sábado, outubro 28, 2006

nordeste livre, brasil independente: o trânsito


"a prisão é sinistra, amarga e fria/ dum velório tem pouca diferença/ não conheço quem vá pedir licença/ pra entrar num portão duma cadeia/ só à noite, depois que a lua alteia/ aparecem sinais de claridade/ uma sombra distante ocupa a grade/ limitando a visão do indeciso/ u'a gota de pranto molha o riso/ quando o preso recebe a liberdade."

plenamente antenado com o espírito de seu (nosso) tempo, o grupo pernambucano-de-dentro cordel do fogo encantado inicia com esses versos lúgubres de manoel filó um dos discos brasileiros mais impactantes deste 2006, "transfiguração" (rec beat/distribuidora independente). o tema central é a liberdade que encerra mais um ciclo de clausura (alô, pcc!), o claustro que interrompe mais um círculo de vôo, e assim sucessivamente, para sempre. em trânsito e raiz, na e da interlândia, para sempre.

a extraordinária entrevista que segue abaixo aconteceu em 26 de setembro de 2006, poucos dias após a morte do terrível coronel ubiratan, também citado no disco pela voz e pela rima do rapper carioca bnegão, mais antena do tempo em alta sintonia. conversam, no bairro-exílio paulistano da pompéia, o poeta, declamador, cantor, compositor e percussionista josé paes de lira, o lirinha, e o violonista, compositor e cantor clayton barros, que formam o cordel do fogo encantado com os percussionistas-compositores-cantores emerson calado, nego henrique e rafa almeida.

nas interlândias da entrevista, os itálicos e negritos empilham comentários, observações e análises posteriores, por parte do entrevistador, também da e na interlândia, em raiz e trânsito, para sempre.

pedro alexandre sanches – como vocês estão organizados? está todo mundo morando em são paulo?

lirinha – não, só eu e clayton que temos casa alugada mesmo. os três outros integrantes ficam em hotel aqui próximo, no mesmo hotel de quando viemos pela primeira vez. criamos um vínculo caseiro com esse hotel, há quatro anos eles ficam, se sentem em casa. e optaram por fazer suas casas em recife. essa é uma grande questão dentro da banda, acho que não só do cordel, mas de todas as bandas que vêm por esse objetivo da concentração de riqueza em são paulo e rio. vivemos esse conflito do abandono, que nem sempre é opcional, da saída de um lugar que às vezes é obrigatória para a sobrevivência do grupo. os meninos não tiram as roupas da mala para criar essa imagem de que estão em turnê.

clayton bastos – mas passam a grande parte do ano aqui em são paulo, a maior parte do ano. é subentendido que moram aqui.

pas – por que você diz que essa é "uma grande questão" para o grupo?

l – porque essa saída de arcoverde, quando a gente idealizou... o cordel do fogo encantado não é apenas formado por pessoas do interior, ele foi idealizado, concebido e realizado em arcoverde. o espetáculo estreou em arcoverde. esse conceito que até hoje a gente carrega, de base percussiva, poesia sendo gritada, um violão harmônico e o conceito de origem teatral, vem de arcoverde, e acredito que seja a alma do cordel.

cb – mas as formações passaram por mudanças, em arcoverde e quando a gente se deslocou para recife. aí alguns ficaram, porque não puderam ir, e a gente se adaptou a mais um integrante, que era nego, que depois trouxe rafa. aí a gente fechou o quinteto.

pas – dos integrantes originais só restam vocês dois?

l – é, da estréia em arcoverde, sim.

pas – os outros três são de arcoverde?

l – um é de arcoverde, emerson, que acompanhou todo o processo, mas era de uma outra banda de rock. em cidade pequena, todo mundo é meio junto.

cb – ele entrou no grupo quando já tínhamos ido para recife.

l – mas ele participou muito da formação daquele ambiente, daquela situação.

cb – era a movimentação que a gente fazia em arcoverde. a gente tocava junto nos bares, se encontrava, ia para ensaio.

l – completando o raciocínio, a saída de arcoverde, para morar em recife, se faz logo no mesmo ano que a saída para são paulo, em 1999. viemos morar aqui no mesmo ano em que saímos de arcoverde. essa vinda é na idéia de turnê, na realização do trabalho profissional, e então esse conflito se estabelece porque nem todo mundo faz essa retirada da cidade com a idéia de se fixar em outro lugar. alguns estavam a fim de ir, fazer show e voltar. então eu, quando percebi que esse trânsito era uma característica da minha existência artística, tive mais facilidade para estar aqui hoje, porque me ajuda mais nas coisas, na conversação.

cb – e eu estou mais seguindo esse raciocínio, semelhante, por envolvimento com a cidade, a diversidade de músicos, de pessoas com quem trocar idéias, a facilidade de tecnologia também. a idéia, dentro da cabeça, é de crescimento. estar em são paulo, morar aqui, já traduz em você uma necessidade de crescer.

pas – vocês poderiam contar como é arcoverde, falar um pouco sobre as origens de vocês?

l – arcoverde é uma cidade que se desenvolveu de uma forma diferente das outras vizinhas, porque é uma cidade que lá a gente chama de entroncamento, de passagem e pouso, um grande trevo. geograficamente, ela tem essa posição de passagem, de trânsito. a nossa cidade se formou desse jeito.

cb – era onde os viajantes acampavam. se tornou estratégica pra o descanso, para parar e seguir viagem.

pas – fica a que distância da capital?

l – 160 quilômetros. com 70 mil habitantes, ela hoje vive de hospitais, que são um símbolo disso, e de concessionárias, dessa coisa da passagem das pessoas, do comércio, de hotel, dessas passagens pela estrada. isso fez com que a cidade não guardasse o tradicionalismo, que arranhasse mais seu tradicionalismo, que é uma característica inerente aos habitantes daquela região, o bairrismo e a manutenção dos valores, a vagarosa modificação dos valores. arcoverde meio que descaracterizou seus prédios antigos, por essa falta de vínculo, por essas passagens tão rápidas.

cb – essa destruição da imagem da cidade foi acelerada. quando foi emancipada, no início do século passado, aquelas imagens antigas foram destruídas rapidamente.

l – ela tem uma história muito antiga, se chamava rio branco. foi a primeira cidade desenvolvida ali daquela região, devido à presença de algumas indústrias e do trem. era a parada do trem, o trem ia até lá, então os comércios de venda de gado, o ciclo do couro inteiro daquela região, iam até arcoverde para embarcar. quando lampião venceu uma batalha, que inclusive foi a última dele com o governo, ele conseguiu destruir 260 soldados, e mandou uma carta ao governador de pernambuco, dividindo o estado. ele dizia na carta: "fico governando essa zona de cá, por inteiro, até as pontas dos trilhos em rio branco", que é arcoverde, "e o senhor, por sua vez, governa do rio branco até a pancada do mar". quer dizer, a cidade já tinha essa divisória: era considerada a entrada do sertão, o chamado portal do sertão.

cb – é o início do semi-árido, mas ainda tem uma área de transição entre o semi-árido e o agreste. é uma troca de paisagem.

pas – é como se ela fosse, a um só tempo, semi-árido, sertão e quase litoral?

cb – e quase agreste, bastante agreste.

l – em pernambuco é muito definido, dá para ver: litoral, zona da mata, agreste (cuja cidade mais conhecida é caruaru), e aí começa o sertão. quando você vai para petrolina é aquele alto sertão que se vê nas imagens, só caatinga. arcoverde já é caatinga com esse agreste, uma mistura.

cb – e é ao lado de pesqueira, que é onde reside a tribo xucuru.

l – você assitiu "árido movie"?

pas – sim.

l – quase todas as imagens foram feitas em arcoverde. quando a gente começou a fazer o cordel, a fundarp [fundação do patrimônio histórico e artístico de pernambuco] estava fazendo um levantamento dos artistas, e lá era considerado um "vazio cultural". um absurdo, mas era importante na burocracia deles saber onde era vazio, onde não era. é claro que hoje ninguém, acho que nem eles que inventaram esse nome "vazio cultural", acredita nisso de vazio. mas a gente cresceu nisso, é meio a análise que a turma fez de brasília, de algo descaracterizado. a primeira geração de arcoverde era a nossa, a gente escutava muito isso. acho que isso deu uma força, uma potência para o cordel, de uma visão menos fechada naquele universo da caricatura do sertão do nordeste. porque essa não é só uma caricatura só de quem vê, é também de quem vive dentro do sertão, porque a identidade foi formada de fora. foi dito e ensinado o que é o sertão, então é muito difícil para aquelas pessoas, também, escapar daquela visão. hoje, talvez, a possibilidade do nascimento desse grupo só se daria num grupo assim.

pas – as famílias de vocês vinham de fora de arcoverde?

cb – meu pai é de taquaritinga do norte, minha mãe é de uma aldeia chamada titu cocal [será que entendi certo, o nome?...], perto de aldeia velha. saíram da zona rural para ir fazer parte do contingente da cidade.

pas – os dois eram mais do sertão, então?

cb – taquaringa é perto de caruaru, mais agreste.

pas – meu pai é de alagoinha, que é perto de pesqueira, e minha mãe é de floresta, que já é alto sertão.

pas – as pessoas vão para arcoverde num fenômeno de migração, em busca de condições melhores?

cb – é, eu acho que até a arte que surge lá é feita dessas pessoas que vêm de fora, e vão manifestar lá esses movimentos. ivo lopes, mesmo, não era de arcoverde, mas foi lá que ele montou o samba de coco.

l – tem uma característica dessa migração que aconteceu, eu sinto que todos nós temos uma condição de existência voltada para o exterior, para a coisa externa. então sinto que se torna muito difícil escapar dessa lógica de quom é da zona rural ir para a cidade maior. o objetivo da juventude é ir estudar em recife, é o máximo que os pais podem dar de futuro.

cb - sempre num olhar para fora da cidade.

l - e, de recife, é para são paulo, europa ou estados unidos. é interessante esse tipo de visão, a gente já vem desenvolvendo esse raciocínio há muito tempo, porque isso cria uma característica de ser do interior. neste mundo capitalista em que a gente vive, você praticamente é obrigado a fazer esse trajeto, é sugado por essa concentração de dinheiro e de possibilidades.

cb – e vai bombar a metrópole, as metrópoles todas entupidas de gente buscando algo.

l – a metáfora de que a gente olha muito pouco para o nosso interior se torna real, mesmo. na época era muito confuso para a gente, hoje é mais tranqüilo perceber que não é uma escada evolutiva, artística, arcoverde-recife-são paulo. são planos diferentes, mas não a visualização de uma escada, apesar de que a gente aprende desde criança que é dessa forma.

pas – de algum modo, vocês estariam dando notícias para o brasil de como é arcoverde, por intermédio da música de vocês? ela fala muito a respeito da origem de vocês, seja de arcoverde ou de pernambuco, não?

l – podia até ser da interlândia, né? é uma palavra que vi num livro de uma pesquisadora, sobre a guerra dos bárbaros, que foi a chegada dos bandeirantes nessa região do sertão. praticamente não existe história sobre o sertão, a gente tem um vazio de informação muito grande, e isso tem a ver com o histórico abandono a que aquela região foi submetida.

cb – acho até que isso de incutir nos filhos a idéia de estudar em recife, ou de ir de recife para são paulo, termina martelando a idéia de não evoluir na cidade. desconstrói a cidade também. quem ficou fica sempre calado e pacífico.

l – essa mulher da questão da interlândia, que se chama maria adelina, desenvolveu através de documentos a história da entrada dos bandeirantes, e revela muita coisa para a gente. acho que a história se repete, né? além desse vazio de conhecimento que provoca o preconceito, porque não se conhece aquele lugar. a avaliação que se tem hoje do crescimento da formação brasileira é a dialética entre senhor de escravo e escravo. e essa relação não aconteceu nessa região, porque não se instalaram usinas, nem a escravidão como a gente aprendeu na escola, com senzala e casa grande. aquela região foi das pessoas que foram por algum motivo hostilizadas, ou que por algum motivo, muito loucas, se embrenharam para uma região de mais difícil adaptação. isso originou uma relação mais agressiva com o ambiente, de domínio, e não de amor. hoje se desenvolve esse amor, mas era mais dominar aquela brutalidade, aquela seca. as comunidades indígenas, segundo a pesquisa dessa mulher que disse a palavra "interlândia", foram todas uniformizadas, todas colocadas sob o nome "tapuia", que eram as que não falavam tupi-guarani e eram considerados os mais selvagens.

cb – eram os que estavam longe do litoral.

l – eram os do sertão.

pas – arcoverde está inclusa ali?

l – totalmente inclusa. hoje há os xucurus, que são uma tribo bastante forte. é uma guerra violentíssima até hoje, três caciques foram assassinados de 15 anos para cá. ainda hoje há esse conflito terrível. e, para você ver como a história se repete, o grande conflito é dos xucurus com a família maciel, de marco maciel, ex-vice-presidente da república. é uma coisa antiga.


[o grupo celebra os xucurus de pernambuco desde seu disco de estréia, "cordel do fogo encantado" (rec beat, 2001), como na faixa "profecia (ou testamento da ira)".]


pas – qual é essa disputa?

l – disputa por terra. é um mote histórico, indígena, mas de fato é muito semelhante à luta de sem-terra. é pela posse da terra e pela posse da água dessa terra. a grande guerra, a grande luta, é essa. então ela diz lá dos índios da interlândia, e fiquei achando que a interlândia é o lugar ficcional, a nossa passárgada...

cb – é o sassaruê...

l – o nosso são saruê, exatamente...

cb – saquei, gostei, velho. é bem ficcional e mecânica, interlândia, chega a ser high tech.

pas – é possível ser da interlândia morando em são paulo, em qualquer lugar?

l – em qualquer lugar, que é o que mais tem, né?

cb – você pode levar esse lugar para qualquer canto.

pas – quando se fala que vocês são "a primeira geração de arcoverde", a sensação interna de vocês é essa mesmo, de que não havia vida cultural, e vocês estariam meio criando essa vida cultural?

cb – existe uma vida cultural, mas marginalizada, distante da cidade, negada pela cidade. tinha condição de expandir, de se mostrar em melhores condições, mas ela sempre existiu, e feita por essas pessoas de fora. acho que o que a gente está querendo dizer é que a primeira geração realmente de arcoverde, com um olhar voltado para os artistas da cidade e com intenção de fazer arte, é a geração da gente, dos filhos que são nascidos em arcoverde. nossos pais não carregam essa origem de lá, a gente é que está fazendo parte da construção dessa cidade dos arcoverdenses.

l – estamos inventando, é a invenção de arcoverde, como existe a invenção do nordeste. lembro que a gente enfeitava muito, inventava mesmo. a gente transformou esses artistas de lá nos mais geniais possíveis para a gente. não tinha ninguém maior do que lula calixto para nós.

pas – quem ele era?

l – um artesão e multiinstrumentista, que tocava com partitura numa banda de música. impressionava porque ele era muito pobre, de uma família nascida no sítio, e tinha um talento enorme. ele foi fundamental na visão agressiva, vamos dizer, da musicalidade do cordel, dessa forma de reprodução da percussão, forte, alta.

cb – tenho imagens de outros carnavais, quando tinha água na cidade, no final da ditadura, anos 80, com muita gente nas ruas...

pas – quando tinha água? como assim?

cb – porque passou um tempo, a década de 90 inteira, em que arcoverde não teve água. teve racionamento, terrível, até hoje a cidade está passando por esse racionamento, destino de propaganda política.

l – não é que falta água na torneira. os carros-pipa colocam na caixa d’água e tem na torneira. fica sendo abastecido por carros-pipa, que hoje são todos de algum vereador. se tu vota nele ele abastece, senão ele passa da tua casa e vai abastecer na outra.

pas – isso acontece de fato, a casa xis fica sem abastecimento por razão política?

l – não, aí vem outro vereador. na verdade, não falta água para quem tem dinheiro. o problema não é a falta d'água, é a democratização da distribuição dessa água. a indústria da seca vai se adaptando, é incrível como ela se adapta. é uma das indústrias mais potentes, inclusive a que dá mais certo lá, a indústria mais bem-sucedida da região.

cb – e muito ligada à fé, também.

l – e essa indústria já migrou para a transposição do rio são francisco, já está nela, com todos os seus funcionários. já trouxeram a discussão para o contemporâneo, agora é a transposição do são francisco. diz-se que arcoverde vai ser privilegiada, se for. mas eu queria dizer que não acredito num lugar que tenha maior cultura ou menor cultura. não consigo enxergar mais a cultura como algo que se mede com uma régua. estou convencido de que, de fato, onde há ser humano e reunião de ser humano vai haver uma expressão através de poesia, artes plásticas e música. mas acredito que estruturar isso para que se desenvolva um comércio disso neste mundo capitalista é outra coisa, que necessita de outro tipo de base e estrutura. naquela época, a gente de arcoverde não era tão visível, mas estavam ali a música, a poesia, o teatro...

cb – seria como se tivesse sempre havido, mas apareceram então uns caras, vocês, com impulso suficiente para mostrar aquela cultura para um universo maior, para um país inteiro?

cb – pelos políticos e pelos dados da fundarp, passava uma visão estéril da cidade.

l – este grupo se projetou para isso. o grupo teve uma intenção óbvia de inserção no mercado. na época eu poderia até não usar esse discurso, mas hoje não tenho como não achar isso, porque o grupo teve uma visão de apresentação, de levar aquilo para show. lembro que a banda, ainda em arcoverde, fazia turnê nas cidades vizinhas, o que era um absurdo, porque não existiam condições de isso dar certo. e a gente levou para cidades menores que arcoverde, quer dizer, tentou criar um mercado para não sair dali, para ficar vivendo ali. a gente tentou. e lotava, o lugar em sertânia ficava lotado, tocávamos em escola que lotava. Aaho que este grupo puxou um holofote, jogou uma luz sobre aquela região. jogando uma luz sobre qualquer região, a meu ver, aparecerão as coisas.

pas – mas vocês acham que, simbolicamente, o brasil que ouve vocês aprende um pouco sobre arcoverde? confesso que eu, que sou de outro interior, do interior do paraná, não capto imediatamente o que vocês estão dizendo.

cb – acho que é mais fácil mitificar, até, como um sertão arcaico, para as pessoas que acham que um grupo que vem de lá vai tentar segurar raízes conservadoras.

l – e as raízes de lá, se é que existem, questionam o cordel sobre a sua mudança naquele ritmo que, para eles, é importante.

pas – ou seja, uma pressão dos dois lados.

cb – e está tão transmutável como aqui.

l – eu acho que o cordel, quando fez a opção conceitual por uma música inventiva – o que não significa que a banda alcançou essa música –, essa notícia de arcoverde já não se torna mais didática. ela já não é mais uma explicação sobre o que é a cidade, já é uma visão mais poética, com mais licenças poéticas. existe também, o tempo inteiro, uma necessidade nas nossas imagens de tentar trazer esse sertão para agora.

cb – de não deixar ele preso no passado.

pas – porque, afinal, ele é mesmo de agora.

cb – nós somos de agora.

l - é uma região muito dinâmica que foi congelada numa visão, por falta de conhecimento...

cb – e das propagandas que foram vendidas desse lugar...

l - por exemplo, hoje a gente responde muito por esse rótulo do regional, do regionalismo. a gente ganhou esse rótulo, e eu acho que o movimento regionalista criou uma oposição ao modernismo que até hoje vigora. é uma oposição subjetiva, está no inconsciente, mas é muito visível. posso explicar mais. aquele grupo de maravilhosos escritores, com graciliano ramos, rachel de queiroz, josé lins do rego, jorge amado, quando lança o movimento chamado regionalista como resposta a uma tendência do modernismo que era cosmopolita e de abertura, começa a fazer uma literatura fechada sobre aquela região. acontece um romantismo que é impossível não ocorrer, e se cristaliza aquela região nessa imagem. até hoje, a visão que se tem do sertão é uma visão oposta à visão do sudeste.

[eu acrescentaria, à imagem de contraposição entre "regional" e "cosmopolita" expressa por lirinha, uma outra, de complemento: o "cosmopolitismo" de são paulo e rio não seriam, por eles próprios, modos de regionalismo? o provincianismo auto-isolador do eixo rio-sp, ainda que travestido de furor cosmopolita, não seria por si só um hábito colossal de tradicionalismo, reacionarismo, conservadorismo e fobia? o romantismo metropolitano É o romantismo regionalista?, os cosmopolitas SÃO os regionalistas?]

cb – é datada, né?

l - seria o sul futurista, aberto, cosmopolita, e o sertão, arcaico, antigo, fechado, conservador. não é real, não é verdade.

[aí está, é isso mesmo que os novos-nordestinos-do-mundo pensam: o regional É o cosmopolita.]

cb – não dá para se descobrir o nordeste ainda. já existe há tempos e se fundamenta, mas essa distância de um lugar para o outro provoca preconceitos mútuos, do nordeste em relação ao sul, e vice-versa.

pas – mas a própria existência do cordel é uma prova de que esses rótulos e estereótipos estão sendo questionados.

l - eles estão sendo questionados, mas a maiorira dos nossos prêmios é de grupo regional.

cb – é o estigma.

l - e são dois fatores: o lugar de onde a gente vem e a nossa instrumentação. da mesma forma que existe um preconceito contra essa região do sertão, existe contra a percussão.

cb – também a época, em que aconteceram os movimentos de mistura do pop com o regional, envolveu a mesma membrana.

pas – [o extraordinário percussionista pernambucano-do-mundo] naná vasconcelos, por exemplo, passou por isso do mesmo modo que vocês, ou não?

l - naná é o maior exemplo de uma tentativa de colocar a percussão – ele não só tenta, ele consegue – numa outra linguagem, como instrumento de sentimentos dele, e não como algo que imprime uma característica que nem faz parte do artista. posso citar um exemplo: o cordel do fogo encantado utiliza uma percussão, é a nossa instrumentação, e essa utilização muitas vezes tem uma forte ligação com o punk. ela é agressiva nos shows ao vivo. é forte, vibrante, poderosa, e mesmo assim vivemos uma situação em estúdio, de uma tecnologia que ainda interpreta a percussão como cozinha. trabalhamos com a sobra dos microfones da bateria. há uma falta enorme de técnicos que estejam nestas horas pensando em como melhorar o som da percussão, ou a captação dele. é uma coisa que está acontecendo agora, alguém está trabalhando por uma melhoria do som da guitarra. e eu acho, a turma não concorda muito [olha para Clayton], que os beatles introduziram aquela estrutura de guitarra-baixo-bateria, que se adaptou muito bem aos alto-falantes caseiros. faz parte da memória musical da população, então a percussão entra como algo desenvolvido nos países de terceiro mundo, áfrica, américa latina. acho que isso tem um reflexo enorme...

pas – até o fato de se chamar de "cozinha", como se fossem a parte de trás da casa, não? mas naná vasconcelos passa por isso e vai ser respeitado no exterior, tem de pular o brasil.

cb – mandam uma informação de uma música caracterizada como regional no brasil. nasce um movimento mundial de música, incrível.

l - ele introduz o berimbau numa orquestra, toca o berimbau com partitura, e isso tem um símbolo enorme para a percussão. é muito simbólico, porque é quase como uma ação política em relação à percussão.

cb – ele causa, realmente, um advento, de tirar a percussão dessa profissão marginalizada, de cozinha.

pas – simbolicamente, vocês estariam conquistando com o brasil o que no passado o naná conquistou indo mais para fora? mal ou bem, com todo o preconceito que ainda existe, há também um movimento de aproximação, o brasil aceita melhor vocês do que aceitaria talvez 20 anos atrás. o brasil olha mais para seu interior, embora ainda não queira reconhecer explicitamente.

cb – o interior também manda mensagens que não dá para negar.

l - aí é onde está um fator, porque o habitante do interior, esse sujeito, recebe as mensagens da metrópole, se preenche daquela informação, mas tem dificuldade de mandar a mensagem. isso faz com que essa pessoa esteja incapacitada para esse diálogo.

[faz mesmo, será? alô, visitantes blogueiros do rio grande do sul, do maranhão, de santa catarina, do mato grosso, do espírito santo, de sergipe etc. etc. etc.!]

cb – mas ela roda no país, né? não sei se o país olha para os seus interiores, acho que é um pouco o contrário. os interiores mandam informações que o país é obrigado a enxergar.

pas – vocês já se sentiram como esse cara do interior que tem dificuldade de mandar a mensagem, enquanto recebe, de lá mesmo, poesia, artes plásticas, música?

l - uma ilustração é o movimento mangue bit, com toda sua força e a repercussão grande em nossa geração, em arcoverde também. o cordel existia como espetáculo desde 1997, e a gente foi ser matéria de jornal em 1999, quando a gente tocou em recife. foram dois anos de silêncio da imprensa pernambucana, coitados, porque não sabiam que aquilo estava acontecendo.

cb – além de que as pessoas de lá que têm condições de mandar informação não mandavam, diziam que não existia. a imprensa também não ia lá ver.

pas – é um pouco o que acontece com o rap aqui. sua influência vaza e se expande, mas a grande maioria da imprensa [e da população, não é mesmo, dona população?] não quer tomar conhecimento do que acontece ali pertinho.

l - é, o que eu penso, nesse caso da gente lá em arcoverde, é que existia uma admiração das pessoas, dos que a gente considerava a turma intelectualizada. todas curtiam muito o cordel, mas, por exemplo, a gente recebia o primeiro disco de chico science & nação zumbi, ele chegou para nós, por todos os jornais de arcoverde, que são os dois jornais da capital, "diário de pernambuco" e "jornal do commercio" [não é louco que esse jornal ainda se chame do "commercio", do "comércio"?] – o "diário de pernambuco" tem esse nome, mas é de recife, toda a agenda de shows, mesmo que a gente mande uma notinha de show de arcoverde ela não sai.

cb – a tv está localizada em caruaru, e não tem nada que seja produzido do interior para os outros lugares. tudo é fabricado em recife.

l - tivemos que engolir um tanto de adjetivo "meteórico", "carreira meteórica", "do dia para a noite".

cb – "queridos da mídia"... foi foda. fizemos uma turnê maravilhosa pelos sescs do interior, de recife até petrolina, pernambuco inteiro de carro fazendo apresentações, antes de 1999.

pas – e era a imprensa de recife que dizia que vocês eram "meteóricos"?

l - meteóricos, e perguntando de onde é isso, "Arcoverde gera uma banda". começou uma série de matérias que era isso. em recife, toda banda logo no comecinho já recebe notinha no jornal. é muito normal isso, e são importantes para uma banda as notinhas de jornal, porque você vai juntando e consegue fechar o primeiro show. para fechar um show no sesc, começa com essas notinhas. então sinto que as bandas de recife, bandas bem começando, que vão fazendo a primeira apresentação ainda com metade do show cover, que não era o caso do cordel, já sai uma materiazinha, até porque está muito próximo, o jornalista vai lá, entrevista.

cb – a gente já fez um caminho diferente, a gente ia para o teatro. fizemos até duas apresentações antes de 1999, com produção nossa, em dois teatros de recife. a gente, com familiares, se movimentou e começou a fazer a produção desse espetáculo lá, de arcoverde para recife, com os amigos lá.

pas – como vocês caracterizariam, hoje, a relação do cordel com a imprensa de recife? de "meteórico" o cordel virou o quê?

l - é um grupo pelo qual a imprensa de pernambuco tem um respeito, pela sua representação de uma área, do interior. sinto que para a imprensa, superficialmente, funciona o movimento mangue, e faltava o cordel para fechar essa história. porque conceitualmente era dito que o mangue era um movimento pernambucano, mas isso não é verdade. era um movimento recifense.

cb – cobria a parte do litoral.

l - chico science, que era o mais espertinho nessa história toda, muito aglomerador, muito político nesse sentido, se ocupou logo de dizer que o mangue era uma metáfora da diversidade. com isso, abriu uma possibilidade enorme de outras bandas serem inseridas. mas o manifesto – que renato l. diz que era um release, não um manifesto, mas se tornou um manifesto e chegou para a gente como um manifesto – coloca como objetivos desentupir as artérias de recife, as veias enfartadas de recife. o que estava acontecendo no interior, no sertão, era outro tipo de necessidade, uma outra coisa, porque não havia rolado ainda nem o entupimento. era um outro processo. não é real, por exemplo, a efervescência da cultura pernambucana – é recifense. as bandas que formaram o movimento mangue não tocaram no interior, não fizeram turnês pelo interior, não houve uma turnê de nenhuma dessas bandas por a região da gente. a primeira atitude das bandas foi sair para o sudeste, foi sair para o país. vimos um show da mundo livre s/a em arcoverde, que era um projeto do governo, "todos com a nota", de trocar nota fiscal por ingresso. a mundo livre foi para arcoverde e foi, talvez, fundamental na decisão da gente.

cb – eu não vi esse show, estava em recife.

l - não viu?

pas – mas é como se vocês tivessem chegado até como resposta a isso, com o intuito de colocar o interior também nesse mapa musical.

l - não tinha esse objetivo claro.

cb – aconteceria de qualquer forma, mas o movimento mangue abriu mais caminhos para se inserir, para uma banda do interior poder também mandar contribuições. acho que se o movimento mangue não existisse a gente existiria, mas teria mais dificuldade.

l - o espaço que a gente encontrou aberto devido ao movimento é evidente. o mais difícil foi ir de arcoverde para recife. em arcoverde foram os primeiros desafios, os primeiros aplausos, os primeiros medos.

cb – foram várias reuniões para tomar a decisão de ir para recife.

l - mas de recife para o resto do mundo, havia um caminho já aberto. Chegamos na rua teodoro sampaio [no bairro paulistano de pinheiros] , quando a turma escutava o sotaque da gente já dizia "recife?, do caralho, bandas maravilhosas!". também utilizamos muito essa coisa de recife para nossa entrada.

pas – existe também uma empatia natural entre pernambuco e são paulo, não?

l - é, mas a gente tem um público bem grande no rio também. inclusive estreamos o novo espetáculo lá.

pas – e a percepção geral de vocês sobre a mídia, essa interface que vocês têm para se comunicar com o mundo não só pela música?

l - quando a gente começou, a espera era que fosse um grupo que, no máximo, desse uma nova roupagem à musicalidade de luiz gonzaga, de jackson do pandeiro. no máximo esperavam que o que a gente queria de inserção no contemporâneo fosse isso, trazer a musicalidade de luiz gonzaga para uma guitarra, algo mais ou menos como alceu valença já tinha feito, aquela passagem do forró eletrificado.

cb – a gente ouvia muito essa coisa de "caldeirão de ritmos", de que fazia um som de junção de ritmos e elementos. era uma coisa já muito convencional.

l - teve uma hora em que a banda decidiu numa reunião, e essa decisão foi fundamental, que não faria a reprodução de ritmos tradicionais. foi naquele momento em que a gente tinha no repertório duas músicas do samba de coco de arcoverde que estavam virando hits. "eu vou cortar capim para o meu cavalo comer", era música de trabalho.

pas – músicas tradicionais de lá?

l - é, do grupo chamado raízes do coco de arcoverde, que hoje é bem conhecido lá, tem dois discos, uma agenda muito grande na europa.

cb – o nome é samba de coco raízes de arcoverde.

l - o fundador é o lula calixto. eles existem há muitos anos, desde o início do século, mas na proposta de espetáculo surgiram junto com o cordel. a gente juntou muito as forças nisso, nos apresentamos muito juntos.

cb – arcoverde tem hoje no mínimo umas três casas de coco, a do calixto, a do lopes, a dos galegos.

l - são famílias, várias famílias de coco.

cb – lula calixto era uma figura que conseguia agrupar todos no mesmo salão. depois da morte dele as famílias foram se sedimentando nelas mesmas.

l - essas músicas viraram os hits, eram as músicas pedidas, e aí a gente começou a pensar sobre. nesse momento, também, os integrantes do grupo descobrem, individualmente, a possibilidade da composição. eu não compunha antes do cordel, não fazia música. clayton já tinha algumas músicas, mas de uma história pessoal em bar.

cb – eu fazia um musical crooner, voz e violão. fazia umas músicas, mas nada com fundamento, com idéia montada. tinha uma experiência mínima com composição.

l - quando a gente começa a viver esse espaço da composição, o mundo se abre, as possibilidades, que hoje eu consigo entender - mais até com o contato com o zé celso martinez corrêa, que fala da "potência artística" - que a gente não é artista, e sim capaz de arte. entendo hoje claramente como a gente se descobriu capaz da composição. quando começamos o trabalho de compor, entramos nessa discussão de qual seria o caminho adotado. e a banda optou por uma música inventiva. não fazia muito sentido na época o que seria essa invenção, muita gente acha que o novo nunca é alcançado, que é feito de fragmentos do velho. não importa isso, o que importa é essa busca. através dela a gente conseguiu se despregar, e acho que é a maior contribuição do cordel à música daquela região e talvez à música brasileira, da tradição de baião, xaxado, xote. conseguimos fazer ritmos que até agora não têm nome.

pas – também se tenta rotular como cordel, repente...

l - já escutamos "toré progressivo", porque era música indígena com progressivo...

cb – meio redundante...

l - "punk rural" também aparece bastante, umas coisas assim, mas bem mais ligadas ao show do que ao disco. mas essa história era isso, de ser do sertão e ser de agora, 1999 ou 2006. era saber que o movimento de lula calixto, de banda de pífanos, já não usava mais bambu, e sim perna de cadeira de alumínio.

cb – não tinha a taboca, que se fabricava em caruaru, então o artista começou a improvisar ao seu redor, e fez vários pífanos de ferro.

l - usam tênis, porque o tênis custava r$ 10 ou r$ 5, e as alpercatas de couro são caríssimas [o "pobre" É o "rico"?]. o couro é algo que as pessoas institucionalizam como uma imagem de sertão. a gente começou a vivenciar aquilo e a perceber que, por exemplo, luiz gonzaga nasceu em exu, a 1h30 da nossa cidade, então é muito forte a pressão artística dessa pessoa, do que ele conquistou, da figura que ele era e o símbolo que ele representa daquela região. isso que você estava falando, vocês acham que estão levando o conhecimento?, eu tenho muito medo, porque o conhecimento de luiz gonzaga sobre o sertão é uma visão poética dele, um romantismo dele ou dos compositores que o cercaram, que de repente virou a imagem daquele lugar. e não é bem isso.


cb – deixam também o nordeste e o sertão dentro de uma redoma.

pas – mas provavelmente não vai acontecer isso com vocês. luiz gonzaga falou de um jeito direto, a dor do "assum preto" é imediata mesmo para quem nunca viu um assum preto. e vocês vão por um caminho que não é o dessa identificação imediata, talvez até evitem isso.

cb – é difícil carregar essa bandeira.

l - exatamente, carregar essa bandeira.

pas – que é um rótulo, um estereótipo, por mais genial que luiz gonzaga seja.

l - eu queria só terminar essa coisa do luiz gonzaga. é muito perigoso, porque falar de luiz gonzaga é tocar num mito muito forte. a última vez que falei dele até hoje rende e-mail, as pessoas pedindo respeito, "respeite o cara".

cb – como é com padre cícero.

pas – o que você falou?

l - vou te repetir. o pai... de muitas idéias... vou dizer outra coisa: imagine o brasil ser dividido e o nordeste ficar independente. isso é uma música de um repentista chamado ivanildo vilanova, junto com bráulio tavares [co-autor de canções importantes na obra do pernambucano acariocado lenine], que é uma pessoa inteligente, tem um mundo inteiro de conhecimentos. numa passagem dessa música, eles começam a dizer o que seria se o nordeste ficasse independente, e aí dizem que "asa branca" seria o hino nacional. o que a gente mais escuta é que "asa branca" é o hino do nordeste. agora veja bem, você submeter uma população, se a gente adota isso como hino - e hino é uma coisa que você canta, representativa de sua história -, imagina você ficar cantando, a juventude ter que repetir por gerações e gerações "que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação". nem um pé de plantação? se tem hoje uma visão de uma turma que mora no sertão que é o contrário disso?, que acha que deve ter vários pés verdes, que a irrigação deve ocorrer? que deve ser quebrada essa visão coronelista de que luiz gonzaga fez muito parte, de cantar para os coronéis, que é o que ele fazia com maestria do mesmo jeito que ele sabia fazer músicas belíssimas? na música dele tem a perpetuação dessa submissão, e é entendida como um hino do nordeste essa coisa de "nem um pé de plantação"?

[à luz do que está afirmando lirinha, é curioso lembrar que gilberto gil diga com tanta ênfase que "eu quis ser luiz gonzaga" e que, "aliás, eu sou"...]

cb – é datado, né, velho?, da época, que não serve para o futuro, não é atemporal.

l - "asa branca" tem que ser destruída como hino. acho que tem que ser aceita como uma belíssima música... você congela uma situação, e a gente luta justamente pelo contrário, por uma democratização do processo de irrigação, por aquilo dar certo como dá em israel, com aquele deserto, por ter vários pés de plantação, e não "que braseiro, que fornalha".

pas – isso é muito nítido se pensarmos em nordeste e luiz gonzaga, mas é um conflito que vale para qualquer coisa. a bossa nova, por exemplo, vai ficar eternizando uma imagem de um brasil de barquinhos e prainhas? pode valer para a tropicália, para o que se quiser.

cb – porque se faz como música, não como movimento político.

pas – mas porque a gente não percebe que aquilo é um movimento político, é um jeito de dizer que o rio de janeiro é só festa, que o brasil é só praia, e que o nordeste é só sertão.

cb – eu me lembro de um festival [na rede globo, em 1980] em que o brasil estava pegando fogo, e a amelinha cantava "foi deus quem fez você"... quer dizer, se teve uma repercussão na juventude da época é foda, porque não se aceitava falar do que estava rolando de ruim.

l - no começo a gente pedia até licença para poder fazer um som que não fosse a continuidade do som de luiz gonzaga e jackson do pandeiro. pedimos licença para poder fazer outro som, mesmo com a instrumentação de percussão e mesmo nascendo no lugar em que a gente nasceu.

pas – e o som de vocês não é de continuidade em relação a isso, mas, ao mesmo tempo é talvez dos sons que mais honrem aquela mesma origem. eu volto à questão de ter a sensação de que, mesmo sem conhecer, estou ouvindo música de arcoverde, quando ouço os discos de vocês. por isso digo que não sei se entendo completamente, porque parece longe de mim, mas eu sinto, e é muito diferente do mangue bit, por exemplo.

cb – é porque o lugar em que você se cria, o seu habitat natural, é o ponto de base para você compreender o resto do mundo.

pas – muita gente andou camuflando isso, não?

cb – para alguns é um lugar, para outros é um lugar terrível. e cabe a nós falar desse lugar e de outros tantos com que a gente vier conviver.

pas – somando a tudo que falamos sobre regionalismo e modernismo, há hoje o disco novo, que é produzido por carlos eduardo miranda, que é um gaúcho, e parece trazer a maior modificação de sonoridade que vocês tiveram até hoje. é disso que estão falando quando o batizam de "transfiguração"? o que está acontecendo com o som de vocês, por que o miranda como produtor? há algo naquele sentido do que a gente, dentro do rótulo, chama de "modernização"?

l - é, a idéia do título reflete essa mudança, principalmente na construção desse projeto que é disco e é espetáculo. foi a inversão da forma como a gente fazia as composições, músicas, letras, arranjos, tudo com o objetivo principal do espetáculo. os dois primeiros discos são considerados pela banda como pedaços desse espetáculo. o que seria esse pedaço? o registro de áudio desse espetáculo. nesse terceiro trabalho, a gente resolveu se desafiar dentro de um processo diferente, que a gente não sabia bem qual era. foi quando resolvemos fazer um disco musical. tínhamos algumas músicas que não tinham sido encaixadas nos outros dois devido a suas características de canção, a serem músicas compostas assoviando.

pas – quais são essas? "preta" é uma delas?

["preta" é um dos momentos de forte impacto de "transfiguração", na melodia sedutora que embala versos que evocam o mito da agrura de arcoverde (ou de qualquer lugar) e afrontam os mitos da indústria da seca, como "a chuva nunca pára de cantar/ a chuva nunca pára de descer" ou "e a chuva/ vem pequena e grandiosa/ acalenta/ ou revira o nosso lar".]

l - "preta", "aqui"...

cb – "preta" foi um dos maiores desafios harmônicos do disco, porque a gente tenta fazer uma música mais silenciosa, diferente das d'"o palhaço do circo sem futuro" (o segundo álbum do grupo, rec beat, 2002).

l - "aqui" [cujo subtítulo é "memórias do cárcere"], que abre o disco depois da poesia, também. são canções. e aí, quando a gente percebeu que tinha algumas canções, a gente imaginou que esse poderia ser o caminho conceitual do disco. e aí tomou a decisão de este ser o disco musical da banda, como se fosse a estréia da banda nesse evento de estúdio. posso explicar melhor: a história da banda, de composição, de desenvolvimento musical, se deu no teatro. não digo nem no teatro como idéia artística, mas no teatro espaço físico. diferente de outras bandas, a gente não iniciou fazendo nossas demos, fazendo música no quarto. jorge du peixe [da nação zumbi], por exemplo, me mostra várias músicas dele com chico science no quarto da casa dele, eles adolescentes, com sintetizador, bateria eletônica, chico construindo sua voz ainda. a gente não teve esse processo de estúdio. quem apresentou o estúdio para a gente foi naná vasconcelos [que apadrinhou e produziu o álbum de estréia]. ele, apresentando o estúdio para a gente, tomou a decisão de que aquele disco seria o menos estúdio possível, que seria o nosso espetáculo na sala. a gente espalhou os instrumentos e fez praticamente o espetáculo, e registrou o disco.

cb – ele teatralizou o som.

l - foi maravilhoso, porque ele conseguiu, de alguma forma, que permanecesse naquele disco algo muito caro e muito raro para aquela banda, que era o seu objetivo inicial, a função da gente no interior, que era o espetáculo, que era essa apresentação. já estava madura, naná canalizou para o disco...

cb – para o estúdio, de que a gente não tinha experiência alguma. fazia pouco tempo que a gente ensaiava em estúdio em recife.

l - eu não queria gravar disco, era contrário a gravar, porque achava que era o espetáculo, que a gente ia perder, que a turma ia levar para casa o disco... então o contato com estúdio foi muito menos intenso que em outras bandas. e, com o passar do tempo, além de essa necessidade ir aumentando em cada um, cada um foi se envolvendo musicalmente. eu comecei a ter necessidade de envolvimento, comecei a armar meus estúdios em casa, clayton também, emerson, nego, rafa. coincidiu com o desejo de todo mundo desse mergulho em estúdio, a gente fez essa opção.

cb – essa experiência de estúdio que a gente não tinha com naná, por exemplo, que no disco saiu muito bem para o que a gente tinha na época, ela está em "transfiguração".

pas – no segundo disco ainda não está?


l - no segundo, a mudança se faz mais na poesia, porque as bandeiras de "olhe de onde eu sou", "sou do sertão", praticamente não são mais levantadas. o segundo faz uma poética caótica, abre com um cara pedindo esmola em berlim, tem essa intenção de apontar que a banda não vai seguir aquela história do sertão. o terceiro é outra história, é um mergulho no estúdio. eu não sei se é o que o cordel vai ficar fazendo, porque acho que se vai ter um desafio para o quarto trabalho. mas esse é desse jeito aí, a escolha de miranda sinaliza e revela isso. miranda não tem experiência em teatro, não trabalhou com teatro, é um produtor musical, basicamente. a escolha de quem mixou, scotty hard, também, é uma pessoa que não tem esse envolvimento com teatro.

pas – gustavo lenza [do grupo instituto] seria o cara da modernidade paulistana, digamos assim, nessa equipe?

cb – é o cara que pilota os botões, o crânio eletrônico, um técnico muito bom.

l - a relação com miranda foi muito constuída. a banda com que a gente mais tocou até hoje foi a mundo livre s/a – abrimos shows para eles por um ano e meio –, e miranda produziu o primeiro disco da mundo livre. ele ia muito nos shows, e debatia muito conosco sobre a condição da percussão, sobre a dificuldade de captação da percussão. sempre que a gente se encontrava ele comentava sobre isso, achava que tínhamos a condição de puxar um baixo da percussão, que não precisava colocar baixo, "vamos tentar eletrificar essa percussão", "vamos ver de que forma a gente consegue tirar isso que vocês fazem no show para o disco". e aí, nesses processos de conversa na rua, em camarim, bebendo, ele sugeriu que a gente fizesse um single, "as bandas não estão mais fazendo, cara, vamos fazer um". fizemos com "morte e vida stanley", mais uma música de dj dolores, "é de dar nó". aí praticamente se formalizou gravar o disco. a gente curtiu o trabalho dele, ele já ficou dizendo que queria fazer o disco, foi isso.

pas – deve ser uma "transfiguração" para ele também, não? vocês não são exatamente o tipo de banda com que ele costuma trabalhar.

cb – ele tinha feito o dvd d'o rappa, acústico, com várias cordas.

pas – digo mais pela influência teatral mesmo.

l - ele trazia muita coisa para o estúdio. interferência de arranjo não houve, as que aconteceram foram muito sutis, se é que aconteceram. ele tinha um enorme cuidado, porque sabia que seria cobrado por uma modificação do som do cordel. o engraçado é que todo dia ele chegava no estúdio da gravação de um programa, que a gente ainda não sabia qual era. depois do disco é que veio ao ar, aí hoje toda crítica fala "miranda, do 'ídolos'" [descobridor de bandas como raimundos, no início dos anos 90, miranda atuou de lá para cá num arco de ação que inclui ter sido diretor artístico da trama e ser, hoje, o jurado mais divertido do programa teen do SBT "ídolos". no meio do caminho, havia um cordel.].

pas – se ele contasse perigava vocês caírem fora?

l - não, não, porque ele é tão verdadeiro ali também. levava muita coisa para a gente, no meu caso ele e scotty entenderam em fazer ritmo & poesia. falavam de nico, que ela fazia uma textura de base com poesia, de pessoas que eu não conhecia, jim carroll, john cale, nick cave, devendra banhart, que é mais de agora e também foi miranda que me mostrou. para clayton, foi um universo de violão, guitarra...

cb – me mostrou todos os tocadores de banjo, de country music, de música folk, gente que eu não conhecia. foi muito bom discutir essa coisa de tocar afinado, também tocar com instrumento que não afina direito, mas ficar do caralho. respeitar a realidade do som, não tentar plastificar muito a coisa.

pas – como vocês saem dessa inversão, de fazer algo mais musical e só então partir para o show, o teatro?

l - está bem difícil para a banda, bem difícil.

cb – apesar da experiência com espetáculos, eu me surpreendi com a dificuldade de montar esse. mas acho que não foi muito por causa do disco, acho que a gente já vinha com espetáculos intermediários há um tempo. lançamos o "palhaço", depois o dvd ["mtv apresenta", trama, 2005], demos um tempo para o próximo disco e fizemos muitos espetáculos intermediários. para sair dessa estética dos intermediários e montar um novo espetáculo está sendo um grande desafio, uma grande dificuldade, para sair das fórmulas, das estéticas... termina você se acostumando com uma coisa que está dando certo e não se permite se arriscar.

l - tem uma questão também que a construção de composição do cordel tinha muito a ver com o público. muitos dos nossos arranjos eram por acentuação de sentimento da música, vamos trazer uma trovoada, vamos trazer a impaciência para a platéia, vamos fazer uma cacofonia, uma bagunça de percussão para dar um caos, aí voltar para o arranjo. a gente fazia muito levando em consideração essa reação, e aí transpor o disco, que tem muitas músicas lentas, para a apresentação, está sendo o maior desafio.

cb – o público carrega a impressão de sempre o espetáculo ser uma trovoada de percussão, uma enxurrada de ritmos e batuques. e a gente fez um disco mais concentrado na harmonia e na melodia, com os batuques, mas diferente. aí causa um estranhamento para o público, que está acostumado com o show.

pas – para o público e para os artistas, também?

l - é, no primeiro show, no rio, metemos oito músicas novas no início. certo que, dessas, duas ou três já são cantadas por causa do site, do dvd, de shows. na quinta música, no rio, escuto um cara na platéia gritar assim: "toca cordel, porra!" [risos].

cb – essa foi a melhor da noite. tinha muito "toca raul" também... aí tem gente no site dizendo que cordel é "o sol saiu", e tal...

pas – o público é conservador? quer que vocês sejam sempre os mesmos, e no primeiro sinal de mudança já há reclamação?

l - o que me fez seguir o show bem foi ter visto o documentário de martin scorcese sobre bob dylan, que é todo em cima de um show no qual ele introduziu a guitarra. é um puta som, mas na época foi uma mudança muito grande para aquele violãozinho com gaita. a turma, clayton, dizia "quero meu dinheiro de volta!", outro diz "tenho vontade de dar um tiro na cabeça dele".

pas – é interessante ver que essa resistência acontece sempre, historicamente, seja na passeata contra a guitarra no Brasil, nos anos 60, ou no exemplo que vocês estão contando. a priori, o público não reage bem a mudanças?

l - o mais engraçado é um fã dizer para você que o som do cordel é tal música do primeiro disco, ou "o sol saiu", que é uma música do samba de coco de arcoverde. uma pessoa dizia assim na internet: "a música do cordel é 'o sol saiu'".

cb – mas, quando a gente está muito satisfeito com o trabalho, está tranqüilo. as críticas que vierem, acho até previsíveis por causa da mudança.

pas – para mim, não sei se como crítico ou como fã, está mais legal do que era. mudando, você evita de acabar virando um rótulo, um estereótipo, não?

l - é, e aí é onde rola a maior história de público. esse mesmo público conservador, que só quer ser feliz, se você se mantém nesse agrado, nesse rótulo, demora um tanto e ele abandona você. porque o que motivou, na verdade, não foi isso, não foi o que você já é. foi a surpresa.

cb – eu curto muito o exemplo de miles davis, que fez da arte dele o que ele quis, misturou com tudo que quis e não se preocupou tanto com perder ou ganhar público, mas sim a satisfação dele como músico. no show, ficamos muito ligados em não errar, e muito cansados também, porque foram duas semanas de ensaio exaustivo. não percebi muito o show, estava ligado ali no andamento, dando uns toques para a turma do momento de mudança, não prestei muita atenção no público. depois lirinha me contou no camarim, e eu morri de rir. mas foi um show bastante difícil, estréia, muito verde, além de todos os riscos de um disco diferente do show, só música nova do meio ao começo. o público que está lá para dançar, pular e cantar "ai se sesse" teve esse impacto, "pô, cadê?". do meio para o final foi que fizemos músicas antigas, dos outros discos. tudo bem, tem a conversa do time que está ganhando, mas a gente não pode se conformar, achar que está muito bom. artistas que antigamente a gente adorava hoje estão implodindo, se repetindo, pisando no mesmo rastro. não é isso que a gente quer para a nossa história.

pas – é um risco, mas as bandas que se reinventam e são bem-sucedidas na hora da reinvenção saem revigoradas – como, por exemplo, no susto que os paralamas do sucesso causaram ao fazer "selvagem" [em 1986].

cb – é, los hermanos fizeram esse rompimento, com "o bloco do eu sozinho", depois de "anna júlia". com a gente não foi assim, não tem semelhança muito grande com isso, é mais pela questão de fazer um trabalho que lhe agrada e não é igual aos outros, não é previsível.

pas – é como se a parte musical estivesse agora crescendo, se encorpando? em contraponto, isso significa ter que encolher a parte teatral, de artes plásticas, de circo?

l - acredito que não. tenho receio de não conseguir passar isso na prática, mas o objetivo da gente era por uma radicalização, era aumentar mais ainda essa confusão entre o teatro e a música dentro do cordel. a gente se achava muito cênico, uma interpretação muito ligada ao teatro, mas esse mergulho na música não significa uma diminuição do espaço cênico. Ee, inclusive, acho pelo contrário, que se equilibra mais agora. a apresentação da gente fica mais ainda numa zona de limite, numa zona de fronteira que acredito que é a principal característica do cordel.

cb – a música chega a uma porcentagem que fica igual à do teatro e da poesia, sabe? acho que uma coisa não dá lugar a outra, acho que tem um crescimento maior no lado musical, e não uma diminuição do lado teatral e poético.

pas – ou seja, um lado pode aumentar sem que os outros diminuam.

cb – sim, sem que as outras tenham que diminuir. a gente já está mexendo mais com áudio em casa, tem a necessidade de também passar essa experiência para o show e para o disco. não dá para truncar conhecimento. quando se tem uma válvula de escape que é um show de uma banda, não é legal truncar um conhecimento que pode ser útil naquele momento. o fato de o disco de ser musical não descuida o lado teatral, no qual a gente tem mais experiência até do que tinha com o áudio.

pas – a presença do circo no segundo disco foi uma experiência de passagem? por que essa referência ficou mais explícita ali? o circo faz parte da origem de vocês em arcoverde?

l - faz, a figura do palhaço... o circo em arcoverde era a notícia de outros lugares passando por ali. aquela lona era o trânsito, a estrada representada ali, outros lugares. para cidade do interior isso tem uma representação enorme. a quantidade de pessoas que querem fugir com o circo no último dia é incrível.

pas – inclusive vocês? passaram por isso?

l - eu comecei recitando poesia antes de música, e era muito fã de pessoas que declamavam em circo. havia grandes declamadores que diziam poesias de patativa do assaré. e o palhaço, que para mim é o maior símbolo, meu grande objetivo artístico. o palhaço de circo pequeno, de circo onde ele tem que segurar com as habilidades que tem.

pas – sua ligação com poesia passa pelo circo também? é uma tradição poética que chegou a você com o circo?

l - é, os declamadores. comecei profissionalmente, ganhando cachê, com 12 anos, como declamador, que é uma função que existe dentro do circuito de cantadores de viola, de repentistas.

pas – no circo?

l - não, não fiz apresentações no circo, nunca fiz. mas é uma tradição que utilizou muito o espaço circo no passado, como intervenção no picadeiro, que eles chamavam de drama, quando o cara, geralmente perto do final, declamava poesias.

cb – os declamadores circulavam em diversos ambientes, dentre eles o circo. eu toquei em circo uma vez só, acompanhando ao violão uma apresentação de um tecladista.

pas – fiz recentemente uma reportagem sobre circo, e percebi que a falta de água é um mito central para os circenses, e isso faz lembrar aquilo que vocês estavam falando sobre a falta de água em arcoverde.

[o mito da água é circular em "transfiguração", não só na já citada "preta", como também, por exemplo, na crucial parceria com bnegão, em "pedra e bala (ou os sertões)", que termina "naquele circo no qual quando chove não há espetáculo". como nota instintivamente o poeta, o cigano-nômade-circense vive atormentado pela escassez de água nos terrenos baldios em que se planta, assim como a faz jorrar abundante durante o espetáculo (vide os balés das águas de orlando orfei), mas, se a chuva fura a lona de fora para dentro, o próprio espetáculo resulta ameaçado. a chuva É a seca?, a seca É a chuva?]

l - e eles são estrangeiros, né? naquela linguagem da interlândia, eu fico pensando no estrangeiro, que acho que talvez seja hoje o tema, a palavra mais especial deste momento que o mundo vive. o que fazer com o estrangeiro?

[também aparentado do circo, esse mito, o do estrangeiro, aparece em "transfiguração" no tenso "canto dos emigrantes", um poema de alberto da cunha melo, que diz assim que "com seus pássaros/ ou a lembrança de seus pássaros/ com seus filhos/ ou a lembrança de seus filhos/ com seu povo/ ou a lembrança de seu povo/ todos emigram. de uma quadra a outra do tempo/ de uma praia a outra do atlântico/ de uma serra a outra das cordilheiras/ todos emigram/ para o corpo de berenice ou o coração de wall street/ para o último templo ou a primeira dose de 'tóchico'/ para dentro de si ou para todos. para sempre/ todos emigram". aves migratórias, os rapazes do cordel fazem o som de "canto dos emigrantes" parecer sair de um velho fonógrafo, num velho discão riscado. na grandeza desse instante, a interlândia vai morar nos sulcos de um disco empoeirado de vinil, numa emissão de rádio, num chiado de tv, no circo.]

a gente foi fazer o clipe do "palhaço do circo sem futuro" com o roberto berliner, da tv zero, que fez "a pessoa é para o que nasce". fomos gravar em arcoverde, ele só com uma câmera, tinha conhecido a gente um dia antes. saímos de recife num carro, quando íamos chegando em arcoverde demos de cara com um circo armado. a gente não sabia. levamos berliner para conhecer um circo de cidade de interior, quando chegamos era um circo de anões. eram 16 anões.


pas – só de anões?

l - só de anões. os grandes eram os empregados que batiam as estacas. os artistas eram anões.

pas – isso entrou no clipe?

l - não entrou, o que aconteceu? roberto passou 15 dias com esse circo, e é um próximo documentário dele [ooooooooooobaaaaa!]. botou umas imagens no clipe, falou com a gente, pediu permissão para fazer um trabalho especial com esses anões. assistiu ao espetáculo, filmou o desarmar, a viagem e o armar em outra cidade. deve ter sido maravilhoso.

pas – a faixa "pedra e bala (ou os sertões)" é bastante política, talvez a mais diretamente política que vocês já fizeram. poderiam falar um pouco sobre ela?

l - bnegão é fã do cordel, ele diz que foi em 12 shows no rio, e sempre ia no camarim, sempre fazia muitos comentários sobre o som. e aí a gente, quando fez essa base, pensou em chamá-lo. chegou aqui em são paulo, não tinha nada construído de letra, a gente deu um mote.

pas – qual mote?

l - o mote foi a intifada, a pedra contra o tanque. seria essa a imagem, as cercas velhas de arame novo, seria a continuidade desse pensamento, criando aquele muro, uma coisa repetitiva.

cb – e os muros também que a gente já conhecia no brasil, não era uma coisa voltada só sobre o que rola entre israel e palestina. não é um olhar para aquele movimento, mas sim nosso dialeto aqui no país, nossos muros, entre arcoverde e recife, e todas essas coisas.

pas – como entram aí "os sertões" de zé celso?

l - zé celso está em duas músicas, nessa e também em "louco de deus (ou perto de você)", que eu fiz toda para zé celso. é ele esse louco de deus. isso aconteceu pelo envolvimento que tive, de terminar assinando a direção musical de "a luta – parte 1". faço esse comentário de que assinei, mas não sou responsável, porque cheguei faltando 20 dias para a estréia, e peguei a obra já muito encaminhada.

[primo-ermitão do "louco de deus" destinado a zé celso (alô, estamira!), em "transfiguração", é "sobre as folhas (ou o barão nas árvores)", sobre um "nobre" sobe num galho de árvore e nunca mais volta a pisar na terra: "soube nessa madrugada/ do homem que não quis os minérios do pai/ que não quis os segredos farpados da mãe/ subiu numa planta, no alto da pedra, bem perto daqui/ e ficou por lá".]

pas – você foi chamado por ele?

l - chamado por ele.

pas – ...que deve ter reconhecido alguma ligação entre lirinha e antônio conselheiro?

l - é que é o segunte, nós fizemos um filme juntos, o "árido movie", e ele passou uma semana na minha cidade, andando por arcoverde. ficamos eu e ele andando de cima para baixo, e ele estava na elaboração de "os sertões", já tinha estreado "a terra" e estava começando a parte antropológica, que é "o homem". a gente começou a dividir idéias sobre o sertão, sobre aquele sertão... a grande contribuição de zé, com a peça "os sertões", é por uma interpretação diferenciada do sertão, que acho maravilhosa. tem as caricaturas do teatro oficina, que são sagradas, fazem parte dele, a coisa da antropofagia e de oswald de andrade, mas a visão do zé celso sobre "os sertões" é de uma contribuição de libertação... e aí há "a matadeira", que é uma música que a gente fez no segundo disco, que consegue trazer essa imagem histórica da matadeira, que é a arma que chega para destruir canudos, um canhão alemão. na poética do cordel, tratamos esse tema da seguinte forma: "a matadeira vem chegando no alto da favela/ no balanço da justiça do seu criador". e aí zé achava que a gente tinha trazido a matadeira para uma favela carioca, quando na verdade o alto da favela é a região de canudos, de onde surgiu a primeira palavra favela, e a partir daí surgiu a definição de favela.

então foi mais um comentário, "os sertões" relacionado a zé celso, mais esse momento de composição do disco. o disco tem muita referência literária, acho superpretensioso isso [clayton ri], mas os outros também tinham. nesse está explícito, em vários subtítulos, "o barão das árvores" de italo calvino, "a teus pés" de ana cristina césar, "memórias do cárcere" de graciliano ramos, "na estrada" de jack kerouac... essas referências estão ali porque contribuem no conceito do disco, que é qual? o trânsito, a transfiguração, a locomoção, a música na estrada. são várias músicas que tratam desse tema, de estar em trânsito, estar se movimentando.

cb – "na estrada" resume esse pensamento, ele diz "vou por aqui, vou por ali/ o infinito é tão longe". já está embutida aí a transfiguração do disco, outro caminho que a gente está sentindo.

l - [para clayton] eu nunca te disse, mas "vou por aqui, vou por ali" vem de uma poesia de fernando pessoa: "vou por aqui, [exalta a voz] já disse que não vou por ali". eu ia colocar assim, aí pensei que duas referências na mesma música seria foda. mas era mais ou menos essa idéia, colocar subtítulos é uma característica do cordel, a gente aproveitou e botou títulos de livros.

pas – no que entra também "os sertões" de euclides da cunha... mas, voltando à letra do bnegão, que fala do coronoel ubiratan, ela ficou mais atual com a morte dele?...

l - ele morreu na quarta-feira e a gente lançou o disco na sexta. eu disse a bnegão, "você não fale mais em mim numa música, não" [risos]. o que bnegão canta foi ele que fez, o que eu canto fui eu que fiz. ele fez praticamente de improviso. gravou depois duas vozes para ajeitar, mas aquela primeira levada foi de uma vez. eu acredito que se torna muito importante para o disco a presença do bnegão, antes mesmo até de a música ser escutada, só o fato de ele estar inserido no disco como a única participação, porque superficialmente seriam avaliadas como músicas diferentes, mas tem um ponto em que a gente se encontra, e esse ponto é muito sagrado para os dois: o ritmo & poesia.

pas – unindo a isso miranda e scotty, temos aí o rock, o punk, o repente, o cordel, o rap, todo mundo junto.

l - scotty tem uma presença interessantíssima no disco, porque ele não sabia a história da banda. quando a gente percebeu que ele não sabia que somos do interior, a gente resolveu que ele não soubesse mesmo. foi talvez a primeira pessoa, um norte-americano, que pegou o som da banda... perguntou logo onde estava o baixo, "não tem baixo", guitarra?, "não tem". e aí ele pegou o som da banda e deu uma interpretação muito distante de qualquer prejulgamento ou previsão. deu um tratamento de ritmo & poesia, e eu me sinto muito em casa com isso. eu mesmo não me considero um cantor. na verdade, sempre tive uma vontade de fazer poesia, quando conheci clayton e quando a gente descobriu que poderia fazer poesia.

pas – esse trânsito de que você fala poderia ser uma descrição de arcoverde?

l - é, sim. sabe delmiro gouveia, que teve a primeira hidrelétrica do brasil, que é paulo afonso? ele é muito importante, é o daquelas linhas correntes...

cb – ele foi morto, né? ele concorria com a indústria inglesa.

l - ele inventou a hidrelétrica no brasil, uma casinha que tem em paulo afonso e é bem conhecida, ponto turístico. e ele vendia couro, negociava couro, ia com tropas de burros e trocava por cal, com o pai de lampião, em arcoverde. lampião tinha 11 anos de idade.

cb – antes de ser cangaceiro ele era tropeiro...

l - ...almocreve, que a turma chama, né? trocava couro por cal.

pas – por que você se lembrou disso?

l - porque acredito que a história sempre se repete. a cidade, desde há muito tempo, tinha uma característica disso, de trânsito. as pessoas vinham, uma de um lugar e outra de outro, e chegavam lá, se encontravam, faziam a troca. eram pessoas que foram depois importantíssimas para o país, que tinham aqui em arcoverde, por causa de sua posição geográfica, esse trânsito.

pas – luiz gonzaga nasceu em exu, a uma hora e meia de arcoverde. e garanhuns, fica a que distância?

l - 80 quilômetros.

pas – lula é uma pressão presente, comparável à de luiz gonzaga?

l - lula é uma pressão presente, mas há um fato muito interessante de lula. utilizam a imagem de lula como representante de uma política nordestina, é muito comum ser dito que mais um nordestino está governando o país, depois de collor, sarney... mas a formação política de lula não tem base em pernambuco, a formação dele é abc paulista, uma forma de fazer política de são paulo. as pessoas observam muito pouco isso. é uma leitura, está subentendido que é uma crítica dizer que ele é um político do nordeste, um político nordestino. acredito que em pernambuco, por exemplo, e naquela região de lula, existiram políticos que implementaram e aplicaram uma política pernambucana, de lá mesmo, como gregório bezerra e francisco julião, que foram fundamentais para o que existe hoje do movimento sem-terra. são pessoas que trabalharam na zona rural, e o movimento sem-terra em pernambuco é um dos mais fortes do brasil. acho que isso, sim, é fruto de um jeito pernambucano de fazer política. agora, a política de lula está mais para a herança do café com leite, de minas e são paulo, como também a daquele severino cavalcanti. está mais para esse assistencialismo que foi estruturado também aqui no sudeste que para aquela relação de luta agrária que há em pernambuco, uma relação que as pessoas preferiram esquecer, não lembrar. sinto que lula, nas coisas ruins, aparece como sendo de caetés.

pas – por outro lado, ele é parecido com vocês em rejeitar aquele destino conformado, de "que braseiro, que fornalha", que luiz gonzaga retratou. tanto é que isso causa outro rótulo ou estereótipo ou preconceito, de que o voto em lula é um voto "atrasado" e "nordestino".

l - sim, como se ele tivesse tido a vida pública desenvolvida no nordeste, e não foi.

cb – ele é estrangeiro, até, no nordeste.

l - ele foi uma pessoa que estruturou seus pensamentos de movimentação popular na classe operária daqui de são paulo. e essa política operária é responsável pelo pensamento de lula hoje. não é o nordeste, não é caetés, de onde ele saiu menino.

cb – não conviveu com as dificulades do lugar, né? não se fundamentou como político lá.

l - é aquela história, a gente é muito chamado de guerreiro, em algumas avaliações em arcoverde, mas eu não sei se os guerreiros são o cordel ou quem ficou lá, quem ficou fazendo música lá. tem uma turma que ficou fazendo música lá, amigos nossos, inclusive que tocavam com a gente e não puderam sair porque tinham um trabalho ou alguma coisa. então não sei bem se os guerreiros somos bem nós. acho que a gente buscou o melhor conforto, né? a gente buscou o melhor conforto.

[percebe que, pouco depois de caracterizar lula como um migrante sem vínculo real com o torrão natal, lirinha faz o mesmo consigo próprio, meio que se desqualificando em detrimento dos "guerreiros" que ficaram?]

pas – o que também é uma guerra, quem migra também passa por poucas e boas, não?

l - passa, passa. mas, no caso, a saída de lula, pequeno, foi uma retirada como várias que ocorreram e que ainda hoje ocorrem. é o que está presente na nossa música "morte e vida stanley", que é a continuidade desse severino de "morte e vida severina", só com outro nome. essa retirada se deu e ele desenvolveu a história dele aqui. não acho nada de errado lula utilizar a referência da pobreza de sua família e de sua mãe, porque acho isso importantíssimo para uma população que em sua maioria vive as mesmas dificuldades que a família de lula viveu. a história de vitória dele, como pessoa, é importantíssima. mas não pode ser desculpa, essa história da fome, da mãe, de ele ser de uma família nordestina, para que ele cometa escorregos de submissão. é contraditório. ele diz isso, diz "vocês me respeitem porque eu passei fome, minha família passou fome, vim aqui de pau-de-arara". beleza, cara, mas se dê ao respeito para isso também, a gente não pode respeitar só por essa história.

pas – o balanço geral do governo lula, para vocês, é mais positivo ou negativo?

l - acho positivo, mais positivo. acho que estão sendo aplicadas coisas que há muito tempo não saíam do papel. a própria polêmica da transposição do rio são francisco se encontra hoje nesse grau porque foi sinalizada uma possibilidade de realização, então já mexeu em toda uma estrutura de indústria da seca. e não é apenas um assunto, já se tem uma possibilidade disso. na parte de cultura, arcoverde tem um ponto de cultura agora, na estação. é uma presença interessante, essa. e há outros fatores que, mesmo lançando essa crítica, eu acho positivos. inclusive eu voto nele, estou com ele, de novo.

cb – acho que a gente no nordeste tem um histórico de votar mal, de eleger mal, essa história do saco de cimento, do paternalismo, do assistencialismo que rola lá. não é à toa que se vêem eleitas pessoas como acm, inocêncio oliveira, marco maciel, que estão aí no poder há décadas.

l - mas é muito triste ver comentários como um de nelson motta, mesmo com o maior cuidado para não cometer o erro trágico de paulo francis, que fez um comentário preconceituoso sobre o nordeste e pagou muito caro por isso. várias cidades do nordeste deram títulos de pessoa não grata a paulo francis, e até uma banda de recife se chama paulo francis vai pro céu por isso. e eu sinto que nelson motta começa, com muito cuidado para não cair nisso, dizendo que o nordeste é lindo, que o nordeste tem praias belíssimas, tem um povo maravilhoso, um ambiente diversificado, uma criatividade muito grande, incrível, mas que o que tem dado de político desastroso para o país é um crime. ora, isso é uma crueldade com aquela região. volto a dizer, os políticos maravilhosos que passaram ali e são esquecidos, inclusive na comemoração da vitória sobre a ditadura militar não falaram em gregório bezerra. além disso, é se esquecer muito dos carioquíssimos garotinhos, de paulo maluf de são paulo...

cb – a gente também não tem experiência, tancredo morreu, vieram sarney, collor, impeachment, vice-presidente, depois fernando henrique... a gente tem três eleições para presidente como experiência, é pouquíssimo tempo. a gente não sabe lidar com política ainda no país. e tem a forma como o país surgiu, o jeitinho brasileiro que atrapalha muito em todos os lugares. mas acho positivo, porque lembro daquele embate entre paulo autran e gilberto gil, paulo autran reclamando da falta de recursos do ministério da cultura para alguns artistas e gil rebatendo que pessoas como paulo autran já estão com a vida ganha, que o ministério está voltado mais para o povo. acho que o fato de arcoverde ter um ponto de cultura representa uma relação positiva do governo lula. eu acho que melhorou, apesar de saber que o sistema é totalmente corrompido e não se transforma em um ou dois mandatos.

l - é foda estar dando esse voto estratégico.

cb – é, é um voto estratégico.

l - está igual à copa do mundo, né? ninguém está seduzido por essa eleição.

pas – ah, não, eu voto com convicção, acho que o positivo ganha muito do negativo.

l - é? está envolvido?

pas – como clayton falou, só agora estamos completando uma maioridade como democracia, 18 anos.

cb – só que ela é uma democracia política, não é popular. a necessidade do povo é mais imediata.

pas – ainda há muitos resquícios de autoritarismo, e não é no nordeste, mas em todos os lugares do brasil. aqui no sudeste temos os procedimentos a mídia, a ordem dos músicos do Brasil...

cb – é o país inteiro, a gente não pode separar o nordeste como uma região que elege mal.

pas – mas, voltando, não terminamos o assunto do coronel ubiratan. fica para vocês um desconforto de citá-lo daquela maneira, depois de ter acontecido o que aconteceu com ele? que relação vocês fariam entre o que está escrito ali, que é bastante forte, e o fato de ele ter morrido?

l - é, a gente não esperava...

[em "pedra e bala (ou os sertões)", as vozes & versos de lirinha & bnegão se interprenetram em proposições de tamanho impacto: "guerra altera a terra, nada será como antes/ na inversão dos papéis do pequeno davi contra golias, o gigante/ como os barões das megacorporações/ gigante como o coronelado dos grandes e pequenos sertões/ como os vários e vários e vários ubiratans/ com seus sanguinários batalhões/ que na sua prepotência e ignorância bélica/ não conseguirão perceber a força e a chegada certeira daquela pedra". é "guerra pela terra, a pedra contra o tanque". a pulsão entre liberdade E prisão se arremessa ao claustro, como ocorre diversas vezes no balanço de navio negreiro em "transfiguração" - "essa é a sua jaula", nas palavras planet hemp de bnegão. liberdade É prisão?]

pas – o pcc entra também nesse universo do disco, que já contava com antônio conselheiro...

l - entra, o pcc entra em dois pontos. o disco abre com uma poesia sobre prisão. é um símbolo, uma imagem da pessoa que sai dessa prisão. é uma poesia de estrutura métrica e de rima ligadas ao nosso segundo disco, é aquela velha ligação que o cordel faz entre os discos, então abre com aquele universo do "palhaço do circo sem futuro", numa textura daquela forma escura. aí diz que "a prisão é sinistra, amarga e feia/ dum velório tem pouca diferença/ não conheço quem vá pedir licença", e esse cara sai da cadeia. quando esse símbolo sai da cadeia, "uma gota de encanto molha o riso/ quando o preso recebe a liberdade", só com essa possibilidade da liberdade acontece a transfiguração, o início da transfiguração.

cb – ele rompe o casulo, né?

l - é, ele sai em liberdade. a primeira música depois dessa poesia foi feita com a idéia de uma pessoa escrevendo depois de um dia de visitas na prisão, "vou, vou pregar na parede um pedaço do céu que você me mandou" [é a envolvente "aqui (ou memórias do cárcere)"], uma foto do céu, "vou buscar outra constelação entre a noite que vai e o dia que vem". depois ele diz: "vou riscar no meu braço um pedaço do mar que você me deixou", depois daquela visita.

pas – é um cara preso, não necessariamente numa cadeia, mas em alguma circunstância qualquer?

l - a idéia era que estivesse dentro de uma cadeia mesmo.

cb – e, dentro dessa idéia da cadeia, trazer a metáfora de estar preso em si mesmo, de estar se libertando, com o disco, "transfiguração", dessa cadeia de regionalismo, de rótulos. eu entendo essa música como um rompimento.

l - exatamente. a imagem, a construção dela, tem muito a ver com o pcc, pela seguinte forma: no momento em que há aquela parada na cidade, começa esse processo todo de presença do pcc em são paulo, na cidade em que estou morando. é uma presença tão forte, em vários momentos mais forte que o estado, mais visível que a presença do estado. então tive a vontade de, através da poesia, da licença poética, fazer uma poesia de dentro de uma cadeia. são pouquíssimas as pessoas que, antes do pcc, tinham pensado nesse universo de dentro da cadeia. o próprio muro serve para isso, para que a gente não veja o que está ali dentro. e é um depósito do lixo humano, do lixo da sociedade. ninguém esperava que esse lixo se organizasse, era um depósito onde as pessoas iam jogando, achavam que era um poço sem fundo, e de repente acontece tudo isso. já interferiu na minha poesia completamente, eu fiquei pensando em como é um cara escrevendo essa poesia, como é o sonho dele. como é o sonho de quem está preso?

pas – ou seja, é uma tentativa de você se colocar no lugar do cara que está fazendo o pcc, um personagem que a gente fingia nem saber que existe?

cb – negava a inteligência e a condição de organização.

l - a condição de organização, principalmente. achava-se que não se organizariam. isso. a música de bnegão aparece, também, dentro dos sertões, do universo do livro do euclides da cunha, ele como correspondente do "estado de são Paulo", enviado para uma guerra. ele chega com a visão de que aquilo é um absurdo, de que a república está sendo ameaçada e levando aquele baile de um monte de fanáticos. junto com a intelectualidade da rua do ouvidor, no rio de janeiro, ele instiga a destruição daquele arraial. mas, como ele está muito próximo daquela guerra, começa a ter outra visão, começa a dizer que canudos foi um erro...

cb – um genocídio.

l - ...que o brasil deveria ter escutado canudos, que deveria ter entendido canudos, só porque ele se aproxima daquilo. continua a intelectualidade do rio de janeiro instigando a república a destruir aquilo. não se vê diferença alguma para esse universo de hoje, para a relação do exército brasileiro, no caso a polícia, com o morro. as informações que chegam para a gente sobre esse morro são muito semelhantes as que chegavam na época sobre o arraial de canudos. até tinha uma sugestão de que canudos era apoiado pela rússia, porque acharam um russo morto. as marcas de bala da turma eram tão caseiras, feitas de prego e pau, e faziam um arrombamento que eles diziam que eram armas da europa, que eles estavam sendo assessorados. enfim, a mudança é tão pouca, e "como vários e vários e vários ubiratans", o comandante daquele massacre simbólico. acho que o que bnegão fala e que eu vou conseguir falar no lugar dele com toda a verdade do mundo, é que os vários e vários ubiratans, que não é apenas um, "com seus sanguinários batalhões, não conseguirão entender a força e a chegada certeira daquela pedra", "com seus tanques, com sua prepotência bélica" – é a expressão que bnegão usa.

pas – dentro dessas semelhanças todas há uma inversão: você, poeta, está como correspondente de guerra em são paulo, assistindo-a de dentro da metrópole.

l - pode ser. mas acho que em canudos, por exemplo, havia os cordelistas, os poetas, que já faziam suas poesias dizendo que antônio conselheiro não era tão mau, que aquilo era um lugar justo, que tinha uma tentativa.

pas – esses seriam bnegão e os rappers aqui de são paulo, né? e o stanley de "morte e vida stanley", por que esse nome?

l - somos também muito ligados, na nossa interpretação de retirada, com a idéia de "morte e vida severina". é muito interessante o fluxo retratado, o caminho, e aí a percepção nossa é que continua, que continua essa retirada com modificações muito pequenas. a gente brinca com o nome do cara, que seria um filho de um severino. na poesia de joão cabral de melo neto, ele começa falando de "severino, filho de maria, como tantos severinos, filhos de tantas marias", cria esse moto contínuo do severino, severino, severino, severino. a gente brinca com isso, que de repente um pai chamado severino coloca o nome do filho de stanley.

cb – eu trabalhei na construção civil na década de 80 para a de 90, e meu nome é clayton, por influência que meus pais sofreram. foi minha irmã que influenciou para colocar o nome de clayton. Eu também sou do nordeste, dessa geração, e vim trabalhar aqui na construção civil, eu me considero um stanley também por essa ótica. se resume numa história parecida.

pas – você trabalhava na obra?

cb – é, eu vim conhecer uma parte da família aqui, e o meu parente trabalhava com eletricidade em construção civil, e eu ia trabalhar com ele. morei em guarulhos.

l - e tem a história do stanley real, existe um stanley real. a gente enfeitou que o pai dele era severino, mas almoçávamos aqui no restaurante água branca, não almoço mais porque faço comida em casa. e estavam construindo a uninove aí. a gente estava jantando, chegou um menino, um rapaz todo melado de cal, a cabeça branca, pediu a refeição. aí ele perguntou: "vocês são do cordel?", "sim". ele disse: "eu sou de serra talhada", que é bem perto de arcoverde e foi onde lampião nasceu, bem pertinho. começamos a conversar, ele disse que tinha uma banda, que tocava guitarra, começou a falar um monte de coisa. perguntamos o que ele estava fazendo aqui, "estou trabalhando na uninove, construindo a universidade" [e esse cara, que constrói a universidade, é o mesmo que a madame e o cartola mais tarde chamarão "vagabundo", mora?]. ele estava dormindo na obra, ele e os amigos resolveram ficar trabalhando à noite também, em empreitada, para irem-se embora logo para serra talhada. ora, é quase que uma escravidão, porque, para eles irem embora logo, trabalhavam mais de oito horas por dia, com fiscalização nenhuma. ele tinha ido jantar e ia voltar para trabalhar, todo melado de cal. eu disse "prazer, cara, lira, vamos nos encontrar aí, aparece no próximo show", "prazer, stanley". chocante! stanley, de serra talhada?, pelo amor de deus!

pas – e ele era fã de vocês?

l - ele conhecia a banda, de televisão.

pas – ele deve saber da música que inspirou, vocês não têm mais notícia dele?

l - não. sempre brinco, digo que ele está no show, "muito obrigado à presença de stanley", as pessoas ficam procurando.

pas – vocês podem ter uma surpresa qualquer dia, de aparecer uma banda de serra talhada...

l - ia ser o máximo.

cb – chamada morte e vida Stanley, legal.

pas – a história na verdade é triste, mas diz muita coisa sobre como funciona o brasil, não?

cb –– que massa, né?, você incitar sua localidade a promover coisas. acho que o cordel tem uma imagem legal lá em arcoverde, que é essa, de outros grupos poderem surgir.

l - a maior contribuição do cordel é a possibilidade aberta para uma população.

cb – mesmo aquela que não se gera lá, porque o cordel também não teria a condição que tem hoje morando lá. os horizontes ficariam curtos.

l - a juventude da nossa cidade tem a mesma necessidade da juventude que tocou fogo nos carros da frança.

cb – em recife, por exemplo, rola aumento de passagem de ônibus e neguinho toca fogo mesmo no busão, no meio da rua.

l - e essa juventude, quais são os problemas dela? desemprego, falta de perspectiva, falta de possibilidade. e isso é acentuado naquela região, porque você tem que sair para que essa perspectiva se abra para algo legal. é um êxodo forçado. o que ocorre é o seguinte: o cordel surgindo, aparecendo na televisão, num dia que quer que seja ou numa nota de jornal, cria uma possibilidade enorme, principalmente para a turma que está em formação, "é possível, não é só o cara da capital, o cara da metrópole, eu posso começar a fazer poesia". e não é que eu espere que todo mundo seja poeta ou músico, não, que isso é um saco também, mas no seu trabalho, e até na construção civil.

cb – e de modificar lá também.

pas – na fantasia de ouvinte, quando ouço "morte e vida stanley", também vejo stanley como um gringo, um retirante do primeiro mundo. por que não pensar também na retirada do cara que escapou do world trade center em 11 de setembro? não é só o severino daqui que tem que fugir de sua realidade...

l - ou a retirada anterior a isso, que é a retirada do primeiro grupo de hominídeos. não está bem certo se foi na áfrica, mas esse grupo saiu, ou alguns deles saíram dali e foram ocupar outros lugares do mundo. como é que essa característica migratória original do ser humano hoje começou a ser questionada? hoje, em 2006, é questionado seu direito de andar. e é cobrado de uma banda como o cordel, por exemplo, uma posição de não-trânsito. é dito muito assim: "não percam as raízes". foi maravilhoso eu ter tido acesso à informação de um teatrólogo americano que não sei o nome, de que "não temos raízes, temos pernas". Isso para mim foi fantástico. aí eu complementaria isso: as nossas raízes são outros tipos de raízes diferentes das das árvores, são raízes subjetivas, culturais, que você não vai perder andando. minha visão é essa.

cb – sua essência emblemática está no seu sotaque.

pas – mesmo sendo nômades, ainda está presente em vocês o conflito da prisão, muito forte nas letras de "transfiguração". é possível se sentir aprisionado na cadeia mesmo sendo "livre", solto pelo mundo, por uma coisa que está dentro da gente mesmo, não?

cb – justamente, é a prisão sem muros.

[no "pensamento de querer voar", o plano de vôo de "transfiguração", que também é o desta entrevista, transparece na canção épica "o sinal ficou verde (ou além do bem e do mal)", que rompe o casulo e borboleteia pelo mundo de modo invasivo e poético: "eu entrei com armas no seu território/ plantei antenas no seu coração". olhai o sinal, ficou verde.]