quinta-feira, julho 26, 2007

...doce...

dadi carvalho é um desses operários da música brasileira sobre os quais não se lêem muitas (ou poucas) entrevistas e dissertações, até porque em geral os jornalistas costumamos nos ocupar mais das, er, "estrelas" da boca do palco.

de vez em quando, tais operários entram em (ou saem de) um casulo de hibridez, como acontece agora com dadi, que finalmente consegue lançar seu primeiro álbum solo, que segundo ele conta estava pronto desde 2002. agora, por estímulo do lançamento e da distribuição da grvadora global som livre, alguns poucos jornalistas saímos de respectivo casulo de desinteresse, e rolam umas escutas, umas entrevistas.

a escuta de "dadi", o disco, por sinal, é das mais prazerosas. quietude e doçura parecem ser marcas pessoais do artista, que se reveste de açúcar candy (como comporiam sueli costa e tite de lemos, e como cantaria ney matogrosso) em formosas canções compostas solitariamente, outras com parceiros (caetano veloso, andré carvalho, jorge mautner, rita lee, domenico lancellotti), notadamente o ex-titã arnaldo antunes.

como "dadi" só vem à tona agora, pode-se dizer que arnaldo renova nele um carimbo já bem esculpido no projeto (pós-)hippie "tribalistas" (que saiu em 2003, e, portanto, é posterior à feitura do disco também mui tribalista de dadi): a aspereza inerente, salgada, de arnaldo, definitivamente parece gostar de se dissolves gozosamente em parcerias como as que entabula com carlinhos brown, marisa monte e... dadi carvalho. a hedonista e bem-humorada "se assim quiser", lançada antes no disco "saiba" (2004), do próprio arnaldo, é atestado contundente desse soro fisiológico composto por duas medidas de açúcar, uma de sal (ou vice-versa?), embebidas em grandes goles d’água.

faixa por faixa, a doçura que também parece docilidade se expande pelos interstícios do cd, e essa é também a impressão que passa a entrevista que se segue, concedida por e-mail, passo a passo (alô, lobão!), entre os dias 19 de junho e 25 de julho de 2007, pela paciência de dadi, especialmente para este blog. e a derradeira resposta, quando o assunto avança para a fábula dos três porquinhos, tilinta aos olhos deste entrevistador com o quilate de um diamante africano-brasileiro. gracias muchas, senhor eduardo magalhães de um carvalho, e um brinde à história da música brasileira, não só por obra dos lobões que a assopram com furor, mas também dos porquinhos operários que a constroem tijolo por tijolo, sem pressa ou estardalhaço.

pedro alexandre sanches – depois de uma longa trajetória como integrante dos novos baianos e d'a cor do som, e também de bandas de apoio de vários artistas, você finalmente lança um disco solo, só seu. por que a demora em fazê-lo? e por que a escolha deste momento para fazê-lo?

dadi – sempre quis fazer meu cd, mas faltava alguma coisa para eu poder acreditar nas minhas músicas. arnaldo antunes foi superimportante, pois as letras maravilhosas que escreveu para minhas melodias me deram a confiança de que eu precisava para as minhas canções. a partir das nossas parcerias, parti para as gravações, com a ajuda do meu filho e produtor daniel carvalho, que trabalha e é sócio no estudio de berna ceppas e kassin, que me deram uma grande força. com a ajuda de grandes amigos músicos, comecei as gravações, e o cd foi tomando forma, sem pressa, pois eu não tinha gravadora, o que foi outra batalha.

quando eu tocava com rita lee, mostrei a roberto de carvalho algumas gravações, e ele me sugeriu que chamasse algumas pessoas com quem eu havia trabalhado para cantar comigo, e chamou a rita, que foi linda e topou (uma honra pra mim), e ainda me deu uma letra para musicar ("no espelho"). comentei com marisa monte, que também lindamente cantou "da aurora até o luar". caetano veloso, meu amigo de longa data, letrou uma melodia que eu havia feito para leilinha, com quem estou casado até hoje, e fez "na linha e na lei", e ainda cantou numa parceria minha com o grande jorge mautner, "no coração da escuridão". só faltou meu mestre jorge ben jor, por falta de tempo na agenda dele, mas no próximo...

o cd já estava pronto desde 2002, mas só foi lançado agora porque eu não consegui que nenhuma gravadora se interessasse por ele, até que gustavo ramos, da som livre, ouviu através do berna ceppas e quis lançar (valeu, gustavo)... eu queria que as pessoas ouvissem minha música, e agora isso está acontecendo. valeu a espera, para mim...

pas – pelo que você diz, então, as parcerias com arnaldo antunes alavancaram sua aventura solo, dando consistência poética a ela, é mais ou menos isso? e a respeito da aventura de cantar? ser cantor solo é diferente de ser um dos vocalistas d’a cor do som? como você encara a tarefa de cantar?

d – exato. a sintonia da minha melodia com a poesia do arnaldo foi bem legal. para mim, é fundamental acreditar no que se está dizendo quando se canta. sou apenas um compositor que interpreta suas canções. mas gosto muito de cantar. faz bem para a alma. e, como diz arnaldo em uma de nossas parcerias, "tudo que quiser pode ser pensado por você, é só fechar os olhos e chamar...".

sou tímido, mas acho que isso até me ajuda a me concentrar mais. na cor do som, a gente tinha uma força instrumental. mas também foi importante para mim cantar algumas canções, como "abri a porta", "menino deus" e "palco". foi a partir dessas músicas que vi como é gostoso cantar. e agora, no meu cd solo, pude, além de cantar, tocar vários instrumentos, como guitarra, piano, percussão e teclados. me diverti muito!

pas – você citou a letra de "se assim quiser", que já me chamava atenção no disco do arnaldo antunes e também ficou muito legal na sua versão. você acabou de falar sobre como se divertiu gravando seu disco, e a letra de "se assim quiser" diz coisas como "acabou a hora do trabalho/ começou o tempo do lazer/ você vai ganhar o seu salário/ pra fazer o que quiser fazer/ (...) ir de bicicleta ao mercado/ escolher um peixe pro jantar/ encontrar a namorada/ ou o namorado/ escolher alguém pra visitar/ quando quiser/ se assim quiser/ se assim quiser/ como quiser" etc. no entanto, diversão à parte, você tem sido desde pelo início dos nos 70 um trabalhador incansável da música brasileira, não? poderia falar um pouco sobre como é ser sempre uma peça fundamental nos times de que participa, sendo apenas raramente a peça principal deles?

d – bom, apesar de considerar diversão, sou um profissional e sei das minhas responsas. sei da minha posição em cada trabalho que faço, mas também sei minha importância e contribuição para cada trabalho. a música também tem lados que qualquer outro trabalho tem, como insegurança, altos e baixos, marés fracas, sem vento etc. sei exatamente em que contribuí para cada trabalho que fiz, e também sei que talvez só eu saiba do real tamanho da minha contribuição, e o quanto cada trabalho contribuiu para hoje eu ser a peça principal. tenho muito orgulho de ter participado e ajudado vários momentos bem legais da música brasileira.

pas – entendo e imagino que tenha um sentido profundo a sua afirmação de que "talvez só eu saiba do real tamanho da minha contribuição", e é por isso mesmo que gostaria de investigar um pouco mais isso, com a sua imprescindível ajuda. para começar, queria lhe pedir para contar o começo da sua história, desde onde e quando nasceu até como e por que passou a se interessar por música e a trabalhar com música. topa?

d – topo!! nasci no rio de janeiro, no auge da bossa nova estava com oito anos. minha mãe é pianista erudita, me lembro de ouvir desde pequeno ela tocando em casa. meus primos, que eram meus vizinhos e mais velhos que eu, tinham um trio, tipo piano/baixo/bateria. tocavam jazz e bossa nova instrumental. eu morava perto do teatro santa rosa (que infelizmente não existe mais), em ipanema, e conseguia entrar à tarde e assistir aos ensaios de alguns shows que rolavam por lá. me lembro de ter visto edu lobo, wilson simonal, bossa três, rosinha de valença e muitas outras coisas que me deixavam louco pela música e pelos instrumentos. nessa época, escutava direto o disco "samba esquema novo" [1963], do meu mestre jorge ben, e já sabia que música era o que eu queria na vida.

foi quando chegaram para mim, com aquela força total, os beatles, os rolling stones e, na seqüência, todo o rock’n’roll, com the who, kinks, cream, traffic, bob dylan e jimi hendrix. esse foi uma história à parte, porque quando ouvi pela primeira vez "axis: bold as love" [the jimi hendrix experience, 1967] foi realmente um choque! nessa época, com uns 13 anos, tive uma banda chamada the goofies, com amigos do colégio. a gente tocava em festas de amigos aqui no rio, e até ganhava uma grana.

no começo dos anos 70, eu estudava no colégio rio de janeiro, em ipanema, e tocava com meu amigo lui (dois violões e voz). um dia, fomos dar uma andada no arpoador, à tarde, e encontramos marília, mãe do davi moraes, que era nossa amiga e sabia que eu tocava baixo. ela estava com baby consuelo. vieram até nós, e baby me disse que tinha uma banda, os novos baianos, e que eles estavam precisando de um baixista. e perguntou o que eu estava fazendo. pensei que ela estava se referindo àquele momento e respondi: "nada...". perguntou se eu poderia passar na casa onde eles estavam. falei que sim. meu amigo lui não gostou, e falou: "quer dizer que tocar comigo é fazer nada?".

fui até a casa onde eles estavam e encontrei pepeu gomes, moraes moreira, paulinho boca de cantor e galvão. começamos a tocar, pepeu, moraes e eu. rolou legal, eles gostaram de mim e me chamaram pra ser o baixista da banda. foi quando me tornei profissional e passei realmente a trabalhar com música.

pas – você pode contar um pouco mais então sobre esse período de sua estréia profissional, junto com os novos baianos? vocês surgiram como um subgrupo dentro dos novos baianos, já chamado a cor do som, não foi isso?

outra coisa: não sei se você concorda, mas acho curioso ouvir você descrever como foi influenciado por jimi hendrix, ao mesmo tempo que penso em como era original e soava brasileiríssimo o som dos novos baianos. faz pensar no caso dos mutantes, que também se influenciavam intensamente pela música que estava acontecendo nos eua e na inglaterra, mas inventavam algo absolutamente novo (e brasileiro) quando iam fazer seu próprio som. você diria que esses grupos (e talvez também os secos & molhados, em outro registro) tinham consciência de que isso estava acontecendo, ou acontecia "sem querer"? e quanto a você, pessoalmente, estava consciente de que sua música era resultado dessa mistura que você citou, entre edu lobo, wilson simonal, rosinha de valença, the who, jimi hendrix e bob dylan?

d – como te falei, no início dos anos 70, quando fui ao encontro dos novos baianos e toquei com eles pela primeira vez, eles gostaram da minha atuação e me chamaram para fazer parte da banda que ia acompanhá-los. essa banda, com pepeu, seu irmão jorginho gomes (grande batera!), baixinho (percussionista de são paulo) e eu, foi batizada pelo galvão, letrista e diretor geral do grupo, como a cor do som, que era título de uma música da parceria dele com moraes. foi formada para estrear no teatro casa grande, no rio. o show, "novos baianos depois do dilúvio", ou alguma coisa parecida [na real, o show, de 1968, se chamava "desembarque dos bichos depois do dilúvio"], era hilário, com figurinos que remetiam à bíblia: moraes, de jesus, com um pano enrolado tipo fralda; paulinho boca de cantor, de são pedro; baby, de santa, com um espelho na testa; eu e jorginho de anjos...

a sonoridade era diferente daquela que ficou conhecida como a sonoridade dos novos baianos: era mais "heavy metal", com as músicas do primeiro disco deles, "é ferro na boneca!" [1970]. a temporada de duas semanas foi relativamente um fracasso de público, mas nossa rapaziada ia assistir aos shows diariamente, e a animação era garantida.

nessa época, no auge da ditadura, os novos baianos moravam em um apartamento de cobertura em botafogo, no rio. nesse apartamento havia várias cabanas, pois tinha mais gente morando do que quartos disponíveis. eu, o único carioca no meio dos baianos, passava alguns dias no apartamento e outros em casa, pois ainda era estudante. foi numa noite muito especial que joão gilberto apareceu nesse apartamento. ele já conhecia galvão (os dois são de juazeiro). depois de um papo dos dois ao telefone, sabendo do apartamento dos novos baianos, o mestre joão prometeu uma visita. um dia, apareceu lá. ficamos durante toda a noite na sala, numa roda, ouvindo privilegiadamente sua voz e seu violão, como se deve ouvir joão: acústico, sem amplificação, cantando e tocando clássicos da canção brasileira. foi inesquecível!

a partir dessa noite, a concepção estética dos novos baianos mudou: chegou uma brasilidade instrumental, com violões, bandolim, guitarra, baixo, violão de sete cordas, bateria e instrumentos de percussão. a mistura das influências musicais resultou no disco "acabou chorare" [1972].

voltando à cor do som, estávamos gravando em são paulo e fomos convidados, pepeu, jorginho, baixinho e eu, a fazer uma apresentação sem os novos baianos num festival que estava rolando por lá. isso porque nós tínhamos umas 20 músicas instrumentais superensaiadas, com uma linguagem rock, que eram bem legais (entre elas, "um bilhete pra didi"). essa apresentação foi o maior sucesso, e nós fomos convidados para várias outras pelo empresário do evento. galvão, na época, não gostou da idéia de a cor do som se apresentar sem os novos baianos, e, a partir disso, disse que não havia mais a cor do som e novos baianos. todos eram novos baianos. e aí, depois do disco "novos baianos f.c." [1973], o nome a cor do som foi descartado.

tempos depois, moraes partiu para a carreira solo e convidou armandinho e eu para a gravação do primeiro disco. a partir dessa gravação, passamos a acompanhar moraes, juntamente com gustavo schroeter, ary dias e [seu irmão] mú carvalho. nessa época, eu já estava tocando com meu mestre jorge ben, e nós cinco decidimos formar uma banda, e pedimos licença a galvão e pepeu para usarmos o nome a cor do som.

acho que a postura e o jeito da pegada musical misturado com as músicas que você escuta ficam girando na sua cabeça e te levam a um som. deve acontecer com todos, pois a gente acaba querendo ser parecido com aqueles que admira. vou dar o exemplo do jorge ben, que disse que tentava imitar joão gilberto, mas acabou criando aquele suingue maravilhoso que a gente conhece.

pas – puxa, não ficou nenhum registro sonoro ou visual desse show do "dilúvio", com músicos de fralda e/ou vestidos de anjo? sua descrição me fez pensar imediatamente na censura da ditadura – ela causou muitos problemas a vocês nessa época?

d – deve haver algumas fotos, mas, que eu saiba, nenhum registro sonoro, a não ser uma gravação de um programa do chacrinha, sem ser playback, tocado mesmo, com baby cantando (não me lembro qual foi a música). o que eu me lembro foi que a gente (a cor do som, pepeu, dadi, jorginho e baixinho), mais moraes e baby saímos à tarde do teatro casa grande, no leblon, já com as roupas que usávamos no show, aquelas de santos e anjos que falei. pegamos dois táxis para a tv globo, no jardim botânico, para a gravação do programa do chacrinha. não sei se a globo ainda tem essa gravação, deve ter.

estou falando do início dos anos 70, além da censura da ditadura havia também o movimento hippie, que rolava geral, em quase todas as partes do mundo, e era aquela loucura, a continuidade dos beatniks, a vontade de mudar o mundo, as drogas, os cabelos grandes etc. o maior problema da gente era com a polícia, que sempre parava para dar uma geral.

acho que as letras do galvão não chamavam a atenção da censura, mas o visual dos novos baianos chamava a atenção da polícia... me lembro de a gente estar fazendo um show no teatro tereza raquel, em copacabana, e a polícia federal aparecer lá porque tinham recebido uma denúncia de alguém que tinha sido preso com fumo e disse que havia comprado no sítio dos novos baianos. durante o show, paulinho boca de cantor conseguiu convencer os policiais de que ia na segunda-feira à polícia federal para esclarecer, e eles foram embora. era sempre aquela paranóia com "os homens"...

pas – como você, pessoalmente, reagia às "paranóias" daquela época, fossem as causadas pela perseguição policial, fossem as decorrentes do clima político mais que pesado, com guerrilhas, torturas, combates entre a ditadura e os ditos subversivos? como você atravessou aquele período, no auge da sua juventude?

d – eu realmente tinha muita paranóia, pois sabia que havia policiais à paisana por todo lado. mas a música falava mais alto. nos anos 60, com 12 anos, me lembro de um primo meu ter que esconder livros e outras coisas na casa da nossa avó, pois ele fazia parte da une e participava de movimentos estudantis da época, tendo sido preso e torturado. aquilo marcou toda a família, pois vimos até uma foto dele com a cara toda inchada de tanto apanhar. hoje em dia ele é um médico respeitado no rio.

mas, voltando à minha paranóia, eu era mais ligado ao movimento hippie, tipo "paz e amor"... a gente tinha os cabelos compridos e sempre era parado para ser revistado pela polícia. era muito chato, a gente se sentia meio como se fosse bandido, tinha que estar alerta o tempo todo. galvão tinha uma simpatia que funcionava, sempre que a polícia aparecia a gente olhava para a própria língua, e ficava tudo certo. imagina aquele bando de malucos olhando para as próprias línguas...

pas – voltando à música, agora: dos novos baianos, você passou direto para a banda do jorge ben? como foi essa transição? e na banda do ben você entrou na época de "áfrica brasil" (1976), quando ele estava trocando o violão pela guitarra, estou certo? (como se chamava mesmo a banda?, admiral jorge v, não era algo assim?)

d – sim, no início de 1975 moraes havia saído dos novos baianos e eu havia participado da gravação do disco "vamos pro mundo" [1974], e eu sentia que a magia havia acabado. já não sentia aquele prazer do início. as coisas já eram difíceis e ficaram ainda mais com a saída do moraes. foi quando também acabei saindo da banda. meu grande mestre jorge ben era amigo da minha família, pois o seu produtor, paulinho tapajós, era namorado da minha irmã. jorge me via tocando com os novos baianos, quando fizemos uma temporada aqui no rio, e quando saí da banda falou para meu pai: "eu vou salvar o dadi". e me salvou mesmo.

no primeiro show que fiz com jorge, em florianópolis, quando cheguei ao quarto do hotel e conheci o baterista, que ia dividir o quarto comigo, me deu uma certa deprê. ele era mais velho que eu e começou a arrumar suas roupas no armário, uns conjuntinhos de tergal, e pensei: "o que eu fiz?, saí de uma banda em que me divertia pra caramba e estou aqui agora com uma pessoa totalmente diferente de mim".

mas logo tudo mudou, pois no segundo show jorge quis fazer uma nova banda e falou que eu chamasse um baterista. eu conhecia o gustavo schroeter, que tocava numa banda chamada a bolha, que tinha mais a ver comigo. a banda formada, a que jorge deu o nome de admiral george v, tinha joãozinho na percussão (grande percussionista), joão bun no piano, eu e gustavo.

aquela deprê inicial desapareceu logo, pois tocar com jorge foi muito especial para mim. em junho do mesmo ano fomos para paris, minha primeira viagem internacional, para uma temporada de 15 dias no olympia, e em seguida gravar um lp em londres com produção de chris blackwell [fundador da mitológica gravadora island; o disco de ben gravado ali é "tropical", lançado no brasil em 1977], que tinha acabado de lançar bob marley. eu não acreditava que tudo aquilo estava acontecendo, eu tocando com jorge em londres no mesmo lugar em que jimi hendrix havia tocado alguns anos atrás.

depois gravei o lp "solta o pavão" [1975] com jorge. eu havia comprado uma guitarra em londres, e, quando jorge tocou nela, gostou, pois o violão no palco era difícil de se ouvir. ele tinha um baixo fender precision e perguntou se eu queria trocar a guitarra pelo baixo. topei.

para mim foi uma grande honra ter sido o baixista do lp "áfrica brasil", pois é um disco muito especial de jorge. tocar com ele foi muito especial, sou fã desde pequeno da música do jorge, de sua intuição musical, seu feeling. também gravei o disco "a banda do zé pretinho" [1978] e viajei o mundo inteiro com jorge, e vi de perto como ele é conhecido e querido em todo o mundo.

p.s.: pedro, queria que você visitasse o meu site, www.dadi.com.br [visitei!, e também o d'a cor do som, e transfiro aos leitores do blog o convite!].

pas – ei, você estava por perto, então, no lendário episódio entre jorge ben e chris blackwell, em que jorge não teria querido tocar sem cachê num show que teria na platéia mick jagger e eric clapton, e isso meio que azedou a possibilidade de blackwell transformar ben num "novo bob marley"? e, seguindo em frente, por essa época já estava começando também a história d'a cor do som na filial brasileira da warner, não?

d – foi logo depois de uma grande temporada em paris, de 15 dias, que a gente seguiu para londres para gravar com chris blacwell, pela island records. chris realmente era louco pelo jorge. a gente ficou 20 dias em londres para a gravação no estúdio em portobello. tudo ia na maior maravilha, mas não avisaram a jorge sobre a idéia de chris de fazer um show dentro do estúdio maior, que era para gravação de orquestras, bem grande.

o que chris blackwell queria era apresentar jorge para os músicos ingleses. os stones não estavam lá, pois estavam em tour pelos eua. havia vários músicos presentes, como o pessoal do traffic, do bad company etc., a galera da época. jorge só foi avisado um dia antes e não gostou. estava cansado, depois da maratona de shows e gravações, com a voz rouca. mesmo assim aconteceu a festa, me lembro de chris blackwell cortando frutas à tarde para fazer o "ponche". a gente estava gravando nesse dia. à noite, quando entramos para tocar, jorge, que não tinha gostado da idéia, só tocou duas músicas e foi embora para o hotel. depois disso começou a rolar uma jam session, até as cinco da manhã. eu e gustavo ficamos lá. essa história foi em 1975, no primeiro ano que toquei com jorge.

em 1977, enquanto gravava o primeiro disco solo de moraes moreira, junto com armandinho e gustavo, tivemos a oportunidade de gravar pela polygram uma música, para ver se eles queriam fazer um disco com a gente. a música gravada era instrumental , "brejeiro", de ernesto nazareth. gravamos com mú no piano, armandinho no bandolim, gustavo na bateria, ary dias na percussão e eu no baixo. joãozinho e neném da cuíca, percussionistas do jorge, gravaram com a gente. o pessoal da polygram gostou, mas como era instrumental acharam que não ia vender, e não quiseram.

nessa época andré midani estava trazendo a warner para o brasil e, como ele já me conhecia desde os novos baianos (foi andré que realizou outro sonho meu, me chamando para ser o baixista numa gravação com mick jagger no rio, em 1975), contratou a gente logo. foi quando surgiu a cor do som.

pas – qual e como foi essa gravação com mick jagger? o "brejeiro" foi parar na trilha sonora da novela "nina", não foi isso? logo depois aconteceu a estréia d'a cor em lp?

d – em janeiro de 1975, eu acabava de sair dos novos baianos e começava a tocar com jorge ben. mick jagger estava de férias no rio, hospedado no joá, na barra, na casa de florinda bolkan, e ficou a fim de gravar alguma coisa com músicos brasileiros, meio samba. andré midani, que gostava muito dos novos baianos, me convidou para ser o baixista naquela tarde de sábado no rio. desde pequeno eu sonhava ser um beatle ou um rolling stone, não acreditei que aquilo estava acontecendo.

foi muito bacana, mick supersimples, tocando guitarra e cantando. a música se chamava "scarlet", e ficamos a tarde toda gravando. ele me pedia para fazer umas frases no baixo, eu fazia e ele gostava, foi bem legal. depois até me ajudou a carregar o amplificador para meu carro. quando acabou a gravação, ele pegou o tape e levou com ele.

nessa mesma época, além de tocar com jorge, eu tocava com moraes moreira, que não fazia muito show, e começava com a cor do som. a nossa gravação da música "brejeiro" entrou na novela "nina" e começou a abrir uma porta para a cor do som. mas só no final de 1976 a cor do som acabou de gravar o primeiro lp ["a cor do som"], todo instrumental, que saiu em 1977 pela wea [o conglomerado warner-elektra-atlantic].

pas – ei, confesso que não sou nenhum especialista em stones: essa gravação de "scarlet" saiu em algum disco deles? e, voltando à cor do som, alguns dos maiores sucessos do grupo foram composições feitas especialmente por gilberto gil ("abri a porta") e caetano veloso ("menino deus"), não é? como funcionava isso?

d – na verdade mick jagger tem na casa dele várias gravações que fez mundo afora, em suas férias. entre elas está a feita no brasil, mas não saiu em nenhum disco.

a cor do som começou como um grupo instrumental, de música brasileira, como chorinho e frevos, tocada com uma formação rock, com bateria, baixo, guitarra, teclados e percussão. nossos dois primeiros lps eram instrumentais. o segundo foi gravado ao vivo no festival de montreux ["ao vivo – montreux international jazz festival"], em 1978, quando ainda era somente um festival de jazz. a partir do terceiro disco ["frutificar"], em 1979, andré midani sugeriu que a gente colocasse algumas músicas cantadas, pois a gente vendia muito pouco, e estava difícil manter o grupo na gravadora.

vinícius cantuária, amigo em comum meu, de caetano e de gil, quando comentei da idéia de colocarmos algumas faixas cantadas no disco da cor, me disse para pedir músicas a eles. falei que ficava sem graça, e então vinícius falou com caetano, que nos presenteou com "beleza pura". armandinho, superbaiano, se identificou e quis cantar.

vinícius também falou com gil, que tinha feito "abri a porta" com dominguinhos, e eu cantei em disco pela primeira vez. mú fez uma musica na qual moraes colocou letra: "semente do amor". o disco se chamava "frutificar".

as músicas realmente estouraram nas rádios, e a gente saiu de uma venda de 2 mil discos para 70 mil, o que na época era fantástico. foi quando viramos "pop stars" na gravadora, cheios de moral. começamos a rodar o brasil, com a agenda lotada de shows. foi bacana.

pas – puxa, mas nestes tempos de internet não circulam por aí umas versões pirata de "scarlet"? disso eu não sabia, mas então "beleza pura" foi feita pensando n'a cor do som mesmo? e, assunto correlato, você é "o leãozinho" da música do caetano?

d – boa pergunta... nunca procurei a música pela internet. mas acho difícil, porque o tape da gravação foi levado pelo própio mick, e acho que ninguém tem acesso.

quanto a "beleza pura", na verdade, quando eu e vinícius cantuária fomos à casa de caetano para pedir uma música para a cor gravar, ele nos disse que tinha acabado de compor uma música e nos mostrou "beleza pura", e perguntou se servia para gente. eu disse: "lógico"... [caetano também a gravou, em "cinema transcendental", do mesmo 1979.]

eu me lembro de assistir ao caetano cantando "alegria, alegria" no festival da canção [de 1967] e de ter me chamado muita atenção, pois na época eu estava muito ligado ao rock que rolava e vi aquela postura tropicalista que tinha tudo a ver com o que acontecia no mundo e comigo, eu devia ter uns 14 anos. quando entrei para os novos baianos, já com 19, caetano estava no exílio em londres. o pessoal dos novos baianos falava muito dele. já o conheciam, e eu, como fã, queria muito conhecê-lo. quando caetano voltou do exílio, foi assistir ao show dos novos baianos no teatro tereza raquel, que, por sinal, era incrível, já com aquele som do "acabou chorare". ficou maravilhado.

a partir disso ficamos amigos, e, como somos do mesmo signo (leão), quando ele gravou o disco "bicho" [1977], me disse que havia feito a música "o leãozinho" para mim. é uma honra, vindo de um grande poeta, músico e pensador como caetano.

pas – fala um pouco sobre o que você pensa e sente ao ouvir a letra de "o leãozinho"?

d – bom, eu sou meio desligado e quando ouço demoro a me tocar que caetano dedicou para mim. mas me sinto muito honrado. no show "circuladô" [1991], em que toquei com caetano, a gente fazia a música, só eu no baixo e ele cantando. eu ficava nervoso, pois era muita responsa, caetano é um grande cantor. mas acho que ficou legal, eu fazia também um solo de baixo, que foi outra grande homenagem do meu mestre caetano para mim. está gravado no cd "circuladô ao vivo" [1992].

pas – indo adiante, então: você pode falar um pouco sobre seus trabalhos musicais extra-a cor do som durante os anos 80 e 90? queria citar, em especial, a passagem do grupo tigres de bengala, que ficou meio obscura, mas era uma big-band-pop das mais surpreendentes, não?

d – no final dos anos 80, assim que a gente sentiu que a cor já estava meio sem força, resolvemos dar um tempo, pois a saída de armandinho, que era uma peça principal, enfraqueceu nossa música. tentamos um pouco mais, fizemos algumas coisas legais, outras não, até que vimos que era melhor parar.

no começo dos anos 90, meu grande amigo e grande musico dé palmeira (que participa como baixista na música "2 perdidos", no meu cd) havia saído do barão vermelho. frejat, outro grande músico e amigo, me chamou. gravei com o barão o disco "na calada da noite" [1990], de que gosto muito. fiquei durante dois anos na tour do disco. foi bem legal, me diverti muito com o barão, fizemos shows bem legais.

foi quando caetano me chamou para a tour de "circuladô". fiquei dividido, mas sempre tive vontade de tocar num show do caetano. conversei com guto goffi e frejat, foi delicado, mas eles entederam.

em 1992 comecei a tour do caetano, no brasil, eua e europa. gravamos um cd ao vivo e um vídeo. tenho muito orgulho de ter participado do show, vídeo e disco "circuladô ao vivo".

o projeto tigres de bengala aconteceu durante meu trabalho com caetano. vinícius cantuária teve a idéia, junto com ritchie [que, por sinal, faz vocais em algumas faixas de "dadi"], de fazer uma banda para gravar, sem o compromisso de virar uma banda. começamos a nos encontrar e a ensaiar, ritchie e vinícius tinham feito várias músicas. chamamos mú e claudio zoli, e também o billy forghieri, da blitz. gravamos na polygram. o disco ["tigres de bengala", 1993] tem canções bem bonitas, mas foi um grande fracasso. mas foi engraçado, divertido, e até hoje não entendo por que não rolou, apesar de um grande investimento da gravadora, no tempo em que as gravadoras ainda tinham grana para investir.

pas – se a cor do som já voltou, será que os tigres de bengala voltam qualquer dia desses? e, chegando à reta final da nossa entrevista, que resumo você faria do dadi para os anos 2000, 2010, 2020...?

d – sempre é bom tocar com amigos. a gente volta a sentir as músicas do mesmo jeito que a gente sentiu, e ainda mais, como no caso da cor, quando alguns fãs de sempre estão juntos, como foi no canecão, quando gravamos o dvd ["acústico", 2005]. foi bem legal tocar e sentir a reação da platéia às músicas naquela noite.

no caso dos tigres de bengala, como foi um projeto que durou muito pouco, não acho que possa rolar. mas fazer musica é divertido, e nada é impossível.

quanto a mim, pretendo gravar mais minhas músicas. já tenho um cd gravado ao vivo em tóquio, onde fiz meu primeiro show solo, que estou mixando para lançar lá e tentar lançar aqui também. vou começar em setembro a fazer shows para lançar o cd, estou muito animado para isso. no mais é como sempre as coisas rolaram para mim, o vento vai soprando e me levando...

pas – certo... por último então: se você pensa na música brasileira dos últimos 40 anos, onde é que você coloca o dadi?

d – beleza, pedro, em primeiro lugar valeu o papo, gostei. bom, acho que tive sorte de estar em momentos bem legais da música brasileira. a música me levou também a realizar sonhos que tinha desde criança. me levou mundo afora, a conhecer músicos que sempre admirei, inclusive tocar com eles. acho que sou aquele, na história dos três porquinhos, que, se o lobo soprar, a casa voa... mas faria tudo de novo, do mesmo jeito... valeu.

[p.s. "bônus track" com uma pergunta essencial que eu havia esquecido de fazer e que dadi ainda não havia respondido quando o tópico foi ao ar: pas - queria saber sobre sua participação no projeto "tribalistas", e saber sua opinião pessoal sobre aquele disco.

d - sou vizinho de marisa há mais de dez anos. a gente sempre se encontra para ficar tocando. a parceria dela com carlinhos brown e arnaldo é muito fértil, e, mais de um ano antes do projeto "tribalistas" ser gravado, nós (marisa, eu e cézar mendes, que toca violão) vínhamos tocando aquelas musicas, e outras mais. quando os três resolveram, sem compromisso, fazer o cd com algumas das músicas, marisa achou que devia ser como a gente tocava na casa dela, aquela sonoridade.

o cd foi gravado na casa de marisa, e foi muito gostoso de fazer. a gente gravava uma música por dia. começava com os três violões (marisa, eu e cezinha), brown fazia uma levada com as percussões e arnaldo, a voz-guia. depois a gente ia "colorindo" a música. no final do dia cada um gravava sua voz. para mim foi bem legal, porque tive a oportunidade, como no meu cd, de tocar, além de baixo e violão, vários instrumentos, como piano, hammond, guitarras, acordeon etc.

tem gente que acha a sonoridade do meu cd parecida com a dos tribalistas [é fato!, eu também acho!], talvez porque no meu cd eu também toco vários instrumentos e tenho várias parcerias com arnaldo. mas só quero acrescentar que meu cd foi gravado antes do dos tribalistas, mas só consegui lançar agora (está acrescentado!, aliás, já estava!).

bom, sou suspeito para falar, mas gosto muito do cd "tribalistas". acho que tem músicas e poesias maravilhosas. foi feito sem nenhuma pretensão (e eu estou de prova disso) de ser o tremendo sucesso que foi, inclusive fora do brasil. foi gravado num clima de muita curtição, e acho que isso ajudou muito.]

[o tópico ...amargo... não tem (quase) nada a ver com este. mas bem poderiam ser lidos como gêmeos bivitelinos...]

...amargo...

na "carta capital" 451, de 4 de julho de 2007, o ocaso do camaleão é o caso do acaso, bem marcado. chico anysio fala, e põe à tona os amargores do velho artista de direita que acredita que é de esquerda que pensa que é de direita que acha que é de esquerda (& vices, & versas) que (não) sabe que está plantado em pleno centro.

o lobão bufão É o porquinho submissinho?, o porquinho É o lobão? chico city somos nós?


O CAMALEÃO FAZ FALTA
Afastado dos humorísticos que o consagraram, Chico Anysio se refugia nas novelas e num livro de caricaturas

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

"Foi uma decisão da casa, que me tirou os programas, até hoje não sei por quê. Não é direito meu ficar perguntando. Meu dever é obedecer, e obedeço." É assim que o ator Chico Anysio, 76 anos, refere-se à extinção do programa Escolinha do Professor Raimundo, em 2001, e ao afastamento do ofício de fazer humor na tevê, daí por diante. A "casa" é a Rede Globo, onde o cearense de Maranguape radicado aos oito anos no Rio de Janeiro protagonizou, por 30 anos quase ininterruptos, uma longa seqüência de programas humorísticos.

Foi procurar colocação nas novelas globais quando as portas se fecharam para o tipo de humor que formulou, calcado na caracterização camaleônica de mais de 200 tipos, sempre inspirados na mais desbragada brasilidade. "Tenho que apresentar produtividade à casa, para receber adendo de salário. Como não havia mais programa de humor para eu fazer, comecei a procurar lugar nas novelas."

Até no Sítio do Picapau Amarelo a figura algo deslocada de Chico fez aparição especial, em 2005, lado a lado com Emília, Pedrinho, Narizinho e Dona Benta. Mas ali, ressalva, chegou a convite. Cininha de Paula, filha de sua irmã Lupe Gigliotti, era a diretora do infantil.

Quando o repórter se desculpa por não tê-lo assistido na novela Pé na Jaca, Chico ri, bem-humorado: "Eu também não assisto". E lembra que o personagem que interpretava era um cigano "sério", sem comédia. À pergunta sobre se gosta de fazer novelas, responde "gosto", e se põe a filosofar: "Eu acho que...". Pausa. "Eu não acho nada." Silêncio. "Gosto de trabalhar, sabe? O que aparecer eu faço."

O cuidado com as palavras remete a outubro de 2000, quando a Globo o suspendeu da programação por cinco meses, após críticas que dirigiu à emissora, numa entrevista à revista IstoÉ. Na volta, afirmou que seu salário havia sido reduzido em 42% e se queixou na Folha de S.Paulo da reação contra as críticas que fizera a colegas globais: "Isso eu tenho direito de fazer, estou numa democracia. Isso não é motivo de suspensão, disponho do direito de ir e vir e de pensar e falar".

O contrato com a Globo, à época, tinha validade até 2004. Foi renovado até 2009, como demarca uma minibiografia inserida no livro recém-lançado É Mentira, Chico? (Di Momento, 192 págs., 79 reais), em que caricaturistas de ponta dedicam-se a desenhar 77 dos personagens mais populares do camaleão: o malandro Azambuja, o coronel Pantaleão (marido de Terta, pai de Pedro Bó), o "preto velho" Véio Zuza, o pai de santo Painho, o galã canastrão Alberto Roberto (inspirado no galã real Carlos Alberto), o locutor Roberval Taylor (que satirizava o radialista Hélio Ribeiro), o falso funcionário da Globo Bozó, o craque Coalhada, o "vampiro brasileiro" Bento Carneiro, o pastor Tim Tones.

Sob supervisão do cartunista Ziraldo, Chico criou para o livro textos biográficos ficcionais sobre cada um dos 77 tipos. Além de ator e humorista, tem sido ao longo de 60 anos de profissão escritor, redator, pintor, compositor, cantor, radialista, comentarista esportivo.

Atritos à parte, diz saber que o afastamento progressivo se deve, também, às leis naturais da vida. "Com 76 anos, eu não teria condição de fazer hoje o programa como fazia. Eram 12 caracterizações diferentes numa sessão, sete horas gravando. Nós somos dependentes da nossa condição física."

Confere legitimidade à máxima que costuma associar humoristas, palhaços e fazedores de graça públicos a melancólicos privados: "Um humorista não tem que rir, ele tem que fazer rir. Muitos são sérios". Ele inclusive? "Sou sério, sempre fui."

Alguns dos melhores amigos que teve nos anos de ascensão, na década de 50, pertenciam à chamada geração da fossa da música brasileira. Foi próximo de Dolores Duran, Maysa e Antonio Maria (também cronista e redator ocasional de programas de risadas). "Fui eu que segurei a barra do Maria quando Danuza Leão se separou dele. Ele morreu de amor, foi a primeira pessoa que vi morrer de amor. A poesia e o humor são irmãos." Como o humor e a tristeza? "Sim, e como o ódio e o amor."

Uma faceta de Chico que ficou obscurecida pelo brilho do humorista foi justamente a de compositor, que exerceu desde os anos 50, quando compunha baiões para Dolores Duran. "Ela gravava um samba de Billy Blanco no lado A e um baião meu no lado B. Queria que o samba fizesse sucesso, mas o baião é que fazia, tanto que começou a ficar conhecida como 'a princesinha do baião'. Aí ficou brava, nunca mais gravou", ri.

Chico é hoje verbete esquecido por alguns dos dicionários musicais, mas teve músicas gravadas por Dalva de Oliveira, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Linda Batista, Jorge Veiga, Blecaute, Maysa e, "mais para frente", Angela Maria, Martinho da Vila, Alcione, Wando.

Nos anos 70, em parceria com o ator e compositor pernambucano Arnaud Rodrigues, compôs e cantou música "séria" em sincronia a leveza dos programas de humor, em trilhas sonoras como as de Chico City (1973, reeditado em CD) e Azambuja & Cia (1975).

Foi quando nasceu o conjunto fictício Baiano & Os Novos Caetanos, formado por Chico e Arnaud, nas peles dos hippies "cabeça" Baiano e Paulinho. A sátira a Caetano Veloso e Gilberto Gil era evidente, mas ele rejeita a qualificação: "Não era sátira, era sério". E Caetano e Gil, como reagiam às elucubrações filosóficas "viajandonas" em que se embrenhavam Baiano e Paulinho? "Reagiam muito a favor, porque nunca debochei deles."

A mescla com humor encobriu as qualidades musicais "sérias" dos discos daquela fase, em especial os dois de Baiano & Os Novos Caetanos, E? (1974, disponível em CD) e 2 (1975). Por trás do canto irônico, havia uma virtuosa equipe de artistas egressos da ensolarada bossa nova, como o produtor Durval Ferreira, recém-falecido, e os músicos Vitor Assis Brasil, Maurício Einhorn, Orlandivo e o grupo Azimuth, pioneiro na fusão inventiva entre jazz, samba, rock, bossa e baião.

O maior sucesso da dupla real-ficcional foi o samba-rock Vô Batê pa Tu, recentemente redescoberto por DJs e músicos mais jovens. Composto por Arnaud e Orlandivo, tratava de um tema-tabu dos anos de chumbo, a delação: deduração/ um cara louco que dançou com tudo/ entregação do dedo de veludo/ com quem não tenho grandes ligações. Chico se irrita diante da pergunta sobre se cantavam cientes do fundo político: "É claro que sim. Ninguém ali era alienado, nem eu, nem Arnaud, Durval, Orlandivo". Por que a Censura não se incomodou? "Não sei. Pergunte à Censura."

Chico Anysio foi dos raros artistas que defenderam publicamente Wilson Simonal, quando o amigo cantor, colado à pecha de informante da ditadura, acabou preso pela polícia do próprio regime. "Aquilo foi um absurdo, um crime perpetrado contra o maior cantor do País. Ele era cheio de marra, e passava por debochado. Quando tiveram a primeira chance, inventaram que era dedo-duro." Quem inventou? "O Pasquim vendia 300 mil exemplares. Quando o estampou como dedo-duro acabou tudo", diz, em referência ao tablóide-ícone da resistência à ditadura. "Ele não tinha como se defender, nenhuma tevê podia colocá-lo no ar depois do que aconteceu."

Fala sobre a eqüidistância que manteve entre os dois pólos, ao permanecer amigo de Simonal, à "direita", e da "esquerda" representada pela turma engajada do Pasquim, inclusive Ziraldo, futuros roteiristas de seus programas e caricaturistas do livro É Mentira, Chico?. "Eu não podia fazer nada, não tinha domínio sobre O Pasquim. Continuei sempre amigo do Simonal, mas ele sumiu, me perdi dele, fui encontrá-lo num hospital."

E onde ele se autolocaliza, entre a "esquerda" e a "direita"? "Eu era de esquerda. A esquerda existia. Fui sempre um defensor dos pobres, dos pretos, nordestinos, favelados, retirantes. Sempre fui um defensor das classes C, D e E. Atravessei a ditadura dentro da Globo. Era barra, porque era onde a ditadura mais agia." Era possível ser de esquerda na Globo? "Era, aqui e ali conseguíamos fazer passar alguma coisinha. Mas era uma gritaria danada."

Irrita-se de novo, quando o assunto é a identificação de sua imagem mais à direita, em especial após a era Collor. "Nunca ouvi dizer isso, nunca tive nada a ver. Votei no Ulysses Guimarães. Quando me casei com (a ex-ministra da economia) Zélia Cardoso de Mello, o Collor já tinha sido tirado." O que acha da política atual? "Não acho nada. Política é uma merda."

Mesmo sob a sombra de personagens como a velhinha Salomé (que conversava ao telefone com o presidente João Figueiredo) e o deputado corrupto Justo Veríssimo, diz que o humor que criou não era "político", mas sim "social". "Quem faz crítica política é o Casseta & Planeta. Meu humor é social, você não entende isso?" A seguir, lembra o humorístico politizado Estados Anysios de Chico City, de 1991: "Tive que mudar tudo, porque o povo não estava entendendo. O ibope foi de 44 pontos para 19".

Isso significaria que o público médio não entendia o humor que não fosse o mais simples possível? "Somos 190 milhões de brasileiros, 100 milhões de analfabetos. Para esses a única diversão possível é a tevê. Quando um programa vai ao ar, as classes C, D e E estão vendo, a classe A está em Angra dos Reis, a classe B está no (restaurante de elite) Antiquarius."

Afirma que nunca brincou com preconceito, arma prioritária de certo tipo de humor. "Preconceito eu sofri muito antes de ser o Chico Anysio. É algo com que brigo. Fiz cinco veados no programa, sempre com o maior respeito, nunca debochando dos gays, dos negros, dos judeus. Não gosto de preconceito no humor, como não gosto no drama, na poesia, na reportagem."

Provocado, descreve os preconceitos sofridos "antes de ser o Chico Anysio". "Chegava numa festa para me apresentar e tinha que entrar pelos fundos, porque era artista. Passei por muitas situações de não me deixarem entrar em restaurante porque era nordestino." Faz pensar nessa como uma entre muitas possíveis razões para que o humor camufle a melancolia de toda uma galeria de comediantes nascidos no Ceará, como Renato Aragão, Tiririca e Tom Cavalcanti (que ele revelou, com quem depois rompeu e que agora acompanha Brasil afora no espetáculo Chico.Tom).

"Simonal dizia uma frase sobre isso de que gosto muito: o preconceito não é racial, é econômico. Quando parei com uma Mercedes na frente do mesmo restaurante, vieram abrir a porta do carro para mim. Fui embora dizendo que o restaurante era uma merda."

Entre o riso e o siso, o personagem de si mesmo se revela complexo, contraditório. Ziraldo vem em socorro da nobreza do serviço obediente que o amigo prestou, em palavras escritas em É Mentira, Chico?: "Em que país seu povo conheceu ou conviveu durante anos com cada um desses tipos como se eles fossem pessoas de verdade, reconhecíveis, palpáveis, vizinhos de porta?". Mesmo no ocaso, Chico Anysio continua morando ao lado.

[p.s.: tal reportagem suscitou a seguinte (e bastante pertinente) carta de um leitor de "carta capital", publicada na edição 453 da revista: "Cresci assistindo aos programas humorísticos Chico City. Pedro Bó era forma comum de designar quem fazia perguntas idiotas. Vários outros personagens de Chico Anysio fazem parte da minha memória televisiva e afetiva. Um livro que resgata a 'biografia' de vários deles é homenagem tanto para o autor quanto para nós. Todavia, faço um ressalva. Chico Anysio coloca-se, na reportagem, contra os preconceitos; cita explicitamente os gays, os negros, os judeus. Parece esquecer, porém, que alguns de seus personagens e de seus bordões sustentavam-se na exploração dos preconceitos contra mulheres, valorizadas apenas quando bonitas e/ou submissas. A própria personagem Terta tinha um pouco disso... O que pode significar, apenas, que Chico Anysio, como bom humorista, revelou nossas mazelas – pelo que quis fazer e pelo que fez se pensar em fazer. James William Goodwin Jr. Belo Horizonte, MG ".]

[o tópico ...doce... não tem (quase) nada a ver com este. mas bem poderiam ser lidos como gêmeos bivitelinos...]

quinta-feira, julho 19, 2007

o cantor lírico, a cantora da noite, o militar

por sugestão do gaion, segue abaixo a imagem. no estúdio da sede da omb do rio de janeiro (onde moram uns nove em cada dez de nossas mais "famosas" "estrelas" musicais), posam o presidente da comissão de ética, a presidente da regional carioca e o (ex? quase? futuro? deposto? "novo"?) presidente nacional da ordem dos músicos do brasil. a foto é de autoria do fera marcelo carnaval, para a "carta capital". para mais detalhes, é favor consultar o tópico anterior.


a sua bênção, são nelson rodrigues!

terça-feira, julho 17, 2007

a (des)ordem calamitosa

em conexão direta com uma outra reportagem, de março de 2006, fomos de volta à carga, ao sempre periclitante imaginário da ordem dos músicos do brasil, na "carta capital" 452, de 11 de julho de 2007.

a reportagem anterior fora baseda numa visita à omb de são paulo, desta vez foi a vez da omb do rio.

êita, eixão rio-são paulo "organizado" e "sofisticado" da moléstia, hein?!?? e a "grande" mídia (extra-)cultural instalada dentro desse eixão, por que será que não costuma gostar nem um pouco desses assuntos de omb, hein??!? por que será que será, por quê?


A ORDEM CALAMITOSA
Acusada na Justiça de praticar irregularidades desde 1964, a OMB vive uma guerra aberta entre diretores do Rio e SP

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

O ideário vigente desde 1964 na Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) está desmoronando. Desta vez acontece de dentro para fora, a partir de uma guerra declarada entre os dirigentes das sedes regionais paulista e carioca do órgão de defesa e fiscalização do exercício da profissão musical no País, mantido sob mão de ferro pelo mesmo grupo desde o golpe militar. O cardápio inclui até acusações de agressão física, supostamente praticada por integrantes do grupo paulista contra o carioca.

Em agosto passado, uma determinação judicial obrigou o juiz classista aposentado Wilson Sandoli a abdicar da duplicidade de cargos que mantinha, como dirigente do Conselho Federal e do Conselho Regional paulista (ele também preside o Sindicato dos Músicos de São Paulo). Interventor nomeado presidente da OMB em 1966 e sistematicamente "reeleito" desde então, Sandoli, 79 anos, abdicou do cargo federal e o entregou ao vice, o militar João Batista Vianna, 82 anos, à frente do Conselho Regional do Rio de Janeiro desde o início dos anos 80.

Em abril passado, Vianna foi destituído do cargo por outra decisão judicial, e se criou um vácuo jurídico e de poder. Hoje se diz "apunhalado" por Sandoli, e o acusa de um desvio de verbas de cerca de 1,4 milhão de reais, supostamente transferidos a título de empréstimo, do Conselho Federal para a regional paulista. "Com uma penada, Sandoli anistiou os débitos dele próprio e dos outros conselhos que deviam ao federal. É um ato arbitrário, é querer se apossar de um dinheiro que não lhe pertence", protesta o advogado da OMB-RJ, Itamar Ribeiro de Carvalho.

Sandoli afirma que os empréstimos foram todos contabilizados, e contra-ataca: "Soubemos que, no tempo que ficou no Conselho Federal, Vianna fez uma série de irregularidades, agora é que vamos ver".

Constantemente envoltas por acusações de manipulação e falta de transparência, as eleições da Ordem agora vêm acontecendo umas atrás das outras, sob uma saraivada cruzada de sentenças judiciais entre os dois grupos oponentes.

Em 25 e 26 de abril passado, Vianna capitaneava a própria reeleição ao Conselho Federal, quando foi interceptado pela nomeação judicial de mais um interventor à Ordem, o advogado Humberto Perón Filho. Na ocasião, na sede federal, teriam sido Perón e Sandoli os protagonistas das supostas agressões verbais e físicas, registradas em votos de repúdio dos conselheiros de Sergipe, Rio e Distrito Federal.

Perón contesta a acusação: "Tenho 70 anos, vou bater em alguém?". Interventor nomeado pela 18ª Vara Federal de São Paulo para conduzir novas eleições, Perón é advogado da OMB-SP desde 1988 e aliado de Sandoli. "Seu Vianna fugiu da sede com a chave, levou embora. Precisei chamar o chaveiro para fechar, como é que eu ia deixar aberto?", descreve, dando dimensão do caos instalado.

Perón conduziu a nova eleição na segunda-feira 2 de julho, quando Sandoli se sagrou tesoureiro e o presidente da regional paraibana, Benedito Honório da Silva, foi alçado ao posto de novo presidente nacional da Ordem. "Podiam votar 14 conselheiros regionais, mas apareceram oito, nove ou sete. Os outros foram convocados, não sei por que não apareceram", ele diz.

A posse aconteceu em Brasília, na terça 3, atropelando a reivindicação de Vianna de se reempossar na sexta 6. A guerra de sentenças judiciais prossegue, sem vislumbre de resolução.

No pano de fundo da disputa, prevalece a acusação de músicos resistentes à Ordem, sobre irregularidades e abusos cometidos em eleições rotineiramente antecipadas e convocadas de modo "sorrateiro", nos dizeres de ação popular movida em maio por cinco músicos cariocas contra a OMB-RJ. A "calamitosa situação jurídica e fática" da instituição foi evocada por Samuel Araújo, doutor em etnomusicologia, Patrícia Vilches, cantora lírica e professora, Gabriel Gagliano, mestre e clarinetista, Sérgio Barboza, compositor, pianista e mestre, e Eduardo Camenietzki, músico do corpo técnico da Escola de Música da UFRJ.

"O assalto que a OMB faz ao patrimônio dos músicos não é só de dinheiro. É simbólico, à imagem dos músicos, que passam por desorganizados e comandados por um bando de gente que não sabe tocar e ocupa a burocracia", protesta Camenietzki. Ex-integrante do conselho carioca, entre 1993 e 2001 (*), ele mobilizou a categoria musical no ano passado, quando enfrentou processo de cassação depois de denunciar irregularidades cometidas por Vianna e acusá-lo de "papa-defunto".

"Camenietzki falou que era meu amigo até embaixo d'água. Virou contra porque esteve aqui junto com mais uns quatro querendo que eu derrubasse o Sandoli, e não aceitei", diz Vianna.

A ação popular abrangeu várias exigências, acolhidas integralmente pela 18ª Vara Federal do Rio. Solicitou, por exemplo, a apresentação das atas de assembléias de prestações de contas desde 1964, sob a alegação de que, num universo de 40 mil músicos inscritos na OMB-RJ, a arrecadação com anuidades seria de no mínimo 8 milhões de reais anuais, geridos sem transparência pela instituição.

Foi exigida também prova de aptidão musical dos atuais membros da diretoria, para dirimir suspeitas de que Vianna e outros não fossem músicos de fato. E se solicitou comprovação de que a Ordem possua alardeadas 27 sedes regionais no estado do Rio, assim como documentos do Sítio de Lazer São João, onde a OMB carioca costuma celebrar festas em honra a Santa Cecília, padroeira dos músicos.

Os documentos foram entregues pela Ordem na semana de 2 de julho, mas desagradaram à advogada dos músicos rebeldes, Deborah Sztajnberg, cujo escritório já movimentou cerca de 5.000 liminares de músicos contra a obrigatoriedade da vinculação à OMB. Segundo ela, escrituras de apenas seis sedes regionais foram enviadas, as prestações de contas não foram apresentadas e só foram anexadas atas manuscritas a partir de 1991, sob a alegação de que a demonstração desde 1964 não é possível, porque "muitos desses documentos já foram incinerados".

"Aquilo é uma caixa preta com dinheiro público, eles detêm 10% dos contratos de shows internacionais que vêm ao Brasil, e não prestam qualquer conta disso", afirma a advogada. Ela critica, em particular, os procedimentos da Ordem junto a músicos de menor poder aquisitivo: "Uma coisa é a lei falar de regulamentação, outra é os fiscais da OMB chegarem aos shows de forma terrorista, ameaçando, desligando o equipamento, apreendendo, prendendo a pessoa. Isso não existe na lei, não podem impedir os músicos de trabalhar. Os músicos ficam apavorados, muitos trabalham por 3 reis de couvert artístico".

O advogado da OMB, Itamar Ribeiro de Carvalho, admite abusos cometidos pela instituição nesse campo. "A lei até dá poder de polícia aos conselhos, mas alguns fiscais desavisados começaram a extrapolar, e isso repercutiu mal. O presidente Vianna expurgou todos, atualmente não há nem fiscalização, está suspensa", diz.

Ele contesta a receita anual presumida na ação popular. "Dizem que a OMB fatura 8 milhões de reais por ano, isso não existe. Entre 40 mil inscritos, muitos são falecidos, outros já adquiriram a idade de não pagar mais. Atualmente há aproximadamente 3 mil inscritos pagantes, o que dá cerca de 300 mil reais", argumenta o advogado, em admissão implícita da forte crise de representatividade por que passa a Ordem, encurralada por inadimplência maciça e uma enxurrada de liminares.

"O cerne de tudo nasceu no Paraná, com um presidente regional que cometeu uma série de barbaridades com os músicos e fez com que eles se rebelassem. Virou um pandemônio, uma repulsa contra toda a instituição, causada por um desavisado lá do Paraná", diz o advogado. Ele recebe o reparo do presidente da comissão de ética da OMB-RJ, o cantor lírico (e presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Área Cultural) João Carlos Dittert: "O conselheiro do Paraná foi mal orientado, pessoalmente é uma pessoa boa". Vianna emenda a defesa: "Coitado, é um grande advogado".

O episódio é pontual, mas de modo nenhum excepcional em 43 anos de ordem vigente. Em 1978, a cantora Elis Regina batia boca com Sandoli pela tevê, no programa Vox Populi. Em cena hoje disponível no site YouTube, Elis reage ao ter sua legitimidade de porta-voz dos músicos questionada pelo burocrata: "Falo em nome dos músicos porque eu sou músico. Sou portadora de uma carteira azul de número 0022 do Conselho Regional do Rio Grande do Sul da Ordem dos Músicos do Brasil, portanto sou músico. Meu instrumento é a voz, aliada à palavra, não aceito discriminação".

E ela provocava o presidente da OMB, citando "uma série de coisas que perduram há muito tempo e acontecem à nossa revelia, inclusive eleições da Ordem, eleições do sindicato". Neste ano de 2007, eleições (indiretas) parecem pipocar de minuto a minuto na OMB, sob inédito cenário de divisão interna. E certamente não satisfariam os anseios democráticos expressos há quase 30 anos pela cantora, que morreu em 1982.


QUITINETE DE LUXO
O ex-presidente gaba-se de ter criado um "patrimônio monstro" na OMB-RJ

Com aspecto de uma típica repartição pública, como tantas outras que se espalham Brasil afora, a sede carioca da OMB ocupa o sétimo andar de um prédio no centro da cidade, o mesmo onde há um ano o ex-governador Anthony Garotinho entrou em greve de fome. O repórter de CartaCapital em visita é recebido com simpatia e gentileza por João Batista Vianna e pela presidente regional, a cantora da noite Célia Silva, nomeada após a ida dele para o Conselho Federal.

Logo à chegada, "seu" Vianna gaba as próprias virtudes. "Fui o único presidente que deixou a OMB rica. Comprei nove sedes no estado do Rio. Se o senhor chegar ao sítio de Itaboraí, não precisa ficar em hotel, fica na quitinete de luxo. É piscina, 20 quitinetes de luxo, salão de primeira, que eu fiz." E celebra as sucessivas reeleições: "Tive a sorte de vencer em todas as urnas. Fiquei. Criei logo policlínica, restaurante. Até hoje não houve um presidente que fizesse um patrimônio-monstro assim."

Vai ao ataque contra Sandoli. "Tem presidente regional que não pode comprar uma bicicleta, e ele anda de carro importado e blindado." Afirma devotar admiração a Juscelino Kubitschek, que instituiu a Ordem em 1960, e ao primeiro presidente da OMB, o maestro José Siqueira, destituído pela ditadura em 1964. "Muita gente não gostava do Zé Siqueira por causa do comunismo. Ele regeu até a Orquestra de Moscou."

Diante da menção à suspeita dos opositores, de que nem músico ele seja, apanha um saxofone, toca trechos de La Barca e Torna a Sorriento.

Convoca o repórter para um almoço caseiro na copa da OMB: rabada com agrião, bistecas de porco, frango à milanesa, feijão preto. Conta que o pai tentou se suicidar sucessivas vezes, que a esposa sofre de mal de Alzheimer ("coitada, é o maior problema da minha vida"), que um dos netos se casou à revelia do pai com uma mulher negra e 18 anos mais velha ("eu fui ao casamento, eu fui").

E no Exército, a vida era dura? Ante a pergunta, lembra que tinha de castrar carneiros, e evoca a castração de bois e porcos ("a faca"). Mas diz que, do Exército, só foi músico, nada mais. "Eu acho, palavra de ordem, que militar tem muita função dentro do quartel. Ditadura não dá certo, não." Diz que prefere "200 vezes" a democracia e respeita Lula ("é nosso presidente da República"), apesar de ter votado em Alckmin ("gente muito fina").

Após o almoço, mostra, orgulhoso, as dependências da OMB. Abre o armário do gabinete e exibe cinco ternos, "presenteados por músicos que gostam de mim". E brinda a permanência no comando da Ordem: "Eles sabem que é dificílimo concorrer com o Vianna. Não querem dar a mão à palmatória". – PAS


(*) a propósito desse trecho, eduardo camenietzki me solicitou uma errata, que será publicada na "carta capital": ele não foi integrante do conselho da omb entre 1993 e 2001, como afirma a reportagem, mas sim entre 1982 e 1985 (quando tinha "entre 24 e 27 anos de idade", segundo lembra); no período 1993-2001, camenietzki foi anistiado das anuidades da omb, mas afirma que então já não mantinha qualquer vínculo com a (des)ordem. fica feita aqui a correção, em tempo (ir)real.

segunda-feira, julho 16, 2007

o primo do dom



quarta-feira, julho 11, 2007

metatópico

tentemos, porque queremos, fazer uma leitura comentada (e mui simplificada) do livro "midiático poder" (publisher brasil, 2007), de renato rovai, colega jornalista, editor da revista "fórum", colaborador do site observatório de imprensa.

o subtítulo, "o caso venezuela e a guerrilha informativa", evidencia de que é que se trata o livro, e você pode se perguntar: "por que diabos eu gastaria um naco do meu tempo pensando na venezuela?".

pois eu gastaria, e gastei, e saí da leitura (sobre algo que de fato eu conhecia pouquíssimo) um tanto perplexo, e desejei transferir o pasmo e o aprendizado cá para o blog. por que?, ora direis, por que estudar o que se passou e se passa lá naquela venezuela?

pois é simples. é porque o relato do rovai não me fez esquecer, nem um segundo sequer, um bocado de acontecimentos cá deste vizinho brasil. mais que isso, eu ia lendo e ficando desconfiado de que, no desenrolar de acontecimentos como aqueles todos ali relatados, o brasil É a venezuela (ainda que, aqui, com radicalidade um tanto menor).

então é por isso, porque fiquei vendo o brasil NA venezuela, que lá vamos nós, que aqui viemos nós. ah, e também é por vontade de espalhar, tipo serviço de utilidade pública, pois nada disto que vem abaixo ninguém vai ver em "detalhes" (alô, roberto carlos!) na rede globo & quetais (como o próprio percurso do rovai também ensina). vamos que vamos.

logo na introdução, o autor conceitua o presente, midiático presente:

"Neste novo estágio histórico, apesar de estarem cada vez menos comprometidos com os interesses da sociedade e mais vinculados a interesses mercadológicos e empresariais, os veículos de comunicação assumem a si mesmos como equivalentes da opinião pública, sendo tanto o seu espaço de manifestação como o seu representante. A partir dessa construção, buscam operar um novo tipo de democracia, que teria como característica principal ser referenciada nos meios de comunicação de massa. A isso se denomina Midiático Poder".

e emenda com o caso venezuelano, que transcrevo daqui por diante acrescentando alguns negritos e fazendo algumas adaptações e interferências em itálico e entre [colchetes] em geral recolhidas do próprio livro:

"O primeiro [objetivo do livro] é de documentar duas tentativas de golpe ocorridas na Venezuela, uma midiático-militar [de 11 a 14 de abril de 2002, quando Hugo Rafael Chávez Frias chegou a ser deposto e encarcerado] e outra midiático-econômica (...) [quando,] nos meses de dezembro de 2002 e janeiro de 2003, teve lugar outra investida golpista, mais complexa, mas nem por isso menos totalitária. Com a mídia capitaneando o processo, realizou-se por dois meses uma ação de desabastecimento de bens essenciais de consumo, principalmente para a população mais pobre, combinada com uma paralisação da produção de petróleo (...) e uma campanha de sonegação tributária. Tratou-se de um golpe midiático-econômico, a meu ver muito mais apropriado, por sua forma, à lógica e às dinâmicas daquilo que os neoliberais convencionaram chamar de 'capitalismo moderno'."

rovai então explicita os objetivos do livro, enquanto opera análise e crítica, de dentro para dentro, refletindo sobre a profissão dele (e minha):

"(...) essa ação não pode ser dissociada de um debate sobre o comportamento ético dos aparelhos midiáticos. Os veículos de informação não podem ser livres de responsabilidades. Nem livres para utilizar quaisquer recursos ou métodos para alcançar seus objetivos nos planos político e econômico, seja quando vão a um golpe, seja quando se matam por pontos de audiência. Devem, sim, ser livres para produzir informação. Devem ser radicalmente livres. Mas precisam responder pelo que produzem, segundo critérios referentes às várias responsabilidades sociais dos diferentes meios informacionais".

e adentra pela história recentíssima da venezuela, voltando a 1998, época da primeira eleição de hugo chávez, e entrevistando colegas jornalistas de lá:

"'Muita gente de esquerda não confiava nele. Não votei nele', recorda Gabriela Fuentes, que trabalhava na televisão comunitária Catia TVe à época da entrevista. Depois do golpe, ficou fora da Venezuela por um tempo e voltou para trabalhar na Vive TV, emissora do Estado (...). Gabriela tornou-se uma entusiasmada defensora do governo Chávez: 'Como há muito racismo na Venezuela e a oposição, entre outras coisas, ataca Chávez por ele ser negro [e índio, não é mesmo?...], costumo dizer que 'mexam com todo mundo, menos com o meu negro'".

aí há esta daqui, vê lá se não soa incomodamente familiar:

"Após a vitória [de chávez na eleição de 98], os derrotados mudam de estratégia e tentam atrair o novo presidente para o seu espaço político. 'Recordo-me que fiquei num programa de televisão durante quatro horas ao vivo no dia em que ganhei. Até músicos tocando harpas entraram no estúdio. Eu não tinha mais o que dizer e nem eles o que perguntar, mas insistiam para que eu ficasse. Mostraram uma foto minha de quando era neném e estava pelado brincando. Nem eu sabia daquela foto. Fizeram de tudo para me agradar e depois enviaram mensageiros para tentar se aproximar. Mas, quando comecei a escolher o ministério, passaram a me chamar de golpista', relata Chávez [segundo rovai, em entrevista coletiva da qual ele foi um dos jornalistas credenciados, em 26 de janeiro de 2003, no fórum social do rio grande do sul]. Ele ainda revela ter recebido, nos primeiros dias de seu governo, um enviado dos meios [de comunicação], que levava uma carta com uma série de indicações para o governo, entre elas, a do futuro ministro das Comunicações. Ao não aceitar a sugestão, Chávez comprava uma briga com o homem mais poderoso do país. O chefão dos meios".

e, pasme, vem aí o "chefão dos meios", o roberto marinho de lá, o condutor da globo de lá, a venevisión:

"Gustavo Cisneros é a segunda maior fortuna da América Latina, depois de Carlos Slim, o bilionário presidente da Teléfonos de México. Cisneros está em 114º lugar entre os 500 mais ricos listados pela revista Forbes, em 2006, com US$ 5,3 bilhões, e tem influência e negócios para além da Venezuela [e, de acordo com, rovai, "gaba-se de ser amigo íntimo do atual presidente dos eua, george w. bush]. Até por isso, pôde liderar sem grandes problemas um apagão econômico no país, que durou quase dois meses. (...) A organização [dos cisneros] também é uma das líderes do mercado de bebidas da América Latina (...). Começaram representando a Pepsi na Colômbia, mas, numa jogada polêmica, mudaram, da noite para o dia, para a Coca-Cola. Os Cisneros são donos da Panamco, a maior engarrafadora da Coca-Cola fora dos Estados Unidos, e ainda possuem as franquias de Burger King e Pizza Hut, além de representarem a Apple, a Motorola e a Blockbuster na América Latina. (...) Comenta-se nos bastidores que Cisneros [segundo rovai, "com base na leitura de alguns perfis, entre eles, um produzido por simón romero, publicado no new york times", susto!] também possa ter participação indireta na Editora Abril, o que permite entender por que Chávez é tão satanizado no tratamento que recebe da maior publicação da editora, a revista Veja".

o livro narra meandros do "golpe midiático-militar", entre eles um momento do dia do golpe (11 de abril de 2002) em que, por sugestão do correspondente do canal norte-americano cnn, otto neustald, os representantas das forças armadas rebeladas contra chávez ensaiam um pronunciamento que vão fazer nas TVs, ao vivo:

"Eles aceitaram a proposta de Neustald, colocaram-se em frente à câmera e disseram: 'O presidente do Conselho de Autoridades, o senhor Hugo Chávez Frias, traiu o povo e o está massacrando com franco-atiradores. Neste momento já se podem contar seis mortos e dezenas de feridos...'. A gravação realizada por Neustald aconteceu exatamente duas horas antes de os conflitos se iniciarem. Naquele momento, não existiam mortos ou feridos. Nem confronto armado. Tampouco era possível saber da existência de franco-atiradores. Héctor Ramírez e seus colegas golpistas de farda, porém, sabiam de tudo que ia acontecer. Os meios de informação, que esperavam para autorizar-lhe a entrada ao vivo, também. Não havia um Nostradamus no grupo. Era somente o ensaio do golpe".

já em pique de reação à pantomima armada pela mídia, o fotógrafo maurice lemoine, do francês "le monde diplomatique", envia uma carta ao tradicional (e golpista) jornal venezuelano "el universal", protestando contra o uso distorcido de uma foto sua que retratava combates numa ponte perto do palácio de miraflores, cena disseminada na venezuela como se fosse dos partidários chavistas "massacrando" manifestantes anti-chávez:

"A carta foi [posteriormente] publicada por Le Monde Diplomatique, juntamente com a nota a seguir: 'Esta carta não recebeu nenhuma resposta. Desde a publicação dessas fotografias por Le Monde Diplomatique, inúmeras fotos difundidas na Venezuela por meios alternativos confirmaram a credibilidade de nosso testemunho. Essas informações, que contradizem a versão segundo a qual 'hordas chavistas dispararam impunemente sobre uma manifestação pacífica', e que poderiam ajudar a esclareder os dramáticos acontecimentos do 11 de Abril, nunca foram publicadas no El Universal – nem em outros meios de comunicação de massa venezuelanos. Ao contrário, El Universal prefere desviar o trabalho de um 'colega' da imprensa internacional e, enganando seus leitores, esconder a verdadeira natureza de tal trabalho. Isso não tem nada que ver com liberdade de informação. Isso se chama terrorismo midiático. M.L.'".

poucos dias após o golpe, o ministro pró-chávez aristóbulo istúriz relata o tipo de contato que conseguiu ter naqueles dias com a rede comercial rctv (essa mesma que está em voga atualmente, por ter tido a concessão cassada por chávez):

"Falei com o presidente do canal e disse-lhe: 'o senhor sabe que não é verdade o que estão afirmando, estou aqui, por que continuam dizendo que sou fugitivo?'. Ele me mandou falar com seu chefe de imprensa, um jornalista jovem, Andrés Izarra. Ele se pôs a chorar, e me disse 'eu sei que isso é mentira, sei o que está acontecendo, mas não posso fazer nada'. Izarra pediu demissão naquele momento. Não podíamos falar mais nada a nenhum meio. E os meios transmitiam coisas totalmente fora da realidade. (...) Izarra lembra que as ordens que recebia de seus superiores eram de não abrir espaço algum para representantes do governo. 'O título dessa operação editorial era 'Zero chavismo' [olá, dona coca-cola zero!]. (...) Izarra também recorda que, em muitos pontos da cidade, havia protestos contra o golpe e que essas manifestações não podiam ser divulgadas. '(...) As TVs assumiram que não transmitem informação, fazem propaganda de guerra. Hoje, ou o jornalista é contra o governo ou não consegue emprego em lugar nenhum'."

rovai exercita, mais além, uma comparação entre o chile-1973, de salvador allende, e a venezuela-2002, de hugo chávez, uau!:

"No caso do Chile, após o golpe, viveu-se a mais sanguinária ditadura do continente. E a censura era total. Os meios calaram-se. Na Venezuela, Pedro Carmona [presidente da fedecámaras, a principal entidade empresarial venezuelana], que foi aclamado presidente pela mídia, em 47 horas fechou o Congresso, destituiu prefeitos e governadores aliados de Chávez e iniciou uma perseguição política sem proporções. A imprensa, que clamava por liberdade, aplaudia".

mas, acredite, à parte o poderio comunicativo dos mídia, o golpe midiático-empresarial-militar estava dando errado!:

"Quando ficou claro que não havia mais como resistir ao contragolpe, o poder midiático dá o espetáculo final. As emissoras de rádio e TV da Venezuela tiram seus sinais do ar e provocm o maior apagão informativo da história da mídia latino-americana até então. Nenhum dos meios comerciais de comunicação da Venezuela realizou a cobertura da volta de Hugo Chávez ao Palácio Miraflores. No dia seguinte, o show continuou. No domingo, os jornais impressos não saíram. As emissoras de TV e rádio continuaram caladas. Chávez reassumia a presidência da República e contrariava a tese dos meios, que conduziram a sua cobertura afirmando que se tratava de um ditador impopular".

um pouquinho, agora, sobre o segundo golpe, o midiático-econômico, tipo "greve" ou "locaute", executado pelo empresariado a partir de 2 de dezembro de 2002:

"(...) as sabotagens iam além dos cortes na produção da empresa de petróleo, que, por si só, já seriam suficientes para parar quas todo país do mundo. 'Eles bloqueavam estradas, jogavam óleo e azeite na pista para os caminhões deslizarem e baterem. Destruíam plantações, fechavam as principais saídas e entradas dos povoados pobres, ameaçavam atacar as escolas e hospitais que abriam. Criaram um clima de guerra, de pavor. Sem dizer que eram os empresários que paravam, e não os trabalhadores', recorda [Blanca] Eekhout [presidente da tv comunitária catia tve, em 2002]".

rovai descreve a experiência de resistência da tv comunitária, ressaltando sua importância crucial no refluxo dos dois golpes:

"(...) os vídeos começaram a ser produzidos pelos próprios moradores. As pessoas se filmavam, trabalhavam os roteiros, aprendiam a usar a câmera e organizavam as projeções. 'Tudo foi acontecendo de uma maneira muito interessante até que a gente colocou como um dos nossos objetivos (...) colocar no ar a nossa programação, a imagem daquela gente que era excluída dos meios comerciais e só apareciam neles como empregados ou bandidos', afirma Gabriela Fuentes. (...) Quando a economia foi estrangulada e começou a faltar de tudo no país, desde farinha a gasolina, passando por Coca-Cola e cerveja, essas emissoras divulgavam reportagens e entrevistas que mostravam uma outra versão do que estava acontecendo".

e chávez se fortalece à custa dos abusos de seus inimigos midiático-mortais:

"(...) Chávez já havia se dado conta que tinha como adversário principal os meios de comunicação de massa e passa a utilizar uma tática dupla para derrotá-los. Primeiro, ocupa todos os espaços que tem à sua disposição para atuar da maneira mais midiática possível e fortalece sua 'atuação' como animador e contador de histórias com viés político. Segundo, joga tudo para desacreditar os meios comerciais, dando inúmeros exemplos (fáceis de encontrar) de como não valia a pena para o público assistir a programas ou ler periódicos da mídia tradicional comercial. Isso fez com que os meios ficassem sem força para ampliar sua base. Quem acreditava no governo não confiava nos meios tradicionais. Para quem preferia os meios, de nada valiam as palavras de Chávez" [algo em comum com o brasil, hein?...].

adiante, um esboço de conclusão, que aproxima de vez venezuela E brasil, tanto quanto aproxima o livro de rovai e um monte de iniciativas não-tradicionais de mídia (e até mesmo este blog) da resistência venezuelana contemporânea:

"Hoje, os veículos independentes informacionais da rede não fazem força para se legitimar na mídia tradicional comercial. (...) O que aconteceu na Venezuela em relação à participação dos veículos virtuais na contraversão dos golpes midiáticos com viés militar e econômico é bastante simbólico (...). Na Venezuela, sem a internet, os militantes pró-Chávez não conseguiriam quebrar o isolamento a que foram submetidos pela mídia comercial tradicional. E, assim, a comunidade internacional só ficaria sabendo da outra versão do que se passava depois do fato consumado, ou seja, do golpe consumado, como aconteceu em vários países latino-americanos em outros momentos históricos [inclusive aqui neste brasil, não é mesmo? alô, 1964!, adeus!]".

ulalá, e ainda há quem insista e garanta de pés juntos que a história SÓ se repete como farsa, hein? pois desmintamos mais esse datado senso comum, porque podemos.

segunda-feira, julho 02, 2007

a cultura das ruas, vol. 2

"carta capital" 448, de 13 de junho de 2007, pra não dizer que a gente-mídia fala do cd novo (e fofo) da paula toller, né?... (e o prince, hein?, te contei?, não?...)


CHÃO DE ESTRELAS
Impulsionados pela tecnologia, artistas "tomam posse" das ruas e avenidas para fazer shows, gravar e vender CDs

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Os dois homens sobem no ônibus, sem passar pela catraca do cobrador, sob permissão silenciosa do motorista. Pedem desculpas por perturbar a viagem. Vários passageiros se mexem desconfortáveis nos bancos, à espera do início de história triste de desemprego ou discurso decorado sobre problemas de saúde.

Mas o caso será outro nessa manhã paulistana. Os dois homens começam a batucar energicamente no pandeiro. Levantam as vozes no burburinho. Em pouco tempo, o ônibus está tomado pela embolada nordestina.

Em rimas construídas com rapidez de corisco, os pernambucanos Pardal da Saudade e Ivan Embolador elaboram em poucos minutos uma crônica arguta sobre tudo que está acontecendo ao redor. Essa doutora tá olhando/ essa daqui é madame/ é a prefeita de Miami/ veio aqui só passear, Pardal provoca uma dama carrancuda, sob gargalhadas gerais.

Pardal puxa da sacola uma amostra do CD gravado pela dupla, ou melhor, por ele com outro embolador, Verde Lins da Voz, conterrâneo que a essa altura trabalha com outro parceiro, nalguma praça da zona sul paulistana. O disco foi bancado por eles, e é distribuído pela MD Music, a mesma que espalha pelo Brasil CDs e DVDs da Banda Calypso, Frank Aguiar, Calcinha Preta, Forrozão Tropykália.

A versão que está na mão de Pardal é "genérica", ou pirata, segundo a terminologia policial. Ele mandou copiar e vende no ônibus por 5 reais. Contribuições menores também são aceitas, em troco da alegria proporcionada. Em breve, sairá o primeiro DVD, gravado ao vivo no largo 13 de Maio, Santo Amaro, porta de saída e entrada para a periferia sul.

O repórter compra um exemplar, outros quatro ou cinco passageiros também. Após agradecer a atenção, na mais pura linguagem tradicional do canto falado nordestino, os dois descem na avenida Paulista e se dissolvem na paisagem da cidade. O ônibus prossegue mais leve, sorridente.

Passado o encontro fortuito, não é fácil localizá-los outra vez. "Esse pessoal não tem telefone, não", diz o funcionário da MD. Pela Internet, descobre-se que Verde Lins trabalhou na Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo, com o erudito "compositor e decompositor" Livio Tragtenberg. E que estrelou um documentário europeu em companhia do politizado grupo de hip-hop Z’África Brasil. Quem faz a ponte é o rapper Gaspar, paulistano filho de nordestinos que sabe o número do celular de Pardal.

"Respeito os emboladores porque não esperam nada de gravadora, de indústria fonográfica. Só contam com a saúde para sustentar a família. Vendem CDs na rua, isso é o que respeito e acho bonito", entusiasma-se Gaspar. "A mídia brasileira é a reprodução da cultura norte-americana, então a gente que é do rap ainda aparece um pouco. Mas os tiozinhos, não, só uma vez ou outra no programa da Inezita Barroso."

Sabedor dos muitos pontos em comum que ligam o rap ao repente (o canto-fala improvisado na viola, e não no pandeiro, como a embolada), Gaspar revela familiaridade com a venda artesanal de CDs: "Também saio 'mangueando' para vender nossos CDs. Estou duro, vou 'manguear', pago meu almoço. Artista que faz CD tem que ir para a rua".

Outra referência, para Gaspar, é o repentista Sebastião Marinho, paraibano que migrou em 1976. "Quando cheguei, São Paulo me surpreendeu, fiquei com nojo. Pensava que os prédios eram banhados a ouro, e só vi cachorro vira-lata. Mas os nordestinos daqui se emocionavam com minha cantoria, senti necessidade, fiquei."

Marinho diz preferir o palco às ruas, mas relata as agruras da chegada. "No começo não tinha muito campo para trabalhar, e fui ser zelador num prédio na rua das Palmeiras. Foi o único emprego que tive fora do repentismo." Em 1º de maio de 1988, fundou a Ucran, União dos Cantadores Repentistas e Apologistas do Nordeste. "Fizemos um manifesto, 48 repentistas abraçando a praça Ramos, para que a polícia não levasse mais os cantadores para a delegacia por vadiagem."

No contato telefônico, Pardal da Saudade logo aceita a proposta de se deixar acompanhar por CartaCapital durante uma jornada de trabalho. Repórter e fotógrafa são incorporados à crônica improvisada, que fagocita com agilidade todas as etnias e tipos sociais que passem pela frente. Se Pardal diz que a passageira oxigenada é baiana como Carla Perez, Ivan retruca que, não, ela é gaúcha e se parece com a Xuxa. Os passageiros são informados da presença dos jornalistas: Tão fazendo entrevista/ pra deixar tudo completo/ levar pro (programa policial da Globo) Linha Direta/ que é pra gente se ferrar.

Provocam um viajante que vai descer: Esse aqui quer descer/ será que ele é do PT/ e quer correr pra não pagar? Ivan conta que votou em Lula. Pardal diz que também votaria, mas não transferiu o título ainda. Lula é o presidente/ ele é meu conterrâneo/ e o Brasil tá se afundando/ vai pegar fogo já, já.

Vendem CDs numa média de 20 viagens diárias de domingo a domingo. Mas não na segunda-feira 4, quando primeiro armaram uma roda matutina de embolada no largo 13 de Maio. Em uma hora e meia, venderam todos os 40 CDs genéricos que traziam na sacola.

– Tem, não, um dinheirinho para colaborar? – pergunta Ivan a alguém.

– Não.

– Tá desempregado?

– Tô.

– Caçando emprego aqui? Não vai dar certo... – e a roda toda cai na gargalhada.

Na praça, as rimas são mais pesadas. Atravessam cruelmente preconceitos e estigmas sociais, contra mulheres, negros, nordestinos, homossexuais, deficientes, "pinguços". Os estigmatizados ao redor se alternam entre sorrisos amarelos e gargalhadas. O que me deixa irritado/ é vocês se gargalhando/ e eu, um corno cantando,/ ainda não vi ninguém pagar.

"Na praça é mais liberal, a gente solta a franga, faz a 'fuleragem'", Pardal classifica. "No ônibus não pode. É como se fosse casa de família, o pepino pode ir para o motorista. Ali cantamos correto, sem dizer palavra errada."

Pardal contabiliza 7 mil exemplares "oficiais" do CD vendidos nas ruas. Dos "genéricos", não sabe dizer: "Piratas a gente não conta, acho que uns 7 mil também". É mais do que anda vendendo muito pop star famosíssimo.

Ele troca de idéia quando perguntado sobre a justeza de se referir ao próprio disco como "pirata": "Sendo meu, acho que não é pirata".

Localizado noutro celular, Verde Lins, o ex-parceiro, se queixa da política de preços do colega: "Ele vende por 5 reais, fica difícil, queima a praça. Eu vendo a 10 reais, na loja custa 12. O meu é pirata, também estou fazendo". Verde Lins foi quem primeiro gravou Futebol no Inferno, que depois viraria sucesso com a dupla Caju e Castanha, a mais conhecida do País, que lança discos pela Trama.

As queixas não vão longe: "A vida para mim é boa. Prefiro cantar na rua que em outros lugares para ganhar nome. A gente vive de dinheiro, não de divulgação e conversa. Tem que vir de baixo, a casa precisa do primeiro tijolo. Os apresentadores de tevê e locutores de rádio me conhecem mais do que eu conheço eles. Me chamam, se derem cachê eu vou".

Afirma que não recebeu direitos autorais pela cantoria com os rappers no vídeo The Session, realizado em 2005 pela artista plástica sueca Annika Eriksson e exibido em circuitos europeus de arte. A história se assemelha à de outra dupla de cantadores, Peneira e Sonhador, focalizada no documentário francês-brasileiro Saudade do Futuro, de Marie Clémence e César Paes.

"Mandaram um DVD, eu vou copiando e vendendo. Não deram direito autoral, só pagaram a gravação", diz o pernambucano Peneira.

Peneira é um dos 15 músicos liderados por Livio Tragtenberg na Orquestra de Músicos das Ruas, formada em 2004. "O que mais estranhei foi passar da rua para o palco. Na rua a gente canta solto e livre. Na orquestra é pouco e na hora certa", separa Peneira, que adota nome de passarinho como apelido, assim como a maioria dos cantadores, de Pardal a Patativa do Assaré.

Tragtenberg critica a camada de exotismo com que são vistos os artistas das ruas: "Me dizem 'muito bom o trabalho que você fez com morador de rua', mas não há nenhum morador de rua na orquestra. Não é só a crítica, o público também quer lavar a consciência pesada, passar a mão na cabeça, 'eles são bonzinhos', 'você está tirando da rua'. É um modo de não reconhecer o valor artístico deles".

Ele concentra o conceito no termo que nomeou o primeiro CD do grupo, Neuropolis, editado pelo Selo Sesc: "Neurópolis é a cidade dos nervos, que estão dentro do corpo, ninguém vê, mas são a alma de tudo. Faço uma analogia com os músicos, que circulam pela cidade meio invisíveis e a mídia não vê".

Distribuída entre migrantes nordestinos e imigrantes estrangeiros, a orquestra reúne desde paraguaios que tocam música mexicana no restaurante El Mariachi até a japonesa Reiko Nagase, de 65 anos, e a nissei Yuko Ogura, de 76, responsáveis pelos instrumentos orientais koto e sanguen na babel musical de Tragtenberg. O piauiense Emerson Boy, por exemplo, fez teatro de rua no Brasil e na Europa, participou da banda de rap abrasileirado Tiroteio e faz shows pela Vila Madalena a bordo do "jegue elétrico", uma Brasília antiga com um palco improvisado. "Se não tenho espaço privado para mostrar meu trabalho, vou para as ruas."

Dona Yuko, também professora de koto, fala do ineditismo de estar ao lado de cantadores nordestinos: "Nunca convivi, só com japoneses. No começo a gente sofreu, porque não sabia como fazer". "Fica cada um na sua, ninguém entra no estilo do outro. Convivemos bem com as japonesas, elas são muito boazinhas, estão sempre sorrindo. Os repentistas a gente não entende muito bem, porque falam muito rápido. É um sarro", descreve Ruben Vera, mexicano criado no Paraguai.

Tragtenberg toma partido dos artistas semi-invisíveis da "neurópolis": "É mais fácil trabalhar com essa turma que com músico tradicional. Eles não têm preconceitos, são sobreviventes. E são profissionais, não é papo de ONG music, inclusão social. É um trabalho musical. Venho intoxicado de tanto artista e babaquice do circuito cultural, onde só tem nego reclamando, para mim é oxigênio puro".

Segundo ele, a era da Internet propicia, para os músicos das ruas, uma tomada de posse do próprio trabalho. "Ali na rua o CD não ficou obsoleto. Estão dando uma lição tremenda no mercado. E o público reconhece, compra como gesto de solidariedade. Isso se perdeu totalmente na classe média, em que artista é só símbolo de status, de ir ao Credicard Hall."

Ladrão rico vive muito porque sabe planejar/ e ladrão pobre morre logo porque não sabe roubar, cutucam Pardal e Ivan nas ruas. Na jornada da segunda 4, esgotaram o CD e arrancaram gargalhadas e trocados. Reagiram com humor à desconfiança de passageiros que, descrentes de estarem diante de artistas "de verdade", não reconheciam Ivan na capa do CD. Entraram em ônibus amistosos e hostis, inclusive um no qual não conseguiram nenhum centavo. Obtiveram montante suficiente para garantir a féria média mensal entre 1,2 mil 2 mil reais cada um.

Esperam receber em casa os exemplares prometidos de CartaCapital, assim que a reportagem chegar às ruas. Desta vez, ninguém vai aparecer no Linha Direta.


A CÉU ABERTO
Os músicos que viveram o relento antes de se tornarem profissionais

Hoje conhecidos nacionalmente, os emboladores pernambucanos Caju e Castanha cumpriram trajetória acidentada desde que, ainda crianças, foram focalizados no documentário Nordeste: Cordel, Repente, Canção, de Tânia Quaresma, de 1975.

Chegaram em São Paulo há 20 anos, e fizeram via sacra antes de conseguir aparecer pela primeira vez no programa Som Brasil, de Rolando Boldrin. "Dormimos embaixo de viaduto, embaixo do Minhocão. Fazíamos cantoria na Sé, no Viaduto do Chá, atacamos em tudo quanto é lugar. Passamos seis anos sem ter casa, dormindo na praça, morando às vezes em casa de amigos em Santo Amaro", lembra Castanha.

A fama só cresceu a partir de 1997, quando o conterrâneo Lenine usou na música A Ponte um trecho dos dois no documentário de 1975. A Trama os contratou, e o cineasta Walter Salles filmou o curta-metragem A Saga de Castanha e Caju contra o Encouraçado Titanic, exibido em Cannes. O Caju original morreu, e foi substituído pelo Caju atual, ou Cajuzinho.

Embora a trajetória se assemelhe, até geograficamente, à dos cantadores de hoje em dia no largo 13, a vivência de rua não é exclusividade de emboladores e repentistas. Ao contrário, é familiar a muitos artistas de MPB, a maioria dos quais não costuma falar publicamente do assunto.

Exceção à regra é o músico goiano Odair José, que, numa entrevista a CartaCapital, em 2006, falou sobre a vida nas ruas quando chegou ao Rio, nos anos 60. "Eu dormia na praia, depois comecei a dormir na escadaria do Teatro Municipal. Aí descobri o aeroporto Santos Dumont, dormia no banheiro. O cara que fazia limpeza sabia que eu ficava ali num canto", disse.

Relato mais contundente é o de Seu Jorge, que viveu nas ruas cariocas bem antes de ser ator em Hollywood: "Nego não sabe o que é ter que fazer cocô e xixi na rua, não sabe o que é dormir num papelão" (CartaCapital 384).

Nos anos 70, antes de ser revelado com o grupo Secos & Molhados, Ney Matogrosso sobreviveu de artesanato, em feiras hippies do Rio. Alguns artistas colocam fragmentos da experiência em letras de música, como é o caso do cearense Belchior (o sol não é tão bonito para quem vem do norte e vai viver na rua, em Fotografia 3x4) ou do paraibano Zé Ramalho (em Garoto de Aluguel).

Os nômades e mambembes remontam às origens da música moderna, como atesta a trajetória de Orestes Barbosa, morador de rua quando menino, jornalista e compositor quando adulto, autor para sempre de versos como a porta do barraco era sem trinco/ e a lua furando nosso zinco/ salpicava de estrelas nosso chão (de Chão de Estrelas). – PAS