retesada, a liga entre andréa may & gilberto monte é o reverso do reverso do reverso de bruno verner & eliete mejorado, da entidade tetine, do brasil eletrônico-conceitual que foi morar em londres.

tetine, "bonde do tetão" (bizarre) - mais londrina que nunca, a dupla paulista-mineira volta às mais transgressoras e subversivas das próprias origens e se apaixona perdidamente pela brasilidade impura do funk carioca. na versão tetine, a ousadia sócio-política do povo carioca que vive mais perto d(a cidade d)e deus é retrabalhada em ainda mais protesto psicossexual - e, mais que nunca, é preciso ter peito forte para tomar de frente o ideário, a musicalidade & a rebeldia do tetine.

thedy corrêa, "loopcinio" (orbeat music) - a obra cafona & genialmente musical de lupicinio rodrigues erige um capítulo constrangedor na história da música popular brasileira, se nos detivermos no ultra-romantismo vingativo, misógino e autodestrutivo de seus textos - e se concedermos nos mirar como o brasil que "caminha a passos largos para ser dono do seu nariz" de que fala el presidente lula. dito tudo isso, ainda soa construtiva a subversão do velho gaúcho pelo astronauta de mármore (também gaúcho) thedy, sob loops às vezes legais, às vezes datados, sempre emotivos. afinal, como haveríamos de superar nossos ímpetos autodestrutivos, se não os conhecêssemos de frente, de peito forte & aberto?

tom zé, "estudando o pagode - tom zé na opereta segregamulher" (trama) - transbordante de contradições, conflitos, contextos & questões conhecidas de peito forte & aberto & frontal, o trabalho mais recente de tom zé é um jorro de expressividade, de referências encontradas & desencontradas, de riqueza textual-musical-política-ideológica, de confronto afetivo. a tropicália assimilada pelas multidões (ou, ao menos, pelas multidinhas) continua sendo a de caetano & gil, enquanto tom zé segue tomando na testa pechas como as de excêntrico, tortuoso, chato, complicado, experimental "demais". mas, ah, se caetano & gal & gil & rita acalentassem por dentro o mesmo tanto de chama criativa... bem, antes que eu me esqueça: de chato "estudando o pagode" não tem nada, nada, nadinha. é um trovão, salve-se quem puder/quiser, dê-lhe ouvidos moucos quem quiser/puder.

totonho e os cabra, "sabotador de satélite" (trama) - o paraibano arretado totonho é um discípulo de tom zé, no aspecto de quão intrincado, complexo, difícil, contraditório, rico & de difícil assimilação parece o material musical que oferece. eu sigo estudando os pagodes de totonho aos pouquinhos, enquanto ainda não consigo emitir uma opinião segura sobre que tal são tais peças pós-pop pós-nordestinas. mas, vá lá, um palpite feliz & irresponsável? eles são do balacobaco.

uakti, "oiapok xui" (natura musical) - a bênção, pai milton nascimento. a bênção, tribos & percussões. a bênção, povos das florestas, das cidades & das gerais.

velha guarda musical de vila isabel, "sou velha guarda, muito prazer..." (mza music/universal music) - não vou chover no molhado: sobrepujando as conhecidas adversidades, a velha guarda musical da escola de samba de noel (da rosa) & martinho (da vila) lançou um disco. viva.

zeca baleiro, "baladas do asfalto & outros blues" (mza music/universal music) - demorei imensamente a conseguir ouvir sem óculos ou máscaras este disco daquele que considero o popoeta mais interessante do brasil pós-anos 90. um pouco à maneira de los hermanos, maria rita, max de castro etc., parecia tristonho, desanimado, derrotista, submisso aos clichês que nos assombraram depois que roberto jefferson ousou dizer seu nome. ouvindo as baladas de zeca agora, quase um ano depois, elas soam ainda daqueles modos, mas, ah, quanta beleza & justeza & acerto & alívio foram brotando por entre elas à medida que os meses & o surto foram passando...

zeca pagodinho, "à vera" (mercury/universal music) - embora amplamente eficaz, o formato embalsamado dos pagodinhos de zeca às vezes exasperam, impacientam, amortecem. "à vera" não foge muito à regra, mas é pena que tenha passado em brancas nuvens, por um lado, o encontro democrático com jorge aragão, marcelo d2 & seu jorge, em "zeca, cadê você?", e, por outro lado, o discurso assustador, de defesa e proselitismo do alcoolismo e do mercantilismo tipo brahma (ou schin, vai saber...), em "dona esponja" e "ninguém merece". pelo que encerra de contradição, essa última poderia virar mote para debate nacional. não virou.

zélia duncan, "pré pós tudo bossa band" (mercury/universal music) - zélia segue em frente, compenetrada na tarefa libertadora de se transformar em muitas, em todas, nela mesma. o formato híbrido, de quem se anda embrenhando sem timidez pelo samba antigo, pelo ideário de itamar assumpção, pela herança de simone e/ou pela substituição de rita lee nos mutantes, compõe a espinha dorsal de "pré pós tudo bossa band", prenhe em releituras & parcerias de & com lenine, moska, itamar, mart'nália, pedro luís, lucina, alice ruiz, guerra peixe,, beto villares, lulu santos etc. todo(a)s cabem dentro & ao lado de zélia.

vários, "ainda somos inúteis! - um tributo ao ultraje" (migué records/monstro discos) - sintonizado com o espírito do tempo, uma homenagem da estirpe do tributo às ceguinhas de campina grande, da estirpre do tributo a odair josé (esse só foi sair em 2006, espera aí, que já, já a gente chega lá). mais em ainda somos inúteis?. não somos mais inúteis?

não somos!!! olha aí para cima, quanta coisa, enquanto você(eu) fic(o)a o tempo todo resmungando da pasmaceira da música brasileira & da cultura brasileira & da política brasileira & da sociedade brasileira. será que é mesmo assim?, ou você(u) é que não está(ou) enxergando bem? viva a faculdade plena de tato-audi-visão!, a sua bênção, maroca!, poroca!, indaiá!

[ei! quem eu esqueci?! quem eu deixei de fora?! me ajuda?!]

segunda-feira, abril 17, 2006

admirável povo novo

mil imagens ficarão para sempre impressas nesta memória, após a rápida passagem por minha conservadora e morna maringá, em meu doce e parado paraná. uma delas em especial, para efeito do que gost(am)o(s) de conversar aqui neste blog, neste blog que, já há um bom tempo, gosto de definir intimamente como a parte que me cabe na reforma agrária do pensamento deste latifúndio chamado brasil, planeta terra ou sei lá o quê.

é a imagem de descobrir, desassombrado, a caixinha de leite longa vida que meus velhos e amados pais tomam pela manhã, pela madrugada, dia após dia.

seu josé e dona zaira, que desde getúlio vargas sempre se comportaram de modo temeroso e obediente diante de todo e qualquer governo que varresse as terras do brasil, continuam os mesmos, tal e qual foram feitos e me fizeram. aceitam lula, como no passado aceitaram fernando ii, itamar substituto, fernando i, josé postiço, a súcia de generais, jg, jq, jk e quem mais chegou de trás para diante. seguem sendo o inverso reverso transverso da imprensa, da classe jornalística de que hoje também sou filho, essa que com disciplina, inércia e complacência comparáveis às de meus pais sempre rejeitou, ou melhor, fingiu que rejeitou (e mesmo aqui ainda é transversalmente idêntica a meus pais) todo e qualquer governo que ousasse dizer "eu mando" aqui no brasil.

donde o desassombro, então, se meus pais ainda são os mesmos e vivem como nossos avós? é que, olhando bem a caixinha do leite longa vida, descobrimos lá em maringá que os velhos sanches hoje em dia consomem leite produzido pelo MST, pelo movimento dos trabalhadores rurais sem terra. o slogan supra-publicitário no alto da caixinha dá conta de que aquele leite de santa catarina, de que aquele leite da terra natal de meu pai é fruto da reforma agrária do brasil.

sim, vocês que fazem parte desta massa continuam sabendo o que sempre souberam, que esse leite que a gente bebe todo dia é formulado das tetas para fora por admiráveis e generosas vacas velhas e escravizadas. as vacas leiteiras continuam nos amamentando, mas o século é xxi: hoje o leite nosso de cada dia vem das vacas, assim como pode vir também das tetas de mãe reforma agrária. ovelhas-bezerros, saciamos nossa fome balindo por um futuro que acreditamos não desejar, como quem berra, ao sopé do matadouro, "bbbbbéééé", "mmmméééé", "nnnnnããããooo".

[corta!]

pois vai daí que o igual de sempre hoje é diferente. ah, se eu seguissse mal indo a maringá, se eu continuasse mal observando o que vejo por lá quando mal vou... ah, se eu permanecesse me apoiando apenas no que a "veja" ordena que eu veja, no que a "folha" exige que eu "modernize", no que o "estado" craveja que eu penetre, no que a globo pisca que eu pirilampe... seguiria acreditando que o mal do século e o mal do milênio e o mal do mundo estariam todos concentrados, sob a sigla trípede "MST", num bando de celerados destrutivos ignorantes analfabetos violentos baderneiros que querem transformar o brasil num imenso portugal, numa intensa venezuela, num deserto cafezal, numa via campesina canibal de celuloses, numa colônia penal a céu aberto.

pois sim, pois não. o que agora eu sei meus pais maringaenses já sabiam, sem saber que sabiam. consumindo leite do MST, que eles já descobriram que não é um levante de bichos-papões e mulas-sem-cabeça, meus pais já põem em plena prática a revolução do xxi: fora dos centros, onde a periferia não está morta, viceja o novo povo brasileiro, o admirável povo novo planetário.

[a imprensa finge que rejeita, sempre, aceitando e bajulando? meus pais (o povo) fingem que aceitam, criticando quietinhos, no espelho das (des)igualdades? e eu, onde é que me localizo no mapa desta corrida maluca? e tu, onde estás tu, tatu?]

nas periferias em plena primavera, eis aqui a salvação dos centros mortiços, esses aglomerados ignóbeis de cordeiros que ainda balem "nnnnnãããooo" rumo ao patíbulo, dentro dos quais a matilha cega, abusiva e agressiva que não sabe nada sobre o brasil vivo e segue berrando, entre cuspes de sangue: "ccccoooorteeeemmmm-llllhes as cabeeeeeeças, os braaaaaaços, as mãããããos, os pééééés, as llllínguuuuuas!!! apunhalem-lhes os coraçõõõões".

eu, não, não dou mais pelotas de mamonas ao tropel de cavalgaduras que (finge que) não vê que toda aquela engrenagem já sente a ferrugem lhe comer. não vou mais, ainda mais agora que aprendi com meus pais em maringá que, enquanto ladra a caravana do progresso do retrocesso, tem gente estranha do MST trabalhando nos fundos, baixos, gordos e salgados, jorrando leite para alimentar mamíferos, vegetarianos e esta mãe-terra de onde não param de brotar lulinha(o)s e brasileirinho(a)s em flor.

você não consegue avistar o além do horizonte, ou melhor, o aquém do (belo) horizonte? só consegue ver o brasil indo para o buraco e caminhando para trás cpi após cpi? pois acorde, camarada. vá dar um passeio pela crosta terrestre do país (pode até ser na sua própria cidade ou roça, é só destrancar o portão da mente prisioneira). dê uma olhadinha nesses admiráveis povos novos que passam nos projetos do presente.

faça como mãe elis regina, que veio do rio grande do sul de minha mãe para avisar aos navegantes de todos os quadrantes que o brasil não conhece o brasil. afaste londres, niuiorque e paris a segundo plano, nem que seja pelo silêncio de um minuto, porque não foi em vão que mãe elis e mãe nara (coração de) leão ofereceram as tetas fartas ao sumo do leite quente e ao sacrifício de morte precoce. não é mais necessário o sacrifício, que hoje o leite brota da "perifa" que já ousa dizer seu nome, dos ciganos & índios, da seiva & da selva amazônica, da terra & dos sem-terra.

ê, ê, ô, vida da gente!

segunda-feira, abril 10, 2006

olha a reparação aí!, cê reparou?

bem, pela comichão que se espalha, já compreendi (até que surjam disposições em contrário): um jornalista pode entrar em férias, mas um indivíduo, esse não entra em férias nunca, jamais. dá coceira, fricote, o jornalista hiberna e o indivíduo insiste em continuar existindo...

aí mistura tudo, bagunça, confunde para esclarecer. e o indivíduo fala: "socorro, jornalista!, deixa eu ficar!".

e o jornalista vem em socorro, fazendo retrospectiva 2005/2006 para que o indivíduo não se flagre olhando para o espelho e se lamuriando: "escafedi!".

não, não escafedemos. estamos "pelaí", e também nas bancas, na "carta capital" 388, de 12 de abril de 2006, comentando o estranho encontro entre o mundinho da daslu e o mundão de cidade de deus. vai abaixo a brasiliana sobre o assunto, chamada "nem a bela nem a fera".

aproveitando a deixa, recupero mais abaixo também uma outra brasiliana, da edição 370, de 30 de novembro de 2005, essa chamada "orgulho a rigor". de uma até outra, 18 semanas se passaram, mas você perceberá que o assunto se manteve mais ou menos o mesmo - agora é daslu versus comunidade carente, antes era a população negra brasileira mais a finesse tucanófila da sala são paulo.

as inesperadas (inesperadas? por quem?) convergências parecem ser, de cara, manjadíssimo choque cultural. mas estão longe de ser só isso, são muito mais que mero choque cultural. são índices de tomada de atitude, resgate de consciência, reivindicação de direitos inalienáveis (embora historicamente alienados), tentativas de encontro e diálogo e expiação. é, num só termo, reparação social. é só o começo, muito ainda falta ser (e vai ser) feito. e é o indivíduo quem diz, carregando consigo o jornalista, aonde ele(s) for(em): estamos nesta!


1
Nem a bela nem a fera

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Na introdução do livro Falcão – Meninos do Tráfico, o rapper carioca MV Bill e o empresário dele, Celso Athayde, avisam que, para penetrar no mundo que eles pretendem relatar, temos de nos "despir de todo ódio que nutrimos" e "renunciar ao que nos foi ensinado sobre o Bem e o Mal". É o que tentaremos fazer também nesta noite de quarta-feira 5, a partir do instante em que MV Bill entrar nas instalações suntuosas da Daslu para um debate de lançamento oficial de Falcão na cidade de São Paulo.

O circo eletrônico está armado: parece haver mais jornalistas e fotógrafos que convidados. Entre estes, há bem mais mulheres do que homens. Entre essas, dezenas de "dasluzetes" fazem claque de aplausos para a dona do palacete e conversam à boca miúda enquanto o telão exibe uma versão curta do documentário Falcão, exibido três semanas atrás no Fantástico.

O Bem e o Mal podem estar bem definidos na mente de cada um dos presentes, mas os sustos começam quando os sapatos de bico fino e as roupas quase sempre pretas do imaginário Daslu recebem a visita do rapaz negro vestido de vermelho. Ele lança uma provocação logo de início: "Gostaria de frisar a multirracialidade presente aqui hoje". "Aqui" é a Daslu, branca por fora e por dentro.

O cara a cara é motivo de comoção, a tensão paira no ar. De um lado, está Eliana Tranchesi, a "bela" loira que ciceroneia o luxo paulistano, mas se debate na Justiça contra acusações de fraude fiscal, contrabando, falsidade ideológica, formação de quadrilha. Em sua frente, ergue-se MV Bill, a "fera" negra que luta para converter a sina de pária nascido na Cidade de Deus na figura de cidadão consciente que compõe música, escreve livro, dirige documentário, reivindica justiça social.

Acusações também se amontoam sobre ele: apologia ao crime em videoclipe, porte de arma num festival musical "classe A" promovido por uma marca de cigarro, omissão de socorro a vítimas de seqüestro. Esta última, pós-Fantástico, partiu do jornal carioca O Dia, que se indignou com o relato em livro da presença dos autores num cativeiro. "Em outro capítulo, narramos a morte do Sabugo, um menino que foi assassinado na nossa frente sem que pudéssemos impedir. Por isso não sou acusado. Gostaria ao menos de ser acusado de omissão por todas as mortes que já vi", Bill rebate.

Eliana tenta se encontrar com Bill no discurso de apresentação, em que louva "a preocupação deles de promover o debate em todos os segmentos da sociedade". "Não adianta culpar o governo, ou só uma parte da sociedade. Chega de culpar", pede a empresária, que afirma não ser uma recém-convertida às causas sociais: "Nossos projetos sociais não são coisa nova, a coisa nova é a presença dos jornalistas".

Os jornalistas, nessa noite, parecem sem ação, assim como as socialites, os assessores de imprensa, as funcionárias com uniforme de copeiras que seguram microfones para o debate, os poucos militantes do movimento hip-hop enxertados no templo do luxo. Até que o debate seja entregue à participação do "povo".

Ergue-se uma voz pertencente à tradição do "bem", na figura de Armando Paes, "empresário do ramo de entretenimento". Em tom exaltado, ele afirma que "os daqui também são reféns do tráfico, não são só aqueles meninos", e encerra com pergunta de tom acusatório: "Você teve autorização dos traficantes para filmar?".

"É lógico que sim", responde Bill, que mantém mansas a voz e a expressão. "Se for para colocar culpados, temos que voltar aos que nasceram na África, vieram para cá escravizados e depois de libertados não tiveram direito a nada, até hoje. Esses acabam vendo vocês como algozes, generalizam como vocês também generalizam. Não é pensar nos meninos do tráfico como coitadinhos. Pensar na vida deles é pensar na minha e na de vocês também", inverte.

O outro debatedor, Aliado G, do grupo paulista Faces da Morte, toma a palavra: "A cocaína da favela vem para cá de avião, e ninguém é dono de avião e navio na favela. Podem ter certeza de que pessoas que fazem compra na Daslu também patrocinam isso".
O ambiente fica carregado, o empresário tenta retomar a palavra. Na lateral do saguão, um jovem branco de mochila nas costas começa a bater boca com ele, aponta para o relógio Rolex reluzindo em seu pulso. Consciente do foco de tensão, Bill esfria propositalmente a discussão. O empresário ainda esbraveja, mas sem microfone.

O clima arrefece, mais cadeiras ficam vazias, o assunto deriva. A trégua é curta. Uma mulher branca de porte elegante intervém: "Estamos aqui no templo do consumismo. Eu sou uma das pessoas que participam, mas é preciso que eu diga que isso aqui também é violência. Este lugar, para mim, é de violência. Alguém falou 'nós somos vítimas do tráfico', é preciso que se diga que nós que estamos aqui também somos responsáveis pelo tráfico". Armando Paes retruca do canto, sem microfone: "Eu não sou!".

Ela continua: "O tênis da hora que o menino da favela quer é mostrado na tevê. Ele tem que matar para ter um daquele, e nem é da Daslu. Para ter um tênis da Daslu ele vai ter que matar muito mais gente". O murmúrio desanda em balbúrdia de aplausos, discussões paralelas exaltadas e gritos de protesto.

Depois se descobre que a mulher é a socióloga Lúcia Pinheiro, dirigente da Fundação Projeto Travessia, talvez investida só brevemente do papel de "dasluzete". O depoimento detona outra participação, de Rosana Maria dos Santos, líder comunitária da favela Coliseu, localizada atrás do palácio Daslu. Ao mesmo tempo, Rosana defende Bill e Eliana, principalmente Eliana, que se refere à líder negra como "minha melhor amiga": "Bill e Eliana foram as primeiras pessoas a entrar naquela favela sem seguranças. Eliana me disse que se tivesse que limpar a própria casa, não seria tão limpa quanto a minha". A claque "dasluzete" ovaciona, de uma tacada só, a líder comunitária e a líder palaciana.

Mais uma vez, Bill amaina os ânimos exaltados. Termina aplaudido e vai enfrentar a longa fila de autógrafos que recombina saltos loiros de bico e cabelos negros rastafári.

Ao final, Eliana puxa Bill para uma sessão de fotos posadas no terraço: ele sentado, constrangido, ela atrás, sorridente, envolvendo-lhe os ombros. "Sorriso, Bill!", comanda o fotógrafo. "Tô sorrindo, pô. Este é o meu sorriso."

Para a última viagem de elevador, não restaram mais "dasluzetes" – só Bill e sua equipe de "manos", poucos fotógrafos teimosos. O alívio é geral, quase um "ufa". Fotógrafos sentam-se no sofá (sim, os elevadores da Daslu têm sofás), clicam-se uns aos outros. Um mano provoca MV Bill: "E agora, como você vai explicar tudo isso pros manos?" "Não me bota mais essa culpa, não", ele repete o que já fizera a noite toda.

Diante da porta já fechada da Daslu, CartaCapital faz a última pergunta, antes que Bill parta: como se sentiu fotografando ao lado de Eliana? "É embaraçoso. Eu, que já tenho foto ao lado de bandido, marginal, prostituta, mendigo... Agora uma milionária... Tô fodido", brinca, e embaralha de vez o que conhecíamos como "mal" e "bem".


2
Orgulho a rigor

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

"Ele falou!" A expressão surda de assombro riscou o ar na platéia da Sala São Paulo, enquanto no alto do palco o ator e músico Toni Tornado lutava para dominar o pranto. Tornado acabara de receber um Troféu Raça Negra pelo conjunto de sua obra, que o levara a observar que até então nunca havia recebido um prêmio, em 74 anos de vida, antes de parar, silenciar, começar a chorar, esperar, voltar a falar.

"Todos sabem que trabalho numa emissora eminentemente branca, e que consigo sobreviver no meio disso tudo. Mas vocês não têm idéia do que é ser negro trabalhando naquele lugar", desengasgou. Referia-se à Rede Globo, sem nominá-la, mas dotando de precisa expressividade a expressão "aquele lugar" em que, como afirmou, sempre desempenhou papel de "mordomo, escravo e lixeiro".

Espontaneamente, colocaram-se em pé para ovacioná-lo os cerca de 1.200 presentes em trajes a rigor à solenidade que demarcava também o domingo 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares e Dia da Consciência Negra. Ou melhor, quase todos se puseram de pé: formava-se um bolsão em meio à platéia, de pessoas que se conservavam sentadas e não aplaudiam o desabafo do histórico cantor "black power" de BR-3.

Não eram apenas majoritariamente brancos os poucos que quedaram paralisados. Eram membros ativos da elite política do Brasil, entre eles o governador Geraldo Alckmin, o presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, a ex-prefeita Marta Suplicy e vários integrantes de uma corte tucana que incluía Paulo Renato Souza, José Aristodemo Pinotti, Zulaiê Cobra, Gabriel Chalita.

De bolsão majoritariamente branco eram também os jornalistas de cerca de cem órgãos de imprensa do País que cobriam o evento e se dedicaram, nos dias seguintes, a silenciar sobre o desabafo de Tornado e quase tudo o mais que ali acontecera. A premiação de personalidades negras ficou célebre, sim, ao longo da semana, mas devido ao soco que o cantor, apresentador e empresário Netinho de Paula desferiu no humorista Rodrigo Scarpa, que incomoda celebridades ao interpretar o "Repórter Vesgo" no programa Pânico na TV e se fazia acompanhar, na ocasião, de um ator branco pintado de negro, o "Mano Quietinho".

Netinho, que naquele mesmo dia colocara no ar a TV da Gente, primeira emissora televisiva brasileira a se dedicar prioritariamente à populalção negra (CartaCapital nº 360), se descontrolou à entrada da Sala São Paulo, diante da pergunta do humorista sobre se ele iria "abrir o seu canal para todo mundo". Scarpa reagiu ao soco registrando um boletim de ocorrência.

Mais tarde, recebendo troféu equivalente ao de Toni Tornado, Netinho deixou as lágrimas rolarem e discursou oscilando entre palavras de triunfo, mágoa e belicismo. "Fiquei muito triste quando pedi apoio a algumas pessoas famosas para fazer a TV da Gente e elas achavam que era um sonho tolo, que ia ser em vão. Por essa luta e por outras não vou admitir que nenhum palhaço faça chacota da gente e do jeito que a gente se veste. Enfiei o braço mesmo, dei um soco", concluiu, provocando mais aplausos efusivos, agora no terreno-limite perigoso do apoio à violência.

Em comunicado divulgado na quarta-feira, Netinho pediu desculpas em público: "Embora arrependido dos excessos que cometi, que são injustificáveis, esclareço que minha reação se deveu às atitudes agressivas e preconceituosas do Repórter Vesgo, usando piadas maliciosas e palavreado grosseiro, que atingiram a minha honra e a dignidade da raça à qual tenho o orgulho de pertencer".

Despido do personagem, Scarpa se posicionou a CartaCapital, na quinta-feira: "Como pessoa, espero que Netinho peça desculpas pessoalmente a mim, e posso perdoá-lo. Mas como cidadão tenho que dizer que violência não é solução para nada e que agressão é crime".

Involuntariamente, Netinho e a equipe do Pânico (e da RedeTV!, atualmente pressionada pelo Ministério Público e por grupos de defesa dos direitos humanos, por supostos abusos praticados contra minorias sociais) protagonizavam episódio que redundaria na diminuição do Troféu Raça Negra a um lamentável episódio de agressão de um branco por um negro.

Lá dentro, o relicário de acontecimentos era 505 anos mais complexo, como atestam vários exemplos.

Um coral negro entoou uma versão transgressora do Hino Nacional Brasileiro, com referências ao soul, ao gospel e ao samba.

Foi assinado, pela Secretaria de Patrimônio da União, um termo de cessão de prédio à avenida Cásper Líbero, 88, no centro da cidade de São Paulo ("um dos maiores quilombos urbanos do Brasil", como definira o ator Antônio Pitanga). Será a sede definitiva da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares (CartaCapital nº 342), que agrupa 87% de alunos negros. José Vicente, o reitor da escola e presidente da ONG Afrobras, que promoveu desde 2000 três edições do Raça Negra, foi o condutor da parte política da cerimônia, que também contemplou juristas e empresários de mídia e educação.

Pelo critério de homenagear pessoas que contribuem para a causa negra, troféus foram distribuídos a personalidades tão diversificadas quanto Ruth de Souza e Hélio de la Peña, Hélio Santos e Glória Maria, Daianne dos Santos e Neusa Borges... "Existem outros prêmios musicais para que nem convidado sou. Este é um sinal de que o Brasil está mudando", tateou o pagodeiro romântico Alexandre Pires.

Pelo critério da diversidade, era possível assistir a cenas musicais surpreendentes. Sambista purista e branca, Beth Carvalho levou troféu de destaque ("sou mais preta que muito negro", explicou mais tarde) e se entregou ao funk, dançando lado a lado com a sambista negra e não tão purista Alcione. O mote do funk Olhos Coloridos operava a façanha de unir numa só voz Rappin' Hood, Seu Jorge, Zezé Motta, Wilson Simoninha, Sandra de Sá, Emílio Santiago, Toni Garrido, Paula Lima, Luiz Melodia, Toni Tornado e, mais ressabiados, Netinho e Alexandre Pires: "Todo brasileiro tem sangue crioulo".

"Foi meu pai que me ensinou a me valorizar como mulher negra e nordestina", disse Alcione, ecoando palavras e lágrimas do ator Lázaro Ramos, que entregou ao pai o troféu que recebeu ("você fez tudo certo, cara!").

Para sintetizar tanta complexidade, lá estava o cantor Jamelão, em plena atividade do alto de 92 anos e de frases assim: "Não sei por que um troféu, eu não fiz nada até agora. Mas ainda posso fazer. Vão me desculpar, mas o racismo ainda persiste. Desculpem a minha franqueza, mas liberdade ao negro, essa é a minha meta e a de vocês".

Já no coquetel, Jamelão resistia arredio ao contato do repórter branco: "Em boca fechada não entra mosca". Mas lá permaneceu pela madrugada, de pé, observando atentamente um tipo de festa a rigor que não existia quando ele ainda não entrara na centésima década de vida.

terça-feira, abril 04, 2006

fora de (des)ordem

para saber um pouco mais sobre o show-manifesto "fora de ordem", que se materializou na semana passada nos arcos da lapa, no rio de janeiro, entrevistei por telefone o músico erudito eduardo camenietzki, um dos pivôs do atual embate entre artistas de música brasileira e a ordem dos músicos do brasil, a omb [maiores detalhes abaixo, no tópico "a (des)ordem ameaçada"]. a direção "atual" da omb, liderada por wilson sandoli, mantém-se soberana e hegemônica há já mais de 40 anos - coincidência ou não, é o mesmo período de duração da hegemonia da rede globo na lida de construir nossas cabecinhas brasileiras.

mas, ops, o assunto aqui é mais simples. quero, apenas, relatar alguns dos assuntos e idéias que surgiram na conversa com camenietzki. [entre colchetes e em itálico, reflexões posteriores minhas, que não cheguei a expor a ele no calor da hora, e/ou porque, em geral, dadas as convenções & condições "normais de pressão e temperatura, um jornalista jamais se expõe diante de um entrevistado (mas, ei, colega músico!, olha eu aqui!, agora em zona livre de fronteira).]

"é fácil falar do sucesso do evento, todo mundo viu. foi ordenado, profissional. mas houve alguns fracassos também. foi triste, por causa da chuva e do cronograma atrasado alguns músicos não puderam tocar, como pascoal meirelles, nivaldo ornelas, lúcia turnbull", contou ele, dosando sucesso & fracasso, a alegria pelo objetivo cumprido & suas máculas. [as máculas matam os êxitos?]

"parecia filme de semana santa, depois de muita chuva o céu se abriu bem na hora do show", consolou-se dos fracassos. [o imaginário cristão & suas culpas inerentes sempre nos perseguem, especialmente quando supomos estar fazendo algo grande & importante?]

sobre a cobertura da imprensa no dia seguinte, queixou-se do uso indiscriminado do trocadilho "luta de classe". "'luta de classe' lembra conceitos marxistas, não foi assim que começamos isso. não é à toa que temos ao mesmo tempo o apoio do ministro da cultura, gilberto gil, e do prefeito do rio, cesar maia, do pfl. muitas vezes, o jornalista precisa atuar como um condutor de novela da globo, criando heróis & vilões", criticou com gentileza o lado de cá do front. [e a "luta de classe" no jornalismo, a quantas anda? o roteiro de novela da globo prevê papel coadjuvante ou figurante para jornalistas?] e tentou sintetizar, colocando a galera toda na roda: "não é isso, o que estamos discutindo é o cartorialismo das instituições, que é uma praga, uma doença que pode acontecer em sindicato de patrões ou em sindicato de trabalhadores".

"eles [os 'gestores' da omb] não estão sozinhos. eles estão articulados, infelizmente", lamentou. [infelizmente, só ouço críticas & reprovações à omb, quando entrevisto músicos & músicos & músicos. onde se escondem os apoiadores da omb? quem são eles? por que não ousam dizer seus nomes?]

"sim" à crítica gentil, "sim" também à autocrítica maleável, ei-lo abraçando a causa: "em geral, nós [os músicos] vamos aos palanques dos políticos e esquecemos a democracia no nosso próprio metier. chico buarque [em depoimento virtual no telão] lembrou que em 40 anos esteve em muitas lutas, disse que em 40 anos nunca viu a omb presente em nenhuma manifestação pró-música. esse é um dos problemas da omb, ficam só naquele paternalismo de passar talquinho". [pois é, quais mais profissões se empenharam nas denúncias & lutas políticas gerais do "brasil grande" e se esqueceram de carpir seu próprio quintalzinho? os jornalistas, será? e os advogados da oab, que andam instrumentalizando o caseiro francenildo como um autêntico herói macunaímico, esses manjam de autocrítica? e a sua própria profissão, a quantas anda, camarada?]

"[os gestores da omb] são ilustres, ricos, convivas do poder. e se referem aos músicos que comandam como 'cabelinho', 'bombinha'. o 'cabelinho' não pode ser tratado assim. é como disse zélia duncan no show, não é porque nós estamos sob os holofotes que nós não sofremos sob os holofotes", enfileirou, entrelaçando & reatando problemas que são vividos, embora sob diferentes graus de foco, abstração e ocultamento, pelo 'cabelinho', pela zélia duncan e pelo mano caetano poderoso.

sobre os discursos ensaiados sob os arcos da boemia por artistas de diferentes extratos, neste momento ainda incipiente de reorganização, assim refletiu o camenietzki: "alguns dos discursos são ingênuos, sim. mas é porque nós, músicos, não trabalhamos com o ardil, mas com o coração. antigamente o nome disso era 'vagabundo', mas não é vagabundagem, é inteligência emocional" [sob o guarda-chuva da suposta vagabundagem, quanta gente cabe? músicos populares, músicos eruditos, rappers da perifa, artistas em geral, escritores, acadêmicos nos feudos universitários, operários convertidos em políticos, prostitutas, moradores de rua, esquizofrênicos, párias sociais de todas as sortes & azares? se são esses os "vagabundos", quem seria o nobre? o playboy bon vivant? e a dama, quem seria? a rainha da inglaterra? (copyleft alessandra alves)].

imediatamente, camenietzki passou a divagar sobre a atuação política que vem tendo entre os "fora de ordem": "ser roubado do seu tempo de fazer música é como sair da vagabundagem". silêncio. durante um longo silêncio, camenietzki chora [eu não percebo de início, tento entender em silêncio o silêncio dele, reconheço o choro, tenho vontade de chorar também, seguro as pontas do lado de cá, que é (quase) igual ao lado de lá - se a atuação em prol de si próprio sela o rompimento da sensação interna de ser "vagabundo", parece que vivemos um momento ímpar, especial, não?].

ainda emocionado, ele tenta pôr em palavras a comoção que o apanhou: "recebi a encomenda da minha vida do oboísta harold emert, um concerto para oboé e orquestra. esse trabalho está atrasado há meses, simplesmente porque para fazê-lo preciso me dedicar emocionalmente à música, e não tenho conseguido, não consigo". não consegue porque está na rua, lutando, "vagabundando": "precisamos sair de casa para participar politicamente, zélia duncan disse isso também". [zélia duncan É eduardo camenietzki?, o popular É o erudito?, somos todos iguais nesta noite, nesta tarde, nesta manhã, nesta madrugada?]

[ainda entre colchetes, mas ensaiando uma saída do itálico, agora. se posso me atrever a interpretar-interrogar, olhe só como tendo a entender o desabafo do músico que se politizou: chegam justamente ao mesmo tempo, a encomenda da sua vida e a oportunidade de sua vida para participar politicamente de sua própria vida. colocam-se na nossa frente como encruzilhada, dilema, ponto de inflexão. e então, será preciso optar por só uma das "encomendas"? acalentar um lado significará abandonar o outro? mas, ora, não foi isso que fez o sr. wilson sandoli há mais de 40 anos, quando abdicou de uma carreira de músico para se fazer burocrata nos cartórios da ditadura? o músico enrustido forjou o burocrata violento? estará camenietzki chorando pelo medo de vir a ser no futuro um novo dr. sandoli?, ou estará chorando pela sacação de que, faça o que fizer, aceite a(s) encomenda(s) que aceitar, ele não pode e não quer (e não vai?) reproduzir wilson sandoli? há uma nova história começando?, ou vamos nos contentar em repetir ininterruptamente a mesma velha história de sempre, seja sobre alçapão de ditadura ou sobre chão compacto de democracia? chega de interrogações, por um instante: não vamos, não vamos, não vamos!]

camenietzki emerge do choro aguerrido, cortante. "a sociedade precisa dos artistas, não pode maltratá-los através de um burocrata perverso", arremata/arrebata [estaria por acaso depositando na conta/caixa 2 da tal "sociedade" os maus tratos a que se permite a sociedade musical (ou, por favor, substitua "sociedade musical" pela sociedade formada por sua própria profissão, deve dar na mesma), por omissão, medo, ignorância, inércia, cumplicidade? bem, pode até estar ainda repetindo aquele velho hánito, mas faz isso já partindo para a ação, em plena ação, de fora do armário, não mais "protegido" dentro do armário da inação.] "nós alimentamos uma casta de ladrões, uma máfia gigantesca", clica, referindo-se à omb, ou, provavelmente, não apenas à omb [e eis a chave: "nós alimentamos", "nós" alimentamos, nós alimentamos. e depois reclamamos da vida e das injustiças que nos impõem de fora para dentro, nós, ceguetas de "muita" "valentia", feito bebês à espera de talquinho ou passarinhos no ninho chorando pela próxima minhoquinha que virá pela ação magnânima da própria natureza. basta, passarinho quer voar..., as asinhas balançar..., o rabicho remexer...]

já admitindo uma possível candidatura sua para a gestão de uma sonhada nova omb ("a esta altura já estão me candidatando. mas tem que haver alternância de poder. me proponho a ajudar, mas por um tempo"), ataca mais uma vez: "ele [wilson sandoli] odeia a música e odeia os músicos, senão não estaria fazendo nada disso". [atenção, eis aí: se camenietzki estiver certo, quem "cuida" dos músicos é justamente aquele que "odeia a música" e "odeia os músicos". caso profundo e perturbador para se pensar, não? e você, quem "cuida" de você?]

em tempo, sem itálicos nem colchetes: eduardo camenietzki explicou, ao fim da entrevista, que o discurso que fez no "fora de ordem" começava com a seguinte frase: "não verão as minhas lágrimas". "não chorei lá, mas fi chorar aqui", revogou-se ao telefone, falando a um repórter que não vira suas lágrimas, só ouvira, quase as vira. a música brasileira, e não só ela, parece andar novamente à flor da pele. (e quando eu digo "música", quero dizer o ofício que você faz aí no seu cantinho, seja ele qual for, cê tá me entendendo?) isso é prenúncio para uma nova chuva de criatividade caindo logo mais, com a suavidade de um manso tufão, quer apostar? ademais, camenietzki (se) prometeu que, sim, vai consumar a encomenda de sonhos de seu ídolo oboísta - aí está a chave, reaparecendo a todo instante, em todo buraco de fechadura, em cada fresta ensolarada.