sexta-feira, março 31, 2006

carta ao "povo" brasileiro

quarta-feira, março 29, 2006

a (des)ordem ameaçada

quero colocar agora aqui a reportagem da "carta capital" 381, de 22 de fevereiro de 2006, sobre a semi-ditadura persistente há 40 anos na omb (ordem dos músicos do brasil) e sobre os esboços de reação testados e tentados e arriscados pela nossa querida (e quase sempre dormente) classe musical.

colocar a reportagem aqui agora é também meu modo de aplaudir, aqui de longe, a realização, anteontem, nos arcos da lapa do rio de janeiro, do show coletivo "fora de ordem", uma tentativa de união festiva da classe musical em protesto contra a pasmaceira ombista.

até onde consegui levantar, parece que se apresentaram por lá, para um público modesto de mil pessoas, os artistas (por ordem alfabética) alcione, arthur verocai, barão vermelho (com frejat, um dos caras mais atuantes da nova mpb não acomodada), batacotô, beth carvalho, boca livre, cama de gato, célia vaz, claudio zoli, cristina conrado, darcy da mangueira, eduardo bentes, eduardo camenietzki, flávio oliveira, ivo meirelles & funk'n'lata, jards macalé, joão carlos assis brasil, jorge aragão, kay lyra, lenine, língua solta, lúcia turnbull, márcio malard, nivaldo ornelas, pery ribeiro, robertinho silva, rodrigo quik, sandra de sá, sidney mattos, tibério gaspar, tunai, victor biglione, wagner tiso, wanda sá, zélia duncan. e mais chico buarque e gilberto gil, mas só pelo telão.

na grande imprensa, "jornal do brasil" e "o globo" perceberam que estava acontecendo alguma coisa e fizeram cobertura - faz uns clicks aí para dar uma espiada.

a curta notícia d'"o globo", que tem o título incrível "luta de classe reúne a nata da música popular na lapa", relata que, também via telão, a brava guerreira beth carvalho afirmou já ter sido intimidada pelo presidente federal da omb, dr. wilson sandoli.

hoje consultei, por e-mail, a cantora ana de hollanda, que é diretora da funarte e irmã de chico buarque, e ela fez o seguinte relato sobre a noite de segunda-feira (obrigado, ana!):

"eu estava lá ontem, sim, assistindo um espetáculo emocionante em que se escutou samba, rock, solo pianístico, solo de violão acústico, pop, maracatu, enfim a música brasileira com espaço para seus variados caminhos, sem preconceitos. o incrível é que o show foi todo produzido pelos músicos. acho que houve um amadurecimento da classe no sentido de sair do papel passivo de vítima de um sistema para começar a se posicionar como categoria que produz a arte que mais representa o brasil (além dos dividendos que direta ou indiretamente rende). de resto, é bom lembrar que o lema é 'ordem e progresso' e, pelo visto, a ordem ainda não chegou ao progresso...".

ulalá!, quanta novidade! então vai aí, antes tarde do que nunca, a reportagem publicada antes de o carnaval chegar:


A ORDEM AMEAÇADA
Classe musical ensaia rebelar-se contra Wilson Sandoli, no poder há 40 anos

Por Pedro Alexandre Sanches

Em 1984, Chico Buarque cantava Vai Passar e vocalizava a esperança de que o Brasil estivesse à beira do encerramento do ciclo ditatorial. O sonho se concretizou poucos anos depois no País, mas o mesmo não aconteceu na classe a que Chico pertence: passados 22 anos de Vai Passar, a música brasileira ainda continua vivendo sob um regime de exceção.

A ordem vigente iniciada com o golpe militar de 1964 se conserva, concentrada na figura de um advogado e ex-músico paulista de 78 anos, chamado Wilson Sandoli. Consagrado presidente da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) em 1966 e sistematicamente reeleito desde então, ele governa a música brasileira por várias frentes. Além do Conselho Federal da OMB, preside também a regional paulista da Ordem e o Sindicato dos Músicos de São Paulo.

"Fui eleito presidente do Conselho Federal por todos os Estados, por todos os conselhos regionais, sem nenhum voto contra", orgulha-se, em entrevista na sede paulista da instituição. Apesar da hegemonia resistente, uma nova onda de protestos tem se formado e avolumado em anos recentes. O tom subiu neste início de ano, em reivindicações por "redemocratização", "distensão", "eleições diretas livres" e outros termos familiares a quem acompanhou as campanhas de Diretas Já no Brasil oitentista de Vai Passar.

O vice de Sandoli (e também presidente da OMB do Rio), João Batista Viana, tem protagonizado no front carioca uma queda-de-braço que parece finalmente ter despertado setores de uma classe que se mantinha até há pouco adormecida.

O processo de expulsão contra Eduardo Camenietzki, um músico erudito de 48 anos que despertou a ira da OMB ao denunciar irregularidades e classificar Viana como um "papa-defunto", causou um levante inédito da classe. Um abaixo-assinado em protesto contra a OMB e contra a cassação do registro de um músico desconhecido pela maioria de seus pares já conta com mais de mil adesões, encabeçadas por Caetano Veloso e ele, Chico Buarque.

"É gozado, vejo uns nomes que estão nessas listas na internet, mando verificar e há vários que nem inscritos na Ordem são", reage Sandoli, ao ser questionado sobre a presença, no abaixo-assinado, de Chico, Caetano e dezenas de outros nomes conhecidos do cenário cultural.

"Há muitos músicos trabalhando irregularmente", admite Sandoli, sem citar nomes. "É assim, sempre foi assim. Quem não tem carteira está irregular, não pode exercer a profissão. Não é lei? É a lei que diz."

"A OMB foi fundada por músicos para defender o músico brasileiro, não para fazê-los meter a mão no bolso para achacá-lo. Pagamos dízimo obrigatório para produzir nossos sons. Ninguém é obrigado a se associar a nenhum grupo ou organização para produzir um bemol ou sustenido", contra-ataca o cantor e compositor Jards Macalé, um dos signatários da lista anticassação.

"A maioria dos músicos não paga a anuidade da OMB, eles próprios já deixaram escapar que a inadimplência chega a 80%", confirma Camenietzki. "Há muitos músicos profissionais que não pagam e a OMB fica tirando dos amadores, que precisam assinar notas contratuais para poder atuar, e para isso têm de estar em dia com a Ordem", diz, declarando-se ele próprio inadimplente há dois anos.

Por trás do processo de expulsão estaria, segundo o cassado, a tentativa de detê-lo no propósito de formar uma chapa de oposição para tentar romper o oligopólio. "Todos os anos há eleição. Chapas já concorreram comigo e foram derrotadas. Estamos aí", tergiversa o presidente.

O sistema eleitoral em vigor renova a cada ano um terço dos conselheiros da Ordem, o que, segundo os opositores, propicia a perpetuação do grupo do "Pinochet brasileiro", como Camenietzki classifica Sandoli. Vista como uma manobra para impedir a inscrição de chapas opositoras, a antecipação da eleição de 2005 de novembro para junho é um dos pivôs do embate atual.

Mais até que os impasses de ocasião, uma pergunta ronda quem se aproxime desses bastidores: por que a música brasileira, produtora de uma corpulenta tradição de participação cultural, intelectual e política, se entregou à situação paradoxal de lutar para derrubar a ditadura enquanto permitia, por dentro, o auto-abandono e a perpetuação de um sistema tão semelhante àquele contra o qual lutou bravamente?

CartaCapital fez essa pergunta, por e-mail ou telefone, a duas dezenas de músicos populares, começando por Caetano, Chico e o ministro Gilberto Gil. Recebeu poucas respostas, sempre com manifestações críticas à OMB, mas também ao desmonte ideológico vivido pela classe musical.

"Músico gosta de tocar ou cantar, e vai se afastando desses problemas, que são antimusicais. Os que se ligam, na maioria, não têm projeção. É uma vergonha que os músicos com poder na mídia tenham ignorado e continuem ignorando todo esse processo", sintetiza o compositor e professor Antonio Adolfo, co-autor do controverso hino black de festival BR3 (1970).

A cantora pop Fernanda Abreu é um exemplo de artista que não faz música necessariamente engajada, mas atua e expressa postura aguerrida atrás das cortinas: "Temos de estudar uma proposta de renovação de poder, reformular e modernizar a OMB. Afinal, é um patrimônio dos músicos e deve servir aos músicos".

No mesmo caso está Roberto Frejat, líder do grupo de rock Barão Vermelho e nome sempre presente no esforço de reorganização que parte da classe implementou em anos recentes, com a formação de fóruns e a instituição da Câmara Setorial de Música, há pouco mais de um ano, sob estímulo do Ministério da Cultura (MinC).

"Acho que essa inércia é fruto de um histórico longo de desatenção com a profissão, por parte do Estado e da própria classe. Tanto a OMB quanto os sindicatos foram fundados ou implementados por pessoas da área erudita, que se modificou muito menos que a popular no que diz respeito ao campo de atuação. Não estou responsabilizando-os, pelo contrário. O convívio deles com as entidades sempre foi mais freqüente que o da área popular", avalia.

Pano de fundo de sua fala é uma polarização tácita entre os universos erudito e popular, verificável, por exemplo, numa contra-lista de apoio elaborada pela OMB e encabeçada por 20 maestros, entre eles Diogo Pacheco, Jamil Maluf, João Carlos Martins.

"É claro que existe uma parcela de músicos que apóia Sandoli, senão seria impossível sua permanência", opina a cantora e compositora Ana de Hollanda, que atualmente está vinculada ao MinC, dirigindo o Centro de Música da Funarte, e é irmã de Chico Buarque. "Mas existem alguns fatores meio viciados que favorecem isso. A grande maioria dos músicos em atividade no Brasil, como é o meu caso, tem carteira de músico prático, ou estagiário".

Um desses foi o jornalista Alexandre Pavan, que em 2003 obteve uma carteira da OMB tocando apenas dois acordes no exame de admissão (CartaCapital 185).

Ana prossegue: "Esses, embora tenham passado no exame da OMB e sejam obrigados a pagar a anuidade para se apresentar profissionalmente, não recebem a carteira de músico profissional. E só os ditos músicos profissionais podem votar na OMB. Quer dizer, além de render dividendos, um enorme contingente de músicos praticamente só tem obrigações, e não direitos".

Na mesma situação da diretora da Funarte encontra-se uma multidão de músicos, inclusive muitos largamente conhecidos. Sem diploma ou domínio técnico de bemóis e sustenidos, exercem a profissão como "amadores", julgados inaptos pela OMB para exercer direitos como o do voto.

Nos anos 90, somou-se a esse batalhão o grupo dos DJs de música eletrônica, sobre os quais Sandoli tem a seguinte opinião: "Estão prejudicando o músico. Tiram trabalho do músico, eu sou contra".

Mas não estaria o ofício musical sofrendo profundas transformações, às quais a OMB teria o dever de se adaptar? "É, vamos ver, estou pensando muito no que nós vamos fazer. Por enquanto não sei, mas estou pensando. Está difícil", responde um Sandoli desconsolado.

A classe que ele supostamente representa, por sua vez, demonstra se encontrar num momento de impasse, mas também de resolução. De um lado, prevalece a antiga imobilidade, que domina grande parte dos músicos estabelecidos. Sobre essa fala Lobão, que até há poucos anos era voz praticamente solitária na denúncia da paralisia política dos artistas:

"Venho percebendo uma retomada da classe na luta pelos seus interesses, coisa que estava absolutamente atrofiada. As pessoas estão se falando mais e isso é muito bom. Agora é a hora de nós nos unirmos para mudar de vez essa situação desmoralizante".

De outro lado, a resolução parece empurrada por nomes que pouco freqüentam programas de tevê e noticiários, mas têm protagonizado talvez o mais organizado movimento de resistência à OMB de que se tem notícia.

Juca Novaes, um dos líderes da reorganização a partir de São Paulo, explicita a radicalização da OMB no caso Camenietzki: "A OMB está aplicando a pena capital, a cassação da carteira, para punir um delito, digamos, de opinião. A cassação da carteira é pena de morte para qualquer músico".

A compositora e ativista carioca Cristina Saraiva posiciona-se em sintonia com Novaes: "O caso reflete bem como os dirigentes da OMB tratam a Ordem como algo privado deles. Quem dá o direito à OMB de cassar o registro profissional de um músico por causa de ofensas pessoais?"

Vem dela uma avaliação de otimismo incipiente: "A classe ainda está muito desorganizada, mas as coisas estão mudando e acredito que muito em breve conseguiremos acabar com essa anomalia que é o 'reinado' de um Sandoli dentro de um sistema democrático".

Se enquanto Cristina diz isso uma velha vitrola extraísse da voz de Chico Buarque versos como "apesar de você amanhã há de ser outro dia...", é possível que ela e seus pares respondessem com um outro coro, trocando "apesar de você" por "apesar e por causa de nós todos...".


A OMB VISTA POR DENTRO
"Se eu tivesse uma pessoa de confiança, até colocava no meu lugar"

Há 40 anos, o presidente Wilson Sandoli desdobra-se entre as sedes da OMB em Brasília e em São Paulo. Na sede paulistana, onde ele recebeu CartaCapital em visita, a Ordem regional e o Sindicato dos Músicos de São Paulo dividem o espaço de todo um andar no número 318 da av. Ipiranga, esparramando-se pelos três blocos do edifício. A compra daquele espaço é, segundo Sandoli, um dos orgulhos de sua vida.

Juiz classista aposentado, ele mostra as dependências com jeitão de repartição pública sob os olhares amedrontados de funcionários de fiscalização, emissão de carteiras, administração, tesouraria... Detém-se na sala de aula e no consultório odontológico. Na primeira, diz, são ministradas aulas de música a 250 jovens carentes entre 14 e 18 anos. No segundo, têm atendimento gratuito músicos e parentes que paguem tanto a anuidade de R$ 90 da Ordem como a mensalidade de R$ 10 do sindicato.

Outro orgulho de Sandoli é ser proprietário da carteira nº 0015 da OMB. Inscreveu-se logo que a Ordem foi criada, pelo governo Juscelino Kubitschek, em 1960. Antes, lembra que tinha orquestra, tocava em boates de São Paulo e era fã confesso de Orlando Silva. "Ele inclusive foi meu padrinho de casamento, há 48 anos", conta o presidente, que ficou viúvo há dez meses.

Outro ídolo é Roberto Carlos: "É um grande amigo meu. Viajei muito com ele, para África, Espanha, Estados Unidos. Me convidou para acompanhar muitos shows dele, por amizade".

Desaprova as viagens de outro músico, o atual ministro da Cultura: "É difícil dar uma palavra, ele agora está viajando. Não posso falar nada porque Gilberto é meu amigo. Mas, sinceramente...".

Afirmando-se eleitor de Alckmin ou Serra e admirador de Antonio Carlos Magalhães Neto, é menos discreto quanto a Lula: "O que está acontecendo não se entende mais. Nunca houve essas coisas de mensalão no Brasil, na ditadura não tinha nada disso. Por um negocinho assim, coisinha de nada, tiraram o Collor. E Lula, com tudo isso... Eu acho que isto aqui é uma vergonha. A única coisa que está melhor agora é que é democracia. Você pode usar a expressão da palavra, a imprensa é livre e tudo".

Desgostoso da crescente oposição que sofre, diz que, sim, até cogita sair da OMB: "Se eu tivesse uma pessoa da minha confiança que quisesse, eu até colocava. Começava a viajar, aproveitar um pouco mais enquanto tenho saúde".

Se a música brasileira fosse um país, este seria, já há 40 anos, o seu presidente.

quinta-feira, março 23, 2006

ai, meu deus, o que foi que aconteceu com a música popular paraense?

quero falar de uma coisa: a programação musical do auditório ibirapuera no fim-de-semana que passou, sob o nome de batismo "terruá pará". fui à sessão de domingo, e vi desfilarem diante de meus olhos mais de 50 artistas do norte profundo do brasil, a maioria dos quais eu nunca havia ouvido cantar, uma grande parte dos quais eu jamais havia sabido sequer que existia.

[antes de falar sobre essa coisa, um detalhe tão pequeno quanto importante: o que virá a seguir é menos razão, mais sensibilidade, é mais intuição, menos crítica musical. é necessário ressaltar, para não passar falsas impressões: cheguei ao "terruá pará" sabendo quase nada sobre a música praticada no pará; e saí de lá sabendo ainda pouquíssimo, embora carregado de cds de música popular paraense que o pessoal estava vendendo baratinho na saída, em meio ao bumba-meu-boi que tomou conta do saguão pós-modernista do auditório chiquetíssimo, nossa senhora juramentada da "santa" elite paulistana. tudo o que vier abaixo, portanto, é mais chute do que
ciência, combinado?]

pois então, alguns séculos atrás os bandeirantes paulistas barbarizavam índios nativos e negros africanos ali pelas terras que hoje tomam o nome nostalgicamente indígena de ibirapuera (diz que significa "pau podre", em tupi-guarani), não foi assim? mas não é que nesse fim-de-semana de março de 2006 os bandeirantes congelados em estátua de pedra monumental que empurra o parque indígena para lá (lá para onde?) testemunharam uma pacífica invasão, numa cena surreal de reintegração de posse por uma trupe paraense que chegava abarrotada de feições ribeirinhas, indígenas, negras, brancas, polacas, ciganas, judias, muçulmanas, caribenhas, mestiças, mestiças, mestiças?

[era um evento de certo sabor oficial: foi o governo do estado do pará que comunicou a são paulo o que, a seu modo de ver, vem acontecendo com a música popular paraense (a quem interessar possa, o governo do estado do pará está atualmente ocupado por bicos tucanos). de$contemo$, poi$, um ou doi$ pontinho$ do placar geral, pelo que po$$a haver de ex$e$$o$ turí$tico$ na ini$iativa. lembremos que deve haver indústria & comércio & marketing cultural & marketing política por trás de tanta beleza oficial. mas e se, ainda assim, nossos afetos persistirem? o que fazermos com o amor pelo que vimos, jogá-lo fora no lixo? vejamos.]

à coisa, enfim: o que a gente ia percebendo aos poucos na noite de domingo era que o único ponto 100% comum entre todos os artistas que iam se sucedendo no palco era a bandeira paraense fincada no sorriso de todos eles e de cada um deles. fora isso, era um caldeirão heterogêneo. as idades dos felizes, por exemplo, pareciam variar mais ou menos dos 20 aos 80 anos. se alongavam dos garotos de surf-punk rock caribenho-amazônico do grupo la pupuña ao charme incomensurável de mestre laurentino, 78 anos, autor-cantor da impagável "lourinha americana", descoberta pelo projeto "música do brasil" (2000) e gravada no mesmo ano pelos pernambucanos mangue bit do mundo livre s/a (no álbum "por pouco").

a propósito, eis a letra de "lourinha americana" (experimente "ouvir" entendendo que a lourinha americana fosse o brasil, ou são paulo, e o neguinho brasileiro, o grão-pará de las amazônias infra-venezuelanas-colombianas infra-infra-caribenhas):

"essa lourinha americana/ está querendo me esculachar/ foi dizendo que eu sou neguinho, e bem negrinho/ e lá na américa eu não posso entrar/ mas o que eu mais me admiro/ é de ver o americano, quando chega no brasil/ no brasil com negro vem se misturar. mas o que mais eu me admiro/ de eu ser um nego brasileiro/ e estou noivo pra casar com uma lourinha/ e ela é filha de estrangeiro".

já era, revogou-se o impedimento sócio-histórico-geo-político: casaram-se o neguinho e a lourinha, a negona e o lourão, são paulo-brasília e o distante pará, pará-brasil e a santinha paulinha do pau oco...

se não havia limites de idade para a gandaia, também não os havia em termos estilísticos. o casório profano se consumava de modo apoteótico, numa seqüência que enfileirava o tecno-brega de gabi amarantos e do dj iran, a epifania de mestre laurentino, uma entrada-surpresa da mais "famosa" cantora paraense - sim, ela, fafá de belém do pará -, o cortejo emocionante do boi veludinho, o reencontro de todos os artistas ao som do boi paraense, a saída irmanada de artistas e público pelas laterais do auditório, a natureza (e nós) lá fora, a volta ao saguão onde-quando-como tudo se mistura, numa pororoca entre os artistas-espectadores paraenses e a platéia-cortejo paulistana (composta, provavelmente, de gentes de todos os estados do brasil, a exemplo dos diretores do espetáculo, carlos eduardo miranda e flu, gaúchos, e cyz, pernambucana).

[e diz que, depois da catarse final, fafá & gabi & todo um mutirão partiram para mais uma, dessa vez na loca, templo underground para todas as tribos (inclusive indígenas) paulistas-paraenses-brasileiras-lourinhas-americanas - essa parte eu perdi, droga!]

era só ver concentrada em fafá uma amostra grátis de toda aquela alegria estampada em tantos rostos que talvez nunca antes tenham pisado nos palcos cá de baixo. fafá rodopiava em fúria santa, enquanto cantava descalça o pará, enquanto trovejava que "meu coração é vermelho", enquanto se enchia de lágrimas para embandeirar que "nós somos da floresta", enquanto estufava o peito sempre arfante para reelaborar máxima muito atuante nos dias de agora: "nós saímos da floresta. mas a floresta nunca sai da gente. nunca. nunca" (alô, mano brown! alô, seu jorge!).

o arco de fafá tem tudo para trazer consigo uma euforia contagiante. é o arco de quem migrou, cresceu & apareceu, se descaracterizou, se diluiu, se cansou. de quem depois, surpresa!, se encontra de repente se inflando de orgulho e altivez ao voltar para casa, mesmo sem voltar fisicamente, mesmo sem arredar pé da frieza paulista.

esse pode ser o arco catártico de fafá, mas o momento era menos dela do que dos duplos, triplos, quádruplos, quíntuplos, sêxtuplos e múltiplos ao seu redor. as noites paraenses em são paulo não eram tanto de quem foi e voltou quanto de quem não saiu, de quem resistiu e fez a história da música popular brasileira a partir do pará (você sabia que existe essa gente no brasil?). sofreu a madrinha que migrou, sofreram os órfãos que ficaram, reencontravam-se todos juntos naquelas noites.

eu nem sabia o que me aguardava, mas tive (tivemos) uma pitada apimentadíssima daqueles saberes, dessa gente, naquela noite (em certas horas felizes da vida, pimenta nos olhos dos outros pode ser lágrima comovida). antes das apoteoses, a diversidade que passeava diante de nossos olhos era difícil de assimilar, quase incompreensível a princípio.

o cortejo fora aberto com impacto, por uma dama de formas e feições que evocavam as de alcione (por sinal, uma sambista acariocada nascida no maranhão vizinho do pará). dona onete, condicionada pela própria dificuldade de locomoção, cantou insegura, vacilante, mas grávida de beleza e movimento e das marotíssimas canções paraenses "moreno" e "chuê chuá". dona onete, leio agora no programa, nasceu em cachoeira do arari (já ouviu falar?), viveu em igarapé-miri (conhece?) e atualmente é secretária de cultura do pará (êita!).

solo e em grupo, os mestres da guitarrada - mestre curica, mestre vieira, mestre aldo sena - nos espantaram com suas sonoridades de contradição ambulante, de metamorfose itinerante, nalgum justo meio flutuante entre os buena vista social club de cuba e as velhas guardas do rio de janeiro. no pará, pareceu, a tradição do choro é tocada adiante com guitarras elétricas (você acredita?!), quando não com o deslumbrante banjo (alô, caubóis texanos!) manufaturado do curica. pureza do samba de morro? ãhã... passeata paulistana contra guitarras elétricas? bah! a pororoca paraense desce montanhas texanas, atravessa furacões cubanos, sobe pampas frios e morros quentes e cerrados e caatingas e sertões e maranhões, e desemboca na floresta amazônica (aquela para a qual o governo do lula do pt e da marina silva dos seringais tem um ousado e ambicioso projeto em vias de se concretizar) - quem foi mesmo que te ludibriou te fazendo acreditar que o eixo rio-são paulo era o umbigo do mundo?

adiante os metaleiras da amazônia, produzindo efeito análogo ao dos mestres da guitarrada - seu pantoja do pará, seu manezinho do sax, pipira do trombone (que também é policial militar em belém, êêita!). jazz, baile de iê-iê-iê, calipso, cumbia, carimbó, lambada, romantismo robertocarlista, boi, xote, choro, mambo, zouk, brega, tudo ao mesmo tempo aqui-agora, sob as barbas brancas de profetas de que eu nunca tinha ouvido falar.

loura, alta, imponente, festeira e emepebista, lucinnha bastos recombinava dentro de si imagens femininas paraenses (fafá, jane duboc, leila pinheiro) e brasileiras (alcione, beth carvalho, nana caymmi, margareth menezes, daniela mercury, sandra de sá, rita ribeiro) - e eu nem sabia que havia lucinnha bastos!, como?, por quê? sem respostas na ponta da língua, restava esperar pelo inimaginável, lá na praça da apoteose: os abraços amorosos entre fafá, lucinnha e gabi, oras bolas para o desgastado besteirol da "rivalidade feminina", vertentes incongruentes da música paraense entrelaçadas num "a gente se gosta, sim, e daí?".

e lucinnha cantava-misturava "pimenta com sal": "quem viu/ uma preta e uma branca/ de mãos dadas na praia/ provocando frisson?", "o que a preta tem de pimenta/ a branca tem de salgado". e então se reunia com outro favorito paraense (há pouco o maranhense zeca baleiro co-produziu um disco dele, "maniva", de 2005): nilson chaves. perfil manso, voz discreta, o temor de dona onete passando de raspão também pela discrição masculina veterana do compositor. mansidão aparente: imediatamente, nilson e lucinnha atropelavam um singular repente paraense, "tambor de couro", exímio trava-língua, o fino da bossa (alô, gaúcha elis regina! alô, paulista interiorano jair rodrigues!).

e a banda de apoio, equilibrada entre "veteranos" como curica e "modernos" como pio lobato (líder do grupo cravo carbono, de que sempre ouço falar, mas que mal conheço) e mg calibre (co-protagonista virtuoso do solo de mestre laurentino)? e a alegria dos la pupuña diante das gerações de cima? e os percussionistas virtuosíssimos do trio manari, ali o tempo todo, fazendo a ponte de integração entre os "velhos" e os "novos", entre os "populares" e os "eruditos"? uau.

---ponte---
pois sim, isso aí, o trio manari. não apareceram dessa vez os chocalhos gigantes da apresentação de dezembro no mercado cultural da bahia, mas outra surpresa da noite "terruá" faria chocalho para mais de metro: a exatidão manari serviria de cozinha percussiva para quase tudo no espetáculo, inclusive para... o tecnobrega de gabi!
---ponte---

eis que ela entrava em cena: gabi amarantos. amarantos = amaral dos santos, ex-cantora gospel da paróquia de santa terezinha do menino jesus, "estilista, atriz, coreógrafa e compositora" com "em curso de iniciação em violão, teclado, canto lírico, voz, dicção e expressão corporal", nos dizeres do jornal paraense "o liberal". amarantos-manari-lobato, mistura de estilos, mistura de gêneros, mistura de raças, mistura de cores ("meu deus, que horror!", gritaria madame, horrorizada), tamanha manifestação democrática, santo ibirapuera, batman!

gabi não levou seu grupo-base, o tecno show (formado por ela e marquinhos, eu sei porque comprei o indie-disco "reacender a chama vol. 2" na saída, que eu não sou besta - r$ 15, metade do preço de um cd de "grande" gravadora). mas levou o dj iran, que enxertava na levada batidas tecno, locuções de aparelhagem ("tecno show, e ponto final!"), teclados vagaba de neon, samplers do lema "é fantástico!" e do "plim-plim" da rede globo, armando cama de campanha para canções de singelos romantismo e animação - mas também para a acidez de "matinal", de pio lobato ("hoje não tem café porque faltou a água/ hoje não tem café porque faltou açúcar/ hoje não tem café porque acabou a borra").

gabi, concentrando em si própria a simbologia poderosa de divas pós-moralistas como tati quebra-barraco, preta gil e deize tigrona, apareceu toda vestida de negro, uma rainha diaba de chifres pretos, seios arfantes, coxas generosas à mostra, sorriso largo, uma linhagem mítica de fisionomias & gestos & posturas que chacoalha e liqüidifica indiscritivelmente dona onete-alcione-tati-preta.

se tudo até então nos causava um mix de ternura, estranhamento, tolerância e encantamento, gabi chegava para eletrizar o choque cultural. as mocinhas bonitas que dançavam sensualmente aos sons dos mestres da guitarrada e das metaleiras da amazônia de repente emudeceram, sentaram-se, emburraram. espectadores dispersos pelo espaço prenderam a respiração, pipocaram a platéria descendente com discretas expressões de reprovação e descontentamento. numa noite em que tudo podia, o brega podia menos, e gabi amarantos enfrentava os trancos censores com coragem, mania de peitão, pureza cristalina de amarula-amaralina.

se à saída alguém perguntasse aos carrancudos os porquês da repressão estética e estilística à música muito popular e singela, às batidas do tecno, aos chifres de diaba, à explosão sexual, ao sucesso comercial nacional de gabi (e, por extensão, da conterrânea banda calypso de joelma & chimbinha), será que eles teriam resposta na ponta da língua? eu não tenho, e passo adiante a pergunta: quais seriam os "pecados" estéticos de gabi, da calypso, dos artesãos da aparelhagem paraense? em que o tecnobrega seria esteticamente mais repetitivo, menos nobre e mais vulgar que, er, por exemplo, a bossa nova? há diferença, ou é mesmo só preconceito de classe, horror de madame e de intelectual? eu não sei, e ouço gabi com toda a estranheza do mundo. mas, como eu já havia sentido com tati, preta, deize, lacraia, serginho, mr. catra etc., mais uma vez fiquei com vontade de chorar de contentamento diante do despudor estilístico e da sinceridade ética-estética pós-moralista na veia da black-endiabrada gabi.

[havia fragilidades expostas lado a lado com as qualidades descritas aqui com tanto entusiasmo? por certo, havia - mas e daí?, e nós com isso?, atire o primeiro pau podre quem não possuir fragilidades. crítica moralista?, quaquaraquaquá!]

as lágrimas só se desprenderam mais adiante, diante da imagem-som congraçada de laurentino, calibre, fafá, pupuña, onete, nilson, lucinnha etc. - mas começou a desatar antes, na chegada de gabi, juro que foi assim, como a brisa da preamar.

[e já é hora de parar, senão hoje não vou terminar. mas havia ainda mais todo mundo que eu, novato, nem sei como citar, mas cada qual com seus pequenos pontos de encantamento: o arraial da pavulagem e seu lindo "carimbó da ilha", almirzinho gabriel, toni soares, cada um dos integrantes da orquestra pop tubas da amazônia, vovô, luiz pardal... ainda por cima os compositores, um sem-número de gente presente nas vozes dos outros, ou ausente apesar de paraense (êita!, billy blanco, sebastião tapajós, paulo andré, ruy barata, maria lídia, vital lima etc. etc. etc.); e os meninos da suzana flag, cadê?]

enfim. eis aí o relato atrapalhado de uma noite feliz. ressalto, antes de me despedir e me dispersar pela floresta de pedra, que o tom de descoberta expresso no texto acima, se estiver transparente, não é mais que ilusório, uma miragem. a rigor, há pouca novidade dentro daquela constelação que se descortinou diante dos olhos-ouvidos embevecidos do ibirapuera - esse pessoal todo trabalha há anos, há décadas, com afinco e criatividade, 100% independente dos desencantos vaidosos do sudeste de seu país. nós de cá é que não os (ou)víamos, ou eles é que tinham medo de se mostrar, ou ambas as opções em duplo-morno curto-circuito. mas, se foi verdadeiro o fim-de-semana tupi-guarani pan-brasileiro, não mais. os povos da floresta estão entre (todos) nós, preparadíssimos para se consumarem como paraenses do mundo, prontos para nos miscigenar. os povos da floresta somos nós.

quinta-feira, março 16, 2006

entre tapas & beijos

e então o galã global kadu moliterno se posicionou publicamente sobre as agressões físicas a que submeteu sua própria esposa (sim, "esposa", porque quem tem "mulher" é traficante de escravas, né?) [você sabe, a esposa do galã diz que levou dois socos do marido (sim, "marido", e não "homem", que quem tem homem é traficante de escravos, né?) e registrou queixa na polícia, colaborando assim para a democratização, entre mais classes sociais, locais de trabalho, cores de olhos e tons de cabelos, da consciência sobre o inferno da violência doméstica]. dá uma espiada aí na explicação do kadu, que até agora não ouvi (ainda bem!) ninguém xingando de "monstro espancador de mulheres":

"A minha vida pessoal sempre foi pautada pelo amor à minha família. Como personalidade pública, sou conhecido apenas pelas minhas atividades profissionais, sem freqüentar outro tipo de noticiário. E aproveito para agradecer o carinho que sempre recebo do público brasileiro, a quem procuro retribuir com muita dedicação. Lamento muitíssimo o episódio envolvendo a Ingrid, entendo a sua queixa, mas não pretendo ficar tratando publicamente de um problema de casal. Sei que errei, peço perdão por isso e pretendo corrigir meu comportamento. Mas não creio que tratar de forma pública um problema familiar seja a atitude correta. Quero deixar bem claro que não faço isso por omissão, mas por respeito aos nossos filhos, que além de vivenciarem esse clima desagradável entre seus pais, não merecem ser mais expostos desnecessariamente. Pelo amor que sinto pelos meus filhos, tenho fé em Deus que saberei achar um caminho para superarmos essa situação".

no trecho que sublinhei, kadu parece passar um pito na esposa, pelo fato de ela ter tornado pública uma questão privada entre os dois - ué, mas nesse caso transformar em público o privado não é uma maneira de constranger o agressor, de se proteger contra a agressão? será que o kadu faria essa mea-culpa se não estivesse intimidado por esse horrível constrangimento público? quando é que faz sentido o privado passar a SER o público?

bem, ok, tudo bem, seja como for. kadu foi mais direto e transparente do que foi o presidente lula no ano passado, ao se posicionar publicante sobre os "deslizes" éticos do governo federal, não foi? indo além das desculpas envergonhadas do lula, o galã loiro admitiu o próprio erro, pediu perdão e prometeu "corrigir" seu comportamento. ulalá.

e aí, você consegue desculpar o galã loiro de olhos verdes, após tal manifestação de arrependimento? e o pagodeiro negro netinho, que pediu desculpas mais ao estilo lula (mas que também foi, assim como lula, escorraçado de forma bem mais cruel e impiedosa pela "opinião pública" loira-de-olhos-azuis do que os galãs globais lindos e os políticos brancos como mármore que costumam se "esquecer" de cobrar iptu da daslu)? você consegue desculpar o netinho?

será que, quanto menos escorraçada a gente é, mais a gente tem condições de se arrepender e se desprender das besteiras que vai deixando pelo caminho?

ou dá tudo na mesma, e o jeito é mesmo lotar o cadeião e a febem de "criminosos" abusados-abusadores?

os(as) abusadores(as) SÃO as(os) abusadas(os)?

[p.s.: você já foi assistir ao filme hollywoodiano "terra fria", o lado subterrâneo da brokeback mountain, com a genial charlize theron na tela de frente e as músicas lancinantes de bob dylan no pano de fundo? eu queria taaaaanto que TODOS os donos de grandes empresas vissem esse filme... e todo mundo mais, também...]

sábado, março 11, 2006

uns sambas sobre o infinito...

bom-dia, comunidade!

que tal aproveitar o sábado tranqüilo para pensar em pop tribalista?

que tal saborear no sábado sereno as muitas conexões que vão sendo feitas, com eloqüência e desenvoltura cada vez maiores, entre a "mpb" e o samba?

que tal adotar o sábado calmo para sorver o samba criado, praticado e acalentado no sexo feminino, que tal tirar o sábado para ver (e ouvir) as meninas?

sobre pop tribalista (mas ricamente "universal") eis aqui reportagem quentinha no forno da "carta capital", sobre esse fabular personagem da vida real conhecido como seu jorge, sob o título "O MENDIGO É O REI". alô, seu jorge.

sobre as inter-relações de "raça" e "classe" entre samba e "mpb", convido à consulta de reportagem da "carta capital" 383, de 8 de março de 2006, transcrita logo aqui abaixo, sob a rubrica "o samba da abertura". alô, cláudio, jorge, luiz carlos da vila, mart'nália, casuarina. alô, doutor nei lopes. alô, mister martinho da vila.

sobre a flor feminina desabrochando no samba, recupero outro texto da "carta capital", deixado mais para trás em dormência criativa. saiu na edição 361, de 28 de setembro de 2005, sob o título "elas têm mais samba", que vem negritado mais lá para baixo, antes-depois de "o samba da abertura". alô, teresa cristina, nilze carvalho, juliana diniz. alô, compositoras de samba do brasil. alô, dona ivone lara. alô, senhora leci brandão.

sim, esta é uma brincadeira com os elementos-chave dos dois novos discos de marisa monte, recém-lançados, e que ocupam neste fim-de-semana (quase) todas as páginas de jornais e revistas, telas de tv, ondas de rádio. ocupam a imaterialidade deste blog também, mas por vias tortas. são assuntos da atmosfera habitada por todos nós, da atmosfera que marisa monte também habita e ajuda a elaborar (nós todos também).

mas, atenção. deixar "de molho" por mais uns dias a "grande notícia" produzida por marisa monte nestes dias não é uma manifestação de desprezo por marisa monte, muito pelo contrário. é de respeito, de admiração, de amor.

é uma tentativa de diálogo. em entrevista ao autor destas linhas, terça-feira passada, marisa falava, entre outras tantas coisas, sobre o efeito libertário que o projeto coletivo "tribalistas" (2002) teve em sua vida - entre muitas razões, porque não foi seguido por nenhuma entrevista à imprensa, por nenhuma aparição na televisão (mas, sim, por muita difusão e "divulgação" em rádio).

pois então, marisa, deixe eu lhe dizer também. um dos momentos cotidianos que mais oprimem um jornalista é o dos lançamentos "inevitáveis" (porque comerciais, se você me entende) dos nossos grandes músicos, cineastas, dramaturgos e artistas em geral (e dos dos outros, também). todos "juntos", nos "unimos" numa "parceria" "coletiva", composta por gravadoras e pelos artistas que produzem discos (e arte) nessas gravadoras, por jornais e revistas e pelos jornalistas que produzem notícias (e reflexão) nesses jornais e revistas, e assim por diante, na "grande" ciranda da "comunicação".

do lado de cá do espelho, a opressão é produzida no "desespero" "coletivo" que "sincroniza" pessoas, repórteres, editores, diretores e empresas "rivais" na "obrigação" de "produzir" "ao mesmo tempo" "diferentes" notícias e reflexões "iguais" sobre o "mesmo" e "inevitável" assunto (foram aspas à beça, mas é porque é tudo mentira, equívoco e/ou engano, o que está dito entre elas), as "mesmas" "inevitáveis" pessoas. os "consumidores" (alô, você!), ponta final do processo todo, entram na roda como parceiros últimos e definitivos (e passivos?) de toda a orquestração vinda do éter alienígena para o mundo "real" lá/aqui fora. fica tudo tão esparso, tão distanciado, tão obrigatório, tão apático, tão convencional, tão superficial.

a tentativa de seguir por outras veredas e de marchar em outro pulso, marisa & amigos, é o desejo de também ser libertário, de também desprender amarras e correntes, de também acariciar mais a arte & a vida que o comércio & a indústria. porque, a seu (meu, nosso) modo, cada um de nós tem lugar largo, raso & profundo ao sol na linha do mar além do horizonte para querer & poder fazer um samba sobre o infinito. alô, paulinho da viola e clara nunes, que pairam sobre tudo isso aqui. a bênção.


O SAMBA DA ABERTURA
O gênero vive um momento inédito de diálogo com outros estilos brasileiros e mistura de geografias e gerações

Por Pedro Alexandre Sanches

Nicho de resistência musical e cultural por convicção, o samba carioca andou por muito tempo fechado em si mesmo, exercendo o instinto de autopreservação de quem talvez se visse em risco de extinção. Nestes anos 2000, tudo parece estar tão mudado que o gênero dá primeiras demonstrações de estar vivendo um processo inédito de abertura interna, sem que isso implique sintomas de enfraquecimento.

Da bossa nova ao hip hop, representantes de várias vertentes da MPB jamais se cansaram de reverenciar e revisitar as fontes fundadoras do samba. Mas o percurso inverso esteve mais obliterado, afora experiências esparsas de nomes como Clara Nunes, Martinho da Vila, Nei Lopes e Leci Brandão – ou, em termos bem mais mercadológicos, durante a voga do "pagode pop" dos anos 90.

Pois o fenômeno inverso saúda este início de 2006, em três exemplos díspares uns dos outros, mas igualmente libertos dos princípios em que o samba não poucas vezes se refugiou. O arco é amplo: abarca o reencontro dos sambistas veteranos Luiz Carlos da Vila e Cláudio Jorge, ambos na faixa dos 50 anos; a experiência de geração do meio de Mart'nália (filha de Martinho da Vila); e o advento dos rapazes do quinteto Casuarina, todos entre 23 e 26 anos de idade.

Com autoridade inquestionável em samba, Cláudio e Luiz Carlos se embrenham pelo projeto Matrizes, elaborado com suporte do Selo Rádio MEC. Num partido-alto de autoria própria, Luiz Carlos advoga que o samba que desde a origem é arte/ das coisas boas da vida é parte, mas o disco foi moldado a reverenciar também outras partes boas da vida, todas elas ligadas "à herança africana no Brasil", como demarca Cláudio. Alternam-se entre as 14 faixas congada, baião, capoeira, coco, maracatu, xote, boi maranhense, jongo, catira, ijexá e, claro, samba, samba-de-roda, samba-enredo...

"Talvez seja uma oxigenação, talvez a gente esteja meio cansado de ficar se repetindo sempre, olhando sempre para o próprio umbigo", avalia Cláudio. "Costuma haver uma cobrança ao sambista, por parte de quem é sambista e de quem não é, de que ele não saia do seu território", justifica Luiz Carlos.

Egresso, como Cláudio, do círculo de influência da Vila Isabel e de Martinho da Vila, ele ecoa provavelmente sem querer um rock do Ultraje a Rigor ao delimitar que "a gente não quis invadir a praia de ninguém". Mas reafirma o apreço pela própria origem, amplificada em Matrizes: "Não vou deixar de ser sambista. Teria que tirar todo o sangue das minhas veias e botar outro para eu deixar de ser sambista".

Herdeira de Martinho da Vila por laços também sanguíneos, Mart'nália enfrenta outras fronteiras antes intransponíveis. Menino do Rio é bancado pelo selo Quitanda, de Maria Bethânia, que também assume a produção do CD. Por sua influência, Mart'nália foi visitar o santuário do Recôncavo Baiano, e voltou de lá com o que trata como "um disco de samba-de-roda".

Sim, mas em sua roda tanto cabem sambas dos bambas baianos Roque Ferreira e Nelson Rufino e pagodes do partideiros cariocas Arlindo Cruz e Jorge Agrião como... composições pop-MPB de Zélia Duncan, Leoni, Moska, Ana Carolina. Do repertório de Elis Regina, ela pescou Só Deus É Quem Sabe (1980), do ultrapop Guilherme Arantes.

"A gente tem que gravar o que gosta", determina Mart'nália, que abre o CD cantando que "o samba corre em minhas veias", mas ainda assim elabora sua crítica ao antigo confinamento do samba: "Um cara não cantava sambas do outro, as pessoas não se falavam. Cada um tinha que lutar por si, por uma coisa que nem sabia direito o que é. É uma coisa que me irritava muito".

Mesmo afirmando que seu pai "era dos que mais misturavam", mostra conhecer de casa os conflitos de resistência: "Ele detestava que eu ouvisse música internacional. Eu, graças a Deus, não estava nem aí".

"Beth Carvalho é sambista e é sambista e é sambista, teve um pessoal, como ela, que ficou ali segurando", ela afirma, tolerante com os praticantes da "pureza", mas divergindo daquele mito: "Essa história do 'samba ameaçado' me irrita, é besteira, falta do que falar. É impossível descaracterizar o samba".

Pois, se existe e existirá o pessoal que vai ficar ali "segurando" a resistência, há também a contramão. O grupo Casuarina estréia em CD homônimo pela gravadora independente Biscoito Fino (a que pertence também o selo de Bethânia), cantando e tocando samba, sem ser formado por egressos do berço do samba.

Um dos integrantes, João Cavalcanti, é filho do roqueiro/emepebista Lenine, e dá conta de suas próprias raízes: "Quando era adolescente, eu não ouvia samba, ouvia rock, grunge. Cresci com meu pai ouvindo Supertramp, Police, Paralamas, Titãs. Meu irmão de 17 anos é roqueiro mod, gosta de The Who, MC5".

João credita a conversão ao samba à recente ascensão do circuito da Lapa, sob liderança de nomes que há alguns anos já ensejam um processo de abertura, como Teresa Cristina & Grupo Semente. Teresa participa do CD, cantando um samba que jamais constaria do repertório tradicional: Swing de Campo Grande, do grupo setentista de rock-samba Novos Baianos.

Mas o CD privilegia o samba de "raiz", rejuvenescendo sem maiores profanações temas clássicos de Nelson Cavaquinho & Guilherme de Brito, Zé Keti, Nelson Sargento e Wilson Moreira.

A abertura de fronteiras abrange outros quesitos. Um é o do gênero, no que Casuarina se assemelha a Matrizes: fascinados pela música nordestina que é e não é samba, cantam a Súplica Cearense de Gordurinha e cinco cocos de Jackson do Pandeiro.

Outra barreira suplantada é a geográfica. Fato incomum, o samba carioca abre os braços para o Nordeste e também para o samba mineiro de Ataulfo Alves e o samba paulista de Adoniran Barbosa. A fala de João lembra a de Luiz Carlos da Vila: "Estamos fazendo com cuidado e diplomacia. As coisas são complementares, não queremos invadir o lugar de ninguém".

A oscilação entre as origens roqueiras gringas e a paixão pelos sambistas dos bairros vizinhos é metaforizada na explicação sobre o nome do grupo: "É o nome da rua em que ensaiávamos. Só depois descobrimos que casuarina é o nome de uma árvore australiana que dá muito no Rio".

João aproxima sua fala à de Mart'nália, ao tratar com carinho os sambistas mais "puritanos", como ele define: "É preciso que existam os quixotes, pois sem eles essas identidades todas talvez já tivessem se perdido".

Um desses quixotes é o sambista, historiador e escritor Nei Lopes, que em Negro Mesmo (1985) já testara o formato agora adotado pelos parceiros em Matrizes e comenta as misturanças agora esboçadas. Sobre o suposto processo de abertura, por exemplo: "Acho que tem sempre uma coisa de mercado no meio. Tem uma onda, e as pessoas vão. O samba nunca foi fechado. Se fosse, não teria feito surgir do seu seio tanta variedade, como samba-de-breque, samba-jazz etc.".

Mostra-se cuidadoso em relação às modernizações e à assimilação do samba em outros ambientes, como a Biscoito Fino que hoje abriga Mart'nália e Casuarina. "Quando o samba é feito por gente do 'mundo do samba' mesmo, ele é 'velho', 'antiquado', 'sujo', 'feio'... Se é feito por artistas com sobrenomes ou endereços ilustres, aí é recebido de outra forma. É a lógica da propaganda e do marketing: o negro e seu universo, segundo essa lógica, 'sujariam' o produto."

Militante, está falando de racismo, mas sabe que aí também há diques sendo rompidos. Ele mesmo lembra que Mart'nália já gravou um samba anti-racista seu (Luxuosos Transatlânticos) e que junto dos sambas e não-sambas resgatados pelo Casuarina há outro libelo anti-racista de sua autoria, Na Intimidade, Meu Preto.

Ele comemora a gravação, mas acha que ela não se repetiria na grande indústria ou se o Casuarina se voltasse para o pop. "Os assuntos que abordo, tais como questionamentos racistas, proposta de uma estética brasileira e coisas que fazem pensar, não cabem no escaninho do pop. O pop vende escapismo, sensualidade e as 'transgressões' da moda", analisa.

Pode ser. Mas enquanto isso os rapazes brancos do Casuarina revogam velhos paradigmas, retomando o grito anti-racista de Nei Lopes e resgatando, em pleno Rio, Já Fui uma Brasa, um samba paulistano de Adoniran Barbosa que em pleno reinado jovem de Roberto Carlos chorava amorosamente assim: Eu gosto dos meninos desse tal iê-iê-iê/ porque com eles canta a voz do povo/ e eu, que já fui uma brasa,/ se assoprarem, posso acender de novo.


ELAS TÊM MAIS SAMBA
Cantoras e compositoras integram uma leva feminina de sambistas e colaboram para um bom momento do gênero

Por Pedro Alexandre Sanches

No princípio, eram Elza Soares, Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Alcione, Leci Brandão... Uma leva altiva e participante de cantoras pediu passagem, mas então o surgimento de novas sambistas ficou inexplicavelmente suspenso, salvo raras e esparsas exceções (a de Jovelina Pérola Negra, por exemplo).

Hoje, 40 anos após o lançamento tardio de Clementina de Jesus, matriarca negra do samba, ao que parece tudo se transformou. Nestes anos 2000, as mulheres vêm aos poucos reconquistando posições nas rodas e cirandas, às vezes com um aditivo extra: algumas delas se firmam não só como intérpretes, mas também como compositoras.

Nesse grupo das cantoras-autoras, dois nomes cariocas saltam à frente, com discos novos em folha na praça. Teresa Cristina, que até aqui tem sido a mais visível e principal propulsora do levante, apresenta O Mundo É Meu Lugar (Deckdisc, R$ 30 o CD, R$ 50 o DVD), seu terceiro álbum com o Grupo Semente. Nilze Carvalho, também integrante do grupo de samba de raiz Sururu na Roda, estréia como cantora solo em Estava Faltando Você (Fina Flor/Rob Digital, R$ 30).

A trajetória de Nilze, hoje com 36 anos, parece simbolizar a própria saga feminina no samba das décadas de 80, 90 e 2000. Ela foi revelada para círculos restritos sob o rótulo perigoso de virtuose infantil do cavaquinho e gravou, no início dos anos 80, quatro volumes da série Choro de Menina. De meados dos 80 até 1997, constituiu carreira de operária do samba (e da bossa nova, e da MPB)... no exterior.

"No Japão, cantei muito numa casa chamada Bacana, que era tipo uma churrascaria brasileira", lembra. Só depois de tanta lida voltou ao Brasil, matriculou-se numa faculdade de música e engrenou carreira com o Sururu na Roda e consigo mesma.

O pendor ao estudo Nilze compartilha com Teresa Cristina, de 37 anos, que também chegou aos bancos universitários (e à contoria) depois de ser manicure, vendedora, supervisora do Detran... Teresa, que hoje tem de se submeter ao formato industrial engessado de DVD e CD ao vivo com muitas músicas repetidas, diz não identificar um movimento necessariamente feminino, mas puxa o cordão:

"Conheço poucas compositoras, é estranho, né? Assumir o lado artístico foi muito difícil para mim, foi no tranco. Mas o espaço do samba aumentou, o que já existia está podendo aparecer. Muita gente no Rio está querendo fazer samba, e como tudo aumentou cresceu também o número de mulheres. Temos Mariana Bernardes, Luciane Menezes, Luíza Dionísio...".

A hesitação em compor pertence a Nilze ("meu lado de compositora é um pouco preguiçoso"), pertence a Teresa, talvez pertença a todas elas. "Acho que pular para essa fase é uma questão de tempo, é um movimento gradativo. Não dá para dormir gente fina e acordar pinel, de uma hora para outra", brinca Teresa.

A cantora Dorina, 40 anos, dá testemunho parecido: "É toda uma tradição, de as mulheres ficarem só no rescaldo, de fazer comida ou ser pastora cantando atrás. Tenho algumas composiçlões, mas não coloco esse título na minha ficha. A tradição é o homem na rua, na boemia, é ele que faz. Aos poucos a gente vai se soltando, mas prefiro ser conhecida como intérprete".

Dela, sai agora a coletânea Tem Mais Samba (Rob Digital, R$ 30), que diz se destinar a ampliar a circulação de sua produção lançada originalmente em dois CDs pouco conhecidos no Brasil como um todo.

"Não sei se é a valentia da mulher que está crescendo, ou se é uma conscientização geral de que o mundo não é só de vocês", provoca Nilze, referindo-se ao aporte de mulheres não só no samba, mas na composição de música popular como um todo.

Dorina também vê o avanço do samba (e, dentro dele, o das mulheres), mas insinua algum incômodo com os modismos. "O samba está meio que na moda, que bom, assim mais pessoas começam a ver o gênero como uma possibilidade de carreira. Mas hoje se fala muito no samba da Lapa para a zona Sul, e se esquece de que é no subúrbio que ele sempre se manteve."

Provas do avanço pipocam por aí. Ainda a partir do Rio, Mart'nália (filha de Martinho da Vila), concebe novo disco, a ser possivelmente produzido por Maria Bethânia. Da ponte Tóquio-Rio, aterrissa Samba Sincopado (Biscoito Fino, R$ 30), tributo de Ana Martins (filha da bossa-novista Joyce) a Nara Leão, lançado no Japão em 2004 e só agora chegando à terra natal.

Em São Paulo, trabalham sambistas como Fabiana Cozza, Tereza Gama, Adriana Moreira. De Pernambuco, Mônica Feijó transita do mangue bit ao samba (leia na seção Bravo). Também em pique híbrido, já causa expectativa o dito "disco de sambas de Marisa Monte", em fase de gravação.

Com maior ou menor intensidade, todas essas intérpretes parecem se distanciar da voga do vozeirão tipo Alcione. Uma sombra de influência paira sobre o canto de todas elas, e, surpresa!, é masculina, pós-bossa nova: Paulinho da Viola. Mais uma vez, foi Teresa que puxou o fio, dedicando à obra dele todo o seu álbum duplo de estréia, em 2002.

"Sou apaixonada por Paulinho, por aquele vibrato sem exagero", sintetiza Nilze Carvalho, que no entanto, declara-se tributária também do samba no masculino de Roberto Ribeiro ("para mim é um dos maiores"), João Nogueira e Jair Rodrigues.

Filha caçula desse contexto de atrito entre tradições e modismos, há por fim a estréia de Juliana Diniz, de 18 anos, que chega cheia de grifes: é neta de Monarco, filha de Mauro Diniz, afilhada musical de Zeca Pagodinho. É também, por ora, a única do levante feminino a conquistar contrato numa multinacional.

A forte retaguarda encorpa o lançamento do suave e elegante, embora ainda imaturo álbum Juliana Diniz (Universal, R$ 30), que se deleita sobre Nasci pra Sonhar e Cantar (de Dona Ivone Lara) e conta com inéditas de Paulinho da Viola, Marisa Monte e Arnaldo Antunes.

É fácil perceber, por seu discurso, que uma nova geração do samba deve ganhar as ruas: "Sou jovem, escuto de tudo. Gosto de rap, black music. Escuto Racionais, Mariah Carey, Sandy & Junior, de tudo um pouco, para minha formação. Escolhi o samba para seguir minha carreira também por minha família, mas não sou alienada". Conta que está no terceiro ano do segundo grau, e que pretende fazer faculdade de música.

O tarimbadíssimo Rildo Hora, produtor de Zeca Pagodinho e do CD de Juliana, vem falar sobre a nova descoberta: "Ela é espetacular. Tem uma convivência sadia com a geração dela, no futuro pode cantar sambas de pessoas mais novas. Vamos dizer que Nando Reis, de que gosto tanto, faça um samba. Ela pode cantar. Não vejo nada demais que no meio do disco tenha alguma coisa diferente".

Elogia Marcelo D2, brinca de autocrítica: "O pessoal da patrulha não quer que eu me misture, mas me tratam bem lá na MTV. Os artistas de rock gostam tanto de mim, por que não posso gostar um pouquinho deles também?".

Aproveita para comentar a presença feminina no seu terreiro de origem: "Há uma crise de mulheres que cantem bem o samba, uma crise grande. Quem canta bem não quer cantar samba, já vai logo para o pop". E termina por retificar a própria opinião: "Teresa Cristina é a rainha. É a pessoa mais cult que existe hoje no samba. É extraordinária".

Apesar do susto de já ter sido classificada na imprensa como "conservadora", Teresa Cristina é quem parece mais se assemelhar a Juliana, no quesito ecletismo, ao menos (por ora) em discurso: "Eu ouvi todas as cantoras, ouvi muito Alcione, Simone. Imitava todas, como imitei Bethânia em casa, meu Deus do céu. Eu não sei como, mas um dia ainda vou gravar uma música de Roberto Carlos. Ele é espetacular, adoro".

Devagarzinho, Teresa já vai dando suas escapadelas: no CD atual, deu um sotaque caipira à tradicional Chora, Viola, assim como resgatou para o samba o ex-samba tornado bossa nova por João Gilberto Pra Que Discutir com Madame (de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida).

"Essa música é atualíssima, não gosto desse papo de rádio que não toca samba porque é sofisticada", critica, aludindo a versos sarcásticos como "madame diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba" e "madame diz que o samba democrata é música barata, sem nenhum valor". Madame não está convencendo.

quarta-feira, março 08, 2006

o rei do norte

uma leva estonteante de filmes políticos disputou primazias universais outro dia ali na esquina norte-americana, na noite caretíssima do oscar. alguns filmes políticos ganharam mais prêmios, outros filmes políticos ganharam menos prêmios. filmes políticos "favoritos" perderam para filmes políticos "azarões". em comum: era uma leva estonteante de filmes políticos. ali em hollywood, capital mundial da ilusão.

lula está na inglaterra, recebendo rapapés da rainha, do primeiro-ministro e do resto da corte secular. em discurso lado a lado com a rainha, lula fez charminho apolítico (será?) sobre a rivalidade futebolística entre a inglaterra e o brasil. a rainha velhinha abriu um sorrisão.

marisa monte está lançando dois novos discos no brasil, leia por estes dias em todo lugar que seja feito de papel e de tinta, ou de imagem e de câmera, ou em som de ondas curtas, médias e longas, até mesmo na tinta invisível de sites, blogs & portais da esperança. um dos discos de marisa monte é de samba, mas um disco de samba à la marisa monte, um disco de samba elaborado no feminino. o outro é um disco tribalista, mas de um tribalismo em que os desejos da menina tribalista pede primazia aos humores dos meninos tribalistas (alô, arnaldo, carlinhos, e zé).

a) "brokeback mountain", filme de ponto de vista essencialmente masculino, perdeu o oscar. mas "brokeback mountain" venceu o oscar, tá na cara, tá na cura. b) "paradise now", filme de ponto de vista essencialmente palestino, perdeu o oscar. mas, só pelo fato de existir e de existir na américa do norte e de concorrer ao oscar, "paradise now" venceu mais que uns 500 oscars. c) "terra fria", filme de ponto de vista essencialmente feminino, mal concorreu ao oscar. mas "terra fria" venceu todos os oscars da invisibilidade, a ponto de se tornar visível, quase visível, especialmente visível, 100% visível.

o lula que a (rainha da uva da) inglaterra está vendo é o lula que o brasil não viu, não quer ver e tem raiva de quem viu - vovô não vê a uva, a menos que alguém esfregue o cacho inteiro, "ploch", na testa sorvetona. aqui, não, nada de uva nem de vinho - por enquanto, só se disse que "lula atrasou um minuto [um minuto!!!!!!! cortem-lhe a cabeça!!!!!!!, disse a rainha de copas!!!] para encontrar a rainha", que "a rainha não pediu desculpas" [a rainha nunca pede desculpas, estúpidos; quem pede desculpa é operário - e não adianta pedir, porque a rainha não desculpa], que blá, blá, blá, blá... ou seja, o supra-sumo do sensacionalismo abaixo da linha da cintura (no saco, para ser mais seco) e da futilidade supra-intelectual; a prova (será?) de que santo de casa não faz milagre nem mesmo no terreiro macumbeiro do quintal cheio de livros da supra-intelectualidade verde-amarela-azul-anil-cor-de-rosa-e-carvão moreninha-com-um-pezinho-na-cozinha (mas só um pezinho, porque se encostar suja demais o tornozelinho da rainhazinha dos balangandãs, sabe?).

a praia de copacabana já se recuperou da pisada de elefante (alô, mogli!) dos rolling "god save the queen" stones, esses verdadeiros sex pistols, los pirata das duas pernas-de-pau e olho-de-vidro e a cara de waaaal. amnésico, memento, o brasil já quase se esqueceu de que bono existiu um dia, de que katilce existiu um dia, de que bono & katilce viveram romance efêmero e trágico de romeu & julieta, de leo di caprio kate winslet (& um titanic por detrás, no local ora ocupado por uma brokeback mountain).

e lula distende ao máximo sua estada na inglaterra, enquanto o cigano jk posa de estadista na tela da globo, bush se encolhe oprimido pelas brokebacks do sul da américa do norte e tucanos paulistocariocas se engalfinham entre esgares e sorrisos amarelos sob a cova do covas. (você já assistiu "syriana"?)

na "carta capital" desta semana, você não vai ler nada sobre marisa monte, embora este servo continue ouvindo repetidas vezes os dois cds da garota carioca do barulhinho-bom-suingue-sangue-bom, e embora este serviçal já tenha tido até a oportunidade de uma hora simpaticíssima de entrevista telefônica com a mais bem-sucedida artista brasileira de música de menos de 40 anos de idade. não, vamos esperar um pouquinho, não é mesmo? antes a "carta capital" deve tratar de um outro artista de música (& outras coisas) cuja obra, como a de marisa, dá piruetas tão malucas pelo mundo quanto, por exemplo, as de ang lee, um cineasta que veio de taiwan para ganhar o prêmio de melhor diretor norte-americano por um filme de caubóis que, segundo a indústria transatlântica-titanic-hollywood, não era o melhor filme norte-americano do ano.

não, por favor, pare agora, espere o silêncio de um minuto. por enquanto, "carta capital" e este mordomo se contentam em assistir, contemplar, ouvir, esperar, ruminar, digerir, assimilar. só para não formar vácuo, enquanto "todo o planeta" estiver falando sobre marisa monte (e não sobre marisa letícia, porque essa não é assim tão amiga das rainhas), a gente dá uma breve desviada, sai um minuto pela tangente, pela direita, à la pantera-cor-de-rosa. e com vocês [ruge o leão da metro], para "matar" o tempo, um artigo publicado originalmente na revista "bravo" 99, de dezembro de 2005, que ensaia também pulular entre o brasil tropical (sul moreno de luiz gonzaga) e a américa nortista da terra fria das montanhas brokeback (norte pálido de elvis presley), samba do preto-e-branco doido. porque quem é plebeu não perde jamais a majestade, segundo já nos ensina ensandecido este louquíssimo século xxi.

(o louco É a lúcida?)


O rei do norte
Em novo álbum, Stevie Wonder encarna a figura agressiva e sorridente dos Estados Unidos e evidencia que Roberto Carlos é seu "duplo" ao sul da América

Por Pedro Alexandre Sanches

Se pegada pop e prestígio são valores que dificilmente conseguem se ajustar num mesmo compartimento, então Stevie Wonder é o nome da contradição. Mais um atestado de que pode haver atração entre tais pólos opostos se encontra na volta de um dos formuladores do modelo Motown de pop (negro, suingado, sensual) aos ambientes de gravação, após dez anos de afastamento. A ficha técnica do recente álbum A Time to Love (Universal, 2005) é o recibo. Aconchegam-se no nicho morno de Wonder artistas tão díspares como o jazzista Hubert Laws, o ex-Beatle Paul McCartney, o bossa-novista brasileiro Oscar Castro Neves, o funkeiro Prince, a radiofônica India.Arie... Todos no mesmo espaço, proclamando que o popularíssimo Stevie, arranjador e instrumentista soberbo, goza, sim, de respeito em diferentes searas musicais. Forjador de obviedades pop irresistíveis, Wonder tem inspirado meninos-prodígios e divas do soul, rappers enfezados e "boys bands" comportadas na busca da pedra filosofal do sucesso e da fortuna.

Atadas todas as pontas, Stevie Wonder se mantém, aos 55 anos de vida e 44 de carreira, como uma representação viva do povo e da nação em que foi cultivado, os Estados Unidos da América. É ao mesmo tempo vulgar e sofisticado, refinado e diluído, datado e perene.

Cego dos olhos, mas vidente de tudo mais, caminha de pés descalços sobre brasa acesa, lado a lado com outros reis plebeus de seu país, do branco Elvis Presley e do negro (e cego) Ray Charles ao preto-e-branco Michael Jackson. Na volta, até colhe uma ou outra reação zombeteira, mas em geral é agraciado com a reverência que a majestade de clássicos pop-eruditos como Talking Book (1972) e Songs in the Key of Life (1976) promulgaram.

A nós, do sul da América, sua volta faz sobrevoar também o paralelo possível com nossos próprios reis de papelão. O duplo brasileiro de Wonder, por mais de uma razão, chama-se Roberto Carlos.

Sim, pois nosso rei branco-e-preto também nasceu para a música como discípulo tímido do rei Ray Charles e molhou a paixão do iê-iê-iê brasileiro pelos Beatles no caldo nutritivo pagão da Motown e Stax, templos negros reencarnados como fábricas de hits pop.

Assim como Roberto, Stevie sempre investiu na mitificação algo moralista do amor. Jovem, fazia das mágoas de romance e da traição motes proeminentes. Maduro, ocupa dois terços de A Time to Love para idealizar a felicidade, edulcorar um mundo cor-de-rosa. "Excesso de sentimentalismo", advertem, comedidos, os críticos de lá, enquanto os detratores de cá julgam insuportável a água açucarada do nosso veterano RC.

Presente em ambos, a religiosidade opera linhas cruzadas: enquanto Roberto se enamorava por Jesus Cristo (1970), Stevie acasalava o soul com fervores gospel em preces terríveis (e maravilhosas) como They Won’t Go When I Go (1974). Um, o de cá, levou a veia religiosa a cumes de fanatismo. Outro, o de lá, reteve-a sob controle.

Se o rei plebeu do Brasil mantém produção compulsiva, o nobre vagabundo dos Estados Unidos foi suavizando a autodiluição sob um espaçamento cada vez maior entre cada obra. O sul se desgasta para que o norte se preserve, ou vice-versa. Talvez por isso SW já cantasse em 1972 que "superstição não é o caminho" e RC esperou os anos 2000 para descobrir que o nome clínico de suas famosas "manias" era transtorno obsessivo-compulsivo.

Um ímã que os atrai e repele é o da articulação sociopolítica. Negro consciente, Stevie abrilhantou sua obra em canções que retratam com crueza 100% melódica a vida no gueto: Big Brother (1972), Village Ghetto Land (1976), It’s Wrong (Apartheid) (1985), etc.

Quanto a Roberto? Bem, pesando na balança que a "wonderland" não teve ditadura e que Stevie nunca colou em si o rótulo de artista "de direita", não deveriam ser subestimadas as tentativas apavoradamente políticas de Todos Estão Surdos, Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos, Como Dois e Dois (1971) e, sim, até Jesus Cristo. No balanço dos maniqueísmos, Roberto e seu duplo rebelde Erasmo Carlos eram combatidos como meros e puros alienados, enquanto mr. Stevie, na pior das hipóteses, gozava o status de um politizado hedonista.

Talvez aí morasse a cratera cavada não só entre os dois, mas também entre o norte e o sul: sob o sol da ditadura brasileira, brancos pobres do gueto cantavam o amor para a multidão, sem audácia e/ou vocação pela subversão à ordem; sob a sombra da férrea democracia estadunidense, negros pobres do gueto estavam livres para falar de suas vidas reais em meio ao romantismo açucarado que, dizem, o mercado e a multidão tanto apreciam. Stevie ostentava o orgulho e a autoconfiança de que Roberto só podia desfrutar junto ao povão, à massa tão oprimida e desprezada quanto ele próprio.

E aí chegamos ao espelho, às platéias de cada rei posto e/ou deposto. Nação orgulhosa de si, mesmo sob os fantasmas de Bush e da guerra ao Iraque, os Estados Unidos se permitem a condescendência com seus heróis, num pacto entre supostos "inimigos" que une fãs e críticos, moderados e fundamentalistas.

Aqui, onde a voga é nutrir vergonha pela nação (ou seja, auto-rejeição), as camadas mais críticas e intelectualizadas ensaiam outro tipo de pacto torto, firmado de igual para igual com a faceta opressora de seu maior ídolo popular. Se formos "inteligentes", cultivaremos vergonha, reprovação ou, no mínimo, desprezo por mr. Roberto Carlos, o mais brasileiro de todos os brasileiros. Porque, cego, dócil, submisso e choroso, ele é a representação viva do Brasil, uma lancinante imagem em negativo de Stevie Wonder, esse "cego", ativo, agressivo e sorridente sr. United States.

PEDRO ALEXANDRE SANCHES, repórter e subeditor de cultura da revista CartaCapital, é autor do livro Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004).

sexta-feira, março 03, 2006

a sociedade (pós-)moralista: a mídia

para concluir o ciclo lipovetsky, eu ainda gostaria de mencionar um o que ele diz a respeito da mídia. é outro caso em que a gente vê o cara dizendo, 14 anos atrás, o que só agora nós brasileiros começamos a nos perguntar, a respeito da nossa mídia. começamos a pensar nisso, de modo muito rudimentar, só agora, quando até hollywood já começa a fazê-lo.

["boa-noite, e boa-sorte", do galã george clooney, indicado a um punhado de oscars, fala sobre isso em ambiente essencialmente jornalístico, apesar de fazê-lo ainda enfronhado num punhado de mistificações românticas e de maniqueísmos preto-no-branco, ou branco-no-preto. mas faz, e parece arremeter-se não só contra o velho senador mccarthy combatido no enredo, mas mais ainda contra o governo bush, contra a gana censora do governo bush, contra a apatia a que a mídia norte-americana se auto-arremessa diante de bush. até em hollywood?, será mais um muro de berlim que começa a ruir? alô, "brokeback mountain"!]

pois bem, gilles lipovetsky parece falar mais da mídia televisiva, mas eu gostaria de pedir uma abrangência maior a isso aí - cada vez me convenço mais que a mídia televisiva é igual à de rádio, jornal, revista, assessoria de imprensa, gibi, rave, dança, boate, teatro, cinema (qualquer prazer não satisfaz?), internet, blog, orkut, o que quer que seja. na globopop do povão e na globocabo dos riquinhos, indistintamente.

[afora a demissão do ariano bóris casoy, você já viu a inclusão social - forçada? - que vem sendo operada pela "evangélica" rede record? já viu os vários negros que compõem o elenco da novela que vem desbancando os índices até mesmo do "jornal nacional"? sabia que a esposa do surreal alexandre raposo, atual presidente da record, é negra? (eu estava lá na entrega do troféu raça negra na sala são paulo, e vi o raposo recebendo distinção de mérito, orgulhoso e emocionado por estar de braços dados com sua esposa negra.) será por isso que a record vem ganhando audiência em cima da globo, em cima de um "jornal nacional" que fala da vitória da unidos de vila isabel omitindo o - potencialmente escandaloso - financiamento da escola pelo governo meio indígena do venezuelano hugo chávez?]

e a pergunta crucial é: até quando parte preponderante (e mais poderosa) da mídia seguirá adotando preceitos largamente moralistas, fundamentos essencialmente fundamentalistas (às avessas, ao contário, à penumbra), elementos prioritariamente fundados no grau zero de autocrítica e autoconhecimento?

[tudo que vem sublinhado abaixo é para destacar o deprimente e o horrível inerentes às palavras destacas, ok?]

fala, lipovetsky:

"doravante, a mídia está no centro da crítica social. considera-se que degrada o ideal democrático e transforma as instituições políticas num show sensacionalista; põe em destaque os episódios secundários, invade a esfera da vida privada, faz e desfaz arbitrariamente reputações, torna as mentes superficiais, divulga indiscriminadamente o que aparecer. destituída de critério moral, a mídia tem um só objetivo: ficar no centro das atenções; vender sua 'mercadoria'; aumentar seus índices de audiência, valendo-se para isso de quaisquer recursos. (...) no atual contexto dos programas ao vivo, da superabundância informativa, do espetáculo informatizado, recrudesce o apelo em prol de um maior senso de responsabilidade por parte da mídia, de um comedimento razoável à liberdade de informação, da moralização do ofício de jornalista."

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[percebe que (falso) moralismo implica, quase necessariamente, em amoralidade (desmoralização?)? percebe que é santo do pau oco com a viola cheia de cupins aquele que proclama em alto e bom som as amoralidades alheias, mas não tem olhos nem ouvidos para as suas próprias? percebe que esse (o do - falso - moralismo) é o supra-sumo da ignorância e do obscurantismo praticados em prejuízo próprio e alheio?]

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"o dado novo é que tais críticas não provêm unicamente do público telespectador ou dos políticos e intelectuais; partem agora dos próprios jornalistas, que vão exprimindo o desejo de uma maior atenção à deontologia da imprensa, de uma redefinição dos princípios de responsabilidade. surgem mesas-redondas, trabalhos de divulgação, artigos de jornalistas invectivando a 'ditadura dos índices de audiência', 'o oportunismo interesseiro' da tv, o sensacionalismo, as novas formas de corrupção dos jornalistas, a subserviência da imprensa à publicidade paga, o atabalhoamento na coleta de dados, o desrespeito à privacidade, o 'narcisismo do quarto poder'."

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[atenção para o que vem abaixo! uma mídia que fosse adulta precisaria realmente adotar volta e meia a posição de "vítima"? quem é que, na sociedade moralista, precisa se fazer de "vítima"? os mendigos esmolambentos das esquinas? a mídia? e a sociedade pós-moralista, seria quiçá aquela em que os indivíduos, um a um, fizessem questão absoluta de não se autovitimizarem? oxalá, alá!]

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"diante dos ataques recebidos, inicialmente a mídia se coloca na posição de vítima, como joguete das autoridades que mentem ou distorcem a realidade dos fatos, impossibilitando-a de executar eficientemente seu trabalho. ciosa de resguardar o supremo direito da informação, é mais propensa a procurar uma justificativa para os seus erros do que admitir sua própria responsabilidade no fracasso da informação. contudo, hoje são muitos os jornalistas que já não se satisfazem em jogar a culpa em terceiros, mas passaram a admitir a responsabilidade específica da imprensa; por isso lutam por uma reafirmação dos deveres da imprensa, por uma moralização da profissão em si mesma. numa palavra, a ética está em evidência."

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[sim, dr. lipovetsky, admitamos responsabilidades específicas que são nossas e de mais ninguém! basta de atirarmos a culpa em terceiros como quem entra no quintal do vizinho e planta uma flor (alô, amado roberto carlos!)! e, sim, abaixo as ditaduras! as ditaduras da mídia, também, abaixo! pimenta nos olhos da mídia, vai um pouquinho? a ética está em evidência?]

quarta-feira, março 01, 2006

a sociedade pós-moralista

quarta-feira de cinzas no país, aproveito para tirar da gaveta um assunto que fui deixando à parte ao longo dos últimos meses, enquanto não conseguia terminar de ler "a sociedade pós-moralista" (editora manole), do filósofo francês gilles lipovetsky.

agora terminei, concluí o ciclo, ê.

não sabia muito sobre lipovetsky ao ver o livro na loja. falando sério, continuo não sabendo agora. foi o título (logo, o tema) que me chamou a atenção, meses atrás. pareceu feito sob medida para os carinhos meus, era o auge dos escândalos éticos no partido em que tanto votei e no governo por que tanto esperei - e que, cometendo-os (os "erros" éticos), colaborou para que 2005 me apanhasse numa das minhas maiores crises ideológicas da vida toda.

ler lipovetsky foi um dos inúmeros modos testados por mim para rastrear respostas, investigar soluções simbólicas, cobiçar compreensão e autoconhecimento. sobretudo, foi uma das várias bóias de salvação para tentar fugir do senso comum a que todo o noticiário (e, mais ainda, a interpretação classista esnobe dominante no noticiário) parecia querer me (nos) condenar.

a resposta não estava ali, o assunto do gilles era mais abrangente, menos pontual. mas, sim, havia diretrizes a serem descobertas e contrastadas com a (minha, nossa) experiência brasileira de 2005.

foi irônico perceber, por exemplo, que lipovetsky escrevia sobre a falência do sistema moralista de organização social há já quase 15 anos. de lá para cá, aqui no brasil passamos por collor, itamar, fhc, fhc e lula, sempre sob ideário predominantemente moralista, esse ideário que tem europeu desprestigiando desde 1992 (ano de edição original de "a sociedade pós-moralista"), desde os anos 80, auge de suposta vigência hegemônica do destempero yuppie.

bem, eu não conseguiria resumir aqui o conjunto de idéias que alimenta a retórica pós-moralista de lipovetsky (essa deixo por conta do lipovs mesmo...). vou então naquela metodologia recorte-e-cole, copyleft, de destacar uns trechos, umas passagens que resumam seu pensamento e o aproximem de nós, do ano horribilis de 2005, da sensação nova de aparente superação em 2006, do alinhamento com um mundo que estivesse sobrepujando o moralismo dogmático cristão (ou coisa que o valha) e a ética francamente sem ética que vigora em todos os tipos de cinismo moralista, seja ele catolico, evangélico, islâmico, umbandista ou ateu, seja ele petista, tucano, pefelista, verde, malufista ou (sim, eu acredito em papai noel!) "apolítico".

mas faço questão de ressaltar, antes de mais nada, que o ataque ao moralisnmo, conforme advogado por lipovetsky, não corresponde de forma alguma ao elogio do "amoralismo". na minha transposição particular, não deseja conduzir ao elogio da corrupção vulgar (quase) escancarada praticada pelo pt no poder, nem (muito menos, né?, que eu nã sou trouxa) sentir saudade da corrupção vulgar (quase) escamoetada praticada antes pelo psdb, o pfl, o pp, o pds, a arena, a udn, o partido de pedro álvares cabral...

não, é outro o modelo, que talvez eu tente ilustrar copiando o seguinte trecho lipovetskiano: "longe de nós desacreditar o refulgir atual dos valores. contudo, importa não ver nisso a panacéia do momento. na realidade, a política e a economia sem ética são perversas; porém, sem o concurso do conhecimento, da iniciativa política e da justiça social, a ética também é claudicante. querendo fazer um anjo, podemos acabar fazendo uma besta: a verdadeira defesa da ética pressupõe a crítica do eticismo".

pressupõe a crítica do "eticismo", da apropriação doentia da ética, veja bem.

eis outro trechinho, que ajuda a elaborar a idéia inteira: "na prática, ao veicularem uma posição cientifista da moral, as comissões nacionais de ética (da forma como existem em nossos dias) desviam os homens do anseio de envolvimento e responsabilização como cidadão, em quase nada ajudam a fazer do cidadão um livre agente da democracia".

prisão social versus autonomia de vôo individual, percebe? é aquilo que batem na sua cabeça com o martelo da repressão toda vez que você comete o "desatino" de portar a voz das minorias falantes agudas, não das maiorias bojudas silenciosas. toda vez que você "ousa" ser indivíduo, não ameba.

trocando em miúdos, moralismo não é antônimo de amoralidade, ética ruinosa ou vale-tudo. (falso) moralismo é antônimo de liberdade e autonomia individuais (verdadeiras). seu (nosso) padrão moralista de comportamento escamoteia suas (nossas) próprias responsabilidades e direitos de indivíduos, de cidadã(o)s, diante de um exército de duendes imaginários entrincheirados nalgum ermo improvável - o planalto central de um país, uma caverna afegã, um emirado árabe, a brasileiríssima favela, uma casa branca imaculada, a montanha do dar-de-ombros num oeste remoto, um jabaculê, um prostíbulo, o esgoto onde se esconde um morador de rua expulso da vitrine de carne por uma rampinha antimendigo, o refúgio final inalienável de seu (nosso) próprio cérebro-cabeça-consciência-morada-moral-moralista.

tão longe, tão perto, tudo isso.

porque o inferno não são os outros. o inferno é você. o (seu) inferno é você, o (meu) inferno sou eu.

essa é a lógica que regeria (regerá?, rege?, lipovetsky?) uma sociedade não moralista, uma sociedade não julgadora-punitiva, uma sociedade em que a autonomia, a liberdade e a responsabilidade de cada indivíduo SÃO a autonomia, a liberdade e a responsabilidade de sociedades inteiras. onde, como também defendem tom zé e ana carolina, cada indivíduo é em si a morada da humanidade.

imerso em mais dúvidas que respostas, entrego aqui pílulas do pensamento pós-moralista, antimoralista, neo-não-se-sabe-o-quê-ainda, como miraboladas por monsieur lipovetsky. ferramentas de trabalho, espero que sejam de valia na construção de 2006, que, segundo, minha utopia pessoal, será (feliz ano novo!) o ano i de um brasil despido e despojado (pela primeira vez em 506 anos de história!) do crônico, fatídico e autodestrutivo falso moralismo em que se perdeu. feliz século xxi para todos nós, sras. e srs.

["entre aspas, lipovetsky." entre colchetes, observações e interpolações de minha própria autoria.]

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"dever era um termo que se escrevia com letras maiúsculas; hoje grafa-se com minúsculas. antes irredutível, tomou agora a forma de show recreativo. antes, submissão incondicional da vontade à lei; hoje, uma sincrética conciliação entre dever e prazer, dever e self-interest. a fórmula 'é preciso fazer...' cedeu lugar ao fascínio da felicidade; a obrigação peremptória, à excitação dos sentidos; a proibição irretorquível, à liberdade de escolha. (...) ficou extinta a cultura do sacrifício do dever; entramos no período pós-moralista das democracias. (...)

o que se difunde é a ética, mas nunca e em nenhum lugar a idéia do dever irredutível. assim, somos ávidos por regras justas e equilibradas, mas não exigimos uma inteira imolação ao próximo, à família ou à nação. para além da suposta retomada dos padrões éticos, a erosão da cultura do dever absoluto equivale a uma irresistível marcha em prol dos valores individualistas e eudemonistas. é a moral que se converte em espetáculo e em sistema de comunicação empresarial. é o caráter militante do dever que se metamorfoseia em permuta recíproca e prazenteira de bons sentimentos. são os direitos subjetivos, a qualidade de vida e a realização individual que impulsionam em larga escala nossa cultura, e não mais o imperativo hiperbólico da virtude. (...)

o neo-individualista é simultaneamente hedonista e regulamentado, sedento de autonomia e avesso aos excessos, hostil aos mandamentos sublimes e também ao caos ou às transgressões da libertinagem pura e simples. representar a cultura individualista atual como catastrófica constitui uma caricatura. ao mesmo tempo desestruturada e auto-reguladora, a dinâmica coletiva da autonomia subjetiva é capaz de recompor por si mesma uma nova ordem social cuja força propulsora já não está no constrangimento moral, muito menos no conformismo. partindo daí, a regulamentação dos prazeres é feita sem constrangimentos nem imposições, em meio ao caos aparente dos átomos sociais livres e diversificados. eis porque o neo-individualismo é uma 'desordem organizadora'."

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[ou você acha que era à toa que chico science, faro finíssimo, já em 1994 afirmava empolgadamente "que eu desorganizando posso me organizar", "que eu me organizando posso desorganizar"? o legado de chico existe, e é vivido com dor e alegria no brasil 2000 pós-mangue bit, pós-pernambucano, pós-lula. não foi em vão, dotô chico science.]

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"independentemente da importância que se atribua ao tema do renascer da ética, aos olhos da opinião pública o que caracteriza o momento atual é, propriamente e acima de tudo, o esgotamento dos ideais e o declínio da moral. em carto sentido, nada há de novo sob o sol. há pelo menos dois séculos, com maior ou menor virulência, cada geração proclama estar em face da dissolução dos valores e da deterioração dos costumes. hoje, como antes, a mesma queixa é formulada a propósito de nosso mundo moderno, entregue à violência, ao egoísmo, às disputas de interesse. os termos são praticamente os mesmos. (...) no período entre a primeira e a segunda guerra mundiais, thierry maulnier estigmatizava a frança, tida como nação 'corrompida até a medula dos ossos', constituída por 'trapaceiros, eunucos e crápulas'. hoje, invectiva-se o ocidente superdesenvolvido, contaminado pelo 'espírito de munique', ao passo que, para uma grande maioria dos franceses, os políticos não passam de gente corrupta. é como se, em relação a si próprias e em meio à sucessão dos acontecimentos, as sociedades modernas só fossem capazes de explicar esse eterno retorno da ideologia democrática por meio da trágica representação simbólica da decrepitude moral.

contudo, uma tal impressão de decadência, que secularmente se renova, não deve apagar de nossa memória a realidade das mudanças que ocorrem. até aqui, a angústia gerada pela crise de valores não impedia a presença de concepções muito exatas, isso no que dizia respeito à recomposição moral dos indivíduos, à exaltação da prática e do dever, bem como à importância dos princípios pedagógicos que idealizavam a observância das virtudes morais. virou-se uma página da história. (...)

ao mesmo tempo em que, de todos os lados, se ergue o clamor de angústia pela degenerescência moral, a época atual renegou a fé no imperativo de viver para o próximo, no ideal preponderante de lhe prestar serviço. o indivíduo contemporâneo não é mais egoísta que em outras eras, mas o homem hodierno - despudoradamente agora - não mais titubeia em pôr a nu o caráter individualista de suas preferências. a novidade está precisamente nisto: pensar só em si não é mais tido como algo imoral. em outros termos, o referencial do eu conquistou direito de cidadania, não obstante os grandes arroubos exibidos em shows que exalam eflúvios de bondade. (...) na sociedade atual, o altruísmo apresentado como princípio permanente de vida é um valor depreciado, equiparando-se a uma vã mutilação da própria pessoa. (...) aos olhos do ideal moral, o indivíduo não goza de direitos, mas lhe compete tão-só o exercício de deveres. ora, a cultura pós-moralista exerce sua influência manifestamente em sentido oposto: supervaloriza a legitimidade dos direitos subjetivos e, correlatamente, solapa a noção do postulado da abnegação total. o espírito de sacrifício, o ideal de dar precedência aos outros, são valores que ficaram desacreditados. hipertrofia do direito de cada qual viver só para si, nenhuma obrigação de se dedicar aos outros... francamente falando, é esta a fórmula do individualismo consumado."

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[decadência bonita, a do samba... bonita, mas... a decadência do samba é do samba? a decadência do mundo é do mundo? ou é sua também? era de aquário, ou mera ilusão?]

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"é grande a tentação de assimilar a cultura do pós-dever com o grau zero de valores, isto é, com a apoteose do niilismo moderno. (...) há bem pouco tempo, allan bloom afirmava que 'já não se pode falar com alguma segurança sobre bem e mal', porque hoje, a bem dizer, ninguém crê em mais nada diante de 'uma crise de valores, crise de proporções inauditas'. os meios intelectuais deixaram-se cativar em larga medida pelo roteiro niilista: é sempre a sensação de naufrágio e catástrofe do 'deixa tudo para lá' que predomina na concepção das novas democracias.

entretanto, a realidade só muito remotamente nos reporta a esse cenário apocalíptico. é um equívoco equiparar o crepúsculo do dever ao cinismo e ao vazio dos valores. para além da saturação ou desestabilização inconsteável de um certo número de referências, a sociedade atual vai reconstruindo um núcleo sólido de valores compartilhados, os quais se apóiam num consenso de valores éticos de base. (...) em cada quatro europeus, apenas um julga ser capaz de distinguir com clareza entre o bem e o mal. nada disso, contudo, permite quem se tire alguma conclusão definitiva sobre uma eventual depreciação de valores em todas as escalas sociais. diversas pesquisas realizadas sucessivamente mostram que os direitos humanos, a honestidade, a tolerância, a recusa da violência são geralmente bem acolhidos. nenhuma delas conduz à idéia de um suposto questionamento geral dos valores. costuma-se dizer que 'deus está morto', mas nem por isso os critérios de avaliação entre o bem e o mal foram cancelados da alma humana individualista."

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[o niilismo, repare bem, grassa e viceja nos meios ditos "intelectuais". portadores de profunda ignorância enrustida, esses meios propagam a negação oca de tudo na mesma velocidade com que os meios ditos "não intelectuais" procriam otimismos bobos e largamente enjeitados pela sociedade "inteligente". ninguém entende ninguém, mas quem será mesmo o mais "bobo" e quem será mesmo o "sabido" dessa cadeia predatória? o povo-massa-rebanho sempre insatrumentalizada para executar os interesses e prazeres das "elites" pequerruchas? ou o "intelectual" confinado num rebanho grupal de niilismo pateta e cheio de não-me-toques? o "intelectual" É a massa instrumentalizada? e vice-versa, porventura?]

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"o processo pós-moralista subestimou o imperativo do devotamento pessoal; ao mesmo tempo, porém, elevou a tolerância à condição de valor central. (...) a tolerância adquire uma maior fundamentação social não tanto pelo fortalecimento da compreensão dos deveres de cada um perante o próximo, mas em razão de uma nova dimensão cultural que rejeita os grandes projetos coletivos, exaurindo de sentido o moralismo autoritário, diluindo o conteúdo das discussões ideológicas, políticas e religiosas de toda conotação de valor absoluto, orientando cada vez mais os indivíduos rumo à sua própriua meta de realização pessoal. (...) num ambiente social em que a prioridade de cada um está voltada para si mesmo, todo indivíduo pode pensar e agir livremente, desde que não cause dano a terceiros. nossa moralidade é pós-moralista: exprime mais uma indiferença pelo outro do que um preceito da razão; mais um ímpeto de introversão individualista do que um ideal que se dirige ao outro; mais um direito subjetivo do que um dever categórico. fixemos mais uma vez o paradoxo na memória: no momento em que impera o culto do ego é que os valores de tolerância triunfam; no momento em que perece a escola do dever, o ideal do respeito aos outros atinge sua consagração suprema. a marcha da moral tem razões que a razão moral desconhece."
@
[o moralismo É o amoralismo? você É o governo? a sua intolerância se volta sempre contra você? o meu governo SOU eu?, você se autogoverna?, nós nos governamos?, o governo somos nós?]