sábado, novembro 06, 2010

a humanidade vive a perguntar se existe vida em outro lugar

Hoje estive no município de Barueri, na região oeste da Grande São Paulo, para participar de um debate num programa educativo ancado pela prefeitura (tucana) da cidade e coordenado pelo Joul, integrante do fenomenal grupo de hip-hop Matéria Rima, do qual já falei (pouco) por aqui alguns anos atrás.

A chamada cultura urbana era um dos fios condutores do debate. A plateia era de adolescentes animadíssimos, e a mesa, um bocado heterogêna. Participávamos eu (no papel de jornalista, crítico musical e, suponho, representante da "minoria branca" de que falava Claudio Lembo, aquela mesma que anda ultimamente cuspindo fogo e ódio contra NORDESTINOS por conta da eleição não de um operário NORDESTINO, mas de uma mulher economista mineira-gaúcha para a presidência da República), o escritor Ferréz, os grafiteiros Tota e Binho, o artista plástico (argentino, radicado paulistano) Balzi e representantes do poder público local. Entre esses últimos, havia três integrantes da Guarda Municipal. E foi aí que os meus olhos se encheram de lágrimas, como de hábito.

Logo de cara percebi, meio sem perceber, um relativo isolamento dos três (dois homens e uma mulher - a única presente na mesa montada no palco do Teatro Municipal de Barueri) em relação a "nosotros". Sentaram-se juntos, num extremo do palco. À esquerda deles havia um assento vazio (no qual depois o inquieto Joul se acomodaria), a seguir o meu, depois Ferréz e os demais. Somente um dos policiais falou no início dos trabalhos (e não foi a mulher, se você me entende). Seu discurso procurou distinguir grafite de pixação, em detrimento dessa última, e foi contestado por Binho, Tota e, principalmente, Ferréz. Ninguém da plateia fez perguntas aos três. Aquelas coisas.

A certa altura, em meio a alguma fala, mencionei que eu era do Paraná. E percebi, meio sem perceber, um sobressalto ali nalgum lugar do meu lado direito. Mais adiante, num dos momentos em que o assento do Joul estava vazio, o policial mais próximo de mim me chamou num sussurro perguntou: "De que cidade do Paraná você é?". Maringá. "Eu também!". E me contou que não só ele (putzgrila!, nem o nome do cara eu fixei) é paranaense e policial, como também é o maestro e o regente da banda da polícia de Barueri.

Quando foi fazer suas considerações finais (sem ter antes feito as iniciais), o "Maestro" (como era tratado pelo porta-voz dos três - do qual, putzgrila 2!, também não fixei o nome) contou, ainda por cima, de sua pós-graduação e dos estudos que faz sobre samba de raiz, com auxílio de Raquel Trindade - que, Ferréz explicou, é filha do folclorista, poeta, ator, pintor, teatrólogo e cineasta (PERNAMBUCANO) Solano Trindade, figura histórica da movimento negro brasileiro.

Nessa rápida fala, o "Maestro" mencionou também como todo mundo se afasta imediatamente de um cara como ele, quando um cara como ele está vestindo farda. Disse que, por baixo daquele uniforme, mora um pai de família, um cidadão etc. Tive a impressão que aí os olhos dele marejaram, e foi aí que minha voz embargou - ou melhor, teria embargado, se eu não estivesse calado.

O debate terminou (muito bem, obrigado), e começaram apresentações artísticas da garotada de lá - e do histórico e formidável dançarino Nelson Triunfo, o "nosso" James Brown NORDESTINO-paulista-BRASILEIRO. (Nelsão, que não é besta nem nada, sabe quão legal é o Matéria Rima, do qual age como padrinho informal - ele esteve no palco dos rapazes quando se apresentaram no projeto "Prata da Casa" do Sesc Pompeia, quando eu era curador, nem sei mais em que ano.)

E eis que de repente, em meio às apresentações, o porta-voz dos policiais desabotoou o coldre (é assim que fala?), abandonou as armas na poltrona da plateia, subiu de volta ao palco e... pôs-se a dançar break!!! Foi ovacionado pela meninada, apesar do corpo não de todo adaptado à agilidade desconcertante da galera da street dance.

Somo mentalmente agora as intervenções de cada um dos policiais, e as minhas, e vejo que voltei a vivenciar hoje, num registro POSITIVO, muito diferente do que estava acostumado a raciocinar, aquilo que havia aprendido em "Cães de Guarda - Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988" (Boitempo, 2004), da historiadora Beatriz Kushnir. Um de meus livros-de-cabeceira, ele investiga as interligações e semelhanças sórdidas entre policiais, censores e jornalistas paulistas durante a fase de terror da ditadura militar brasileira.

Mas, de volta a Barueri, o evento começou debate e terminou festa. A molecada toda subiu no palco para exibir seus próprios passos de dança em meio a dançarinos, policiais, estudantes, rappers etc. A policial feminina não teve coragem de subir, muito menos eu, apesar de termos sido convocados pelo Joul.

Essas experiências de integração - ou de convergência, eu diria, usando a palavra que não me sai da cabeça desde domingo 31 de outubro - nem são uma grande novidade, como bem sabe o pessoal do AfroReggae lá no Rio de Janeiro, entre muitos outros. Mas foi a primeira vez que vi acontecer diante dos meus olhos, aqui mesmo em São Paulo, nesta terra mais tucana que petista onde, a acreditar no que se lê diariamente na "grande" mídia (e até mesmo em seu filhote rebelde Twitter), parece só existir uma elite branca escrota dominada pelo ódio aos nordestinos.

Vou te contar, eu vi de tudo um pouco lá em Barueri, menos um Brasil dividido em dois ou um estado de São Paulo pronto para aderir ao nazifascismo separatista. Terminei mais essa tarde feliz tomando café com bolachas com esse pessoal tão heterogêneo - e travando, pela primeiríssima vez em 42 anos de vida, diálogos completos, amistosos e despidos de qualquer temor com três policiais.

quarta-feira, novembro 03, 2010

há uma cordilheira sob o asfalto (ou: pro dia nascer feliz)

Já nos queixamos muito dos rumos que a campanha presidencial de 2010 tomou ao longo do segundo turno, com a vinda à tona de vários instintos básicos e baixos de... todos nós. Foi misoginia, homofobia, racismo, xenofobia, um espetáculo dantesco proporcionado pelo monstro de mil cabeças que... somos nós.

Mas, quer saber? Cada vez mais eu acho que foi necessário, e francamente positivo. Tenho de admitir que falo isso amparado pelo resultado final, e que certamente estaria me sentindo muito deprimido se as unas tivessem dito outra coisa. Foi um pulo no vazio (mais um!), sem a menor garantia de que as asas iam conseguir se mover ou que o paraquedas se abriria na hora H. Parece que deu certo (de novo!).

Foi bom, foi muito bom, mesmo com as atitudes filme-de-terror adotados em pique "Tea Party dos Estados Unidos (e/ou do Vaticano)" pela campanha demotucana. Aprendemos a odiar apaixonadamente José Serra, que assumiu para si o papel de vilão e de bode expiatório da eleição - nos fez um mal danado, mas nos fazendo mal acabou por nos fazer um bem tremendo. Se Freud explicá-lo, quem sabe um dia ele saiba dar a volta por cima da própria pequenez.

Serra atiçamos preconceitos e fundamentalismos, na maior parte do tempo terceirizando o serviço sujo (não raro delegando-o a figuras femininas). Tudo isso foi peçonhento, arriscado, perigoso à beça para todos nós, e afinal de contas fez com que (nosso lado) Serra morrêssemos na praia.

O lado bom é que, acirramentos à parte, o Brasil escolhemos com tranquilidade, votamos serenamente, legitimamos com altivez o voto que -juravam - significava a ruína e o apocalipse do país.

O resultado? O Brasil dissemos não à TFP, à triade tradição-família-propriedade, filha do casal Casa-Grande & Senzala. O Brasil dissemos não à TFP, essa primogênita do colonialismo.

O Brasil desafiamos a tradição. Elegemos nossa primeira mulher presidente da República. De 35 presidentes, 35 foram homens. Não mais.

O Brasil desafiamos a família, ou melhor, aquela família falida, patriarcal, fundada num só vetor de regras e imposições. Dilma tem mãe, filha, genro, neto, ex-maridos, mas não é chefe ou cônjuge de uma família tradicional. Dilma-presidente desafiamos a família preconizada pela Igreja Católica mais fundamentalista e pelos nichos fundamentalistas encravados nas diversas religiões (ateísmos incluídos). Com muito custo, muita hesitação e muito receio, Dilma dissemos não à misoginia (e à criminalização do aborto), não à homofobia (e à satanização do casamento gay e da constituição não-tradicional de famílias), não ao racismo (e à xenofobia, que só foi emergir explicitada depois da eleição).

O Brasil desafiamos a propriedade. Não aceitamos a demonização do MST (Movimento dos Sem-Terra). Afirmamos (muito tenuemente) que sabemos da existência da Cufa (a Central Única das Favelas) e dissemos não ao recurso medroso da da favela cenográfica (pois, ora, há favelas de verdade no Brasil). Rejeitamos o monolito da religião que pretende se sobrepor sobre o Estado laico (assim, nos posicionamos indiretamente contra a pedofilia, ainda que representada na figura para lá de ambígua de Magno Malta). Repudiamos a satanização de bolivianos e iranianos (ou seja, a xenofobia). Acima de tudo, vencemos a propriedade (paternalista, autoritária) transfigurada em coronelismo eletrônico-e-impresso encastelada na chamada "grande" mídia, ou velha mídia. Derrotamos os ímpetos egocêntricos e infantilizados do conglomerado Globo-Abril-Folha-Estado que queria-porque-queria nos impor seu ungido.

Enfim, o Brasil declaramos, solene e alegremente: não queremos mais ser TFP!

O Brasil, hoje, nos chamamos Dilma Rousseff. Com muito orgulho, muita FELICIDADE e muita gratidão pelo pau-de-arara/retirante/iletrado/operário/metalúrgico/sindicalista que nos abrimos este caminho (não devemos nos iludir, a xenofobia que o Brasil resolveram - ou resolvemos? - externar no pós-eleição é ressentimento dirigido sobretudo contra ele, ou seja, contra nós mesmos). O Brasil, além de tudo, temos direito à FELICIDADE, quiçá como cláusula pétrea de uma Carta Magna ainda por vir.

[O texto já acabou, mas eu ainda tenho mais a dizer, êita, cotovelos falantes! Faz de conta que daqui em diante é um P.S.]

Nos dias que se seguiram à sua eleição, Dilma deu sucessivas demonstrações de habilidade, inteligência e serenidade - as mesmas que o Brasil ofereceu nas urnas. Entre todas, quero destacar uma que me causou firme e forte boa impressão (como diriam os jornalistas que até a semana passada criam que essa mulher era a pior pessoa do mundo e, de repente, descobriram a pólvora - a pólvora, eu disse - e se puseram a elogiar os primeiros discursos da primeira-mulher do país).

Eu, que fugi deste tema propositalmente durante os últimos muitos meses, me rendo: não aguento mais, agora quero falar do cabelo e da roupa da presidente!

Após uma longa campanha durante a qual José Serra usou sistematicamente gravatas vermelhas, qual um travesti de petista, no "day after" do apocalipse, digo, da eleição Dilma Rousseff apareceu na TV Record (primeiro) e na TV Globo (depois) vestida de... azul.

Dilma vestiu azul (papapapapapá!), a cor dos (demo)tucanos, como a dizer: "Agora eu sou de vocês também", "agora vocês também somos Dilma". Depois de os adversários tentarem anulá-la e excluí-la sem tréguas nem apego à verdade, ela agiu como quem já foi torturado barbaramente e como quem sabe peitar os preconceitos que sofre: estendeu a mão para incluir aqueles que queriam excluí-la e (principalmente) os sortudos 44 milhões de eleitores deles.

(P.S. do P.S.: Sobre o cabelo já andei falando no Twitter, e até aqui mesmo, quem sabe qualquer hora dessas a gente volta ao tema...)

segunda-feira, novembro 01, 2010

...da mais louca alegria que se possa imaginar...

Minha principal constatação individual, concluído o processo eleitoral, é que nunca antes na história deste país eu havia acompanhado tão intensamente uma campanha presidencial - até porque, inédita conjunção de fatores, hoje em dia há blogosfera, twittosfera, facebookosfera, orkutosfera, internetosfera...

Foi incrível, pelo aprofundamento compulsório a que isso obrigou, e também pelo desgaste e pelo cansaço que trouxe (tomara que a gente descanse e acalme um pouco nos próximos tempos, né?).

"Day after", fiquei com vontade de fazer este blog comemorar a linda vitória de Dilma Rousseff da forma mais descontraída possível: brincando, que tal?, de fazer um balanço livre, leve, solto e descompromissado desta longa e extenuante campanha.

Eu, que odeio lista de "os 10 mais" & idiotices afins, proponho daqui em diante umas brincadeiras bobas, um quem-é-quem, uns palpites pessoais - quem dá mais?:


Os mais baixo-astral (Troféu Urubu): jornais (dia 1 de novembro), televisão (dia 30 de outubro), jornais, revistas e TV (a campanha inteira).

Os maiores caras-de-tacho (Troféu Sr. Burns): William Waack e Plinio de Arruda Sampaio (noite de 30 de outubro).

Pior momento individual de Serra na campanha (Troféu Idade Média): a farsa aloprada da bolinha de papel. O tropeço foi montado em pique século XX (esqueceram que hoje em dia tudo se filma, nada se ignora!) e se deu em idioma que todo mundo entende (os sambistas deitaram e rolaram com a bolinha de papel).

Melhor momento individual de Dilma (Troféu William Homer): o diálogo carne-e-osso com William Bonner no último debate, quando o cronômetro falhou. Saiu totalmente de qualquer script, e acabou aplaudida até pelo sr. Jornal Nacional.

Pior momento da campanha de Serra (Troféu Padre Francisco de Canindé): seu encontro com o fundamentalismo religioso, via Bento XVI, Silas Malafaia, Dom Luizinho etc. Eu apostaria um dedo mindinho que Serra é ateu, e que ter de tomar as posições que tomou em relação a aborto, casamento gay etc. foi um dos fundos-de-poço da carreira e da vida dele.

Pior momento da campanha de Dilma (Troféu Erenice Guerra): seu encontro com o fundamentalismo religioso, via cordas bambas em que tentava se compatibilizar com as religiões sem se incompatibilizar com os movimentos de direitos civis, e vice-versa.

Melhor momento da campanha de Dilma (Troféu Dilma Rousseff): a atitude olímpica, de jamais descer ao nível rasteiro que o adversário tentava impor.

O melhor momento de Lula na campanha (Troféu Caetano Veloso): o segundo turno inteiro, quando se recolheu ao segundo plano praticamente de cabo a rabo.

Prêmio Espelho Distorcido (Troféu Roberto Jefferson): um triplo empate, José Serra, Mônica Serra, Soninha Francine.

O melhor jingle (Troféu Lulalá): @dilmaboy.

O ativista virtual mais bem-humorado: José de Abreu.

A ativista virtual mais mal-humorada: Soninha.

O ativista virtual mais mal-humorado: Argh!naldo Jabor.

A ativista virtual mais bem-humorada: Pinky Wainer ("hay que enriquecer sin perder la ternura").

Ativista virtual-revelação (Troféu Seda Pura & Alfinetadas): Marta Suplicy.

Ativista-revelação (Troféu Hay Que Enriquecer Sin Perder La Ternura): Hildegard Angel.

O pior momento da "Veja" (Troféu InVeja): A enésima tentativa de ridicularizar Lula na última capa pré-Dilma-presidente. Pintou o presidente mais popular da história como vagabundo-pelado-com-boia-na-cintura. E ofendeu 80% do (e)leitorado brasileiro, só para variar.

O pior momento do "Estado" (Troféu Tiro no Pé): o "cortem-lhe a cabeça" a Maria Rita Kehl, porque ela fez uma avaliação óbvia (e inédita) do Bolsa-Família e, de quebra, deitou no divã a elite (i)letrada brasileira (donos de veículos de comunicação à frente).

O pior momento da Globo (Troféu Luciano Huck): empate entre 1) a truculência-pitbull de Bonner com Dilma e Marina Silva, nas entrevistas do primeiro turno e 2) o empenho "altamente relevante" em provar que no meio do caminho havia uma fita crepe (ou seria uma bigorna?).

O pior momento da Folha (Troféu Quero Me Matar): tristemente disperso, difundido e distribuído ao longo de todo o processo eleitoral (se alguém tiver paciência de enumerar a loooooonga lista...).

Musa intelectual próSerra (Troféu Regina Duarte): Maitê Proença.

Musa intelectual próDilma (Troféu Tecnobrega): Chimbinha da Banda Calypso.

Musa intelectual hors-concours (Troféu Tartaruga): Oscar Niemeyer.

Trilha sonora Serra: KLB, Sandy & Junior, Chitãozinho & Xororó, Leo Jaime, Paula Toller, Roger Moreira, Rita Lee (esta, só após o fechamento das urnas).

Trilha sonora Dilma: Alcione, Leci Brandão, Chico Buarque, Margareth Menezes, Gilberto Gil, Elba Ramalho, O Teatro Mágico, Mano Brown, Sandra de Sá, Netinho de Paula, Chico César, Alceu Valença, Marina Lima, Arnaldo Baptista etc. etc. etc. etc.

Os mais ambíguos 1 (Troféu O Estardalhaço Antes do Chá de Sumiço): Maria Bethânia, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes.

Os mais ambíguos 2 (Troféu Anfíbio): Aécio Neves. Marina Silva. Ricardo Noblat.

Pior dramaturgia eleitoral (Troféu José Serra): Aguinaldo Silva, Gilberto Braga, Glória Perez.

Melhor dramaturgia eleitoral (Troféu Tiririca): Tiririca.

O eleitor mais elegante: José Alencar.

Melhor eleitora (Troféu Marisa Letícia): Maria Rita Kehl.

Pior eleitora (troféu Weslian Roriz): Mônica Serra.

Pior eleitor (Troféu FHC): José Serra.

Melhor eleitor (Troféu Lula): Luiz Inácio Lula da Silva. E nós. :-)


Que mais? Quem mais? Quem dá mais?