terça-feira, novembro 29, 2005

outros rumos, novos nunos, todos os olhares

foi sob o impacto de remixá-lo às palavras escritas no tópico abaixo (e aos desdobramentos que elas suscitaram - alô, alessandra, vange, samira, alô, rapazes briguentos) que ouvi pela primeira vez o novo disco do blueseiro nuno mindelis, "mindelis apresenta: outros nunos" (gravadora eldorado, 2005). sem nutrir maiores identificações & paixões pelo blues, vi piscarem as luzinhas que pisca-piscavam "outros nunos", e fui.
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pois o blueseiro desta vez concebeu um disco que não é de blues, e esse outro pisca-pisca também reluziu instantâneo, a bordo das seguintes sedutoras palavras escritas pelo autor sobre a obra & encartadas pelo autor no miolo da obra: "é uma necessidade orgânica, urge pari-lo das entranhas mais profundas do meu físico e do meu espírito. mais do que 'outros nunos', este disco diz mais de mim próprio do que todos os outros que até hoje fiz".
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opa, bacana esse treco de dizer mais e mais e mais sobre si, mais que sempre, mais que nunca. quem precisa de tanto segredo?
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pois é. angolano exilado em são paulo há dez mil anos atrás, o autor andou feeling the blues por aqui o tempo todo, até mesmo sob (ele conta no mesmo texto) toneladas de audições de chico, toquinho & vinicius, baden, "os dois carlos, roberto e erasmo, e os novos baianos também". "é evidente a distância entre toda essa realidade e a de uma plantação de algodão no mississippi, embora igualmente as houvesse no úmido e colonizado solo angolando", revela o autor em estado de remix, equiparando em novíssima proporção o que antes sobressaltava e o que antes camuflava.
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do chacoalhado entre tantas fronteiras delicadas, nasceu um disco que desmonta, com muito medo (como confessa já a primeira faixa, "tenho medo", escrita e cantada pelo notório guitarrista de blues), os compartimentos estanques em que ele ainda se continha, quando morava numa identidade fixa, atópica, recortada nas molduras do blues, e numas poucas outras mais.
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muro derrubado, fronteiras afrontadas: as confissões de medo vêm comentadas em rhythm'n'poetry improvisado pelo paulista rappin' hood, que conta que morre de medo de bush e se prepara para entrar rimando feliz por sobre a segunda faixa, "mas que nada", samba esquema novo safra 1963 do carioca jorge ben. angola, congo, benguela, monjolo, cabinda, mina & banzo afro-brasileiro, disse o angolano-paulistano branquelo-blueseiro ao remixar jorge ben & rappin' hood, blues afro-norte-americano & samba afro-brasileiro, onde-quando tudo se mistura.
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"rei dos animais", escrita de punho próprio apesar de suscitar nexo distante com o "samba dos animais" de jorge mautner, é unida, fixada e justaposta a uma influência inesperada: "como dois animais", do pernambucano alceu valença, blues-maracatu, samba dobrado, foi divino brinquedo, e muito mais.
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encravada entre o "rei dos animais" e "como dois aniais", a caravela singra para redescobrir portugal e pedro abrunhosa, "se eu fosse um dia o teu olhar", mansa e melancólica balada, mais banjo, mais banzo, mais banzé.
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e então o blues volta ao disco de não-blues, deslizando pela corrente marítima imensamente mansa de "gosto do jeito", blues de nuno mindelis, anticiclone antitropical. quem vem jantar e cantar desta vez é zélia duncan, folk-blueseira que, antes de outros nunos, já andou se transformando em outras e se espraiando em sambista, em mulata branquela, em cantora do rádio, em deusa de outras ruas.
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lá adiante, "bossa folk", um instrumental solitário do autor, circulará o furacão a bordo de um violão cigano, num banzo flamenco-cigano-judeu tipo andaluzia, tipo leste europeu, num vôo de alma nômade semi-aprisionada, semi-medrosa num mistro de liberdade-incredulidade. bossa esquema novo.
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o samba esquema novo reaparece em mais uma releitura de jorge ben 1963, de "chove chuva", a caravela das índias ocidentais desviando a rota e indo parar no caribe, na república dominicana, em cuba, ave, che.
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pouco antes, antes de se afro-latinizar, o autor enfileirara ironicamente siglas chatas popularíssimas - iptu, ipva, hiv, acm, ibope, mec, pcc, fhc, mtv, mst, spam, cê tá entendendo?
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antes de enfileirar, perguntara, indignado: "ô, cadê o meu disco do tchucbandiones?".
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(intermezzo: tchucbandiones, grupo jovem dos sertões paulistanos, integra o núcleo reco-head de criação, de que também participam jumbo elektro, cérebro eletrônico, labo, grupos novos que transbordam da terra feito pequenos lulinhas sem-multinacional. labo, leia no tópico abaixo, foi a espinha sonoro-dorsal do espetáculo de des-reconstrução de "tropicália ou panis et circensis", dias atrás, aqui em são paulo, desperta, são paulo.)
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faixa 11, "são paulo" deglute tropicálias e jumbelektros para afirmar que, yes, nós have os anos 80. "são paulo" é um rock da banda operária paulistíssima 365, grândola, vila morena, que o autor reformula em sambossa, em bossa folk, em bossa-supla, em elo perdido com os tempos da delicadeza: "é inverno no meu coração", "frio e garoa na escuridão", "sem são paulo o meu mundo é a solidão", "diga sim, que eu digo não", "desperta, são paulo".
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"diga sim, que eu digo não." diga não, que eu digo sim, com quantos nãos se faz um sim?
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"sem são paulo o meu mundo é a solidão", ok? podes aceitar tal subversão?
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"desperta, são paulo." desperta, são paulo (brasil).
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nem falei sobre todas as faixas, ok?
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resguardado por um elenco remixado de parceiros reais e/ou simbólicos (alô, rappin' hood, jorge ben, alceu valença, pedro abrunhosa, zélia duncan, tchucbandiones, 365 etc.), o autor, nuno mindelis, tem então de encerrar o disco. fá-lo-á (fi-lo, porque qui-lo, entende?) com "fica para o próximo disco", canção-confissão-deduração-exposição de si próprio e do elenco bem maior de estrelas que sonhou agrupar em "outros nunos". aqui remixados, os versos de "fica para o próximo disco" falam sozinhos:
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"pedi uma letra ao lenine
ele estava ocupado
tava indo pra lisboa pra cuidar de um outro lado
mas meu sempre obrigado!

disse que precisava muito
me expressar em português
citando a lusofonia ele disse, prescindimos da palavra
eu e você

liguei para o arnaldo antunes
ele ainda não tinha voltado
voltaria só depois acho que era feriado
estava fora até dia dois

liguei para o gavin, o irmão
peguei o número do nando reis
mas ainda não liguei
mas ainda não liguei, não liguei, não
sei lá por que razão

fica para o próximo disco
seja em que formato for
talvez não seja um cd
só uma música no computador

liguei pro walter franco
pedi um texto muito dele
ficou de me ligar de volta
alguém o aguardava, já na porta

escrevi para o erasmo
pra fazer um disco junto
mandei mensagem longa
razoavelmente longa, onde explicava tudo
ou quase tudo...

pedi recado pro alceu
por intermédio de um amigo meu
era pra ele dar uma canja numa música dele mesmo (mesmo)
o celular não respondeu (deu) (eu)

fica para o próximo cd
seja em que arquivo for
talvez não seja mais assim
só um registro no computador

fica para o próximo registro
seja em que arquivo for
talvez não seja um cd
só uma música no computador (dor)

(...)"
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hum, um remix entre nuno mindelis, márcia jezebel, antonio vieira e rita ribeiro, como seria? "meu cu, lenine/ meu cu, arnaldo antunes/ meu cu, nando reis/ meu cu, walter franco/ meu cu, erasmo carlos/ meu cu, alceu valença/ se você não quer, tem quem queira", mas com muito amor & carinho. porque nestes dias de 2005, camaradinhas, antes só & acompanhado do que acompanhado ou do que só.
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êêêita, mundo novo sem fronteira.

segunda-feira, novembro 28, 2005

retropicália: pão, circo & comunidade

daqui a pouco havera de dizer, como diz zeca baleiro, que ultimamente qualquer beijo de novela me faz chorar. mas é que foi tão bonito, tão bonito, tão bonito, bonito de chorar o que aconteceu no palco de encerramento do projeto "disco de ouro"...

era hora de fazer refazenda e festar refestança com "tropicália ou panis et circensis", o disco-manifesto coletivo do longínquo 1968.

desengonçados, os vários corpos se moviam como que explorando curiosos e incrédulos o palco-platéia do lina-sesc-bo-pompéia-bardi: se esbarrando, se estranhando, se evitando, se buscando, se entrosando.

pois nada haveria de mais riquíssimo que o fato de o fantasma tropicalista da coletividade cumulativa (mais que competitiva) estar se rematerializando naquele chão paulista pós-tropicalista. era um grupo heterogêneo e desarmônico de músicos & artistas, e eles grudaram pé no palco o tempo inteiro, o grupo total, o baile todo.

era um fenômeno coletivo.

"tropicália ou panis et circensis" foi remontado na íntegra, por dissonâncias tão retumbantes quanto as de rebeca matta e otto, de ceumar e labo, de lula queiroga e sérgio dias - todas de corpo presente o tempo todo, querendo e se forçando e tendo de conviver e interagir sem o socorro de lances mirabolantes ou laivos burocráticos.

de tanta heterogeneidade e desarmonia, fez-se o resultado harmonioso, homogêneo. conviver é difícil, superar rivalidades é penoso, esperar pelo bem comum que não esmague o indivíduo é duro, querer a alegria individual que componha um belo mosaico coletivo é lenha na fogueira, é suor na testa, é festival de bananas ao vento.

mas eis. eis que acontece. já é concreto. não é mais utópico nem pós-utópico.
e a gente vê que já está no século xxi, que o futuro é bem parecido com o passado e que, mesmo sendo, o passado é mesmo uma roupa que não nos serve mais.

por isso sérgio dias. de terno claro e olhar maroto, o ex-mutante conduziu com batuta invisível o espetáculo. nem ele sabia da liderança que exercia, nem o grupo; mas, juntos, todos nós sabíamos. não haveria comentário melhor para a irreverência necessária a um "tropicália reloaded" versão 2005 que os trajes de sérgio dias, vestido ao mesmo tempo de cantor de mambo, sargento pimenta de beatles, príncipe consorte dalguma donzela ruiva iê-iê-iê e malandro carioca dos arcos da lapa nalgum começo de outro século, já passado - era perfurar sem medo da morte o classicismo, o parnasianismo, era a tropicália saindo da juventude para entrar na história.

não haveria mais completa tradução do que acontecia naquele evento pretérito do futuro que a frase curta e crua do mutante caçula: "na verdade, eu sou caetano veloso".

sim, não era ele, mas só podia ser ele. não seria otto (apesar das trombadas simbólicas com rebeca matta, tensão pernambuco-bahia, macho-caetano trombando assustadiço-agressivo com fêmea-elis, e vice-versa). nem seria ceumar, mais rápida e menos reverente que pai caê na tarefa plástica trans-freudiana de matar a mãe, de trucidar em tripas o "coração materno". nem seria lula queiroga, co-diretor musical hiperativo, frenético no nervosismo de parecer parecido com nhô veloso, não parecendo.

ninguém ali se parecia com caetano veloso. nem com nara leão ("lindonéia" afetava-se ao masculino, se desconstruía, perdia a majestade que nunca quisera mesmo ter). nem com gal costa, que pairava na sombra, no mínimo bipartida entre rebeca e otto e a agressividade e a ternura e o desejo de comungar e a teimosia de rivalizar (será por isso que ceumar e rebeca, tão opostas, pareciam tão irmãs, tão uníssonas, tão coladas, tão coradas?). nem com tom gilberto zé gil, ninguém se parecia. nem ao menos com o cérebro eletrônico que tudo maquinou e tudo orquestrou lá em 1968 e nem sequer foi citado pela trupe rebelada, ensandecida, descabelada: dotô maestro rogério duprat, pai do cello que nhô velô nunca mais abandonô.

(mas manoel barenbein, produtor grandalhão de tropicálias & erasmos carlos & chicos buarques, estava na platéia. palmas para ele que ele merece!)

tudo se sublimava e voltava a se condensar na ausência dos mutantes (sérgio dias era prova inconteste) e na ausência de torquato neto. sem essa de tempos trágicos e de doces ditaduras. e disso a alegria juvenil dos garotos do grupo labo era prova dos nove.

marcelo ozorio, um dos hermanos do labo, dividira com lula queiroga a feitura da refazenda, o prazer da refestança, a confecção do realce por sobre os arranjos congelados no ar & no tempo de mr. duprat. e ficou tão bonito, tão bonito/a, tão bonita a anarquia compenetrada e descompromissada com que os arranjos se decompuseram e se recompuseram em público.

eram as percussões-acústicas-rita-lee de otto e ceumar, eram as distorções-eletrônicas-arnaldo-baptista de sérgio dias, eram os músicos todos-juntos-reunidos-numa-pessoa-só, ou melhor, o inverso disso.

sobretudo, em tal orchestra klaxon, os antimutantes eram ozorio, arthur joly, daniel setti, fabio pinc e gustavo abreu. alegria estampada no rosto-corpo (alô, guab!), eram eles que exorcizavam a sempre-viva tropicália, chega desse papo careta de mito.

enquanto isso (e por isso), sérgio dias já podia executar tranqüilamente os acordes do hino nacional brasileiro, sem que tal rebeldia eletrônica levasse nenhum general a remeter mais ninguém a férias nevadas no exílio ("eu sou o verdadeiro caetano", ele não disse? "caetano e gil curtiram londres, paris", mór legal, ele disse, o serginho, cabeludo danado).

taí, não dá mais para segurar, tá tudo brotando em solo fértil de chuvarada, céu-mar azuis e nova floração. os esqueletos estão chacoalhando (fora do armário), o século novo está saindo do baú (da in-felicidade). se a "retropicália" deste domingo (e deste 2005) vingar e prosperar, o xxi começará sendo o século em que a música (a arte, a cultura, a política, a vida) é coletiva, em que cada indivíduo rege de seu nicho uma formosa comunidade, em que todo solitário se esbalda na mais alegre companhia ilimitada.

sábado, novembro 26, 2005

demora, melhora

no show de lançamento em são paulo do cd "toda cura para todo mal", do pato fu, fernanda takai parou a balada e a música por alguns segundos, para tocar outro som: advogou a causa das mulheres contra a violência doméstica, mencionou estatísticas assustadoras, citou que morrem mais mulheres disso que de câncer, pediu adesões. foi a parte menos aplaudida do show. mas liga, não, fernanda, que tava todo mundo escutando, até mesmo quem fazia cara de paisagem diante do recado.
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já para os lados da arte propriamente dita, houve a apresentação da mais nova revelação do pop nacional, o adorável astronauta-miniatura flutuante tecnológico com mãos de fernanda takai e voz tipo john ulhoa convertida em desenho animado, em robozinho, em computador, em internet, em mp3, em disco sem jabá, em zé rodrix & "eu quero uma casa no campo": "busquei felicidade/ encontrei foi maria/ ela, pinga e farinha/ e eu sentindo alegria/ café tá quente no fogo/ barriga não tá vazia/ quanto mais simplicidade/ melhor o nascer do dia".
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já para os lados da arte propriamente dita, fernanda contou que "uh uh uh, la la la, ié ié!" é inspirada em jackson 5ive. e que "agridoce" é inspirada em roberto & erasmo carlos. e que tem gente que resmunga, "se é para homenagear, por que não gravaram logo uma de roberto & erasmo?", e que ela mesma se pergunta por que é que a gente faz tantos contornos para chegar aos núcleos dos assuntos, por quê?, "por que vocês não sabem do 'lixo' ocidental?". mas liga, não, fernanda, boba, que "devagar também é pressa" e em 2005 é mais vívido e gostoso a gente manter robertão & erasmão guardados dentro do coração e, "todo dia é dia de viver", ir se emocionar hoje mesmo ouvindo fernanda cantar os versos agridoces de john que cutucam que "quando acordo cedo/ de uma noite sem sal/ sinto o gosto azedo/ de uma vida doce/ e amarga no final".
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eu, pelo menos, me emocionei, até chorei.

quinta-feira, novembro 24, 2005

nos domínios (públicos? privados?) da mtv

série jabá, volume ii, "carta capital" 366, 2 de novembro de 2005. você consome mtv, você é moderno? você está atento para as marcas que a mtv divulga por trás de música e cultura para a nossa linda juventude, ou você às vezes leva gato por lebre ao consumir mtv? você acha que a mtv, mesmo sendo legal e cool e antenada e "do bem" como é, talvez aja às vezes movida por interesses muito mais industriais e monetários que musicais e artísticos?

[ao final do texto, copio do site da "carta capital" as 14 perguntas feitas ao presidente da mtv, andré mantovani. que mandou avisar que não ia respondê-las. a resposta a todas elas, portanto, é a mesma: nonononononononononono nonononononononononono nonononononononononono nonononononononononono]

NOS DOMÍNIOS DA MTV

Por Pedro Alexandre Sanches

No ambiente quase sempre conservador da televisão brasileira, a MTV forma um nicho de resistência para a música jovem alternativa, independente, rebelde, certo? Mais ou menos, se se levarem em conta os argumentos levantados pela comunicadora gaúcha Ana Paola de Oliveira, no estudo MTV Brasil: O Mercado Comercial da Música Jovem, resultado de seu mestrado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS).

A linha condutora do trabalho é a demonstração de como, por detrás da imagem de contemporaneidade e apoio aos novos da rede musical de tevê, se esconde um alicerce que segue à risca os ditames da indústria cultural não só brasileira, mas transnacional.

Ela utiliza uma amostragem de programação musical coletada no ano passado nos programas de videoclipes e/ou paradas de sucessos Disk MTV, Central MTV e Top 20 Brasil. E verifica um predomínio da ordem de 90% de músicas de artistas pertencentes a BMG, EMI, Sony, Universal e Warner, as cinco grandes gravadoras multinacionais instaladas no Brasil (e hoje reduzidas a quatro, pela fusão entre Sony e BMG).

Sem apresentar provas de que exista entre a MTV e as grandes corporações que sustentam sua programação musical uma contaminação promíscua, ela se arrisca ainda assim a utilizar o termo "jabá" para descrever traços viciados da indústria musical e da MTV em particular. "Vi que jabá não é só uma questão pessoal, de presentes e agrados, mas que mudou para uma questão mais corporativista, que chamam de marketing promocional. Na MTV, é uma coisa mais interna, dentro de suas próprias alianças empresariais", afirma.

"Hoje, a tática das empresas é juntar diversas áreas e dividir custos, benefícios, lucros, assessorias que acabam desaguando para dentro de suas próprias estruturas", ela continua, usando como exemplo o projeto Acústico MTV, quase sempre uma sociedade entre a MTV e gravadoras multinacionais, para relançar em CD, DVD e programa televisivo versões ultracomerciais, desplugadas e ao vivo, de sucessos de artistas tão variados quanto Gilberto Gil, Rita Lee, Roberto Carlos, Gal Costa, Titãs, Cássia Eller, Marcelo D2, Engenheiros do Hawaii...

No texto, Ana Paola se empenha em caracterizar uma estrutura de oligopólios que interligam em redes de interesses convergentes vários representantes da indústria cultural global. Lembra que a MTV Brasil é resultante da associação entre o Grupo Abril e o grupo norte-americano Viacom, que em www.viacom.com se auto-intitula "companhia global de mídia" e incorpora redes de tevê (CBS, MTV, Nickelodeon), cinema (Paramount), rádio, editoras e parques de diversão. E menciona alianças entre a Viacom e os grupos Warner, EMI, Sony...

A MTV afirma que 70% da filial local pertencem ao brasileiro Grupo Abril e 30% são da estrangeira Viacom, "como nossa legislação pede". No mais, a rede musical recebeu de CartaCapital uma cópia do trabalho acadêmico e declarou que não se pronunciará sobre ele. Tampouco respondeu a uma lista de 14 perguntas enviadas como tentativa adicional de diálogo, entre elas questões como as que se seguem:

"Na MTV, a programação e o departamento artístico ficam subordinados a acordos feitos pelo departamento comercial, como afirma a autora?"; "o que a emissora diria sobre a conclusão de Ana Paola, de que 'o discurso democrático da MTV é uma abstração, pois se trata de um canal comercial, e naquilo que é sua essência determina padrões, limitando a difusão e o acesso à diversidade cultural'? Essa crítica de cunho sócio-cultural seria disparatada, ou teria algum fundamento?" (leia a íntegra das perguntas em www.cartacapital.com.br).

Já que as perguntas restam sem ser respondidas, volta Ana Paola, justificando o campo de abrangência da questão: "É um processo pesado, que está limitando a liberdade de expressão dos artistas. Apesar de os gêneros musicais apresentados na MTV serem um pouco diferentes um do outro, o Charlie Brown Jr. cai e vêm os Detonautas, Cássia Eller morre e aparece Pitty, e assim por diante. Não se muda, não se pratica o que chamo de trans-estética, quebrar o que já está pronto".

O estudo demonstra que, com raras exceções, quem não pertence a uma grande gravadora não consegue entrar nas programações de "sucessos", nem das rádios comerciais nem tampouco da MTV, aparentemente segmentada, elitizada e menos focada nas medições de audiência.

Também produtora de bandas no Rio Grande do Sul, Ana Paola ainda aborda na dissertação o tema do jabá em rádio, reunindo depoimentos de profissionais como Fábio Massari, que já foi radialista e VJ da MTV, o radialista local Mauro Borba e diretores de gravadoras e músicos gaúchos que falaram desde que protegidos pelo anonimato.

Segundo Massari, "o que é sabido são as gravadoras comprarem equipamentos ou carros para uma rádio, em troca da veiculação dos seus artistas" e "tem uma sutil diferença entre você oferecer uma grana ou trocar favores".

O diretor artístico anônimo de gravadora diz que "o brabo é quando se chega numa rádio em São Paulo e eles pedem 20 mil reais para tocar duas vezes por dia música".
Para Borba, "as gravadoras acenam com presentes caros como passagens aéreas, mas nunca me condicionei a tocar uma determinada música" e "já fui a Londres ver o Oasis por conta da gravadora, mas não me comprometi em fazer nada".

De volta à MTV, Ana Paola também disserta sobre outro hábito arraigado na emissora (e na tevê de modo geral), de implantar diversas modalidades de publicidade dentro da programação editorial e musical, como inserções de marcas de telefone celular na "brincadeira" em certos programas ou distribuição de prêmios aos espectadores, por exemplo.

Sobre essa última, diz Massari na dissertação: "É uma troca de favores editorial. Quem tem mais banca o presente mais legal. Isso faz parte do capitalismo e é inevitável. A idéia é pensar quem consome música e esse tipo de prêmio está valendo no grande jogo".

Assim, critica a autora, uma imensa legião de artistas descolados da indústria fonográfica multinacional simplesmente fica de fora, ou então é marginalizada dentro de nichos bastante específicos e restritos dentro da MTV.

Um caso desses é o atípico Acústico MTV Bandas Gaúchas, que foi ao ar neste ano, reunindo num só programa Wander Wildner, Ultramen, Bidê ou Balde e Cachorro Grande, de alcance popular ainda limitado e/ou pertencentes ao universo alternativo. O Cachorro Grande é da gravadora independente Deckdisc, que tem tido presença crescente na programação da MTV, inclusive emplacando prêmios importantes à jovem roqueira Pitty nas duas últimas edições do prêmio Video Music Brasil.

O produtor da Deck (e filho do dono da gravadora) Rafael Ramos também dirige projeto recentíssimo, que ostenta importante vulto histórico e documental, o MTV Especial em que os músicos do grupo Capital Inicial voltam às próprias origens na banda punk Aborto Elétrico, que era liderada por Renato Russo (1960-1996).

"Tem sempre essa coisa das amizades. É gente ganhando muito lá dentro e do outro lado uma miséria", avalia Ana Paola, que, no entanto, não evita visão também autocrítica: "Os alternativos são as pessoas que estão fora. Acredito que muitos deles estão fora e gostariam de estar dentro, assim como há gente bacana no lado de dentro, mesmo que faça esquema".

Paira no ar o convite feito à MTV pela autora, para que a emissora também adentre os territórios da autocrítica, das ponderações equilibradas entre retrocessos artísticos e êxitos comerciais (ou vice-versa), da reflexão sobre as grandes desigualdades brasileiras, do debate democrático.

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Abaixo, as perguntas que a MTV não quis responder:

1. A MTV reconhece como válidos os resultados da pesquisa da dissertação de Ana Paola de Oliveira, que verifica por amostragem a forte predominância das multinacionais em sua programação? A estimativa dela é de que "90% dos artistas exibidos com maior destaque estão vinculados às empresas transnacionais do disco". A MTV reconhece a pesquisa e a estimativa da autora? Se reconhece, por que é assim? Se não, como é efetivamente distribuído o cenário musical total do Brasil pela programação da TV?

2. A autora erra ao afirmar que 50% das açõees da MTV Brasil pertencem ao Grupo Abril e que os 50% restantes são do grupo norte-americano Viacom? Como é, de fato, essa divisão?

3. Seja por intermédio da Viacom ou de outras ligações institucionais, a MTV participa de relações interligadas com multinacionais do disco, que justifiquem a posição da autora, de que políticas de alianças entre grandes empresas trariam, no limite, questões da música brasileira para o território de "ações entre amigos"?

4. Mesmo sendo crescente até mesmo em eventos centrais como o VMB, a MTV não considera procedente essa avaliação crítica de que o universo independente tem na rede que supostamente o representa uma participação muito menor do que sua participação efetiva na sociedade brasileira?

5. O que a emissora diria sobre a conclusão de Ana Paola, de que "o discurso democrático da MTV é uma abstração, pois se trata de um canal comercial, e naquilo que é sua essência determina padrões, limitando a difusão e o acesso à diversidade cultural"? Essa crítica de cunho sócio-cultural seria disparatada, ou teria algum fundamento?

6. Sobre a avaliação da autora de que "o público, a produção artística musical, a indústria e os meios de comunicação criaram um vínculo, um grande nó, que se configura numa dependência histórica, social e econômica", o que a MTV teria a dizer? A interdependência entre MTV, gravadoras, artistas consagrados e grande imprensa musical/televisiva é algo saudável, ou geraria também em seu bojo efeitos negativos?

7. Com a prática de se comprometer mais com o mercadão fonográfico multinacional, a MTV Brasil colabora simbolicamente para que sejamos um dos países líderes em desigualdade social no mundo? Esse dado não contrasta com a imagem de modernidade da MTV?

8. A que se deve a predominância de Sony & BMG, Universal, Warner e EMI na programação e nas premiações da MTV?

9. Na MTV, a programação e o departamento artístico ficam subordinados a acordos feitos pelo departamento comercial, como afirma a autora?

10. Por que, entre as independentes, a Deckdisc vem galgando posições rápidas e mais pronunciadas que as de outras gravadoras independentes junto à MTV? Apóio essa pergunta/afirmação na constatação da presença constante e premiada da Deck no VMB, da presença de Rafael Ramos como produtor de um "MTV Especial" (o "Aborto Elétrico" do Capital Inicial) e assim por diante.

11. O "Acústico MTV" dedicado às bandas gaúchas (conterrâneas, pois, da autora da tese) rompeu uma tradição do formato, unindo num mesmo especial quatro grupos que não são veteranos, extremamente populares e/ou consolidados, e que tampouco possuem contrato com multinacionais. A que se deve essa postura diferenciada nesse caso? É uma exceção, ou indica possíveis novos rumos para a MTV?

12. O texto usa por vezes o termo "jabá", embora não ofereça evidências ou provas de que a MTV recorra a esse expediente. Por outro lado, trata o "jabá" como "uma prática institucionalizada no início do século XXI, dentro da lógica capitalista, impondo conteúdos midiáticos, relacionando esse processo aos oligopólios mundiais e à circulação de produtos culturais". Como a MTV se posiciona diante dessas classes de conceito, tanto o "jabá" quanto as "promoções institucionalizadas de marketing"? A MTV as pratica?

13. Tornando mais específica a pergunta anterior: na MTV há contaminação de espaço editorial por conteúdo publicitário? Em caso de resposta negativa, como a rede faz para evitar relações promíscuas entre os dois setores?

14. Por fim, seria possível uma avaliação geral da MTV sobre o trabalho acadêmico que ela motivou? É positivo ou negativo, para a instituição, que sua existência e sua atuação motivem a reflexão e o estudo da academia?

segunda-feira, novembro 21, 2005

como viver sem jabá?

ei, vamos brincar de ciclo de debates? vamos debater um pouquinho mais sobre a matéria (carne, osso, sangue música & outras coisinhas mais) de que somos constituídos?

começo a republicar a partir deste momento uma seqüência de reportagens que, aqui na intimidade da redação, acabamos tratando como "série jabá" (não são necessariamente reportagens sobre jabá, mas sim sobre indústria cultural, sobre modelos viciados e arcaicos, sobre crise de formatos, sobre necessidade de mudança de modelos, formatos, hábitos, crenças, crendices - algo que podemos, se a comunidade topar, chamar "carinhosamente" de... "série jabá").

são gotas num oceano nada pacífico que a imprensa e a mídia não sabem, não conseguem, não querem, não gostam de visitar [porque seria autocrítica, será? não se usa vestir autocrítica no lado de baixo (de cima, de frente, de lado, de costas) do equador?]. mas o oceano é revolto, e isso é de conhecimento de todos, porque afinal de contas todos somos peixes fazendo "glup" na violência das ondas deste enorme oceano planetário também conhecido como "o baile todo". pois então.

série jabá, volume i, "carta capital" 365, 26 de outubro de 2005. quem na face do planeta conseguiria sobreviver sem jabazinho, caixinha 2, mensalinho, suborninho, chantaginha, favorzinho, esmolinha, troca-troca, esse pinga-pinga nosso de cada dia que de gotinha em gotinha transborda um marzão?


COMO VIVER SEM JABÁ
A Ipanema FM, que diz não depender de "ajuda", revela por contraste como funcionam os conluios entre rádios e gravadoras

Por Pedro Alexandre Sanches

Perante os gravadores ligados, dez entre dez militantes da indústria musical brasileira soletram a mesma cantilena, pronunciando cada letra com ênfase nervosa: o jabaculê não existe, não existe, não existe. De gravador ainda ligado, CartaCapital resolveu subverter a ordem dos fatores e mudar o foco da questão: seria possível sobreviver de música no Brasil sem apelar para o "artifício" do jabá?

A resposta "sim" foi ouvida lá no extremo sul do país, em Porto Alegre (RS). É onde funciona a Rádio Ipanema FM, que, segundo seu atual diretor de programação, Eduardo Santos, sobrevive e vai bem, obrigada, sem depender de conchavos com gravadoras. "A Ipanema funciona de modo completamente diferente do das outras rádios. O que a gente vende é intervalo comercial, não espaço musical", ele afirma.

Traduzindo em palavras que jamais são pronunciadas por executivos de gravadora, radialistas e comunicadores de tevê, o que ele quer dizer é que a Ipanema costuma bloquear a invasão promíscua de sua programação musical por material de propaganda enrustido. É nisso que, note bem, a Ipanema seria "completamente diferente das outras".

Eis aí o tal jabá. É a negociação de espaços editoriais (que supostamente seriam reservados ao livre arbítrio do gosto de cada disc-jóquei) para que as rádios amplifiquem a veiculação de produtos musicais que as gravadoras querem, precisam "estourar" na parada de sucessos.

Do conluio, gravadoras de um lado e rádios do outro se acostumaram a impingir aos ouvintes a (falsa) impressão de que estão ouvindo a música "x" exclusivamente porque ela é ótima, o autor é excelente, o intérprete é talentoso...

Numa entrevista à Folha de S.Paulo em 2003, o executivo aposentado André Midani, ex-presidente das multinacionais Philips e Warner, assumiu que praticara o jabá naquelas casas, disse que acredita que nos últimos anos o esquema "piorou" e lembrou que as negociações costumavam acontecer em formatos variados, "dinheiro, drogas, prostitutas".

Gravadores ligados, os dez entre dez militantes citados no início refutam o termo "jabá", em favor de outros como "projetos de marketing" ou "verba de promoção", que viriam com nota fiscal, oficializados por contratos comerciais. Mas Eduardo Santos pergunta: "Por que uma rádio tocaria cem vezes por dia a mesma música, se não existe jabá? Se isso é promoção, é a promoção da estupidez nacional".

Ele reporta outro fator distintivo da rádio em que trabalha: "Algumas gravadoras ainda nos enviam CDs, mas a maioria nem manda mais. A gente compra, gasta uns R$ 500 por mês em disco. Mesmo quando mandavam milhares de CDs, eram singles promocionais, as músicas que chamamos 'as confirmadas'. Se tocássemos essas seria o fim, nossos ouvintes não aceitariam".

Traduzindo. No mercado fonográfico como está constituído hoje, as gravadoras produzem álbuns de artistas e elegem neles uma música que deverá ser veiculada no rádio e na tevê e que, por isso, recebe o nome mimoso de "música de trabalho". Os singles com as "confirmadas" direcionariam a liberdade de escolha nas rádios. A dúvida: por que não se ouvem radialistas reclamando da imposição arbitrária de "músicas de trabalho" por gravadoras?

Mais uma peculiaridade da Ipanema é que ela não está incluída nos sistemas de monitoramento de programação, que são contratados por gravadoras. "A informação que temos é que as gravadoras nos tiraram. Por que estamos fora das pesquisas de audiência?", pergunta-cutuca o radialista.

Leiam-se as entrelinhas: são as pesquisas sobre as músicas mais tocadas nas rádios que confirmam ou não o "sucesso" das "confirmadas" das gravadoras. É de se supor que, uma vez que não segue o coro dos contentes, uma rádio como a Ipanema poderia "desvirtuar" o favoritismo "confirmado" das melhores bandas de todos os tempos da última semana. "Assim, a indústria fonográfica dita como vai ser a cultura do povo. Nós conseguimos atuar no mercado publicitário de modo que a rádio fatura tri-bem, sem estar no topo da audiência. Entre os jovens, a Ipanema fica entre a quarta e a quinta colocação. Quem está no topo da audiência é quem toca a mesma música cem vezes por dia", insinua Santos.

Eis algumas das fórmulas "excêntricas" de sobrevivência da Ipanema: faz permutas com lojas de CDs que têm interesse em anunciar na emissora, mantém contato direto com selos estrangeiros, recebe e executa versões em MP3 de músicas que as próprias bandas mandam, investe em programação "não-confirmada"...

"Temos picos de audiência de 25 mil ouvintes por minuto. Os picos da Rádio Cidade (uma das líderes em Porto Alegre) chegam a 100 mil ouvintes por minuto, num programa de funk carioca", compara. A Ipanema ganhou notoriedade nacional após se tornar uma das primeiras a transmitir pela internet (http://www2.uol.com.br/ipanema/). Em em setembro, segundo o diretor de programação, houve 1,5 milhão de acessos.

Outro profissional que tem avaliações cortantes sobre o funcionamento da indústria musical é o radialista Luiz Antônio Mello, hoje repórter cultural da Band News, que foi co-fundador da célebre experiência alternativa da Fluminense FM, a "Maldita", nos anos 80.

"Hoje usam mil argumentações, tentam usar um verniz ético e fazem mau uso da palavra promoção. Não tolero jabazinho", ele diz, confirmando pelo contra-exemplo a fragilidade da formulação "não existe jabá".

Mello diz que, sim, é possível resistir. "Eu tenho respeito pela música e mais ainda pelo ouvinte. O cara está confiando em você pelo aval que você dá, você vai corromper isso? Não trabalho em rádio com jabá, boca de fumo, contrabando, puteiro. Tenho um nome bacana no mercado e me tratam com respeito."

"O jabá virou um AI-5, ele fecha todas as portas. É ditadura. Começou no escalão de baixo, nos radialistas que ganhavam mal e queriam complementar o salário, e hoje já subiu o elevador social. Se o dono da rádio dissesse 'eu quero esta rádio limpa', pronto, acabou o jabá", cutuca.

Denominando o meio de rádio como "o patinho feio da mídia" ("existem muitas rádios honestas, muitas", sublinha), Mello procura unificar a questão: "O problema do Brasil é um só, e único. É a corrupção, em todas as escalas e indústrias. O raciocínio é do tipo 'se Brasília está o que está, por que não eu?'".

O posicionamento dos artistas, geralmente silenciosos diante ao tema-tabu, é motivo de controvérsia. A radialista e pesquisadora gaúcha Kátia Suman, que prepara dissertação de mestrado em torno do tema jabá, coloca logo o ministro da Cultura no centro da roda: "No jornal Zero Hora, Gilberto Gil disse recentemente que a promoção musical com verbas de marketing é 'absolutamente legítima'. A fala do ministro está na contramão do movimento que rola nos Estados Unidos. Enquanto lá o assunto rende processos nos tribunais contra as gravadoras, aqui o próprio ministro da Cultura reconhece como legítimo o procedimento".

Para Eduardo Santos, "os próprios artistas são coniventes. Neguinho mesmo diz que se não paga jabá não toca. Fica só o Lobão protestando, ninguém falar porque é difícil provar qualquer coisa". Decifrando, trata-se aqui de um fantasma costurado entre o lucro que o jabá traz aos próprios artistas (especialmente os do "primeiro time") e o medo de que a atitude tipo Lobão redunde em imagem "queimada", represália, isolamento.

Ainda assim, Luiz Antônio Mello defende que um movimento de combate teria de começar a partir deles, dos artistas – mas não necessariamente dos medalhões. "80% dos artistas não tocam nas rádios. Esses é que deveriam pressionar, se reunir, dar nomes, fazer uma denúncia formal, ir ao ministério."

Enquanto isso não acontece, Mello oferece outro contra-exemplo: conta como costuma dar sua colaboração por dentro, olhando para sua própria profissão de modo localizado e limitado, mas sincero e irreverente. "Se você está numa pizzaria com um colega radialista jabazeiro, você mete o pau no jabá, deixa o cara constrangido de tal maneira que não é possível. Ele começa a implicar, diz 'você é idealista'. Eu respondo 'não, idealista não, você é que é ladrão'", ri, o gravador ligado e rodando feliz.

segunda-feira, novembro 14, 2005

o maestro invisível

sabe o mazzola? num sabe? então ói.

[copyright from carta capital 364, de 19 de outubro de 2005.]

O MAESTRO INVISÍVEL
O produtor semi-anônimo que vendeu cerca de 50 milhões de discos

Por Pedro Alexandre Sanches

Haveria algum traço comum a unir Elis Regina em Como Nossos Pais (1976), Raul Seixas em Ouro de Tolo (1973), Jorge Ben em África Brasil (1976), Gilberto Gil em Realce (1979), o especial musical infantil Arca de Noé (1980), Milton Nascimento em Coração de Estudante (1980), Chico Buarque e Didi Mocó em Os Saltimbancos Trapalhões (1981), RPM em London, London (1986), Chico César em Mama África (1996), Ivete Sangalo em Canibal (1999)?

A priori, parece uma coleção de alhos & bugalhos, mas há, sim, um traço de união entre todas essas manifestações disparatadas de música: o cimento que dá liga chama-se Marco Mazzola, o produtor por trás de sucessos artísticos-comerciais que, juntos, venderam estimados 50 milhões de discos.

O perfil de discrição quase absoluta faz com que os brasileiros assoviem as canções que produziu sem nem suspeitar que ele existe. "Nunca quis botar meu nome na mídia por causa disso, nunca procurei esse lado para me valorizar", justifica o próprio semi-anonimato. Mas o ângulo de visão é de quem acumula histórias de bastidor aos borbotões – e, sim, está colocando-as num livro em fase de escrita.

Várias dessas histórias pertencem ao imaginário de Raul Seixas (1945-1989), o primeiro artista tornado astro nacional sob a direção de Mazzola e a tutela do mítico executivo André Midani, na antiga Philips.

Suas atribuições, ele conta, excediam em muito o campo musical. "Raul estava ganhando muito dinheiro, nem sabia quanto, desviava toda a grana para o consumo. Fui avaliar quanto tinha por receber e acabei comprando um apartamento para ele. Raul tomou um susto, ficou todo me abraçando. Fui vendo, cada vez com o pé mais atrás, ele acreditar muito naquilo de ser um guru, se levar a sério demais, ficar à disposição da droga."

Mas diz que Raul foi um caso de exceção: "Nunca deixei que os artistas entrassem na minha privacidade, nem entrei na deles. Nunca achei que fosse preciso ser amiguinho para conquistar respeito".

Foi numa construção que resgatou Belchior para a MPB, em 1976, sob mediação de Elis Regina (1945-1982), que incluíra Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida no show Falso Brilhante. "Soube que Belchior estava morando numa obra em São Paulo, deixavam-no dormir no barracão dos operários. Fui buscá-lo, produzi um disco dele em que ninguém na Philips levava fé." Elis estourou as duas canções e Alucinação, de Belchior, foi aos topos de vendas.

Aos 56 anos, o carioca de São Cristóvão que cresceu numa casa de cômodos "barra-pesada", convivendo com um pai forte "que tinha de impor ordem na porrada" (e que construiu as portas do Teatro Municipal do Rio), suplanta a aversão a dar entrevistas por conta da compilação MPBZ – 30 Anos, 30 Sucessos, que acaba de lançar por seu selo independente, MZA, fundado em 1995. O CD duplo é, por si só, uma mudança de parâmetro: dedica-se a celebrar, pelas vozes da MPB, a obra discreta de... Marco Mazzola.

"Cheguei a este ponto de fazer um disco para mostrar ao Brasil que atrás do artista existe alguém trabalhando. O produtor no Brasil não é uma pessoa respeitada, basta ver a remuneração. Qual produtor de nome pode deixar de trabalhar 24 horas por dia aqui?"

Rompe a discrição também ao lembrar de quando introduziu sons discothèque e músicos estrangeiros em Realce, de Gilberto Gil, e da avalanche de críticas que isso provocou. "O crítico escreve sem saber tudo o que a gente passa, quatro meses sem dormir, tentando ajudar o cara a se reerguer. O disco sai e você é mutilado pelos caras da mídia", queixa-se, 26 anos mais tarde.

Outro momento que trata como de ousadia é o de Rádio Pirata ao Vivo (1986), do RPM. "Quando vi o público gritando nos shows do grupo, achei que devia repassar aquela emoção para o disco. Todo mundo foi contra na gravadora", evoca, citando a venda de 2,7 milhões de cópias e a invasão de Acústicos MTV e correlatos que infestaria o Brasil dali por diante.

Se não demonstra anotar os efeitos deletérios da escalada pelo lucro e da banalização dos "ao vivo", nem por isso se considera dócil aos ditames de mercado: "Quando produzi o encontro entre Paul Simon e o Olodum, todos me procuraram para fazer música baiana. Fui na contramão, fui de Chico César, Zeca Baleiro, os malditos".

Mesmo tratando Baleiro como "o Caetano dessa geração", usa de certa acidez ao descrever seus rebentos dos anos 90: "Eu queria ter feito os Tribalistas antes, com Zeca, Chico e Rita Ribeiro. Tentei, não deu. Eles são da mesma falange, daí acham que um está roubando o pedaço do outro. Teria de ser os Pugilistas".

O profissionalismo de hoje é o reflexo invertido do amadorismo dos primeiros e altamente criativos anos. Técnico de som desde a adolescência, foi atirado à produção com Atrás do Porto Tem uma Cidade (1974), de uma Rita Lee recém-afastada dos Mutantes. "Midani sabia que Rita precisava de um cara com pé no chão para organizar a casa. Eu e ela não nos conhecíamos, tivemos de negociar várias coisas", suaviza. Entre os resultados, sobraram muitas brigas, a célebre melô pop Menino Bonito.

A voz de Mazzola embarga-se quando lembra do primeiro encontro com Tom Jobim, em Los Angeles, quando ainda era técnico de som. "Me apresentei, ele disse 'já ouvi falar de você, menino' e disse que eu podia ficar no apartamento dele, se precisasse. Fui, mas não dormi. Não entrei na intimidade dele. Poderia, mas não fiz. Três anos depois, Urubu foi um dos primeiros discos que gravamos na Warner."

No início dos anos 80, participou da chegada da multinacional Ariola ao Brasil, para a qual levou Chico Buarque e um comboio de artistas de pleno sucesso à época. Data dali o advento do projeto Arca de Noé, com músicas de Vinicius de Moraes, que revigorou a geração MPB perante ouvintes de várias gerações. "Foi muito importante, conquistamos as crianças com um disco cantado por artistas de que os pais gostavam. Vendeu 1,5 milhão de cópias", assinala, de olho nos números.

Mas em que consistiria a atividade de produtor, segundo Mazzola? "Acredito na coisa do decorador. Quando vai decorar uma casa da música, o artista pensa em muitas cordas, sopros, mas, às vezes, não é nada disso", diz, exemplificando com o futuro arrasa-quarteirões melado De Volta pro Aconchego (1985). "Dominguinhos tocou a música para Elba Ramalho em ritmo de forró. Opinei que não era um forró, sugeri o formato de canção. Às vezes, a decoração pode ser mais clean, não precisa colocar tantos jarros. Ney Matogrosso não queria gravar Homem com H (1981), porque era um forró. Eu o convenci."

Como braço direito de André Midani na Philips e na Warner, deve ter conhecido de perto os mecanismos de "convencimento" de emissoras de rádio e tevê sobre o potencial comercial de suas produções, que Midani nomeia abertamente de "jabá". Mazzola tergiversa, prefere descrever modelos alternativos de divulgação que diz adotar nesta fase independente. "Não existe espaço dentro do rádio, de que adianta ficar pagando jabá? Temos saído com Zeca Baleiro pelas principais cidades do Brasil fazendo noites de autógrafo e pocket shows. Na Fnac de Brasília, vendemos 1.100 CDs numa noite."

Na MZA, que hoje concentra esforços também no sambista Martinho da Vila, ele começou recentemente a prestar consultoria para jovens artistas: "Faço uma consulta com a pessoa, ouço o que ela trouxe, vejo onde está errado, dou conselho. É mais para ajudar, o preço é de consulta de médico", brinca.

Ao proclamar persistente apego pelo novo, faz lembrar Elis Regina, de quem produziu álbuns históricos entre 1973 e 1979: "A maior preocupação dela era com o novo".

Define-a contando uma cena dos dois, no carro, o sucesso da temporada tocando insistentemente no rádio. Era Nosso Estranho Amor (1980), que ele produzira como um dueto entre Caetano Veloso e a jovem Marina Lima. "Falei 'ouve essa menina', orgulhoso. E ela: 'Pô, você está comendo essa mulher?' Elis era engraçada, tinha esse lado de criança. Produtor tem de ter cuidado com esse tipo de coisa, não dá para produzir Gal Costa e ficar falando dela com Simone a todo momento."

quarta-feira, novembro 09, 2005

vestidinho vermelho, vento na campina

lado a do lado a

inverno em são paulo à beirada do verão, marina lima fechou-se na esquisita pirâmide chamada auditório ibirapuera e fez um verão.

inverno caminhando para o final, a voz tão visada encorpando devagarinho, marina lima olhou para trás e tentou vislumbrar seus primórdios, no espetáculo multimídia "primórdios".

num ponto isolado do espaço entre o inverno e o verão, entre quando começava a haver laurie anderson e quando começava a existir tetine, marina lima estreitou elos femininos (com a diretora monique gardenberg) e elos masculinos (com o cenógrafo isay weinfeld, com o sempre irmão antonio cícero) e compôs um espetáculo de meia-estação entre o datado e o pós-moralista, entre o rock e a eletrônica, entre a eletrônica datada e o rock pós-moralista.

dividiram em dois, os criadores do evento, o imenso espaço de palco da obra faraônica de oscar niemeyer, aquele monolito, esse buda nagô tupi, aquele cacique-vodu touro-sentado.

no (imenso) lado esquerdo, a platéia acompanhava os flashes de imagem e os elementos femininos da justaposição - telas de projeção, globos estroboscópicos, o time imponente de mulheres cenográficas que entravam ora portando clássicas perucas fluo, ora exibindo cyber-nudez performática.

no (enorme) hemisfério direito, o público podia contemplar os elementos de som e os nutrientes masculinos do encaixe - centralizados na banda localizada numa ilha quadrada que boiava ancorada à deriva, integrada (como de praxe) exclusivamente por músicos (e, desta vez, um vocalista de apoio) do sexo masculino.

à frente dos dois pólos, marina lima se movimentava para lá e para cá, entre o som e a imagem e o masculino e a feminina, ensejando na multimídia feérica o balé de inversões e transgressões. no rock (masculino) como na dance music (feminina), mastigava conceitos já passadiços e fazia misturadora confusão: abria-se para se expor (quase) inteira frente à música que vem (re)reconquistando de pouco em pouco, enquanto fechava o corpo (quase) duro numa dança frenética, travada, contida, aflitiva (para nós e para ela mesma; para ela como nosso espelho mágico e para nós como espelhos d'água dela).

feminina, cantava (para) a (artista plástica) "anna bella" (geiger), reivindicando a edificação futura da instituição da sauna gay feminina: povoava a metade esquerda do palco com uma profusão de mulheres (quase) totalmente nuas, mas imobilizadas em estética estática de estátua, na fotografia paralisada de uma nudez mais pudica que pudenda. o sexo (feminino, ou melhor, feminino-masculino) aflorava contido, persistente de clausura auto-imposta, aquela que trava os movimentos do corpo e os movimentos políticos da massa que quer (mu)dança.

másculo-feminina, reivindicava a presença futura de uma mulher no exercício da presidência da república brasileira (salve, marina!, já é certo que esse dia chegará!) [socorro, amiga márcia, acuda: era mesmo desse momento a alusão à presidência feminina, de que não me lembro se me lembro?]. e evocava a lôca, "aquele inferninho" ao mesmo tempo em que trazia (de volta) ao brasil a malemolência robótica de mrs laurie anderson, mulher de mr lou reed. a versão de "beautiful red dress" aterrissava em terra brasilis como "vestidinho vermelho", genial (re)criação fadada a formar par valsante com a (re)leitura espetaculosa de "paris-dakar" (2001), tecno-mpb que condensa e glorifica a trajetória acidentada de marina lima: "olhos à deriva/ no ar/ o mundo se olhando no espelho/ começa a gritar/ o mundo gira e cai de joelhos/ tentando respirar". o mundo, no intervaldo de (quase) silêncio de um minuto, era marina lima.

masculina, algo desastrada e trapalhona no jeito macho de corpo, repescava a bela "$ cara" (1990) do auge do desastre collor. sob os versos vencidos "jamais foi tão escuro/ no país do futuro/ e da televisão", de protesto político ainda moralista, ainda maniqueísta, confundia as cores nubladas de collor com os coloridos transtornados de lula, como se fossem os mesmos e como se valessem para agora os descaminhos d'antanho. não valiam, mas valia o documento de um tempo que (oba!) já se deixara para trás.

pois "bang bang (my baby shot me down)", um pop chiclete do veterano de guerra & paz sonny bono, tão masculina e desastrada e trapalhona quanto, invertia parâmetros para o pós-referendo vencido pelo "não" sob os céus de allah de iraque e afeganistão: o pop chiclete de sonny bono, músico-parlamentar que no final dos anos 90 se fez patrono-patrocinador do ataque político-industrial reativo-conservador ao progresso dos copylefts e à liberdade musical de expressão, era masculino no sentido menos nobre do termo. mas a versão masculina-feminina de marina lima não era, ou era menos.

fêmeo-masculina, espelhava geometrias brasileiras no (quase) início e no (quase) fim do espetáculo: paulinho da viola passara por ali.

primeiro, acontecia na (re)releitura do clássico embalsamado "nervos de aço", do gaúcho lupicinio rodrigues, de que o carioca paulinho, o da viola, se apossara amorosamente em 1973. ode mui estúpida ao amor egoísta (porque cego um palmo adiante do nariz, e narcisista, e derrotista por demais), "nervos de aço" ressuscitava travesti do travesti, revestido pelos loops pós-samba (re)inventados pelo também gaúcho thedy corrêa (líder do grupo nenhum de nós e recém-produtor do inquieto álbum "loopcinio") - agora os nervos continuavam sendo de aço tenso e retesado, mas já eram também de fios de ovos, de baba de moça, de pompom d'algodão doce.

por fim, se repetia no (falso) final do show a (re)materialização hiperamorosa de um paulinho da viola ainda sambista, mas não-sambista. prelúdio, antes acontecia mais uma (re)versão preciosa e preciosista da ode mui (auto)feminina "pierrot" (1998), a música de marina lima que, de todas, mais falava sobre marina lima: "sim, eu precisei me ausentar/ para ocultar a minha dor/ fugi, menti/ talvez por pudor", você já sabe, então "bem-vindo à minha terra/ feita de homens em guerra/ e um (ou) outro louco para amar".

os primórdios confessionais eram prenúncio do (eterno) retorno de paulinho da viola (e de marina lima). "para um amor no recife" (1971), regravada por ela pela primeira vez no ano terrível de 1996, não ocultava (nunca) mais a sua dor: "andei levando a vida quase morto"... "quero fechar a ferida"... "quero estancar o sangue"... "eu voltarei depressa"... "tão logo a noite acabe"... "para beijar você"...

prometendo voltar depressa, marina lima virava os ombros largos para o público, abrigava o corpo esguio numa capa hollywoodiana e a cabeça numa sombrinha guarda-chuva, enquanto a platéia assistia, atônita, à decomposição da pirâmide faraônica de oscar niemeyer: o fundo majestoso do palco do auditório era falso. suspenderam os jardins da babilônia, e eis que a quarta parede se erguia lentamente e embotava os olhos perdidos da platéia com a visão liberta do ibirapuera, do parque, do cheiro de grama, do vento na campina verde. marina lima se descolava do palco (da pirâmide, do claustro, da tumba do faraó, do ovo cúbico blindado, do sepulcro) e, ainda cantando, fugia para o verde, para o encontro das moças antes nuas & agora vestidas de branco num imóvel e contido piquenique sem maçãs (mas com formigas).

era uma confissão de fascínio algo convulsivo pela morte (como se já não soubéssemos...), como se a libertação da clausura cúbica levasse em linha reta às pradarias verde-brancas de um paraíso tipo selva de pedra, meio tela da globo. mas o final era falso, como era falsa também a despedida. marina lima ainda voltaria depressa, para cantar mais e mais, numa brincadeira "prestes a voar" de quebra-cabeça pop-erudito sado-masoquista infanto-juvenil, de gato & rato, de tom & jerry, de público & seu espelho, de vida & morte & vida.

mas havia vida lá fora (como também cá dentro), à esquerda e à direita, ao norte e ao sul, a leste e a oeste. os momentos felizes não estavam escondidos nem no passado, nem no futuro (mas sim no presente), jamais fora tão claro e cintilante o país do presente.

lado b do lado b

xerife honorário do lado direito do palco, o pós-cowboy supra-norte-americano neil young lançou, no ano da graça de 2005, mais um disco, um novo, novo disco. "prairie wind", vento na campina, foi seu mais que quadragésimo elepê, dentro do quase quadragésimo ano de uma longeva e caudalosa história musical.

assim procedendo, neil young, o roberto carlos canadense, comprovou uma vez mais (como se já não soubéssemos...) que foi, é e sempre será uma espécie de stevie wonder em alto consraste, mantendo-se ainda assim tão compacto e consistente como um stevie wonder. porque enquanto stevie se resguarda dos excessos e dos desgastes, neil, qual um roberto menos moreno, produz e produz e produz e produz, obsessiva-compulsivamente. sem nunca perder o condão nem deixar de gozar da estima de seus súditos - porque canadá não é brasil, não, nem os canadenses devem andar habituados a amar odiar seus robertos carlos, como costuma fazer um certo país infra-norte-centro-sul-americano.

pois em 2005 neil young sentou-se ao vento da campina e se fez lobo da estepe, tolo na colina, ermitão no topo da montanha. plugou em música incansável os sustos do pré-envelhecimento - consumaram-se abundantes em "prairie wind" os indícios do medo da morte, do fascínio pela morte, do pulso vital de evitar e contornar e enfrentar a inevitabilidade da morte, a evidência de que tudo na (vida &) na morte é fugaz, de que tudo na vida (& na morte) é fullgás.

o aviso apressado ele fincou já na primeira canção, "the painter" (uma pintora do sexo feminino, uma anna bella geiger, foi quem elegeu como primeira personagem). a canção se conectou diretamente com o imaginário fértil do álbum (quase) mitológico "harvest", colheita, de 1972, idos tempos férteis de safra e colheita e fartura. não mais - no ano da (des)graça de 2005, o velho lobo do (m)ar germinou grãos e espigas em abundância para afirmar que não resta safra de grãos nem de sabugos no chão fofo do adorável homem das neves, do velho lobo do gelo.

contou que está "falling off the face of the earth", o homem que caiu da terra, o macho decaído na estiagem outonal. decretou que agora era "no wonder", no (stevie) wonder, chega de maravilhas. "he was the king", cantou para elvis presley, colidindo óbvio e inusitado encontro de linhas paralelas que um dia irão se encontrar boiando no infinito, só, somente, só, só lá. em livre tradução de cultura livre para os criativos comuns: "na última vez que vi elvis/ ele dirigia um cadillac pink (um calhambeque, beep-beep)/ o vento estava blowin' (in the ansewer, my friend) sua cabeleira/ e ele nunca olhou para trás/ ele era o rei"...

pop-erudito infanto-juvenil sado-masoquista que no passado já determinou apoio a mr. ronald reagan, neil perfilou-se diante do pai, de bóbi filho para bibo pai, e orou "for daddy", para o papai - essa foi a dedicatória do lobo na colina, em seu disco do ano da glória de 2005.

sentiu-se "far from home", ovelha negra desgarrada, espermatozóide que fugiu de casa para nunca mais. ali emaranhou os novelos de amor paterno ensejados na dedicatória: "quando eu era um 'growing boy'/ pulando no pescoço de papai/ 'daddy' apanhou um velho violão e cantou: 'me enterrem na lone prairie' (na campina deserta, em campina grande, na paraíba masculina, sim, sinhô)".

duas estrofes além, far from daddy's home, neil recolheu as aspas da canção paterna, engoliu-as, fez suas as citações do pai e se formou pai de si próprio e de seus próprios filhos. "enterrem-me na campina/ onde o buffalo gostava de vagar/ onde os gansos do canadá cortavam the sky/ e então eu não estarei mais longe de casa", pediu neil-pai. sombrio, soturno, apaixonado pela morte andava aquele neil young no ano de secos bush-arbustos de 2005.

e enquanto o pulso da morte e a tremedeira do ocaso vibravam os nervos do velho young, ele se enchia de (mais e mais e mais) vida e debulhava o trigo, recolhia cada bago do trigo, forjava no trigo o milagre mundano do pão. decepava a cana, recolhia a garapa da cana, roubava da cana a doçura do mel, se fartava de mel (de abelhas). afagava a terra, (ainda) conhecia os desejos da terra, cio da terra, propícia estação. e fecundava o chão, carpindo as pradarias no norte-sul num caminhão de bóias-frias habitado por luiz gonzaga, lupicinio rodrigues, elvis presley, milton nascimento, chico buarque, sonny bono, bob dylan, lou reed, david bowie, stevie wonder, gilberto gil, rita lee, roberto (& erasmo) carlos (& wanderléa), paulinho da viola, laurie anderson, marina lima.

e o vento soprava nas campinas, nas matas ciliares, nos verdes parques modernistas e nas florestas & pantanais, balançando na brisa um vestidinho vermelho todo bordadinho em brocados bêbedos. era inverno¨& verão & outono & primavera, quandonde tudo se misturava.

terça-feira, novembro 01, 2005

a vida no lado leste

as discussões mais recentes aqui no blog trazem para o forninho, (re)quentinho, o pãozinho de uma reportagem que havia ficado para trás (pois mr. lulu santos "furou a fila") lá na "carta capital" 362, de 5 de outubro de 2005. pertence à seção "brasiliana", em que fazemos crônicas instantâneas da vida brasileira, e naquele fim de semana eletrônico de nokia trends peguei a rota desviante e rumei para duas noitadas na zona leste (alô, dona márcia!, bem-vinda de volta! é nóis na zl!).

é que havia um outro festival rolando lá pelos lados onde o sol nasce primeiro. nesse, não havia sombra de mecenato da tim, da nokia, da claro, da oi, do mundo encapsulado em telefones celulares. mas não pense que era um festival "no logo", que era um festival sem patrocínio. não, estava lá um cartaz da petrobras, sinal da presença do governo federal (petista). o espaço poliesportivo utilizado deixava claro que é dos cuidados do governo estadual (tucano). e, segundo conta o organizador do evento, gente da prefeitura (tucana) da cidade de são paulo também andou por ali durante o festival.

é que festival na "zl" não dá no rádio nem na televisão. não rende anúncio em jornal nem na mtv. não atrai consumidores movidos a celular nem a speedy. mas rende voto, muito voto. porque é lá que mora um tal povo brasileiro. que, por "hábito", vê tudo do lado de fora. e, embora more no brasil, só entra no brasil pelo buraquinho da urna. quando, também por "hábito", costuma estufar o peito e gritar: "nããããão!".

(em tempo: já ouviu os skywalkers? eles são do balacobaco. já lançaram dois discos pela 100% independente baratos afins, do malucaço luiz calanca. foram eles que me deram o toque, d'o q difere.)


A VIDA NO LADO LESTE
Por Pedro Alexandre Sanches

Rafael Roque e Audrey Marie, ambos de 23 anos, são namorados, tocam na banda de rock Os Skywalkers e estão participando de um festival de música na zona leste de São Paulo, como músicos e como espectadores. Ambos moram na zona leste, ele na Vila Formosa, ela na Vila Prudente.

Neste fim de semana em que bandas locais se agrupam tendo como "padrinhos musicais" os mais conhecidos Arnaldo Antunes, Otto e Nação Zumbi, ambos confessam um certo temor, pois é a primeira vez que pisam na Cidade A.E. de Carvalho, onde acontece o festival O Q Difere.

Mais afastado do centro paulistano que as vilas Formosa e Prudente, esse bairro está apartado da praça da Sé por meros 23 km (menos de meia hora de metrô ou de carro numa Radial Leste descongestionada, nas opções usadas pela reportagem). Ou, então, pelos anos-luz que ainda separam o centro da periferia, os preconceitos da "vida real".

Na madrugada de sábado 24, Arnaldo Antunes rema contra a maré dos consumidores paulistanos de cultura, que nessa mesma semana preferem sacudir à eletrônica celular do Nokia Trends, pegar (ou furar) fila para o show do Moby por R$ 140 ou, quando muito, conferir numa casa chique o mais novo show de Los Hermanos.

Arnaldo corrobora, sem querer, a dura desigualdade entre os dois lados da muralha social. "Espero que vocês se divirtam aí de baixo tanto quanto nós aqui de cima", acaricia o público minguado, parecendo comentar, simbolicamente, bem mais que somente a altura de três metros que separa o palco e a platéia do Pólo Cultural Zona Leste.

"Pessoas da zona leste costumam ir ao centro ver Os Skywalkers, mas não vão quando o show é na Vila Formosa", conta Rafael, demonstrando que o isolamento cultural de seu lugar de origem também tem raízes fincadas dentro da própria zona leste. Ecoa pelo ar a canção de 1994 de Itamar Assumpção (1949-2003), que de lá da Penha lamentava, em inglês zombeteiro: "She let me down because I live in the east side of town" (em português direto, "ela me abandonou porque eu moro na zona leste").

A escassez de público nos três dias do festival pode dar razão à sensação de abandono traduzida por Itamar, mas, cuidado, as aparências continuam a enganar. Colocado em pé pela ONG Aarca (Associação de Arte, Cultura e Educação Ambiental, www.aarca.org.br) por um custo estimado em R$ 40 mil e sob patrocínio da Petrobras, o festival é fruto de um projeto de mapeamento cultural que já compilou 2.500 artistas, 73 bandas de música, 55 grupos teatrais... Todos da "ZL".

Contando com infra-estrutura de festivais de porte, sofre da dificuldade em reunir espectadores e de abundantes problemas técnicos – inexperiente, a equipe técnica também foi toda recrutada localmente. "Todo mundo que está trabalhando é da comunidade. Nosso objetivo é criar mercado, gerar renda, ensinar gente daqui a produzir", afirma Moisés Vilas Boas, um paranaense que se radicou em 1969 na Vila Califórnia e hoje preside a Aarca.

A inspiração vem de festivais de rock alternativo que se consolidaram a partir de regiões periféricas do Brasil, como o Abril pro Rock (em Recife) e o Goiânia Noise. "Quem iria para Goiânia se não fosse para um festival de rock?", pergunta-se Rafael Roque, sonhando migrar para leste o raciocínio.

Primeiro será preciso compactar os núcleos fragmentados da ZL, ainda freada por conflitos de "briga da rua de baixo com a rua de cima", segundo palavras de Vilas Boas que lembram as de Arnaldo Antunes. Mas o mostruário que o primeiro O Q Difere consegue produzir já é por si só vigoroso, salpicado de pequenas novidades.

Pelos três dias, sobem a três metros de altura bandas de nomes inquietos como Salve Jorge, Nhocuné Soul, Joana Flor e Seus Dois Maridos (cuja líder mora no Copan, bem no coração da cidade), Maomedes, Ritual da Tribo do Leste, Mama Gumbo, Sotádicos etc.

A panela ferve na madrugada de domingo, com os rappers do grupo Pretologia esmiuçando recados bem rock’n’roll, bem hip-hop. "A história do Brasil está sendo reescrita aos poucos, devagarzinho. A gente está fazendo uma revolução estrutural neste país", apregoa um dos vocalistas, desprezando verbos no passado ou no futuro.

Manifestam-se "pelos ancestrais que morreram na senzala", exprimem indignação racial ("não era você, branco, que era chamado de macaco"), praticam o auto-orgulho ("sou preto até os ossos"), decretam "a ideologia do povo preto: a pretologia".

"Vai embora, eu quero ver o Otto!", clama um chapa da ZL. Mesmo sob certa resistência, a "revolução" se espalha e vaza para o chão de cimento chapiscado da platéia. É onde se apresenta, com rigorosa desenvoltura, o grupo de street dance Pensativos Break, de São Mateus. Girando soltos no espaço, respondem ao silêncio que abraça a periferia imprimindo poesia visual nos próprios corpos.

O líder do grupo, Piu, conta que dança desde os primórdios do movimento hip-hop, ainda na estação São Bento do metrô. "Era nossa referência, mas depois que fecharam começamos a adquirir o asfalto", diz, citando como novos pontos de aglutinação a cidade de Diadema e os CEUs (Centros Educacionais Unificados) Aricanduva, São Mateus, Rosa da China...

Esses despontam como pontos rudimentares de reorganização de uma comunidade "totalmente desarticulada", como avalia Vilas Boas. No mesmo espaço em que dança o grupo de Piu, Rafael Roque intercala o sincretismo que pratica nos Skywalkers, de tropicália, rock’n’roll e candomblé, com... aulas de música erudita: ele é contrabaixista da Big Band do CEU Aricanduva.

Percebendo as tensões entre o projeto educacional de origem petista, hoje pilotado pelo PSDB, e a gestão tucana do Estado, que administra o Pólo Cultural Zona Leste, Vilas Boas vislumbra um horizonte a ser desbravado: "Na sexta tinha gente da prefeitura lá. Pegaram nosso contato, disseram que querem transformar o espaço. Esses eventos criam concorrência entre os poderes, e isso é bom para a gente".

Após o fim abrupto do show do Pretologia, o loiro pernambucano Otto sobe o palco tristonho, aparentemente desanimado com a platéia diminuta. É preciso que entre seu convidado, Rappin' Hood, para colocar as coisas em possíveis novos lugares.
Rappin' capta o público miscigenado, que harmoniza uma classe média local com garotos negros de uniforme hip-hop, e manda ver no discurso, enquanto a banda ergue uma zona franca sonora de rap, MPB, ponto de Xangô, samba e batuque escravo: "É, preto e branco lado a lado... É assim que tem que ser". Como cantava Itamar Assumpção, o lado leste da cidade também é santuário.