quinta-feira, abril 30, 2009

juntos através da vida

por causa de ouvir o disco novo do bob dylan, "together through life", eu fico pensando nas vozes.

se a gente deixar de banda aquele nhenhenhém de que "o dylan não é mais aquele", ou coisa que o valha, pode ser tão bonito - é tão bonito - ouvir as vozes envelhecendo.

a do bob dylan é aquela que cospe na cara da gente todo o desconforto que vem de dentro do cantor. voz de raspador de queijo. voz de quando a gente, menino, se esfola inteiro naqueles muros cheios de ranhura. raspa de tacho, pá no cascalho.

também parece voz de cigarro - e essa modalidade está longe de ser privilégio do dylan.

a gente quase sente o cheiro da fumaça quando ouve a marianne faithfull. pega ela mocinha cantando "as tears go by", e pega ela agora, cantando "nobody's fault", do beck, ou "before the poison", da pj harvey (e dela própria). culpa de ninguém, depois do veneno, parece que a chaminé de um trem entrou no eu dela. bonito de rasgar o coração.

outra é a deborah harry. eu só fui perceber que a voz dela ficou velha de cigarro (ou de sei lá o quê) nesse último disco solo, "necessary evil", mal necessário. virou voz de megera de desenho animado. justo ela, que tinha voz de heroína, de sexo explícito, de lovevoxxx.

idem para a da tracy chapman. de repente, no (maravilhoso) "our bright future", eu levo o susto de escutar a voz de uma senhora, aquela mocinha carrancuda de quando eu tinha 20 anos. mas que baita senhora, nosso brilhante futuro, a balada funksoul "a theory" é mais profunda (e bonita) que dez tracys cantando "baby can i hold you tonight".

falar da chapman me remete instantaneamente a milton nascimento, e a voz dele parece desgastadinha de tudo nesse disco de jazz com os irmãos belmondo (saiu lá fora faz dois anos, só agora a biscoito fino "importou"; quer dizer, o rapidshare já tinha importado, mas...). mas o que ganha de desgaste a voz dele ganha também em interpretação, em musgo colhido lá das profundezas. a "nova" "nada será como antes" é um colosso, e nada será como antes, tudo que você queria ser...

aí há os tropicalistas, e a maria bethânia, e a maria alcina, e o ney matogrosso, esses parecem domadores de vozes para sempre novas em folha. deve estar inscrito nos genes tropicalistas, e na hereditariedade.

se bem que gilberto gil, extra-exceção, perdeu grande parte da sua. criou calo justamente ali, na corda da voz, no instrumento de trabalho, na porta principal de seu encontro com o resto do mundo. tropicalista antitropicalista, ele. dizem que suicida da própria voz (porque teria usado e abusado do falsete - talvez não seja muito, er, adequado um homem cantando assim que nem mulher, não é mesmo?). que seja, com o fiapo que tem fez "não tenho medo da morte" (mas de morrer, sim), mais profunda (e bonita) que duzentos palcos e trezentos realces.

e o chico buarque? em 1981 cantava "a voz do dono e o dono da voz", para protestar simbolicamente contra o patrão, contra a patroa, a gravadora multinacional? nunca cantou tim maia nem toni tornado, mas hoje em dia parece o homem mais frágil deste mundo quando canta (quando escreve também, mas isso já não é assunto de corda vocal).

a gal costa eu nem sei definir, as músicas que tem cantado, entre outros detalhes, deixam escondidas lá embaixo a voz mais sedutora destes pântanos.

erasmo carlos? quando era criança e não entendia nada, tinha voz de menino. hoje, quando é um homem e entende tudo, tem voz de um... menino. tropicalista.

jorge ben? rouco, rouco, rouco. como se usasse óculos escuros na garganta.

epa, já percebi que posso passar o feriado inteiro aqui se continuar brincando em cima disto. então paro por aqui, por agora.

antes, só uma conclusão, de mim pra mim mesmo: eu não consigo pensar em outra justificativa possível para o fato de a gente não (vou usar uma palavra bem, er, "jovem", bem da moda, bem facebook) curtir as vozes curtidas dos "velhos", a não ser o medo que a gente sente da nossa própria velhice. de quando outros jovens estarão desprezando o que a gente vier cantar, calar, falar ou fazer.

(p.s.: não sei ao certo do que se trata, mas parece que a voz de dilma roussef se faz ouvir na "carta capital" deste fim-de-semana, número 544. pago pra ver. e, a propósito, essa mesma edição traz uma reportagem minha sobre o Clube de Regatas Tietê - ?????????????)

quarta-feira, abril 29, 2009

araçá azul é segredo

tenho cá comigo uma pequena coleção de trechos que me causaram impacto no livro "entrevistas bondinho" (azougue), um apanhado das entrevistas musicais e teatrais que o jornal ("underground"? "indie"? independente?) praticou lá nos passados de 1972. já salpiquei aqui uma intervenção do rogério duprat, mas tem mais, muito mais.

de cara(s & bocas), uma de março de 1972, com maria bethânia, desabalada e muuuuuito diferente da senhora reservada de hoje em dia:

"Eu sou muito esquisita. Eu já tentei o suicídio uma vez. Inclusive eu lembro que quando eu tentei me matar, no momento, eu pedia muito perdão, sabe? Porque não é legal. Mas eu tava descontrolada, muito nervosa. Era amor, era uma porção de coisas. Eu não fazia nada, ficava sentada dentro de casa, não queria trabalhar, não queria fazer nada. Ficava tomando vinho. Não falava com ninguém, não via ninguém, não lembrava de comer, esquecia de comer... magra, arrasada, abatida. Não sabia quando era dia, quando era noite. Não sabia nada. Só queria curtir minha cabeça. Escrevia, escrevia, escrevia, feito uma doida. Cartas, contos, letra de música, desenhava muito. Minha casa ficando cada vez mais desarrumada, porqeu eu não arrumava, ficando... Tava uma loucura e um dia eu resolvi sair. Me vesti e fui pra rua. Fiquei andando sozinha. As pessoas me olhavam assim, eu olhava pras pessoas, as pessoas falavam comigo. Não achei graça em nada, Aí eu disse: 'Ah, vou me matar. Não tenho nada que fazer mesmo'. Fui pra casa e tomei uns comprimidos. Mas um amigo meu entrou lá em casa e me pegou. Agora eu amo esse amigo. Foi daí que eu passei a fazer análise. Foi maravilhoso. Durou só dois anos porque eu fugi. Eu queria saber uma coisa, quando soube me mandei. Eu tô pensando em voltar. Agora eu quero saber uma outra coisa. Meu psicanalista é a paixão da minha vida. Ah, mas que homem maravilhoso, lindo. Ah, esse homem é um amor".

hum, a bethânia se suicida e o caetano é quem sonha que está "caindo" do pé de araçá azul?, sei, sei, sei...

segunda-feira, abril 27, 2009

genialf

"carta capital" 542, 22 de abril de 2009.


O MODESTO "GENIALF"
Autor de Rapaz de Bem, Johnny Alf completa 80 anos num hotel-residência para idosos e volta a fazer shows

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Alfredo José da Silva completará 80 anos em maio. Mora há um ano num "hotel-residência para idosos", em avenida movimentada de um bairro industrial de Santo André, no Grande ABC paulista. Não possui uma aposentadoria oficial, apesar de trabalhar num mesmo ofício desde o início da juventude. Perdeu o pai cabo do Exército aos três anos e a mãe empregada doméstica quando jovem, não teve herdeiros e não lhe restaram parentes vivos.

Embora o câncer na próstata e outros problemas de saúde lhe tenham roubado o equilíbrio para caminhar com segurança, este Silva estará no centro do palco e das atenções numa homenagem a seus 80 anos, nos próximos dias 23 e 24 de maio, no Sesc Pinheiros de São Paulo. Alfredo José é Johnny Alf, desbravador de florestas até a clareira que viria a ser chamada bossa nova e músico sutil e virtuoso reconhecido bem além das fronteiras brasileiras.

O governo estadual ajudou nas despesas com os tratamentos, mas a clínica ele paga de bolso próprio, com reservas e recursos de direitos autorais. Quem conta é Nelson Valencia, empresário transformado num tutor e/ou anjo da guarda do autor de Eu e a Brisa (1967), canção desclassificada no festival que consagrou Ponteio, Roda Viva e a Tropicália.

Para Valencia, o recolhimento é característica inerente do artista, e não circunstância da idade avançada. "Johnny é o pior inimigo dele mesmo. Sempre se coloca numa posição abaixo dos fatos", diz. "Uma vez estava me falando que era feliz, e dizia: 'Eu consegui muita coisa, tenho fogão, geladeira'."

Encontro Johnny Alf em seu quarto, às voltas com a tela da tevê e a leitura de uma revista. Conversa em frases e respostas curtas (o que não chega a ser novidade), e fala dos shows que marcaram sua volta no fim de janeiro, no Sesc Vila Mariana: "Eu estava gripado, uma semana antes não dava uma palavra". Ansioso com o retorno, talvez? "Não era ansiedade, não, era gripe mesmo. A clínica toda pegou."

Atravessou o show sentado ao piano, seu instrumento preferido desde quando, aos nove anos, pôde aprender a tocá-lo na casa da família que empregava sua mãe e de quebra lhe deu guarida. Sua história, aqui, diverge da de outro quase-bossa-novista, Wilson Simonal (1939-2000), cuja mãe doméstica era proibida de levar o filho ao emprego e atirava marmitas clandestinas por cima do muro para alimentá-lo.

Nos shows da volta, Johnny apoiou-se nas vozes das cantoras Leny Andrade e Alaíde Costa. Juntos no palco, os três evocavam um outro lado da bossa nova, uma bossa negra refugiada em São Paulo (e no exterior, no caso de Leny) e bastante distante do imaginário de amor, sorriso e flor fixado a partir de 1958 pelo núcleo carioca.

"É coincidência", esguia-se, monossilábico, de abordar um possível componente racial no relativo isolamento de sua turma. Mas Valencia, também empresário de Alaíde Costa, vê sentido na a hipótese: "A classe social certamente tem a ver. A Bossa era um movimento de brancos da zona sul, e ser negro era ser negro. Alaíde sempre falou que muitos torciam o nariz para ela porque não cantava samba".

Johnny estreara profissionalmente em 1952, desde cedo absorto numa atmosfera de canções contemplativas e ligadas à natureza. Tais motivos seriam caros aos filhotes bossa-novistas, mas esses converteriam a contemplação no entusiasmo sorridente de barquinhos e tardinhas, divergente dos estados de espírito do precursor. Minha vida é uma ilha bem distante/ flutuando no oceano, cantava em Céu e Mar (1953), uma de suas primeiras composições. De fato, o carioca Alf migrara para São Paulo quando a garota e os garotos de Ipanema arrendaram novos paradigmas musicais.

Ele escorrega entre os rótulos habituais à sua arte, primeiro como jazz, e como Bossa depois da Bossa. "Saiu assim, eu nem esperava que fosse agradar. Achava que minha voz não tinha alcance nenhum." Aceita, quanto muito, o carimbo de fazedor de sambas, a despeito do andamento quase sempre desacelerado de suas canções: "Era muito ligado em música americana, sentia que tinha uma leveza que o samba podia ter também".

Valencia traduz na prática as hesitações de Johnny em relação a si mesmo: "É de uma humildade tão grande que deixa as oportunidades passarem. Quando tinha uns 40 anos, Sarah Vaughan esteve com ele, e tem uma história de que ela queria levá-lo para fora. Não capitalizava nada. Descobri há alguns anos que Tom Jobim o chamava de 'Genialf', ele nunca falou disso".

Outra dessas histórias se refere à mulata Dolores Duran (1930-1959), amiga íntima e expoente da fossa antecessora da bossa. Dolores acabava seus shows e seguia para a boate onde o amigo estivesse trabalhando. Invariavelmente, pedia que cantasse Céu de Estrelas, definida por ela como "a minha música". Com a morte de Dolores, não gravou a canção, guardou na gaveta e a escondeu até poucos anos atrás.

Além do tom contemplativo, também o platonismo ocupa lugar crucial em várias de suas canções. Amor discreto pra uma só pessoa/ pois nem de leve sabes que eu te quero é o amor em outra de suas obras-primas, Ilusão à Toa (1961), explicitada há dois anos por Caetano Veloso, num show, como uma canção gay.

O protagonista da inaugural Rapaz de Bem (1953), que acha o trabalho "a pior moral" e obtém dinheiro "só de arrumação", foi interpretado como prostituto pelo antropólogo Néstor Perlongher, em O Negócio do Michê. "Procurei o livro para ler. Realmente se encaixa, para os dias de hoje", afirma, sem buscar orientar interpretações. E o autor, era "rapaz de bem"? "Não, nunca fui. Eu era um rapaz pobre."

Também platônica é Fim-de-Semana em Eldorado, gravada em 1961, no primeiro álbum de uma carreira discográfica sucinta, em termos numéricos: uma lagoa de água doce foi a única que trouxe eu e você junto à verdade/ tudo eu vou deixar calado/ embora aguarde ansioso/ outro domingo em Eldorado. "Eldorado é uma cidade, um recanto no interior de São Paulo. Quem me levou lá foi Dick Farney", lembra.

Fã das vozes macias de Dick e Lúcio Alves, Johnny desta vez não cita a influência sempre creditada de Cole Porter, e vai mais atrás (e mais perto) ao listar preferências: "Gosto de música brasileira. Francisco Alves, Orlando Silva, Ary Barroso, Caymmi, Custódio Mesquita. O rádio é o que melhor repertório tem, não é Bossa Nova nem coisa nenhuma".

Declara-se admirador de Milton Nascimento (dele, gravou Outros Povos, em 1974), mas não o poupa de crítica por conta de um episódio com outra artista de quem se diz fã incondicional: "Não foi a Wanderléa, Nelson, que foi pedir uma música ao Milton e ele falou para ela voltar para a jovem guarda? Foi. Foi bem cruel isso, uma falta de educação muito grande".

Nos shows do início do ano, foi ovacionado por uma plateia reverente e compreensiva com as limitações atuais. Afora esses momentos, passa os dias quieto no quarto modesto do hotel-residência, de onde só sai para fazer fisioterapia. Queixa-se com certo humor das perguntas repetitivas dos poucos jornalistas e estudantes que conseguem chegar até ele. Luta contra a depressão profunda que se seguiu à convalescença física do ano passado. Não tem composto “agora”, e afirma só ouvir música "por acaso", na tevê. Mas participa do coral da clínica. Abaixa a cabeça e faz cara de dor quando o empresário o flagra numa gargalhada junto à enfermeira.

Perto de sua nona década, Alfredo José da Silva vive de brisa, a mesma brisa que acariciou, acaricia e acariciará os afro-sambas-canções de Johnny Alf.

quinta-feira, abril 23, 2009

todo dia era dia de índio 4

não preciso falar mais nada, preciso? rei jorge ben, r-a-i-n-h-a baby consuelo.



(e eu não ia falar mais nada, mas... o que eram sexies esses dois cantando juntos, socorro!)

todo dia era dia de índio 3

pra mim, este é um dos maiores, maiores, maiores cantores da história do brasil. de arrepiar.



("mas quá", não é maravilhoso? maioral, o roberto ribeiro.)

quarta-feira, abril 22, 2009

todo dia era dia de índio 2

o "jornal do brasil" me pediu um texto sobre os 50 anos de carreira daquele cara lá, o fatídico, e o que saiu foi isto aqui (publicado no domingo, 19, dia do índio e do aniversário do cara) (eu sugeri o título "todo dia era dia de índio", mas acho que não coube):


Os 50 anos de carreira de Roberto Carlos

Pedro Alexandre Sanches, Jornalista, JB Online

RIO - Roberto Carlos é um índio. Você há de estranhar essa minha afirmação, mas, eu digo e repito, e não é só pelo fato de ele ter nascido em 19 de abril, Dia do Índio, três dias antes do aniversário do descobrimento do Brasil. Nem tive tempo (ou presença de espírito) para colocar isso literalmente no papel em meu livro Como dois e dois são cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa), mas foi nessa época, de tanto olhar a clássica imagem de seu rosto tristíssimo na capa do LP de 1972, que comecei vagarosamente a me dar conta de que Roberto Carlos era – e é – um índio.

Não estou tentando dizer que ele seja um tupi, um guarani, um bororó ou um botocudo. Quando o defino como “índio”, quero dizer (e isso consegui escrever no livro, ufa) que RC é o brasileiro por excelência, o brasileiro original e essencial. Tem a expressão triste e massacrada, a docilidade submissa e (novamente) massacrada de todo brasileiro médio, seja índio, negro ou branco. E por isso tanta gente gosta tanto dele. Porque se identifica. E por isso mesmo tanta gente detesta tanto os caracóis vira-latas dos cabelos dele. Porque se identifica.

Ainda aqui você me estranhará. Brasileiríssimo, um cara que quis copiar o matuto Elvis Presley? Um sujeito que trouxe para cá, acaipirado, o yeah yeah yeah dos quatro manés de Liverpool? Pois é, mas o que haveria de novo (ou de velho) nisso? Carmen Miranda não foi interpretar latinas subalternas em Hollywood? Mano Brown não preferia o cego Stevie Wonder ao assum preto Roberto Carlos? Tecneiros de rave e roqueiros "indie" paulistanos não desprezam Chico Science enquanto se juram nascidos na Grã-Bretanha?

Em outros termos, a rejeição à própria origem não é (ou foi) um de nossos trágicos traços distintivos nestes 50 anos de reinado do capixaba do Itapemirim (percebe os nomes indígenas?), tempos de ditadura e tal e coisa?

Minha hipótese é de que, sim, e não é por outra razão, que RC passou tanto tempo disfarçando brasilidades atrás de iê-iê-iês, baladas à Tony Bennett, hinos gospel. E conquistou fãs suburbanos sulistas com os primeiros, românticos interioranos nortistas e nordestinos com os segundos, católicos e evangélicos e candomblezeiros com os terceiros. Enquanto isso, em Gotham City, uns e outros ficaram disfarçando não gostar de seus boleros e assoviando só no chuveiro seus temas de motel, tal qual Waldick Soriano dizia acontecer com socialites que volta e meia apareciam em seus shows. De repente, estava todo mundo gostando de RC, os que admitiam e os que nem às paredes confessavam. De repente, estava todo mundo gostando de si mesmo, sem nem perceber.

Nesse balanço, RC dominou corpos, corações e mercados, ao sabor de cantos indígenas como Quero que vá tudo pro inferno, As curvas da estrada de Santos, Amada amante, Além do horizonte, Amigo, As baleias, Caminhoneiro, Amazônia... Isso sem falar dos sinais de fumaça emitidos por seu parceiro sioux, ou apache, ou nhambiquara, o extraordinário Erasmo Carlos.

Tento afirmar que RC é um mar de rosas? Não, claro que não. Ele também é acomodado, inerte, moralista, mimado, autoritário, censor. Nada disso é legal, mas como condená-lo à forca ou ao degredo, se nós também somos tudo isso? Afinal, Roberto Carlos é eu e você. E nós somos o índio Roberto Carlos.

Pedro Alexandre Sanches é repórter da revista Carta capital e escreveu o livro Como dois e dois são cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004)

todo dia era dia de índio 1

hoje, 22, já é dia do colonizador. mas não é o máximo o "dia do índio", 19? amo.



(quem abriu meus olhos pra essa impressionante macumba índia-gal-caymmiana foi o duda leite.)

terça-feira, abril 21, 2009

joão araújo, final: lula, obama, cazuza, baby consuelo, roberto marinho...

e vai acabando a odisséia. em pleno feriado (mas não pra mim...), desencanta o último trecho da entrevista com joão araújo.

pas - [...continuação] onde você se situa politicamente?

ja - eu sou da esquerda não-radical. mas meu pensamento sempre foi de esquerda. isso doutor roberto sabia, sempre respeitou. quando era garoto, até os 18 anos, eu era da direita ferrenha. era lacerdista. mas todo mundo que conheço que foi lacerdista depois ficou com ódio do [carlos] lacerda, não sei por quê.

pas - você também?

ja - não tomei ódio. eu pensava o seguinte: não tenho nada que ver com o pensamento dele. eu, que ia ver os discursos dele, matava aula para ver quando ele tinha que fazer discurso na tribuna com vieira de mello do outro lado.

pas - você gostava mesmo, se matava aula pra ver os discursos.

ja - pra ver discurso, mas é que vieira de mello era um espetáculo que eu só via parecido quando num júri tinha de um lado romero neto e do outro evaristo de moraes. era um negócio fantástico. você não precisava mais ler, via aqueles homens discutindo e aprendia muita coisa [para e observa as cotações na tevê]. agora vai passar, quer ver?

pas - qual você quer ver?

ja - olha lá, tá vendo? já baixou. petrobras. de 29% para 25%, já empobreci.

pas - você tem ações na petrobras?

ja - pouquinhas, mas tenho. mas sempre fui muito político.

pas - você foi?

ja - sempre fui. tínhamos uma turma de uns dez rapazinhos, fazíamos um negócio chamado vigília cívica. éramos que nem a rádio continental, estávamos em todo lugar onde tinha algum acontecimento político. por exemplo, república do galeão, estávamos lá. vão depor fulano de tal, a gente corria lá para ver. Ddpois ficávamos num posto de gasolina do leblon discutindo, até seis, sete da manhã. não tinha o que fazer, né?

pas - não sei se entendi direito, você disse que Boni "não existia" politicamente?

ja - não conheço boni como um ser participante de política.

pas - e voc,ê é diferente?

ja - eu sou diferente, sou participante mesmo. respeito a religião e a política de todo mundo, aprendi isso com meu avô por parte de mãe. ele era ateu, e sabe quem ia jogar xadrez com ele toda sexta-feira na minha casa? o cardeal dom sebastião leme. pode isso? agora, pergunta se falavam sobre religião? nunca falaram.

pas - um cara de esquerda não-radical, como você se definiu, hoje vota em quem, acredita em quem?

ja - eu voto no lula. sou lula, gosto muito dele. pessoalmente não conheço, só fui apresentado, mas admiro muito o lula. do pt não posso dizer a mesma coisa. mas lula eu acho admirável, que o metalúrgico possa ter se transformado num líder mundial, que é o que ele é [a entrevista com joão aconteceu um dia antes de barack obama definir luiz inácio como "o político mais popular da terra"].

pas - votaria no candidato dele?

ja - não sei, aí tenho que pensar. não sou tão carneirinho assim, né? minha cabecinha pensa. mas não sei, se lula dissesse "vote" [ri], se eu votaria ou não... acho que por princípio, não. e tem outra coisa que a nação me protege: eu sou idoso [risos], não preciso votar. mas faço questão de votar.

uma coisa que saquei a propósito da eleição do obama... eu sou obama, detestava o bush, prometi que não iria para os estados unidos - não fui, só fui para apanhar o grammy, mas não iria enquanto bush estivesse lá. tenho ódio dele. mas apareceram lá os candidatos, comecei a sentir pelo noticiário a movimentação dos jovens. a coisa que me bateu primeiro foi que ele não tinha condição de se eleger nos estados unidos, porque tem o sobrenome hussein e é negro. impossível os estados unidos elegerem um negro com nome de hussein. o que os republicanos vão explorar..., e o americano médio estava realmente puto com os árabes por causa dos atentados. mas o tempo foi passando, eu estava em paris quando teve uma manifestação pró-obama, não entendi por quê. lia algumas coisas no "le monde", e quando cheguei ao brasil estava cheio de notícias sobre o sucesso do obama, mas um sucesso que ninguém dizia por quê. estava um inverno rigorosíssimo nos estados unidos, mas via as fotografias dos jovens na fila para pegar senha às cinco horas da manhã, isso não é natural, o voto não é obrigatório. então havia um movimento qualquer... você tem cabeça pra pensar, pra formar juízos, e pensei comigo que estava acontecendo alguma coisa de novo naquele país pra mobilizar os jovens.

não estou me comparando com manuel bandeira, mas a mesma coisa ele falou sobre a bossa nova, sabia? um dia ele chegou pra tomar um goró na casa do pai de nara leão, seu jairo, no leme, e disse: "jairo, presta atenção numa coisa. está surgindo um movimento musical novo no brasil. não sei o nome, só sei que é intimista", olha só. e provou por que ia surgir um movimento: "só pode ser, jairo. está havendo uma invasão imobiliária, prédio por todo lugar, acabaram com as casas de show, tudo se vende e vira prédio". [fixa-se nas cotações na tevê.] deu uma aumentadinha, 29,4%. já posso tomar uns gorozinhos hoje. mas perguntou o manuel bandeira: "me explica, como o namorado vai cantar serenata para a namorada na janela, se agora ela mora agora no 15º andar?". se você não pensa, não raciocina... as pessoas não pensaram, mas ele pensou logo nisso, não sei se eu pensaria. não, o cara vai ter que fazer uma música mais baixinho, que possa cantar no ouvido da namorada, e não aquelas músicas que o chico alves cantava, que chegavam até o céu. não deu outra, ele apenas não deu o nome. quem acho que deu o nome deve ter sido... o primeiro que falou o nome bossa nova, que eu ouvi, foi o juca chaves, naquela música "presidente bossa nova", que era pro juscelino [kubitschek].

então, voltando ao obama, eu vi que tinha alguma coisa mais que um simples passarinho cantando, e que esse algo a mais era o seguinte. aí fui fazer minhas pesquisas junto a pessoas mais autorizadas para saber se em alguma época nos estados unidos os jovens tinham participado tanto de uma eleição como nessa. e a resposta é que não participaram nunca, sempre fugiram como o diabo foge da cruz de ter que ir lá votar. pra mim estava tudo desvendado, o futuro presidente dos estados unidos é obama, a não ser que matem ele. aí, quando ouvi ele falando, ele tinha uma coisa que lembrava muito aquele líder que ficou 20 anos preso na áfrica do sul... o [nelson] mandela. uma dignidade, o jeito de falar, a prudência, a forma de conciliar. tanto que foi eleito e no dia seguinte juntou os ex-presidentes todos num almoço, coisa que nunca tinha sido feita também, e queria o apoio de todos. enfim, ele queria a paz. queria tirar os soldados, foi obrigado pelo acordo anterior a manter 7 mil no afeganistão. porém, já tem data pros soldados do iraque voltarem, como vai ter data pros do afeganistão. já esticou a mão, não fisicamente, para o irã, dizendo que não tem nada contra o irã.

pas - a história do manuel bandeira está registrada, está escrita? como você sabe dela?

ja - quem me contou foi o armando nogueira. quem contou pro armando foi o rubem braga. quem contou pro rubem braga eu não sei, foi o próprio manuel.

pas - talvez não esteja escrita em lugar nenhum...

ja - é verdade.

pas - como também nunca ouço ninguém dizer que quem criou o termo bossa nova foi juca chaves. tem gente que vai ficar nervosa...

ja - mas escuta, pedro, a pergunta que respondi foi a seguinte: quando você ouviu falar de bossa nova pela primeira vez? foi quando juca chaves cantou "presidente bossa nova". aí teve alguém que chegou e, esse sim, disse "essa música é uma bossa nova", isso está muito parecido com a cara do ronaldo bôscoli, né?

pas - é legal conviver e lidar com artistas?

ja - sempre lidei com artistas, então para mim não é nada difícil. sempre lidei com jovens, muito. frequentei muito os jovens, conversava muito com eles. tem dois tipos de pessoas que gosto muito de conversar. são as crianças e os velhos. são os que dizem a verdade, não é isso?

pas - já se coloca no segundo grupo, ou ainda não?

ja - no segundo grupo, não, porque eu vou viver até os 130 anos.

pas - quer dizer que ainda não está falando toda a verdade?

ja - ainda não.

pas - bom saber [risos].

ja - mas pra você? o que falei aqui não retiro uma palavra. como se dizia antigamente, quero ver minha mãe morta atrás da porta, não era assim que se falava?

pas - perguntei sobre artistas porque você conviveu com tantos, e de repente tinha um dentro da casa. estava preparado? por quê ele foi aparecer lá?

ja - ele fazia umas coisas de noite que eu não via. chegava de madrugada e via ele estava batucando a máquina. na manhã seguinte a mesinha de cabeceira estava cheia de papel. já eram letras de música. mas eu não bisbilhotava, não, a mãe dele bisbilhotava bastante. eu não sabia nem que ele tinha esse dom pra cantar. antigamente eu segurava a barra dele era na questão de colégio. ele sempre foi bom aluno, mas teve um ano que foi reprovado. lucinha [araújo, sua esposa] ficava tão indignada, ele só tirava dez, ela achava que ele tinha que tirar dez. ele achava que sabia mais que os professores. ele lia tanto, ficava no quarto com o mapa-múndi e o globo, estudando aquilo. amigos meus ligavam pra ele, com nove anos de idade, sabia a população de sei lá que país. teve um cara que foi na minha casa, que era ministro dos transportes da venezuela e casado com um primo da lucinha. cazuza queria fazer perguntas, estava louco pra conversar com ele. o cara começou, mas falava muita vantagem, tudo que ele tinha feito era o maior. na hora que falou que fez um túnel de 16 quilômetros ligando uma cidade à outra. cazuza subiu no quarto, daqui a pouco voltou, perguntou: "esse túnel não é o túnel...?".

pas - isso com nove anos?

ja - é. o cara disse: "é, isso mesmo". "esse túnel só tem dez quilômetros, hein?" [risos.] quando não passou de ano, ele não ia poder continuar no santo inácio, porque o colégio não aceita repetentes. sabia que ia tomar a maior bronca da lucinha. mas ele achava muito fraco, dizia que sabia mais geografia que o professor. "pô, você é um sábio, então." reprovado, foi direto pra som livre, e queria que eu entrasse em casa com ele. porque muitas vezes, ele era pequenininho, eu chegava... lucinha sabia que eu não admitia bater em criança. ela realmente não batia, tinha adoração por ele, mãe judia. porém, tinha uma coisa de comer tudo que tinha no prato, se não comesse ela dava beliscão, e ficava marca. eu cheguei, ele fez assim [estende o braço, risos]. "que é isso, cazuza?" "nada não, nada não." quer dizer, já tinha me chamado a atenção a respeito disso. eu ia à Lúcia, não na frente dele, claro. "pô, lucinha, você continua beliscando? não é assim que se educa, quer que ele tenha medo? por que não conversa com ele?" "não adianta conversar com cazuza, você sabe." enfim...

pas - ney matogrosso disse numa entrevista recente que você "era um carma na vida de cazuza". tive oportunidade de perguntar sobre isso, ele disse que quis dizer que era um carma para um artista ser filho de um todo-poderoso de gravadora.

ja - eu entendi assim também.

pas - era mesmo?

ja - não, eu nunca me achei todo-poderoso. mas o fato de eu presidir uma firma que era da globo fazia a opinião pública achar que eu era um daqueles todo-poderosos da globo.

pas - mas era muito fácil para seu filho ser questionado por isso, de pensarem que não tinha talento, que era só porque era filho do presidente da gavadora.

ja - é, por isso eu não quis gravar com ele de jeito nenhum. ezequiel neves e guto [graça mello] entraram umas cinco ou seis vezes na minha sala com a fitinha dele, eu me negava a ouvir. eu dizia: "não quero ouvir, porque posso gostar, e eu não vou gravar com ele". tinha muito esse pudor próprio de não querer botar ele numa posição de constrangimento diante de outros artistas, de estar gravando numa gravadora que o pai dele era presidente, o que é isso? mas ele tinha tanta noção das coisas que, quando já tinha gravado, chegou um dia dizendo: "eu tenho que sair daqui, não quero mais ficar. não me sinto confortável. acho que as pessoas estão me dando bom-dia porque sou seu filho". a gente dá bom-dia pra qualquer um, pô. não dou bom-dia pro doutor roberto porque ele é o presidente da globo, dou bom-dia porque não posso dar boa-noite de dia. não havia jeito, ele saiu. e, sobre a saída dele do conjunto [barão vermelho], não gosto de falar, mas tenho minhas ideias. acho que ele se incompatibilizou não com nenhum barão, mas com a ideia de não poder cantar música brasileira. ele gostava muito de música brasileira, e de música romântica brasileira. ele gostava de cantar, por exemplo, "faz parte do meu show", músicas desse tipo, românticas. de vez em quando tinha vontade de cantar músicas românticas da dolores duran. foi criado nesse ambiente. minha casa era um apartamento pequeno, só tinha um quarto, uma sala, e o resto eram artistas que ficavam lá, batendo papo com a gente. os novos baianos, quando vieram para o rio, ficaram lá, dormiram em casa a noite toda.

pas - esquecemos de mencionar os novos baianos, mas você foi importante na história deles, tanto na rge como na som livre, não?

ja - ah, fantásticos. quem me recomendou eles foi caetano veloso. só que caetano disse pra eu mandar buscar um conjunto que ele achava sensacional. isso ele falou às cinco horas da tarde. às onze da noite esse povo todo chegou à minha casa [risos], sem dinheiro, com fome. quem antendeu foi o cazuza, molequinho. foi à geladeira, deu tudo que era de comer pra eles.

pas - os hippies invadindo a sua casa...

ja - eles todos depenados, pareciam um monte de maltrapilhos. mas quando as pessoas têm talento... é inegável que eles fazem a diferença, não é? quando perguntei o que tinham pra mostrar, moraes [moreira] meteu logo de cara "preta pretinha", pô. tem outra? tem, vinha não sei qual. tem outra?, tem, tudo porrada. disse: "que vamos fazer o disco vamos, não tenha dúvida, mas depois que vocês jantarem [risos]".

pas - ainda sobre cazuza, o fato de seu filho ser gay foi conflituoso para você?

ja - não foi, não. porque, olha, eu faço uma diferença muito grande entre o gay e o... transformista, o sujeito que se veste de mulher, bota um abacaxi na cabeça, brincos da carmen miranda, salto alto. acho que o gay é uma pura questão de opção sexual, como outra qualquer, não tem nada de horror nisso. cazuza nunca foi de fazer esse tipo de coisa que eu estava dizendo que não gosto. então sempre respeitei muito a vida dele.

pas - você sempre soube? até hoje na sociedade é uma questão complicada, pais e filhos lidarem com isso.

ja - depende da sociedade em que você vive. hoje vivo numa sociedade de pessoas que escolhi para viver, não tenho esse tipo de problema. mas, por exemplo, em são paulo, desculpe, é sua terra, mas lá ninguém morria de aids. fulano morreu de... havia um preconceito tão grande que numa família daquelas que tivesse nome imenso, não podia morrer de aids. tirei isso da minha cabeça quando fui morar em são paulo, no alto de pinheiros, e vi que o paulistano era solidário demais até. queria que ele ficasse perto dos médicos de são paulo, aluguei uma casa ótima, com piscina, ficamos um ano lá. os vizinhos, nunca fui na casa deles nem eles na minha, mas eram de uma gentileza, não sei como souberam que cazuza estava lá. um tinha um sítio, outro uma fazenda, era a coisa mais bonita, chegavam da fazenda e mandavam um embrulho pra casa, era uma paleta de cordeiro, ou uma fruta. era toda a vizinhança, eu não via, porque tinha muitas árvores. achava maravilhosa a solidariedade deles. era pujante, existia. mas, não sei por que, havia talvez nos pais e avós deles, esse preconceito contra a doença.

pas - como você pensa hoje naquele episódio da "veja", que é uma revista paulista?

ja - hoje já consigo pensar, antes nem pensava. antes eu queria matar o cara que escreveu, simplesmente. depois eu vim a saber que ia fazer uma injustiça. esse tal cara que eu queria matar - não digo matar, mas ia dar muita porrada nele - tinha se comprometido comigo em fazer uma matéria fantástica, maravilhosa, que ele tomava a responsabilidade. esse acho que já morreu, era um italiano [alessandro porro]... ninguém sabia o que era a doença, prescreviam azt de forma errada. deram tanto azt pro cazuza que tinha hora que ele ficava fora de si. não era justo. mas a única coisa a favor deles é que cazuza queria fazer a matéria na "veja", cismou, botou na cabeça.

desci de petrópolis ao rio em 38 minutos, liguei para uma amiga jornalista pra saber onde morava o incauto. me deu o endereço, era aqui no leblon. fui, tive um atrito com o porteiro que disse que eu não podia entrar. fui entrando, ele não estava. mas ele não tinha sido o culpado, não. olha como é a vida, muitos anos depois tive acesso a um documento interno da "veja", em que o editor-chefe da revista encomendava a reportagem.

pas - quer dizer, encomendava o tom que ela ia ter?

ja - encomendava o tom. ia ter uma foto patética, uma coisa que não dá pra descrever de tão baixo que era.

pas - falava "foto patética"?

ja - é, foto patética, que era "normal da doença". tinha mais coisas, mas me lembro muito bem do enfoque que deram à fotografia. lendo a matéria, ela não era boa, mas não era para provocar a ira satânica que eu tive. lida duas vezes, tudo bem. mas a capa ["uma vítima da aids agoniza em praça pública"], "agonia em praça pública"... cazuza respondeu com um artigo fantástico, está pendurado aqui, "'veja', a agonia de uma revista".

pas - foi um marco inegavelmente negativo na história da revista...

ja - a moça que escreveu [com alessandro porro] se chamava angela não sei o quê [abreu]. ela me explicou como era, você deve conhecer mais que eu. o repórter escreve uma coisa e aquilo vai caminhando por dentro, vai sofrendo uma série de modificações, até que o editor-chefe bate o carimbo. no dia seguinte essa moça pediu demissão. eu arranjei um emprego para ela depois. depois me disseram, não sei se é verdade... teve os protestos todos que você sabe, a classe artística, teatral, cinematográfica, todo mundo assinou um manifesto. todo mundo foi na televisão esculhambar a revista. dizem que tem artistas que até hoje não podem ser citados lá, um deles acho que é marília pêra. por que não tiveram coragem de falar de nenhum dos que tinham assinado? todo mundo assinou, a diva do teatro, minha amiga, fernanda montenegro. ela foi maravilhosa.

pas - o que você ia dizer que não sabe se é verdade ou mentira?

ja - o que era? [hesita, tenta lembrar.] você estava falando que o poeta manuel bandeira falou aquele negócio, e eu falei outra coisa, aí você falou [ele ri, todo mundo ri, todo mundo tenta ajudar]... da bossa nova...

pas - juca chaves?...

ja - ah falei que conheci a palavra bossa nova através de uma música, aliás muito chata [risos].

pas - mas tam esse mérito, ou talvez tenha...

ja - talvez [cantarola "presidente bossa nova"]. e mais nada mais foi dito [risos]. ah, não [lembra], precisa confirmar, mas todo mundo diz que na semana seguinte à matéria a "veja" não circulou, porque os gráficos fizeram greve [confirmo depois no acervo digital da revista, de fato não houve "veja" na semana seguinte. o editorial da próxima revista atribui a ausência à greve dos funcionários da gráfica].

pas - como você interpreta hoje, porque uma revista importante fez aquilo daquele jeito? não era uma sociedade despreparada para lidar com aids, mesmo com sexualidade?

ja - foi um horror. uma revista com 1 milhão de assinantes, de repente pode se considerar com licença poética para qualquer coisa.

pas - licença não-poética, no caso.

ja - é, não-poética.

pas - se você fosse fazer um balanço, em que a globo foi e é boa para o brasil, e em que ela é ruim?

ja - o lado bom eu sei, porque vivi ele todo. se tornar a maior empresa de comunicação da américa latina não é para qualquer um. se fosse só questão de dinheiro, a adversária teria talvez mais condições, porque tira dinheiro dos pobres, tira dízimo. e não consegue. acho que é questão de talento, perseverança, como sempre tiveram com tudo que fizeram. o jornal deles está aí, não discuto a linha política dele. tem outros de que gosto talvez mais, do "el país", por exemplo, na espanha. dizem que está muito mal das pernas, não se sabe se vai continuar. tem uns jornais que leio com satisfação. d'"o globo" não posso cobrar que tenha o meu pensamento político. se leio livro do guevara ou não é problema meu.

eu diria como a baby consuelo, que sumia de casa, a mãe ficava louca atrás dela, e baby dizia à mãe que estava comigo [risos]. dona carmen, coitada, não tinha um parafuso qualquer. a família menna barreto era toda de militares, na época do pega-para-capar que passamos, dona carmen dizia: "o senhor tem que me dizer onde está baby consuelo, eu sou de uma família de militares, eles vão aí para lhe prender". eu não sabia, de repente baby aparecia em casa, "baby, vem cá, você tem que falar com sua mãe. liga aí". ela dizia: "mamãe, quem está falando é baby consuelo. eu tenho cabeça, eu penso e passo, tchau".

pas - depois virou música dela.

ja - é, eu diria como ela.

pas - não é como se as grandes instituições, seja globo, "veja" ou qualquer meio de comunicação, fossem sempre conservadoras, de direita - e tem sempre um monte de gente de esquerda trabalhando dentro delas?

ja - acho que a coisa fica num equilíbrio perfeito. na globo, o doutor roberto dizia, quando se queixavam que tinha muitos comunistas lá: "os comunistas que tenho aqui são os meus comunistas". todo diretor da globo que foi chamado pelo pessoal da ditadura pra depor, como sendo os comunistas e tal, ele foi acompanhar. comigo aconteceu uma coisa incrível, ele me tirou de uma enrascada. [olha para as cotações na tevê] olha lá, está tudo pra cima!

mas um dia fui convidado/intimado para comparecer à polícia federal. levei comigo, não sei por que cargas d'água, um advogado da globo, alcione [barreto, o que não faz um google, hein?], que era um cara de escola de samba também. o lugar era lúgubre, um salão com um pé-direito enorme, sentamos e ficamos esperando. o cara com cara de pinguço chegou, não deu boa tarde, botou o revólver em cima da mesa e o papel na máquina de escrever, e disse: "fala". o advogado tentou perguntar alguma coisa, "o senhor fique quieto, não foi convocado, se falar mais alguma coisa será recolhido ao cárcere". mandei o alcione embora, ele foi. e o cara: "fala". "estou imaginando, o senhor quer que eu fale sobre o quê?" "o tal festival." eu disse que estava viajando, cheguei da europa, sabia que o festival tinha sido realizado com sucesso e que as letras todas tinham sido liberdadas pela censura, e se essa música estava no disco da som livre... ele disse: "mas a som livre gravou e botou no disco". "não, não foi." "como não foi?, está no disco?". ele não sabia o que era um fonograma, expliquei que a gravação não era da som livre, era de outra gravadora, e a som livre tinha um contrato de publciar todas as músicas classificadas no festival. "o senhor vai falando aí as mentiras que o senhor quiser." perguntou mais 50 mil coisas nesse nível de babaquice. a música era [cantarola] "você pode fumar baseado...".

pas - ah, sim, baby consuelo, novamente.

ja - "...baseado em que você pode fazer quase tudo" [trata-se de "o mal é o que sai da boca do homem", defendida por bbaby e pepeu gomes no festival "mpb 80"].

pas - deve ter passado antes por algum censor ingênuo que não entendeu...

ja - é, eu dizia: "doutor, eu não tinha nada com aquilo". e pensava comigo que não tinha escopo para ser o cara que viria a ser procurado pela polícia federal. "não tenho mais o que perguntar, o senhor está incluso no parágrafo não sei qual, e a pena é de dois a quatro anos de prisão sem direito a sursis". ele mesmo me fichou, me fotografou com o número de frente e de perfil. me lembrou do tiro de guerra, o cara dizia: "todo mundo vai ficar nu". todo mundo ficou nu, "levanta o saco, fica de costas, levanta o casco". me lembrei disso quando estava lá, é o mesmo tipo de terror.

aí voltei à televisão, porque tinha que falar com alguém. os caras morreram de rir, [joão carlos] magaldi. mas eu estava aflito, resolvi fazer uma coisa que nunca tinha feito antes. me dava bem com os filhos do doutor eoberto, eles eram garotos, nem estavam na tevê ainda. liguei para a casa do doutor roberto no dia seguinte às 7 horas da manhã. sabia que ele acordava muito cedo. para surpresa minha, atendeu. expliquei que não tinha dormido por causa disso, que aquilo me abalou muito, que precisava falar com ele hoje. "então venha para cá agora." fui, comecei a contar para ele. no início ele não deu muita bola, não. só começou a dar bola quando eu disse: "doutor roberto, eu não sou ninguém para ter o prestígio dessa prisão que querem me dar. deduzo que isso é uma coisa contra o senhor".

pas - foi habilidoso...

ja - ...contra alguém de muita importância da globo, quem sabe contra o senhor próprio. ele disse [imposta a voz]: "o senhor não faz nada,o senhor volta para trabalhar. já estou com as informações necessárias". sabia que ele era uma pessoa solidária, mas não sabia que era tão solidário. depois,eu soube pelo vitório, uma espécie de secretário particular dele, que ele saiu, pegou um jatinho e foi para brasília, exclusivamente para isso. resumo da história, falou com o presidente presidente joão figueiredo, dois dias depois chega na tevê um cara levando tudo, minhas fotos, o texto batido à máquina. botamos tudo na panela do bigode [é o cozinheiro da globo, explica a assessora] e tacamos fogo, acabou a coisa toda. só tenho reconhecimento por esses caras.

sexta-feira, abril 17, 2009

joão araújo 4: jabá, elefante, política

pas - tinha jabá nessas negociações?

ja - tinha uma coisa, a música de abertura era de total responsabilidade do boni. ele resolvia sozinho, porque considerava que a abertura eé a hora que a música toca e chama a senhora que está na cozinha para ver a novela. então tinha que ser uma música marcante, e ele escolhia, o que já era uma coisa ótima...

pas - por quê?

ja - porque não tinha que ficar quebrando a cabeça, era uma coisa a menos para ter que convencer diretor, autor, co-autor... foi boni que escolheu, pronto, acabou.

pas - a mpb inteira devia estar doida para ter a música de abertura na novela...

ja - é... boni nesse ponto era muito independente, e era uma pessoa muito autoritária também. se dissesse "vai aí falar com boni", talvez o cara não quisesse, deixasse por conta dele.

pas - te perguntei se tinha jabá, você respondeu com essa história do boni...

ja - se tinha jabá nas novelas?

pas - é, se tinha alguma negociação que envolvesse dinheiro, não sei se da gravadora para a globo ou da globo para a gravadora. quem pagava quem?

ja - não, o que eu fazia era o seguinte: eu precisava ter repertório internacional pra botar em andamento minha jogada do internacional. a som livre não tinha repertório internacional nenhum. havia uma má vontade das gravadoras em cederem repertório naturalmente, uma resistência normal que fomos quebrando com o tempo. quando chegou essa hora de fazer o internacional, me caiu na cabeça uma coisa que inventei: os presidentes das empresas multinacionais precisam muito de uma coisa que é ranking, que é ver o desempenho dele em comparação com os outros. então eu distribuía com eles, o que era pra ser da som livre eu passava para as gravadoras. por exemplo, o disco vendeu 1 milhão, esse milhão não ia ser computado pra som livre. porque não tinha ninguém a quem provar, e eles tinham que provar pros patrões deles lá fora. então pra eles valia a pena, durante certo ponto foi muito bom para elas. depois não, porque começou uma briga lá entre eles, porque uns tinham mais que os outros, e finalmente esse negócio foi suspenso. mas nos primeiros anos funcionou maravilhosamente bem esse tipo de contrapartida.

pas - deixa ver se eu entendi. a trilha da som livre vendia e era computada como se tivesse sido venda de outra gravadora, é isso?

ja - é, não, o disco de novela tem músicas de várias gravadoras. então não posso passar a venda totalmente pra outra gravadora. fazia uma espécie de, como vou explicar?, de mesa de compensação. e distribuía por eles as vendas, vamos dizer que vendeu 10 milhões de discos, pegava esses 10 milhões e dividia pra cada uma.

pas - isso não criou uma dependência das gravadoras em relação à som livre?

ja - não.

pas - ou talvez uma dependência mútua? vocês precisavam dos artistas, dos fonogramas, e eles tinham a divulgação na tela da globo.

ja - é, eles tinham a divulgação e mais a posição no ranking, que ajudava. o presidente de uma multinacional tem salário, deve ter participação nas vendas e tem um bônus por desempanho. então isso valia muito para a carreira de um presidente e até pra remuneração dele [uma das assessoras tosse agora não sei como está sendo feito isso, acho que não tem mais [olha para a assessora, ela diz que agora não tem mais isso].

ja - puxa, o nome do bar [risos], quase saiu. eu não vou sair daqui sem lembrar. [simula um diálogo] "você me encontra lá no..." na presidente wilson com calógeras. não tem jeito, eu vou lembrar, ou não saio daqui.

pas - eu fico com você [risos]

ja - era um lugar famosíssimo. era uma sala enorme, tinha uma mesa enorme também, cadeiras dos dois lados, ia chegando gente e sentando. e, poxa, pessoas interessantes, gente de música, cinema, teatro, que ia ficando por ali. tinha coisas sensacionais. não era um lugar frequentado assiduamente pelo mário reis, mas ele ia algumas vezes. e ele era uma das cabeças mais fulgurantes que conheci, porque tinha uma memória de... diz um bicho aí que tem memória.

pas - elefante.

ja - de elefante, e ele adorava futebol, e discutia futebol à exaustão. um dia estava saindo um pau entre ele e um sujeito que não sei quem era. e o mário, enfático, dizendo que o jogo andaraí e américa tinha sido no campo do andaraí, e dizia quem era o time, e o outro cara dizia que dizia que não, que tinha sido no américa e que não era aquele time, era outro. isso foi irritando o mário, ele começou a falar alto, a brigar com o cara. para terminar a discussão, o cara disse "não adianta ficar irritado, eu fui o juiz daquele jogo". aí mário acalmou. ficou pensando, daqui a pouco voltou furibundo: "você não foi juiz de porra nenhuma, você foi o bandeirinha". e o cara acabou confessando. vai ter memória assim, de elefante, é ou não é? villarinho [lembrou o nome!, sorri satisfeito]!!! que parto, hein? villarino, villarinho. não sei se era villarinho ou villarino, isso é bom você apurar. depois já não tinha mais isso não, eu não ia mais, mas no tempo da philips e da odeon eu ia pra lá quase toda noite. acabava de trabalhar e ia pra lá.

pas - joão, voltando ao assunto... você era um presidente uma de gravadora nacional no meio de várias mulinacionais. como era essa relação?

ja - era como eu dizia pra eles: "eu não posso votar do jeito que vocês votam porque meu patrão está aqui no brasil". o patrão deles estava lá fora, era uma relação meio complicada. eu me esquivava às vezes. dizia: "eu faço questão de estar aqui porque o mercado é brasileiro, a firma que eu dirijo é brasileira e eu vou querer o melhor pro mercado brasileiro". às vezes eles vinham com ideias já fechadas lá de fora.

pas - imagino que eles tinham muito que obedecer normas que vinham de fora, que não eram exatamente criadas aqui.

ja - exatamente, mas aí já era uma questão... eles virem com metas de vendas fixadas era uma coisa. mas não vir, por exemplo, com instruções do que fazer, do produto que vai vender. isso, não, é uma coisa que tiraria mérito de qualquer companhia. mas metas de vendas, comerciais e coisas assim eu acho que deviam realmente ter pré-determinadas através de estudos que as multinacionais sempre fizeram nos mercados para onde vão.

pas - foi bom ou ruim quase todo o mercado de disco no brasil ser dominado por multinacionais?

ja - não, hoje acho que o mercado está dominado pelos independentes. sabe quantos selos têm no brasil, sem contar todos? 270, sabia?

pas - e mais cinco gravadoras grandes, ilhadas.

ja - são 270 selos lançando disco no brasil. a gente não sabe pra onde vão esses discos, mas são 270. mas é evidente que as multinacionais representam no mercado convencional um peso maior dessa indústria.

pas - e, nesse sentido, elas não acabaram governando a música brasileira, os rumos da música brasileira?

ja - acho que isso pode ter passado pela cabeça deles, mas nunca houve quem tivesse coragem de proclamar essa heresia. acho que seria uma heresia, e até uma falta de cuidado, porque seria uma responsabilidade imensa saber qual é o talento, qual é a comida que se tem que comer num país tão distante.

pas - você está respondendo então que os executivos daqui, brasileiros, eram os que governavam?

ja - não, veja bem, os presidentes de todas as empresas daqui prestam contas aos seus chefes no exterior. um sujeito que não compreendesse direito esse mercado, ia pensar que o presidente lá de fora mandaria o daqui gravar a música tal. não é isso que quero dizer. quero dizer que manda na vida dele, sim, se não tiver bom desempenho, manda embora e bota outro no lugar. e dão metas de venda, dão. mas não chegam ao detalhe de escolher o que é melhor para a empresa. nisso os daqui têm toda autonomia. e os de fora não fazem isso porque seria temerário, os daqui iam dizer "não cumpri a meta porque o senhor mandou eu gravar não sei quem". ficaria ruim.

pas - pergunto isso porque na questão do download as gravadoras se atrasaram muito, não conseguem entrar nesse circuito. conversando com um diretor ou outro, tenho a impressão de que estão amarrados, porque a matriz lá de fora definiu que não pode, e o brasil não tem autonomia para colocar seu repertório na rede.

ja - essa é uma questão de direitos, que está sendo discutida através da nossa associação junto às editoras, aos detentores dos direitos. está caminhando, lentamente, porque é lento o processo de negociação.

pas - por ser lento, as coisas vão acontecendo fora dos domínios das gravadoras.

ja - exatamente. é uma negociação penosa. eles não querem que aconteça o que aconteceu muitos anos atrás, quando legislação vigente foi questionada pelos novos que vieram. era mais ou menos a mesma coisa.

pas - de que contestação você está falando?

ja - os artistas antes eram remunerados pelo royalty de 6%, 7%, 8%. até que chegasse a 10%, 15%, 20% ou o que for, foi uma luta de 30 anos, na qual estavam embutidos os interesses das gravadoras de não terem prejuízo e dos artistas de ganharem muito justamente o seu dinheiro. por exemplo, ajudei a polygram a resolver um problema que ela tinha com chico buarque. ele tinha contrato e não queria entrar no estúdio. e chico não era de conversar muito, era muito tímido. eu vim a saber que chico não tinha nada, era uma questão só de royalties - queriam remunerá-lo pelo royalty que ele tinha feito quando gravou o primeiro disco, sei lá quantos anos atrás. vamos dizer que ele queria lutar por uma diferença de 7% para 15%, sei lá. eu disse isso para o presidente da polygram, marcos maynard, ele disse: "não é possível". "pode chamar que ele vai gravar." e foi gravar.

pas - como se resolveu a situação?

ja - eu conhecia o chico, vim almoçar com ele no antiquarius. ele não queria nada mais que não ser remunerado pelo royalty de 15 ou 20 anos atrás. no que falei para o cara da polygram, ele disse que não tinha nada contra pagar, se soubesse que era isso tinha resolvido há mais tempo. mas as pessoas têm dificuldade de se comunicar, né?

pas - se diz muito que chico era brigado com a globo...

ja - aí era uma briga boba dele com boni. parecia negócio do Getúlio, tira o retrato do velho, depois bota no mesmo lugar. chico entrava no antonio's, jogava o retrato do boni no chão. sinceramente não sei por que tinham essa briga.

pas - costuma-se ligar a questões políticas.

ja - não faz muito sentido, porque boni não é uma pessoa politicamente existente. se fosse, eu podia até imaginar. talvez festival, não sei, sei que tinha lá uma bronca entre os dois. tenho quase certeza de que não existe mais. mas a globo, quando fez sucesso, eu notava que as pessoas de um modo geral tinham certa bronca. notava isso quando entrava num restaurante com walter clark. notava que havia uma certa pinimba, provocação, entende? foi coisa de uma época que depois também passou. mas que tinha, tinha.

pas - e você atribui a quê?

ja - olha [ri], tudo que faz sucesso tem isso... o sucesso da globo foi muito rápido e muito grande. um homem como walter, que era muito jovem, 39 anos, e muito elegante, se apresentava muito bem, despertava certa inveja.

pas - o que passa historicamente é a ligação da globo com a ditadura, que causaria uma birra em caras mais combativos.

ja - isso não deu para fazer notar, porque as vezes que lidei com política na tv globo posso dizer a você que fui muito bem-sucedido. eu tive que fazer... não tinha que fazer, mas fui eu que fiz a aproximação do [leonel] brizola com o doutor roberto [marinho]. brizola não conhecia ninguém no rio, não me conhecia, eu jogava no clube dos 30 por 30, que tinha uma pessoa muito ligada ao brizola, que jogava pelada comigo. brizola ia ser eleito governador, eu não sabia como eles tinham tanta confiança assim, porque as pesquisas diziam que tinha dois candidatos, um com 48%, outro com 52%, miro [teixeira] e sandra [cavalcanti], e brizola com 3%. e o cara dizia que ia ser barbada.

pas - e estava certo, no final das contas.

ja - estava certo. teve até aquele negócio da proconsult, que a bem da verdade, a globo não tinha nada a ver. mas teve também esse troço, que depois... política e religião são duas coisas que complicam sempre a vida do cidadão.

pas - você dizer isso me inibe, mas eu ia perguntar onde você se situa politicamente.

[continua...]

quinta-feira, abril 16, 2009

joão araújo 3: a globo

pa - você é tido como um cara da música mais comercial, bem-sucedida, mas tinha uma afinidade com os "malditos" também, não?

ja - tinha, sim. gostava muito de fazer poesias que ninguém lia. ah, a música [em parceria com tom zé] se chamava "distância". [mudamos de sala, e joão mostra um quadro encostado à parede, uma fotomontagem em que presidentes de gravadoras brasileiras aparecem vestidos de super-heróis.] essa foi a primeira versão da associação brasileira dos produtores de discos, um gaiato fez isso aí e nos presenteou. estamos aqui beto [boaventura], da warner; o locutor que vos fala; roberto [augusto], presidente da sony; manolo [diaz], presidente da associação; roberto souto, que era advogado da som livre e também da associação; luiz oscar niemeyer, que era presidente da bmg; aluísio reis, que era da odeon [emi]; e marcelo castello branco, da universal.

pas - tem dois navios-piratas no fundo da foto [risos].

ja - é. isso aqui [olha para a grande tv ligada à sua frente] eu botei porque me dá uma sensação fantástica. às vezes me sinto muito rico, e, segundos depois, muito pobre, porque vai mudando ali, ó [aponta para as cotações da bolsa que correm no canto inferior da tela]. quando você pensa que está rico, está pobre, o dólar agora foi a r$ 2,27.

pas - você fica prestando atenção?

ja - não. deixo para ter alguma coisa, faz parte da decoração.

pas - voltando à rge...

ja - é, tom zé eu contratei quando estava na rge de são paulo. foi meu companheiro de noites "indormidas" pela labuta. era muito louco tom zé. mas é uma pessoa fantástica. esses baianos todos devem muito a ele.

pas - aí entramos na som livre.

ja - aí tinhamos essa renovação de contrato das trilhas de novelas que não foi feita. o armando nogueira, que não tinha nada a ver com disco, era um companheiro que eu tinha nas peladas de fim-de-semana que fazíamos num clubezinho chamado 30 por 30. eram 30 sócios com mais de 30 anos. eu tinha 24, fui o único que entrou com menos de 30. entre os outros estavam armando nogueira, cacá diegues, luiz carlos barreto, tiago de melo, o cônsul da áustria no gol [ri], paulo mendes campos, e outros mais. um dia, acabada a pelada, armando, que já estava na globo havia algum tempo, perguntou: "você não mexe com negócio de música?". "mexo, você sabe." disse que lá estava ouvindo umas conversas nas reuniões de diretoria de que eles estavam querendo fazer uma gravadora, e estavam em busca de um profissional do disco. "tudo bem, armando, mas o que eu faço? não posso me oferecer, estou numa empresa que me dá tudo." conheço walter clark desde o tempo que a gente pegava bonde para trabalhar, ele na interamericana, e eu na minha copacabana discos. conheço, mas depois que fez a globo, o sucesso todo, via ele muito pouco. só sei que na semana seguinte me liga a secretária de walter clark, me convidando em nome dele pra um almoço no museu de arte moderna, almoço esse a que ele não compareceu [ri]. o apelido dele era vento, porque estava aqui, ali, ali, ali. mas foram dois homens de confiança dele, e quando terminou o almoço eu tinha concordado em fazer. só pedi um tempo necessário pra poder ter uma conversa legal com o pessoal da rge. sempre saí bem dos lugares em que trabalhei. saí de lá numa fase muito ruim, era novembro de 1969.

pas - essa data você lembrou.

ja - é, eu sei a data do meu aniversário e do dia em que entrei na globo. porque eu tinha que fazer uma novela para março, se não me engano, que era "o cafona", uma coisa muito em cima. e a globo estava em obras, o prédio da rua von martius estava cheio de poeira. eu não tinha nem lugar onde ficar, ficava um pouco na sala de cada um, uma confusão. então eu esperava acabar a hora do almoço e ia para o único lugar que se mantinha em ordem, que era o restaurante depois do almoço. contratei uma secretária que trazia a máquina olivetti da casa dela e ia pegando pessoas aleatórias para gravar.

nessa época a indústria do disco tomou conhecimento de que a tv globo ia fazer disco, e ia fazer não no mercado convencional. eu não achava razoável nem inteligente pegar um canhão como a tv globo e trabalhar em cima do mercado convencional, que era muito pequeno. tinha 800 pontos de venda. eu queria trabalhar para um mercado não-convencional: supermercados, lojas de conveniência, farmácias, armazéns, livrarias, tudo que não fosse convencional.

pas - isso foi concretizado?

ja - eu queria fazer isso. mas nessa altura existiam perto de 20 gravadoras no mercado. elas ficaram ameaçadas com o negócio da som livre, se reuniram e fizeram um negócio exatamente igual ao que a som livre fazer. fizeram uma firma chamada discofita que nada mais era que trabalhar no mercado não-convencional. foram para as supermercados, contrataram gôndolas. e foi um insucesso enorme, porque tudo que é para você fazer em termos de supermercado é medido por segundos. se você põe uma gôndola e ela não te fatura xis, não vende tantos produtos por hora, você procura outro produto imediatamente. como os 20 fabricantes eram os 20 acionistas da Ddscofita, todos os 20 queriam ter discos nas gôndolas. não pensaram em fazer sucesso com a firma, e sim queriam ver seus discos lá dentro. conclusão: foi uma confusão danada, ninguém vendeu coisa nenhuma e tiveram que acabar com o negócio. e já não dava mais tempo para eu esperar, eu já tinha entrado no mercado. me antecipei e entrei com uma parceria da odeon.

pas - as gravadoras fizeram essa empresa unicamente para fazer frente à gravadora da globo?

ja - é, eles queriam ocupar um território que sabiam que seria ocupado pela marca da tv globo.

pas - quer dizer, a Ggobo era jovem, mas já era poderosa o suficiente para causar esse impacto nas gravadoras?

ja - a globo tinha quatro ou cinco anos. mas em 1969 a globo já era a globo, já tinha o "jornal nacional". o que fez a globo foi pegar um jornal e botar em edição nacional. que pela primeira vez havia um jornal que ia ao ar ao mesmo tempo no brasil todo. em jornalismo inovaram completamente, e nos outros aspectos foi questão de competência mesmo.

pas - qual era o tamanho da ambição da globo ao criar a som livre?

ja - a globo era um "repórter esso urgente", ela não podia parar. não podia ficar dependendo de gravadoras para ter suas trilhas sonoras. não pensou em nada mais, nada menos que nas trilhas sonoras.

pas - talvez sem a dimensão exata de que isso viraria uma mina de ouro?

ja - isso nunca, com certeza não tinha. era exclusivamente pras trilhas. claro que eu, sendo de disco, entrando lá e vendo as possibilidades que a televisão tinha, comecei a criar linhas de programação que nunca passaram pelas cabeças deles, fazer discos de montagem. teve uma época que fiz um pequeno cast lá. a dificuldade de ter artistas era tão grande que fiz um cast com rita lee, cazuza, djavan, jorge Ben. cheguei a ter um cast importante lá. mas que acabei, porque as ideias de uma gravadora não se coadunavam com uma empresa de artista, de cast artístico.

pas - durou bastante a fase com elenco.

ja - não foi tanto, não. quatro, cinco anos.

pas - o que são discos de montagem?

ja - é disco que você não grava, que usa fonogramas de outros, ou seus mesmos.

pas - ...que é o que são hoje as trilhas de novelas.

ja - é. novela não foi feita para usar música dos outros, não, foi feita pra ter música nova. mas aí muita gente começou a dar palpites, autores, diretores. era difícil fazer uma trilha, porque nem sempre você podia ao mesmo tempo a todas atender às pessoas internas da própria globo.

pas - essa relação acabou virando um jogo pesado de poder, não?

ja - era complicado, pelo seguinte. quando fundei a som livre, procurei estabelecer uma relação que fosse do tipo agência-cliente. ou seja, a som livre seria a agência e a globo, o cliente, um cliente espetacular, preferencial e único. mas acontece que todo brasileiro acha que conhece tudo, não tinha uma pessoa que não chegasse pra mim e dissesse como fazer uma trilha de novela, dos mais modestos aos mais respeitados. era impossível agradar todo mundo, mas a gente foi levando mesmo assim. se as trilhas de início fossem um insucesso seria muito difícil continuar com a som livre.

pas - como a gôndola do supermercado?

ja - é, seria muito difícil, porque ninguém ia aguentar a pressão. mas as trilhas da globo começaram a vender muito, e eu inaugurei as trilhas internacionais na segunda fase da novela. explodiram, vendiam quatro vezes mais que a trilha nacionl, o que era totalmente atípico, porque a venda do produto nacional representa 85% do mercado brasileiro. as trilhas internacionais eram exceção.

pas - alguns dos primeiros artistas da época que a som livre teve elenco eram experimentais, transgressores, como luiz melodia, jards macalé, alceu valença. a gravadora da globo, no início, era audaciosa em termos artísticos.

ja - era. eu tinha muita vontade de que ela fosse uma mola propulsora de novos talentos, que desse oportunidade a quem tivesse talento. como ela tinha um poder de fogo muito grande, poderia promover melhor. mas nunca é a realidade, a realidade era diferente. pra mim às vezes era muito mais difícil colocar um artista da som livre na globo que numa outra televisão. é ou não é? [dirige-se à assessora, que confirma: "até hoje".] tinha um negócio difícil de passar por cima, que uma coisa chamada a resistência passiva. você não diz não, mas quando você cobra do cara, "você vai botar rita lee no ar no domingo no "fntástico?". "não tem problema, maravilha, que ótimo." você fica lá o programa todo e nada. e isso com o poder do boni lá dentro, todo mundo lá dentro tinha um cagaço terrível dele.

pas - você inclusive?

ja - é uma coisa que eu até faço questão de dizer, só consegui implantar a som livre com muita ajuda do boni, assim mesmo furando as coisas como furavam. eu contava para ele no dia seguinte, ele ficava louco, só faltava comer o fígado do cara. mas o cara dizia "eu adorei, mas imagina, o caminhão virou, a lata bateu". enfim, isso vocês [para as assessoras] estão cansadas de ouvir, é resistência passiva.

pas - era como se fosse uma rivalidade de globo com globo?

ja - tinha um problema sério, quando uma empresa cresce muito em curto espaço de tempo... hoje a globo é bastante organizada, mas na época, por mais que se fizesse era impossível. a globo tinha um problema que a gente chamava de canal 9. depois das 9 da noite o pessoal da própria globo entrava lá para gravar, fazer copiagem, tape, pra competir às vezes com a própria globo. isso foi problema de uma época, já deve estar diferente.

pas - quando mariozinho rocha passou a ter a importância que teve?

ja - quando comecei a sentir o problema das trilhas, eu disse para o boni que só íamos encontrar solução para os problemas se colocássemos uma pessoa específica para controlar a novela, não lotada dentro da televisão ou da som livre, mas que fique lá no... como é o nome do parque de produção? projac. sugeri mariozinho rocha, que já era conhecido. a tv globo pagava metade do salário dele e eu pagava a outra metade, e assim começou mariozinho lá. agora como está não sei, mas era assim.

pas - e mariozinho ficou poderosíssimo.

ja - é, porque passou a ser muito procurado pelas gravadoras. houve uma época que todo mundo achava que só podia fazer sucesso se entrasse numa novela, o que não era verdade, porque, puxa, muitos estouraram fora da novela.

pas - mas sem dúvida era um instrumento a mais, realmente poderoso. se entrasse na novela, seria ouvida por milhões de pessoas.

ja - é. a trilha nunca foi o que eu idealmente pensava em fazer. talvez fosse um sonho, sonhar não custa nada, mas não consegui botar na realidade esse sonho de ter uma trilha. eu achava que você não pode pegar músicas antigas e botar numa novela nova. têm que ser temas novos, mesmo que seja pra tratar de músicas antigas. se quiser regravar francisco alves, tudo bem, entra um cara e grava, mas sempre procurando botar alguma coisa nova. sei que é difícil encontrar música, a globo tem seis novelas por ano. no começo tivemos o sonho de ter trilhas compostas por duplas. chegamos a fazer roberto e erasmo, marcos valle e o irmão paulo, raul seixas e paulo coelho, toquinho e vinicius. aí parou, não teve como continuar. era para dorival caymmi fazer a trilha interia de "gabriela".

pas - tinha jabá nessas negociações?

[continua...]

quarta-feira, abril 15, 2009

depois que tu partiste

não me lembro de ter visto fuscas nas ruas ajeitadinhas de maringá, nesse fim-de-semana pascoal que passei por lá. mas encontrei, numa parede, uma foto da maeringá de muitos anos atrás, quando a catedral-chapéu-de-bruxa (ao fundo) ainda estava sendo contruída (eu era pequeno, ou ainda não tinha nascido, sei lá).

tirei uma foto da foto e publico o mimo com gosto, aqui embaixo. mas me diz, alguém se arrisca a contar e me dizer quantos fuscas estão presentes nessa única paisagem? eu tentei, mas acho que não consigo.

cruzes, pra onde é que partiram, onde é que foram parar todos os fuscas?, à medida que maringá cresceu e "enricou" e os carros "modernos" ganharam, todos, essas nauseabundas cores pastéis que circulam por aí?

e, cacilda, comecei finalmente a entender por que é que eu gosto tanto de fusca!


(e meu pai completou 80 anos, em pleno domingo de ovos-de-galinha-pintados-com-amendoim-confeitado-dentro, e, sim, ele e a festa estavam de uma fofura sem igual, emocionantes. ai ai ai.)

terça-feira, abril 14, 2009

joão araújo 2

no segundo trecho da entrevista, joão araújo começa a falar de seu currículo dentro da música e das (então grandes) gravadoras no brasil.


pas - como a música apareceu na sua vida?

ja - de uma forma muito engraçada. aos 14 anos, como era discípulo do meu pai... eles gostavam que a gente começasse a trabalhar cedo. sou o caçula de seis filhos, somos três homens e três mulheres. nasci aqui mesmo, na rua aqui ao lado, em frente ao [restaurante] antiquarius, quando o leblon era um areal, era para quem queria sossego. meu pai veio de pernambuco, como chefe de gabinete do ministro da fazenda. devia ter 15 famílias aqui, todos nos conhecíamos.

pas - era o governo getúlio vargas?

ja - eu nasci em 1935, meu pai veio para cá antes disso. a ordem dos governos é que não me lembro. getúlio fez muita coisa pelo país. minha mãe era educadora, tratou de fazer aqui um colégio, onde fiz o primário. mas com 14 anos fui trabalhar, a família era assim. meu irmão já era formado, era dono de laboratório, fui trabalhar com ele. mas era um negócio chato, eu com 14 anos fazer pílulas e remédios? aí um cunhado, casado com minha irmã, era um homem de negócios e de vez em quando caíam negócios esdrúxulos na mão dele. caiu uma gravadora, a copacabana discos. maravilha. o primeiro emprego que tive na gravadora foi de auxiliar de imprensa do ramalho neto, fazia isso que vocês fazem [dirige-se às duas assessoras da som livre presentes na entrevista].

pas - com que artistas você trabalhou lá?

ja - ah, angela maria. elizeth cardoso. francisco carlos, que era o rei das menininhas. lúcio alves, dick farney. aí fiquei muito amigo de ary vasconcellos, crítico de música d'"o cruzeiro", e de sérgio cabral, pai do atual governador, também crítico. eles me recomendaram muito na odeon, e eu fui como chefe de divulgação, olha que promoção. aí pegava a parte de rádio também. era muito mais fácil, eu mandava fazer um disco de promoção com as músicas que a gente queria tocar na rádio, e fazia um programa de sucessos da odeon. eu ia para a rádio jornal do brasil e tocava o disco no programa, não tinha negócio de disc-jóquei, não. fiquei cinco ou seis anos na odeon.

pas - e lá, que artistas passaram por você?

ja - dorival caymmi, isaurinha garcia...

pas - pegou a chegada de joão gilberto?

ja - peguei. quem levou joão gilberto, quem fez da alma coração para colocá-lo lá foi aloysio de oliveira. ele entrava nas reuniões de programação sempre com um acetato de joão gilberto. botava na reunião, o chefe de vendas que dirigia a reunião dizia: "ô, aloysio, você está insistindo com esse gato que mia? não adianta que a gente não vai programar". tanto insistiu que conseguiu colocar o joãozinho. joão tinha horror ao chefe de vendas da odeon, não vou dizer o nome por uma questão de ética. era uma pessoa que tinha mesmo um aspecto mais de boxeur mesmo[risos].

um dia eu estava na gravação do joão, ele sumiu, ninguém encontrava. no fim do expediente, fui ao bar... [não consegue lembrar o nome], que recebia um monte de pessoas conhecidas de todas as áreas, poetas, escritores, compositores, cantores, mário reis, aracy de almeida, cyro monteiro, vinicius de moraes, jornalistas - fernando lobo, lúcio rangel. tem casos interessantes lá. um compositor famoso que bebia muito, também não vou citar o nome, se encontrou com um amigo que não via havia 15 anos. volta e meia o cara fechava o bar, ficava lá dormindo. esse amigo o encontrou nessa situação e o levou para casa. só que ele já estava fora de casa fazia alguns anos e ele não sabia. tocou a companhia, veio a mulher que ele conhecia, "olha aqui, fulana, encontrei o beltrano, não ia deixar ele na rua, onde eu ponho ele?". "põe ali no sofá." botou, o cavalheiro ficou, nunca mais saiu, veio a morrer poucos anos atrás.

mas fui para o bar [força a memória para lembrar o nome, não consegue], cheguei cedo, encontro joãozinho sentado sozinho. "rapaz, está todo mundo te procurando." ele disse: "joão, eu estava lá no estúdio, naquela cabine tinha um monstro. aquele monstro vinha e falava comigo, eu ficava com medo, fugi". era o chefe de vendas.

pas - e depois da odeon?

ja - se instalou no brasil a philips, comprando uma empresa brasileira que era a sinter, de alberto pittigliani, cujo sobrinho é armando pittigliani, um produtor de discos muito querido nosso. as multinacionais, quando compravam uma empresa nacional, tomavam por medidas de precaução manter o presidente por dois anos, para qualquer coisa que viesse a acontecer pós-venda, coisas ligadas a tributação, a crimes não sei de quê. alberto ficou lá, mas não entrei pela mão dele, e sim de um diretor de lá que eu conhecia e que fazia parte do conselho da philips do brasil. fui o segundo brasileiro a entrar na philips discos. o primeiro foi um senhor chamado paulo serrano, que era uma espécie de gerente de produção. entrei como homem de disco ainda a definir posição. fiquei lá seguramente um ano como o cara que bate o córner e sai correndo para cabecear. até que me fixei no cargo de diretor artístico de programação.

pas - era quem selecionava elenco?

ja - que seleciona elenco, e tem uma parte de produção de disco que é muito executiva. o ideal é ter sempre na parte artística uma cabeça artística e uma cabeça mais comercial, porque as duas coisas andam cada uma para um lado.

pas - qual era a sua cabeça?

ja - era um pouco das duas, mas era mais comercial, primeiro porque não sou músico. o fato de gostar de música não me confere nenhum diploma. gosto de música, mas saber selecionar... eu selecionava, mas procurava muito me apoiar em produtores. e na philips deu para fazer um cast muito interessante. para ter uma idéia, contratei para lá gal costa, caetano veloso, jorge ben... quando digo que contratei, estou fazendo injustiça a algumas pessoas. por exemplo, quem teve muita importância na contratação de jorge ben foi armando pittigliani. outro que contratei foi djavan, mas quem tem 80% na contratação foi um produtor meu, muito modesto, chamado joão mello, que era aquele produtor que fazia o que a estimativa de produção dele dizia que tinha que fazer. se a estimativa era tanto ele cumpria tanto, disco dele não custava um tostão a mais. mas não era tão bem-sucedido quanto os outros que não faziam o mesmo que ele em organização.

pas - joão mello chegou a ser compositor, e a lançar disco, não?

ja - é, ele compunha também mas quem mais? vamos lá, tinha mais gente. elis regina. edu lobo. tamba trio.

pas - quer dizer, você era o executivo que contratava esses nomes todos?

ja - era, tinha que aprovar esses contratos, ou contratava diretamente. tinha noites que eu saía, tomava mais de um uísque e contratava duas ou três pessoas que não tinham nada a ver [risos].

pas - nomes que você também não vai citar?...

ja - eu sabia porque no dia seguinte os produtores me diziam: "você saiu ontem à noite, né, joão? já esteve aqui uma cantora, um cantor, você vai gravar com eles?". eu dizia: "não sei, não me lembro".

pas - acabavam contratados, ou não?

ja - não. era muita loucura minha. meu filho é que dizia que ele era... um maluco abandonado, como ele dizia?

pas - maior abandonado.

ja - não, ele era... tinha um negócio que ele falava de louco [tenta lembrar, desiste]...

pas - você disse "muita loucura", você foi um jovem "doidão"?

ja - não, era loucura minha de fazer esses negócios de contratar. você estava na noite, ficavam te aporrinhando, você dizia "passa lá amanhã". e passavam, já dizendo "joão araújo mandou gravar". pô, não era bem assim. falava "não leve a mal", o cara ficava na fila para ter uma outra oportunidade, ou era aproveitado em disco de montagem. mas também não era uma coisa que se sucedia com grande frequência, graças a deus.

mas tem mais gente da philips, quero lembrar. já falei vinicius de moraes? vinicius gravou voz como cantor numa música pela primeira vez comigo. ele não queria cantar de jeito nenhum, levei para o estúdio, fiz ele ver que tinha boa voz, que a música era mais recitativa. era "pela luz dos olhos teus". ele cantou, fez sucesso. tinha mais gente. tinha tom jobim, ele gravou conosco. tinha arranjadores famosos, maestros, léo peracchi, erlon chaves. a philips tinha gente em são paulo também, o noite ilustrada... a odeon, de onde eu tinha vindo, também tinha muita gente de sucesso, isaura garcia, adoniran barbosa.

pas - por que os discos da philips, uma multinacional, saíam também com o selo companhia brasileira de discos?

ja - a sinter era o nome-fantasia da companhia brasileira de discos. a multinacional entrou e manteve o nome, cbd, e começou a lançar o selo philips, até mudar a razão social para philips, muito tempo depois.

ja - pedro, estou falando tanto que estou ficando rouco.

pas - mas nem chegamos à som livre ainda, vai ter que falar mais... em seguida à philips, vem a rge?

ja - por isso a gente tem que fazer isso à noite, num bar [risos].

pas - aí ia falar todos os nomes [risos]...

ja - não, a minha ética resiste ao álcool. aliás, eu não briguei com a bebida, mas não bebo mais o que bebia. bebia industrialmente, hoje bebo civilizadamente. deixei de fumar também, que é outra desgraça.

bom, levei para a odeon uma pessoa que quero citar com muito carinho, que foi aloysio de oliveira. era produtor, virou diretor artístico de lá, fez um trabalho maravilhoso. depois fez outro trabalho maravilhoso que foi a elenco. a gravadora lançava oito discos por ano, mas cada disco era uma peça rara, desde as capas, que eram verdadeiros quadros. você está vendo este escritório todo em vermelho e preto? eu pedi para a arquiteta fazer assim, para essa vou dar crédito, é márcia muller.

pas - por tudo isso posso concluir que você é um fã da bossa nova?

ja - sou fã da bossa nova. e nós fizemos uma corrida com a odeon para ver quem ia lançar o primeiro disco de bossa nova. e nós conseguimos, lançamos o disco "bossa nova mesmo" pela philips. a contracapa foi o jornalista júlio hungria que escreveu, e nesse disco é que está vinicius cantando pela primeira vez. tinha vários artistas, oscar castro nevs, lúcio alves, sylvia telles, quem mais? o da odeon tinha joão gilberto, outras pessoas que não lembro agora.

fiquei 11 anos na philips. saí de lá e passei à rge, de um empresário famoso chamado [henrique] lebendiger. era dono da rge e da fermata. fermata era a editora, e rge, a gravadora. quem fez a rge foi [josé] scatena, que era um comerciante que se dedicou ao disco, por um francês, jacques [não consegui entender o nome dito por joão, nem encontro referências a esse nome na fundação da rge - alguém ajuda?], e por boni, sabia disso? boni fez, foi um dos fundadores da rge. não sei se era sócio, sei que estava no grupo que fundou.

pas - você já tinha ligação com ele nessa época?

ja - não, nenhuma, só vim conhecer boni quando vim para a som livre. mas esse senhor tinha traçado para a vida dele viver metade do ano no brasil e metade no exterior. então ele queria ter alguém que fosse jovem - nessa época eu era jovem - para tocar os negócios dele aqui nesses seis meses que ele ficasse fora. fui esse homem, mas tive que pagar um preço por isso - quer dizer, não é pagar no mau sentido... eu tinha que morar em são paulo de segunda a sexta.

pas - já falou "pagar um preço" [risos], não tem como voltar atrás.

ja - não, eu adoro são paulo, mas eu não podia ter uma família no rio e trabalhar em são paulo permanentemente. adoro são paulo, até porque gosto muito de comer, e lá se come muito melhor. então minha vida era em cima de um trem, que eu tinha horror a avião. batizei o trem de caravana dos covardes. participávamos desse trem noturno, os encagaçados do ar, as seguintes pessoas: eu, flávio cavalcanti, vinicius de moraes, cyro monteiro, aracy de almeida, vê que time. era animadíssimo, a gente ia para o carro-restaurante, que fechava 11 e meia da noite. a gente tinha que dar um por for para o cara não fechar. ele fingia, ia embora, não foi uma nem duas vezes que fomos acordar, todos dormindo, na garagem do trem. o pessoal pisava fundo mesmo.

pas - o medo de avião passou?

ja - passou, porque não tinha como. com a som livre, numa outra fase, começamos a ir para o exterior. um dos projetos que eu tinha era levar a som livre pro exterior. eu tinha formado na minha cabeça esse modelo de gravadora que é a som livre, que era rentabilizar o tempo ocioso que toda tv tem e normalmente é aproveitada pelos departamentos comerciais das tvs para dar como bonificação ou [hesita] usar em projetos que não vendiam nada. esse negócio de rentabilizar era poder fazer algum tiopo de empresa que fosse ligada ao entretenimento, e a música era muito chegada à globo, estava muito presente, principalmente nas trilhas de novela, que eram feitas num acordo que a globo tinha com a philips. as primeiras foram feitas na philips, quando seu gerente era andré midani e nelsinho motta era o produtor. pelo primeiro convênio fizeram algumas novelas, "véu de noiva", "irmãos coragem". não lembro quais outras. e eu entrei porque a globo e a phiips brigaram, não entraram a um acordo para a renovação.

pas - tiraram você da rge para desenvolver um selo próprio?

ja - tiraram.

pas - só uma coisa que pulamos, quais eram os artistas da fase rge? tom zé costuma falar de você com carinho.

ja - no tempo do scatena, a rge foi uma grande lançadora de artistas brasileiros. maysa, por exemplo, foi lançada pela rge.

pas - também chico buarque, erasmo carlos...

ja - ...sendo que erasmo não era mais da fase do scatena. estou falando dos mais antigos, agostinho dos santos. tinha uma orquestra lá famosíssima, não estou num dia bom para lembrar de tudo. zimbo trio, leny eversong. tem gente interessante, quer ver como vai surgir mais gente?

pas - vandré?

ja - geraldo vandré. a música do festival ["pra não dizer que não falei de flores" foi gravada na rge, antes de eu chegar. tom zé fui eu que levei para lá, é meu amigo pessoal. esse inclusive foi quem teve a ousadia e a coragem de pedir pra eu fazer a segunda parte de uma música que ele fez. me mostrou a música, falei: "tom, não está faltando a segunda parte, não?". ele disse: "não, pra mim está completa, mas se você quer fazer a segunda...". lembro até o nome dessa música, chama-se [força a memória]. ô, meu deus do céu... da segunda parte eu lembro, [cantarola] "as luzes da cidade já não cantam mais pra mim"... fiz a segunda parte, ele adorou, a música saiu, não vendeu porra nenhuma, mas eu fiz [risos].

segunda-feira, abril 13, 2009

joão araújo 1

a reportagem "o executivo bossa-nova" ficou apertada na "carta capital" (edição 541, 15 de abril de 2009, nas bancas desde sexta-feira), pouco coube da longa entrevista gentilmente concedida por joão araújo em seu escritório no leblon.

joão, além de pai de cazuza, foi por quase 40 anos presidente de som livre, a gravadora da toda-poderosa rede globo. quase sempre arredio, ele (gentilmente, repito) abriu esta exceção e conversou três horas e meia sem parar. na revista ficou apertado, aqui não ficará. lá não coube muita coisa, aqui tudo caberá.

para começar, o início da odisséia, ops, odisseia: o trecho em que discorreu sobre a indústria fonográfica e sua tão alardeada crise - começamos, portanto, em registro parecido ao da série sobre a relativamente nova (e relativamente mambembe) indústria dos dowloads musicais.


pedro alexandre sanches - quais são atualmente suas atividades?

joão araújo - eu continuo como presidente da associação [associação brasileira dos produtores de discos, abpd], um cargo que me foi dado por unanimidade pelos diretores lá, muito simpaticamente. fiquei muito gratificado com o gesto deles. o presidente-executivo é o paulo rosa, e eu, como presidente de honra, faço parte de uma representação que a associação tem, visitas protocolares, conferências, passar um pouco de meu conhecimento de 50 e poucos anos de música. porque só fiz isso na vida, né? tem um pessoal jovem muito bom, mas, como todo jovem, eles têm suas dificuldades em aprender certas coisas. estão começando a ralar agora, então estão se vendo diante de problemas que para eles são muito grandes, mas que para um cara como eu não são tão grandes. eu já passei por tantos.

pas - você disse que para um cara como você os problemas não são tão grandes, mas a retórica mais comum hoje é de que a indústria vive os maiores problemas que já teve na história. você não concorda com isso?

ja - eu concordo em parte, porque uma indústria que já gerou o faturamento anual de 1,8 bilhão de dólares, chegando a ponto de passar pelo canadá e ficar em sexto lugar no ranking mundial, hoje vive o constrangimento de ser uma indústria que não chega a 300 milhões de dólares. vejo os jovens penando, trabalhando muito para poder desenvolver um trabalho, porque evidentemente as gravadoras hoje não têm mais as verbas que tinham para promover os artistas, fazer um trabalho maior. mas digo que é outro tipo de problema em que eles se encontram, na própria relação com os artistas. sinto que eles têm dificuldade. porque o artista é uma entidade diferente, e é muito difícil para um produtor entrar no ritmo da cabeça de um artista.

pas - essa foi sua atividade nesses anos todos, não?

ja - exatamente, eu sempre fui muito chegado a fazer um trabalho psicológico. na cabeça do leigo que está de fora, a indústria de disco é a vilã, e o artista é o bonzinho. você precisa compatibilizar isso de forma a não chatear o artista e não passar à gravadora que você está traindo os ideais empresariais dela. é uma coisa bastante delicada.

pas - são estereótipos, não? por que a indústria se deixa ficar no papel de vilã?

ja - é. um trabalho que pretendo fazer como presidente de honra é tentar incutir nos meus companheiros da indústria a necessidade de as empresas terem um curso preparatório, um cursinho para artistas jovens. para dizer o que ele vai enfrentar, como é que vai ser. porque ele entra completamente cru, não sabe o que está por trás daquelas portas e cortinas.

houve um tempo que a redução do icms deixou as gravadoras bastante nutridas de dinheiro. foi quando acho que não houve por parte da indústria certa responsabilidade com as regras gerenciais. isso foi de 15 anos para cá, na década de 1990 a indústria teve seu auge de faturamento brilhante. e muita gente começou a dar adiantamentos errados, a usar o dinheiro de forma indevida. esse dinheiro era para você cobrir, aumentando a possibilidade de as gravadoras gravarem mais produtos nacionais. gravação custa caro, pô. tem que pagar estúdio, regência, músicos. você não paga o que quer aos músicos, eles têm um sindicato. temos que pagar o que o sindicato comanda. hoje, certos excessos terminaram.

o problema que temos hoje é que o disco faz parte do lazer doméstico. há 30 anos o lazer doméstico se compunha talvez de dez ou 12 itens, um gravador, um disco, o rádio. hoje o lazer doméstico deve ter alguma coisa como cem itens, todos saindo do mesmo bolso. fora um combate desleal que a gente tem por conta dos piratas. antigamente a associação podia se reunir, aprovar uma verba xis de cada gravadora e fazer uma campanha promocional muito bem-feita que dizia: não aceite, não compre disco pirata, porque ele vai quebrar seu toca-discos. e não dizer que quem vai se prejudicar com isso é o compositor, o artista ou a gravadora, que são argumentos que não sensibilizam o povo. hoje tem o computador, o mp3, a internet. meu filho morreu em 1990, ele não conheceu nem o computador, nem o telefone celular... essas coisas vieram depois, e vieram rápido demais.

pas - isso é irreversível, na sua opinião?

ja - olha, hoje eu daria 1 milhão de dólares para saber o que vai acontecer com o disco. ninguém sabe. lido com presidentes de gravadoras daqui, dos estados unidos, da europa, com técnicos de som. primeiro havia a veleidade de alguns técnicos pensarem que teriam encontrado a solução para a pirataria por mecanismos usados no próprio disco. acontece que hoje qualquer garoto de 16 anos vai lá e desarma isso. então a indústria ficou absolutamente à mercê. perplexa, de certa forma, porque realmente não há nada que possa assegurar que vá haver uma solução. é dramático o quadro, dramático.

pas - discute-se na associação o fato de que esse adolescente de 16 anos sempre foi o consumidor preferencial, o que sustentava a indústria, e hoje virou o inimigo?

ja - é verdade. e o artista também mudou muito a cabeça hoje. conheço alguns artistas que não veem nada na pirataria. pelo contrário, acham até boa a pirataria, porque já que as gravadoras convencionais não gravam com eles pelo menos a pirataria está expondo o trabalho de alguma maneira. é uma luta muito séria em que a gente está. numa guerra, é muito fácil invadir um país. difícil é ocupar o país. é fácil a gente combater, agora dominar isso aí... eu não estou vendo no horizonte nada positivo.